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REvisão Resumo A avaliação do prolapso genital constitui uma etapa importante do exame ginecológico, devendo, sempre que possível, ser classificados os graus de prolapso por meio de métodos padronizados. Embora a afecção não possa ser considerada fatal, ela pode determinar sequelas importantes para a saúde da mulher, comprometendo a sua qualidade de vida. Como o prolapso genital só se torna sintomático quando o segmento prolapsado ultrapassa o introito vaginal, torna-se necessário o diagnóstico precoce com o objetivo de prevenir o estágio final da doença. A história da classificação do prolapso genital nos mostra o esforço dos pesquisadores para adquirir uma linguagem comum que permita a comunicação mais precisa da posição anatômica dos órgãos pélvicos. Abstract The assessment of genital prolapse is a major phase of the gynecological exam and, whenever is possible, the degree of prolapse should be identified by means of standard methods. Although the disease should is not considered fatal, it can bring significant sequelae to women’s health and determine negative impacts on quality of life. As the genital prolapse only becomes symptomatic when the segment exceeds the vaginal introitus, it is necessary to perform the early diagnosis in order to prevent the final stage of the disease. The history of classification of genital prolapse shows us the effort of researchers to acquire a common language that allows more precise communication on the anatomical position of the pelvic organs. Maíta Poli de Araujo1 Claudia Cristina Takano1 Manoel João Batista Castello Girão2 Marair Gracio Ferreira Sartori3 Palavras-chave Prolapso uterino Diagnóstico Classificação Keywords Uterine prolapse Diagnosis Classification 1 Médica do Setor de Uroginecologia e Cirurgia Vaginal do Departamento de Ginecologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp-EPM) – São Paulo (SP), Brasil 2 Professora-associada e livre-docente do Departamento de Ginecologia Unifesp-EPM – São Paulo (SP), Brasil 3 Professor titular do Departamento de Ginecologia da Unifesp-EPM – São Paulo (SP), Brasil A história da classificação do prolapso genital The history of genital prolapse classification Araujo MP, Takano CC, Girão MJBC, Sartori MGF FEMINA | Maio 2009 | vol 37 | nº 5274 Introdução Há muito tempo tem-se observado o prolapso genital feminino na espécie humana. O primeiro relato data de 1500 a.C., com registros no famoso Papiro de Ebers. Entretanto, foi o médico grego, Soranus de Ephesus, que realizou a primeira cirurgia de retirada do útero por via vaginal, em 120 d.C.1 Relaxamento e herniações das paredes vaginais não eram claramente reconhecidos até que o cirurgião francês Arnaud de Ronsil, em 1974, identificou o que chamou de hérnia obtura- dora.2 A partir dessa descrição, começaram os estudos na área da Ginecologia, pormenorizando-se as herniações da bexiga na parede vaginal anterior (cistocele), ou do reto na parede vaginal posterior (retocele), e o prolapso do útero.2 No século 18, reportou-se um prolapso vaginal tratado por amputação. A cirurgia foi feita por meio de uma ligadura na parte mais profunda do prolapso e excisão da parte distal. Entretanto, depois de sete dias, a paciente evoluiu com febre e morreu.2 Somente no final do século 19, devido aos esforços de um ginecologista de Baltimore, Doutor Howard A. Kelly, houve sucesso no tratamento dos prolapsos genitais.2 Em seus estudos, Kelly observou que o útero ocupava várias posições e que seria necessária uma descrição acurada e individualizada do órgão. Publicou uma lista de doze itens que deviam ser detalhados no exame vaginal e reconheceu duas maiores variedades do prolapso de útero: completo e incompleto.2 Mesmo com o alerta do Doutor Kelly, cientistas e médicos adotavam classificações arbitrárias na definição do prolapso, o que dificultava a comparação dos resultados. Friedman e Little, em 1961, publicaram um artigo que expli- cou os problemas dos modelos existentes para avaliar o assoalho pélvico, e concluíram que “se avaliarmos todas as classificações, aparecem grandes diferenças, que não são reprodutíveis quando a paciente muda de posição”.3 Nesse trabalho, os autores mostram um desenho que compara as diversas classificações do prolapso de útero, no qual ficavam evidentes as distorções da localização do prolapso (Figura 1). A classificação de Baden e Walker Foi somente em 1968 que Baden e Walker introduziram um novo conceito na avaliação do assoalho pélvico: o perfil vaginal. O método, também chamado half-way grading system (sistema de graduação em metades), fixava um ponto de referência para medir o prolapso e padronizava os escores em metades.4 Nesse sistema de classificação, o relaxamento vaginal seria avaliado em seis sítios: dois na parede vaginal anterior (cistocele e uretrocele), dois no ápice da vagina (enterocele e prolapso do útero ou cúpula vaginal) e dois na parede vaginal posterior (retocele e laceração do períneo). As notas seriam graduadas de zero (melhor possível) a quatro (pior possível) e, então, expressas em números.4 A classificação de Baden e Walker foi a primeira que analisou de forma separada as estruturas da vagina.5 Nessa classificação, são utilizadas denominações distintas para os diferentes com- partimentos. A distopia da uretra e da bexiga seria classificada em 0, 1º, 2º, 3º e 4º grau; a distopia da parede vaginal posterior classificada em leve, moderada e grave; e o prolapso uterino em 1º, 2º e 3º graus. A classificação da Sociedade Internacional de Continência Por muitos anos, a classificação de Baden e Walker, modificada ou não, foi a mais utilizada. Entretanto, críticas à subjetividade do método e à falta de trabalhos avaliando a confiabilidade e reprodutibilidade inter e intraobservador foram feitas.6,7 Assim, no ano de 1993, ocorreu o encontro anual da Sociedade Internacional de Continência (International Continence Society, ICS) e foi criado um Comitê Internacional Multidisciplinar, composto por membros da ICS, da Sociedade Americana de Uroginecologia (American Urogynecologic Society, AUS) e da Socie- dade de Cirurgiões Ginecológicos (Society of Gynecologic Surgeons, SGS), que esboçaram um documento de padronização de uma nova terminologia do prolapso de órgãos pélvicos.8 No início de 1994 e final de 1995, o rascunho final circulou entre membros de todas as três sociedades, e estudos de reprodutibilidade em seis centros dos Estados Unidos e Europa foram completados.9 O documento padronizado foi formalmente adotado pela ICS Fonte: adaptado de Friedman e Little3 2º 2º 2º 2º 2º 3º 3º 1º 1º 1º 1º 1º 3º 3º 4º 3º Incompleto Completo Chalfant 1946 Novac 1948 Johonston 1952 Wilson 1954 Kelli 1898 IV III II I B I AMetade superior da vagina Estadiamento proposto Metade inferior da vagina Vestíbulo Figura 1 - Classificações arbitrárias do prolapso de útero. Observar as diferentes interpretações dos prolapso de 1º, 2º e 3º graus A história da classificação do prolapso genital FEMINA | Maio 2009 | vol 37 | nº 5 275 em outubro de 1995, pela AUS em janeiro de 1996 e pela SGS em março de 1996.10 O novo sistema de avaliação do prolapso genital foi chama- do de Pelvic Organ Prolapse Quantification (POP-Q). O método incorporou conceitos de classificações prévias: os estádios são similares ao sistema de Friedman e Little, de 1968, e a medi- ção dos vários pontos na vagina assemelha-se à classificação de Baden e Walker.10,11 Segundo o Comitê de Padronização, a avaliação clínica da anatomia do assoalho pélvico deve ser determinada durante o exame físico da genitália externa e canal vaginal.12 Termos como cistocele, retocele e enterocele devem ser substituídos, pois conferem uma certeza irreal de estruturas que estão do outro lado da mucosa vaginal. O examinador deve ver e descrever a máxima protusãonotada pela paciente durante suas atividades diárias. Para tanto, deve-se sempre relatar a posição da paciente, tipo de mesa ou cadeira usada, e tipo de manobra solicitada para a visualização do prolapso (Valsalva ou tosse).10,13 O prolapso deve ser avaliado em relação a um ponto ana- tômico fixo facilmente identificado. Estabeleceu-se o anel himenal como ponto de referência para a medida do prolapso. As posições dos pontos são dadas em centímetros com números negativos quando acima do hímen e positivos quando distal- mente ao hímen.10 De uma forma simplificada, semelhante à classificação de Baden e Walker, no POP-Q existem dois pontos na parede vaginal anterior (Aa, Ba), dois pontos no ápice da vagina (C, D) e dois pontos na parede posterior da vagina (Ap, Bp). Acrescentaram-se a esses seis pontos o comprimento total da vagina (CVT), o hiato genital (HG) e o comprimento do corpo perineal (CP) (Figura 2). Todos os pontos, exceto o comprimento vaginal total, de- vem ser medidos enquanto a paciente realiza força (manobra de Valsalva ou tosse). As posições dos seis pontos da vagina devem ser apresentadas em centímetros. Os pontos complementares (HG, CP e CVT) não apresentam sinais positivo ou negativo, pois são considerados comprimentos e não posições em relação ao hímen. Esse perfil vaginal permite uma descrição precisa da anato- mia de cada ponto aferido.14 Entretanto, como existem várias combinações, também é possível apresentar os resultados por meio de um estadiamento (de 0 à IV), no qual a nota final estará de acordo com a porção mais prolapsada.7,10 Como o POP-Q é um sistema descritivo que avalia uma série de componentes listados separadamente e expressos em um sistema de graduação, ele permite uma observação acurada e precisa de sítios anatômicos e da estabilidade ou progressão do prolapso ao longo do tempo.10 Assim, diversos estudos foram feitos para avaliar a confiabilidade e reprodutibilidade do método. A importância dos estudos de confiabilidade e reprodutibilidade Hall, em 1996, mostrou que a confiabilidade inter e intra- observador foi extremamente alta para todos os pontos aferidos do POP-Q.8 Em nenhum caso houve variação maior do que um estádio e, em 69% dos casos, o estadiamento realizado pelos dois observadores foi idêntico. Da mesma forma, houve forte correlação intraobservador, com 64% de coincidência nos estadiamentos. No mesmo ano, Kobac et al. determinaram a concordância interobservador tanto do POP-Q como do perfil vaginal de Baden e Walker.6 Para tanto, 49 pacientes foram examinadas por avaliadores cegos, um do resultado do outro, e classificadas pelos dois métodos. O índice Kappa foi de 0,79 (p<0,001) para o POP-Q e 0,68 (p<0,001) para o perfil vaginal, o que demonstrou boa confiabilidade interobservador dos dois métodos.6 Em nosso meio, Feldner et al., em 2003, também demons- traram correlação interobservador significativa para as medidas avaliadas.7 O índice de correlação para o ponto Aa foi de 0,89 (p<0,0001), para o ponto Ba de 0,90 (p<0,0001), para o ponto C de 0,97 (p<0,0001), para o ponto Ap de 0,72 (p<0,0001), para o ponto Bp de 0,84 (p<0,0001), para o ponto D de 0,91 (p<0,0001), para o hiato genital de 0,65 (p<0,0001), corpo perineal de 0,66 (p<0,0001) e comprimento vaginal total de 0,73 (p<0,0001). Bezerra et al., em 2004, compararam a classificação de Baden e Walker ao POP-Q15. Nesse caso, o trabalho mostrou que para Figura 2 - Pontos anatômicos da classificação de POP-Q Fonte: adaptado de Bump et al., 1996.10 Araujo MP, Takano CC, Girão MJBC, Sartori MGF FEMINA | Maio 2009 | vol 37 | nº 5276 Leituras suplementares os três tipos de prolapsos examinados, os valores da estatística Kappa estavam abaixo de 0,4, o que indica fraca concordância entre as duas terminologias. Houve correspondência de 100% somente para o prolapso de parede vaginal posterior estádio IV e para o prolapso uterino estádio zero segundo Baden e Walker. Mesmo com as vantagens do POP-Q, somente 40,2% dos membros da ICS e da AUGS usam a classificação rotineiramente por acreditarem que o exame demanda muito tempo e trabalho.15 A própria ICS propôs, em 2006, uma simplificação do POP-Q com apenas quatro pontos.16 Nesse estudo, a confiabilidade interexaminador foi de 0,90, 0,83 e 0,87, respectivamente para a parede anterior, posterior e cúpula vaginal e de 0,98 para qualquer estádio. Conclusões A história da classificação do prolapso genital sempre teve confusões e, até recentemente, os sistemas de classificação eram baseados em preferências regionais sem um sistema universalmente aceito. Com o reconhecimento da classificação de Baden e Walker e com os estudos de confiabilidade e reprodutibilidade do POP-Q, os médicos e pesquisadores adquiriram uma linguagem comum que permite a comunicação mais precisa da posição anatômica de órgão pélvico. Portanto, torna-se fundamental o ensino das duas classificações já na Faculdade de Medicina, e não apenas nos cursos de Especialização em Uroginecologia, a fim de permitir a comparação dos resultados entre os profissionais. 1. Drutz HP, Alarab M. Pelvic organ prolapse: demographics and future growth prospects. Int Urogynecol J. 2006;17(1):S6-S9. 2. Beecham CT. Classification of vaginal relaxation. Am J Obstet Gynecol. 1980;136(7):957-8. 3. Friedman EA, Little WA. The conflict in nomenclature for descensus uteri. 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Bezerra LRPS, Feldner Junior PC, Girão MJBC, Sartori MGF, Baracat EC, Lima GR. Padronização da terminologia do prolapso pélvico feminino. Femina. 2003;31(9):755-9. 14. Groenendijk AG, de Blok S, Birnie E, Bonsel GJ. Interobserver agreement and intersystem comparison of the halfway system of Baden and Walker versus the pelvic organ prolapse-quantitation prolapse classification system in assessing the severity of pelvic organ prolapse. J Pelvic Med Surg. 2005;11(5):243-50. 15. Bezerra LRPS, Oliveira E, Bortolini MAT, HamerskiMG, Baracat EC, Sartori MGF, et al. Comparação entre as terminologias padronizadas por Baden e Walker e pela ICS para o prolapso pélvico feminino. Rev Bras Ginecol Obstet. 2004;26(6):441-7. 16. Auwad W, Freeman RM, Swift S. Is the pelvic organ prolapse quantification system (POP-Q) being used? A survey of members of the International Continence Society (ICS) and the American Urogynecologic Society (AUGS). Int Urogynecol J. 2004;15(5):324-7.
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