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© 1969 – LOU CARRIGAN TRANSIBERIANO Ilustração de capa por Benicio Colaboração de Carlos Natali ® 530614 CAPÍTULO PRIMEIRO Tipos em contraste Muitas são as maneiras de entrar e sair da Rússia A ajuda de ninguém Os dois homens entraram na taberna do porto de Pireu, por onde Atenas tem seu contato com o mar. Uma taberna acanhada, de paredes brancas e grandes arcadas que ainda mais apequenavam o recinto destinado aos clientes. Um deles permaneceu quase no umbral, segurando ainda os fios da cortina de contas coloridas, enquanto olhava com indiferença a seu redor. O outro tocou-lhe suavemente com o cotovelo e, ao ser interrogado com um olhar, indicou com o queixo um dos fregueses sentado a uma mesa, sozinho. Depois ambos se dirigiram ao balcão, onde alguns frequentadores de negríssimos cabelos e grandes bigodes bebiam e riam alegremente. Apoiaram-se um instante a ele e, ao aproximar-se o garçom, um apontou para a mesa do homem solitário. — Leve-nos uma jarra de vinho para lá. O garçom assentiu e os dois homens caminharam a passo lento para onde estava aquele tipo isolado, que também tomava seu vinho, sossegadamente, com o aspecto de quem está dedicando uns minutos a beber e refletir, esquecendo o mundo que o rodeia. Era um homem interessante, decerto. Havia mais mesas ocupadas, mas apenas ele estava só. Entretanto, não era isto o que fazia destacar-se dos demais e sim seu aspecto físico. Tendo-se em conta a enormidade de seu tórax, podia-se calcular sua estatura em um metro e oitenta e cinco, pelo menos. Ombros poderosos, pescoço musculoso, mãos grandes e bem feitas, bronzeadas pelo sol. Mesmo sem vê-lo completamente, podia-se adivinhar que seu corpo era atleticamente perfeito, sem exageros de musculatura, mas forte como aço. O mais notável, entretanto, era seu rosto, de maxilar agressivo e boca firme, que parecia talhado em granito. Tinha o nariz reto e a testa Usa. Os cabelos, algo rebeldes, eram cor de cobre. E naquele rosto, o que mais impressionava eram os olhos: grandes, negros, inteligentes, dando a impressão de que nada poderia ocorrer perto dele sem que tais olhos imediatamente vissem. Pouco importava sua indolência, sua aparente indiferença. Tudo quanto acontecesse dentro dos limites do campo óptico daquele homem seria percebido por seus frios, serenos olhos negros. Mas, isto sim, nenhuma de suas feições se alteraria. E, com efeito, não se alteraram quando os dois recém- chegados se detiveram diante de sua mesa e ficaram expectantes, aparentemente um tanto dominados pelo seu olhar. O contraste era absoluto entre eles, e muito desfavorável aos que permaneciam de pé, sem dúvida, começando por suas espalhafatosas roupas listradas e camisas de gola aberta, em contraposição ao simples trajo castanho do homem sentado, seu jérsei negro de gola alta, e terminando por seus rostos esbranquiçados e vulgares, em tudo opostos ao semblante viril e enérgico do bebedor solitário. Após alguns segundos de constrangimento, um dos dois perguntou: — Number One? Os olhos negros não se alteraram e a resposta, em grego, foi interrogativa: — Como dizem? Os dois homens trocaram um breve olhar inquieto. — Não é Número Um? — insistiu o mesmo de antes. — Se estão procurando alguém, devem estar enganados, senhores. Não os conheço. — Bem... Foi-nos dito que viéssemos a esta taberna, hoje, a esta hora. E entendemos que seria possível o contato... O senhor deve ser a pessoa que procuramos. — Por que motivo creem que sou essa pessoa? — Talvez por sua aparência... A pessoa que procuramos, se está nesta taberna, só pode ser o senhor. Entretanto — apressou-se a acrescentar o homem —, talvez pensemos que o senhor é Número Um pelo simples fato de que o meltemi sopra no verão. A última frase foi dita intencionalmente e o solitário bebedor de vinho assentiu com a cabeça, esboçando um pequeno sorriso irônico. — Sentem-se... — disse. — Com efeito, o meltemi refresca as ilhas gregas durante o verão. É um vento... simpático. Os dois homens sentaram-se. Um deles colocou sobre a mesa uma pasta de couro negro, à qual o chamado Número Um dirigiu um olhar rápido. O garçom chegou à mesa, trazendo a jarra de vinho e dois copos. Quando se afastou, o outro ergueu a jarra, olhando para Número Um. — Mais vinho? — ofereceu. — Ainda tenho em minha jarra. E nunca bebo das jarras alheias. — É uma medida prudente. Eu sou Zorevic — serviu-se de vinho e passou a jarra a seu companheiro — e ele é Fanikar. Espero que, finalmente, admita que é Número Um. — Sou. Os senhores são tchecos? — Somos. — Que querem de mim? — Que faça uma viagem bastante longa. Para isso lhe pagaremos cem mil dólares. — Destino? — Moscou. — Motivos? Zorevic e Fanikar outra vez entreolharam-se. — Bom... — disse este. — Entendemos que é um homem especial, Número Um. Em todos os sentidos, realmente. Até dois anos atrás, as façanhas de Número Um eram o assunto preferido de todos os espiões na Europa. Evidentemente, sabia-se que trabalhava para a CIA, de onde a conclusão, talvez errônea, de que é americano. Ê? — Talvez. — Por favor, responda com clareza. Para este trabalho é imprescindível que seja americano. É? — Sou. Mas se estão procurando um contato com a CIA, perdem seu tempo. — Não, não... Sabemos muito bem que algo aconteceu entre Número Um e a CIA. Consta que esta o traiu, que o... vendeu. Supomos que para fazer isso a CIA tivesse enormes interesses em jogo. Mas é algo que não vem ao caso. O que importa são os rumores atuais. Segundo estes, depois de ser traído pela CIA, Número Um dedicou-se à espionagem por conta própria. Quero dizer com isto que, segundo consta, trabalha para quem paga, não cogitando se o dinheiro é russo, americano, francês, tcheco, alemão, chinês... Isto é verdade? — É. — Ótimo. Queremos que entenda bem, desde o princípio, que o senhor não nos interessa pessoalmente. Interessa-nos apenas seu trabalho. Pensamos muito antes de decidir-nos, mas, ao fazê-lo, quisemos escolher o melhor espião que jamais tenha existido... — Estão exagerando, não acham? — Nós, não. Se houver exagero, será dos que falam de Número Um. Se os espiões profissionais asseguram que é o melhor, não temos nenhuma razão de duvidar. Não queremos saber onde vive, que nome usa, quais seus projetos no momento, se possui família... Insisto em que, pessoalmente, não nos interessa. Queremos apenas encarregar do trabalho um homem que seja capaz de realizá-lo... antes de qualquer coisa. E esse homem é o senhor. — Que querem que eu faça? — Em primeiro lugar, manter em absoluto segredo sua viagem. Sabemos que tem amigos em toda a Europa, no Norte da África... Possivelmenté, terá também amigos na América e inclusive na África. Outra das coisas que se dizem a seu respeito é que conta com recursos ilimitados, justamente por essa rêde de colaboradores que lhes são fiéis até à morte. Mas, no caso atual, não deverá recorrer a eles. Não deverá recorrer a ninguém. Nós lançamos o chamado a Número Um, alguém o recebeu, avisou-o, notificou-nos de que deveríamos vir aqui e a aqui estamos. Mas a partir deste momento esquecerá todos os seus amigos. Trabalhará absolutamente sozinho. — Sempre trabalho só. Meus amigos fazem apenas pequenas coisas, subsidiariamente. Se estão de acordo, não falemos mais a meu respeito e passemos ao assunto. Que devo fazer em Moscou? Eliminar alguém? Olhou friamente para Zorevic, o qual sorriu, trocando um novo olhar com seu companheiro. — Se supõe que seu trabalho se relacione de algum modo com qualquer espécie de represália ou rancor tcheco contra a Rússia, está enganado. Sua missão absolutamente nada terá a ver com a invasão da Tchecoslováquia pelos russos. — Isso não me importaria. O que está me fatigando é que não falem claro comigo. Qual é o motivode minha viagem a Moscou? — Levar uma garrafa de uísque. O imperturbável rosto de Número Um alterou-se um instante, revelando autêntica surpresa. — Levar uma garrafa de uísque? — repetiu. — Apenas isso. — Acho que estão pagando regiamente um serviço tão simples, senhores. Porque, se pensaram que terei dificuldades para chegar a Moscou, devo desenganá-los; conheço dezessete maneiras de atravessar a Rússia em todas as direções e vinte e duas de entrar em Moscou, bem como trinta e quatro de sair dessa cidade e sessenta e duas de escapar da Rússia. Fanikar e Zorevic estavam atônitos. — Não é possível... — É — sorriu brevemente Número Um. — E se todo o problema consiste em chegar a Moscou, creio que deviam procurar outro espião mais... barato. Hoje em dia, chegar ao coração da Rússia está ao alcance de qualquer, ou pouco menos. Pela quarta parte dessa soma que me oferecem, qualquer espião levará essa garrafa a Moscou. — Bom... Talvez devamos esclarecer um ponto. Não queremos que essa garrafa chegue via Europa. — Via América, talvez? — Número Um apertou as pálpebras. — Via Sibéria. — Não. Um serviu-se de mais vinho, bebeu-o lentamente, depois passou a língua pelos lábios, pensativo. — Que contém a garrafa? — perguntou. — Uísque. — Ora, vamos... — Deve convir que não temos que lhe dar explicações. Temos somente que dar-lhe cem mil dólares. Em troca disso, irá a Moscou, via Sibéria, para levar a garrafa. É tudo. Diga- nos apenas se lhe interessa ou não. — Como faria a viagem? Em etapas aéreas? — Daqui a Tóquio, sim. De Tóquio a Vladivostok, primeiro de barco e depois num pequeno trem. Em seguida, o Transiberiano. — Devo atravessar toda a Ásia de trem? — No Transiberiano, justamente. Alguma vez já fez essa viagem? — É possível. Que teria que fazer com a garrafa, finalmente? — Entregá-la a uma pessoa. — Ao chegar a Moscou? — Isso não depende de nós. Em determinado momento, alguém o abordará, dará a senha combinada e o senhor lhe entregará a garrafa. Tanto se estiverem em Moscou como a três mil quilômetros da capital russa. — Qual é essa senha? — Ser-lhe-á comunicada em Hong Kong, que é onde lhe será entregue a garrafa de uísque, salvo uma modificação de planos que oportunamente lhe anunciaremos. — Isto quer dizer que os senhores e eu tornaremos a ver- nos, não é assim? — Realmente. Tudo bem compreendido? — Sem dúvida — murmurou Número Um. — Que deverei fazer, uma vez tenha entregado a garrafa de uísque a quem me der a senha? — Nada. A partir desse momento, seu trabalho estará terminado e já não haverá ligação de qualquer espécie entre o senhor e nós. Missão cumprida. — Parece um trabalho fácil — sorriu Número Um. — Para o senhor, sim. Aceita? — Quando receberei o dinheiro? — A metade agora. A outra metade será depositada num banco da Suíça e poderá sacá-la quando terminar seu trabalho. A pessoa que receber a garrafa lhe entregará um cheque perfeitamente legal, com que poderá retirar o dinheiro. Não temos a menor intenção de enganá-lo. — Seria uma estupidez — comentou Número Um, tranquilamente. Fanikar empurrou sua pasta para o espião sem pátria. — Aqui tem a primeira metade. São sessenta mil dólares... Cinquenta mil limpos, para o senhor. Os outros dez mil para os gastos. Número Um abriu a pasta e lançou uma olhadela a seu conteúdo, folheando os maços de dinheiro. Evidentemente, ali não podia haver muito menos de sessenta mil dólares. E pensar que iriam enganá-lo nuns poucos milhares seria absoluta tolice. Fechou a pasta, deixou-a sobre a mesa e olhou os dois homens. — Gosto que confiem em mim — declarou. — Espero que entendam que nada me seria mais fácil que desaparecer com este dinheiro. — Naturalmente. Mas sabemos que não fará isso — sorriu Fanikar. — Sabem? Estão certos de que jogarei limpo? — Estamos. Como já lhe foi dito, sabemos muitas coisas a seu respeito. Para falar a verdade, só nos faltava conhecê-lo pessoalmente. Quanto ao resto, nossa confiança no senhor é completa. Estamos convencidos de que realizará seu trabalho. — Por que tão convencidos? — É um motivo de ordem psicológica. Quando um espião atinge o mais elevado grau de competência profissional, isto quer dizer que é um espião nato. O senhor, evidentemente, nasceu para espionar. Sua inteligência e cultura lhe permitiriam dedicar-se com notável êxito a qualquer outra atividade... mas não o fará enquanto estiver em condições de continuar praticando a espionagem. Enquanto seu corpo e sua mente responderem, o senhor será espião. Gosta do trabalho, vive dele e para ele. Estamos certos de que não deixará um sem fazer só para embolsar uns míseros sessenta mil dólares. Temos certeza de que já possui muito dinheiro, a ponto dessa importância que lhe entregamos poder parecer-lhe ridícula... mas principalmente se comparada com a satisfação de realizar mais um trabalho, de espionar, de lutar... Não, Número Um, não temos a menor dúvida de que irá a Moscou entregar a garrafa. — Talvez nos enganemos, Fanikar — disse Zorevic, sorrindo. — Que ele responda — sorriu também Fanikar. E por sua vez sorriu Número Um. — Não... — disse quase divertido. — Não se enganam. Farei esse trabalho. Detesto o ócio. Não sou uma pessoa capaz de aborrecer-se, mas detesto os ociosos. Levarei a garrafa a Moscou. — Ótimo. Oh, mas lembre-se de que talvez a peçam antes. — Não esquecerei. Agora, senhores, quero esclarecer um ponto muito importante: meu preço por este trabalho são quinhentos mil dólares. Zorevic e Fanikar empalideceram. — Está louco! — quase gritou o primeiro. — Não gosto da Sibéria — disse Número Um. — Eis tudo. — Mas quinhentos mil dólares para atravessar a Sibéria... — Não, não. É que há outro serviço complementar por minha parte. Vieram sozinhos? — Claro... — Então, estão sendo vigiados... Não se virem! Por que não bebem um pouco mais de vinho? Tranquilos. Fanikar serviu vinho nos dois copos. — Quem nos vigia? — sussurrou Zorevic. — Dois homens. Entraram separadamente, pouco depois dos senhores. Trocaram apenas um olhar, mas é suficiente... para mim, pelo menos. Tudo isto tem algo a ver com o MVD soviético? — Bom... — É evidente que tudo quanto se relaciona com a Rússia tem a ver com o Ministerstvo Vnutrennikh Dgel, ou, se o quiserem em grego, com o Ministério do Interior. Na verdade, o que queria perguntar- lhes era se já tiveram algum contato ou tropeço com o serviço secreto russo. — Não. Nenhum, pode crer. — Nesse caso, deveremos uma vez mais admirar o sistema de espionagem e contraespionagem soviético. E, por consequência, suponho meu dever opinar que são ambos os senhores muito inábeis. Ou que estão me enganando. — Em que poderíamos enganá-lo? — murmurou nervosamente Zorevic. — Não sei. Mas compreendam que tudo isso da garrafa de uísque é uma... tolice. Que contém a garrafa? — Já lhe dissemos que... — Não creio que contenha uísque. É absurdo. Mas não vou perguntar mais nada. Eu farei o trabalho... Se se pode chamar trabalho levar uma garrafa a Moscou. Entrementes, insisto em que meu serviço aos senhores deverá começar agora mesmo. Devem compreender que não penso deixar-me seguir por nenhum agente da MVD. — Não lhe estamos preparando nenhuma cilada, se é isso o que pensa! — exclamou Zorevic. — Geralmente, não costumo ser truculento — disse Um, com um frio sorriso. — Mas digo-lhes que se tivesse suspeitado isso, ambos já estariam mortos. Creio que o melhor será sairmos daqui, por enquanto. — Mas não resolvemos tudo ainda... — Pouco resta a resolver. Aceitam meu preço ou não? — Quinhentos mil dólares é um preço excessivo. — É o meu preço. De qualquer modo, embora não aceitem, gostaria de não deixá-los na enrascada. Estão armados? Posso ajudá-los a sair daqui com certa segurança, se desejarem. — Recusaos cem mil dólares? — Definitivamente. Quinhentos mil. Fanikar e Zorevic entreolharam-se, agora com desalento. — Serão quinhentos mil — disse o segundo. — Não quero ocultar que necessitamos de seu serviço. — Onde e quando nos veremos? — Já lhes dissemos que em Hong Kong. Dentro de quatro dias... Podemos sugerir-lhe uma linha de viagem aérea: de Atenas a Teerã, depois a Nova Deli, a Saigon e finalmente a Hong Kong. “American Hotel”, em Queen Road. — Perfeito. Não esqueçam que o cheque que receberei ao entregar a garrafa deverá ser de quatrocentos e cinquenta mil dólares. Nenhum engano a este respeito. Os senhores não poderiam localizar-me ainda que vivessem cem anos, mas eu os localizaria em duas semanas. Além disso, talvez, em lugar de entregar a garrafa, eu resolvesse bebê-la. Número Um notou claramente o sobressalto dos dois tchecos. — Não faça isso... — excitou-se Fanikar. — A garrafa irá fechada e selada. Em hipótese alguma deverá beber esse uísque. — Com quinhentos mil dólares poderei comprar muitas caixas de uísque — sorriu Número Um. — Se não têm nada mais a dizer-me, podemos ir. — E esses dois homens? — Tenho uma lancha no cais. Pelo caminho, pensaremos a respeito disso. Ultimamente fiz alguns trabalhos para os russos, de modo que preferiria não me inimizar seriamente com eles. Entretanto, temo que a decisão esteja fora de meu controle. Vamos? Número Um levantou-se, deixou umas células sobre a mesa e apanhou a pasta. Dirigiu-se tranquilamente para a saída, seguido pelos dois tchecos, que precisaram fazer um grande esforço para não olhar a seu redor, tentando localizar os dois homens mencionados por ele. Número Um afastou a cortina colorida, deixando passar aqueles que vinham de oferecer-lhe um formidável contrato de espionagem. Saiu atrás, sem olhar uma só vez para os dois indivíduos que supunha agentes do MVD russo. Fora soprava uma brisa fresca, possivelmente uma ramificação do meltemi, o vento que procede do Egeu e torna agradável o clima das ilhas. O ex-agente da CIA indicou o cais, onde se viam diversas embarcações, muitas delas com suas luzes vermelhas acesas. Mais além, a escuridão do mar com suas cintilações douradas sob a lua crescente. As velas de alguns barcos eram como manchas brancas no ambiente noturno. — Não se voltem. Até eles chegava o som vibrante de um sirtaki, a guitarra grega, proveniente de outra das tabernas, mais iluminada que aquela onde se efetuara o contato de que resultara um contrato por meio milhão de dólares. Algumas mulheres cruzaram com os três, sorrindo-lhes de maneira promissora, mas sem nenhum sucesso. Dois deles pareciam assustados e o outro dava a impressão de totalmente infensos às seduções do amor mercenário. Quando chegaram ao ponto onde Número Um tinha sua lancha, ele a indicou. — Posso deixá-los em Salamina ou Megara, se lhes convém. Não creio que estejam preparados para seguir-nos por mar. Zorevic e Fanikar saltaram à lancha, moderna, de aspecto estilizado; devia ser muito veloz. Número Um foi o último a abordá-la, dirigindo-se diretamente aos controles. — Salamina ou Megara? — perguntou. — Deveríamos ficar em Atenas... — murmurou Zorevic. — Além disso, julgamos que eles nos identificaram, o que é muito perigoso. Possivelmente, tiraram microfotos... Não creio que isso convenha a nenhum de nós três. — Querem que os mate? — Bom... Seria o mais acertado, tendo em vista a segurança de todo este assunto. Não será a primeira vez que mata, creio. — Por segurança pessoal ou sobrevivência — esclareceu secamente Número Um. — Este é o caso agora. — Não me parece que esses dois tipos possam causar-me sérias dificuldades — sorriu o espião. — O senhor está agora trabalhando para nós por quinhentos mil dólares. Aceitou o contrato. Ou não? — Claro que sim. — Neste caso, cumpra a primeira ordem: mate esses dois homens. Número Um olhou-os alternadamente, o rosto como se fosse de pedra. — Okay. Sabem manejar uma lancha? — Sim. — Deem uma volta pelo posto e regressem dentro de... três minutos. Meteu a mão sob a axila esquerda e sacou uma automática espanhola, marca “Astra”, de nove tiros, já com o silenciador colocado. Retirou o pente, olhou-o e tomou a encaixá-lo com um golpe seco. Indicou a saída do porto, antes de saltar para os degraus de pedra que levavam do nível da água até a borda do cais. Fanikar encarregou-se dos controles t em poucos segundos a lancha partia, deixando uma esteira de brilhante espuma nas águas negras. Número Um permaneceu talvez um minuto na escada de pedra, olhando para cima, alerta, preparado para atirar. Decorrido o minuto, franziu a testa, olhou para direita e esquerda... Não havia nem sinal dos dois homens que ele detectara na taberna. A possibilidade de ter-se equivocado passou um instante por sua mente, mas descartou-a de imediato. Aos trinta e quatro anos, com quase quinze de espionagem profissional, era pouco provável que se pudesse enganar em algo tão simples como aquilo. Não sem certa apreensão, galgou os degraus de pedra, sempre alerta. Os dois sujeitos tinham que estar ali, talvez olhando para onde a lancha se dirigia e enviando pelo rádio uma mensagem a outros companheiros que disporiam de lancha. Ou talvez estivessem procurando desesperadamente uma lancha para seguir a dele... Tinham que estar ali, perto do cais. Não estavam. Já sobre as lajes de pedra, ergueu-se completamente, a todo risco. Acertar um alvo como o que oferecia tinha que ser fácil, com sua notável robustez e elevada estatura. Era apenas necessário acertar bem o primeiro tiro, pois se assim não fosse sempre lhe sobrariam energias para resolver a questão a seu favor. Tempos atrás, quando a CIA o vendera na jogada mais suja da espionagem mundial, recebera três balaços no peito... e ainda estava vivo. E não tinha sido muito longe dali, daquele mesmo lugar onde agora punha os pés... 1 Viu algumas pessoas caminhando mais ou menos perto dele, mas por completo alheias à sua presença. Ninguém lhe prestava atenção. Tudo parecia normal. E quanto aos dois homens que vira na taberna, não estavam à vista. Cenho carregado, desviou o olhar para as pilhas de caixotes armadas a menos de quinze metros de distância, formando degraus, deixando diversos corredores entre elas. E pareceu intensificar-se o olhar de seus olhos negros. Depois olhou de relance para os dois lados e, finalmente, dirigiu-se para as pilhas de caixotes. Estava a menos de 1 Ver aventura “Operação: Estrelas”, número 51 desta coleção. NR cinco metros delas, mando viu aparecer subitamente a mulher. Viu-a já de costas, caminhando garbosamente, com inegável força feminina, para as tabernas. Ainda se ouvia o artaki e a mulher, estalando os dedos, movia as pernas ao compasso da música. Umas pernas muito bonitas. E os longos cabelos pareciam negros. Número Um esteve tentado a não se dar o trabalho de percorrer os estreitos corredores entre as pilhas de caixotes. Talvez encontrasse ali algum homem, mas estaria relacionado com aquela mulher e não com os que ele buscava. Às vezes, entre umas pilhas de caixotes, tudo é mais simples e econômico que alugando um quarto num hotel do porto... Resolveu dar uma olhadela por ali, já que lhe restava um minuto e meio até que Zorevic e Fanikar regresassem com a lancha. Segundos depois, estava passando lentamente, pistola em punho, por entre as pilhas de caixotes. E viu o homem. De pé, ele apoiava-se fatigadamente em uns caixotes. Tinha a cabeça caída sobre o peito e seus braços pendiam, soltos, frouxos. Quando se deteve diante dele, viu seus olhos, abertos, estranhamente fixos no chão. Agarrou os cabelos do homem, lhe ergueu a cabeça e, enquanto o reconhecia como um dos dois que lhe tinham parecido espiõesrussos, ele desmoronava molemente, escapando de seus dedos, entre os quais deixou ficar alguns fios de cabelo. Número Um limpou a mão na calça e pôs um joelho no chão. Virou o corpo do homem, podendo assim ver com clareza a mancha de sangue que brilhava em seu peito. Sangue fresco, que ainda continuava escorrendo. Meia dúzia de passos mais além, viu os pés, de súbito. Os pés de um homem que estava estendido em decúbito dorsal entre as pilhas de caixotes. Deslizou silenciosamente até lá, agarrou um dos pés c puxou-o, de modo que todo o corpo do segundo homem apareceu ao resplendor da lua, que chegava ao estreito corredor formado pelos caixotes. Este segundo homem tinha os olhos fechados e a boca furiosamente torcida para um lado. Decerto fora aquela sua última expressão, antes que uma bala lhe perfurasse a testa, matando-o de modo fulminante. Sem possibilidade de dúvida, ali estavam os cadáveres dos dois que o vigiavam e aos tchecos na taberna. — A mulher — pensou Número Um. Ergueu-se e saiu a toda a pressa de entre os caixotes, sempre com a pistola na mão, mas ocultando-a atrás da perna direita. Não se decepcionou absolutamente ao constatar que a mulher tinha desaparecido; era lógico. Depois de eliminar dois homens, o normal é fugir com a máxima rapidez. E ele havia concedido tempo de sobra àquela mulher. Encontrar agora no cais do Pireu uma jovem de cabelos negros e bonitas pernas, coisas ambas que só pudera ver por trás, era algo absurdo. De modo que Número Um guardou sua pistola e retornou à beirada do cais. Poucos segundos depois, a lancha se detinha no mesmo lugar onde havia estado antes. Número Um saltou para ela e, colocando-se ao volante, lançou a veloz embarcação por sobre as águas do Golfo de Egina. — Matou-os? — perguntou Zorevic. — Estão mortos. — Os dois? — Claro. — Bom trabalho. Quinhentos mil dólares é muito dinheiro, certamente, mas seu trabalho os vale, sem dúvida alguma. — Quem mais trabalha com os senhores neste assunto? — Ninguém... Ninguém! — Estão mentindo — Número Um virou a cabeça para eles. — Mas não é de minha conta. Daremos uma volta e os deixarei em outro lugar deste mesmo cais. Então nos despediremos. A respeito do modo pelo qual chegarei a Hong Kong, suponho que isso não lhes cause preocupações. — Mas... não lhe agrada nosso itinerário? — Viajarei à minha maneira. — Bem... Tanto faz, contanto que esteja em Hong Kong na data combinada. E lembre-se, Number One: não deve recorrer a ninguém para que o ajude seja no que for. — Top secret — sorriu friamente o espião particular. — Em minha opinião, uma garrafa de uísque se esvazia melhor em boa companhia, mas, como se trata de não bebê-la e sim de levá-la pelo Transiberiano até Moscou, ou a um ponto intermediário, espero não necessitar da ajuda de ninguém. CAPÍTULO SEGUNDO Em Hong Kong a noite resplandece Acidente com um salto de sapato Bizarras da culinária chinesa — Com efeito, mister Coleman: recebemos seu pedido de reserva. Ocupará a suíte agora mesmo? — Se estiver disponível, sim — disse Número Um. — Quero tomar um banho imediatamente. — Está disponível desde ontem. Entendemos que sua reserva devia ser folgada. Evidentemente, deverá responsabilizar-se pelo dia de ontem também, visto que a suíte está reservada desde... — Compreendo — cortou Número Um. — E não me importa pagar um dia mais. É preferível isso a encontrar-se sem alojamento em Hong Kong. O encarregado da portaria do “American Hotel” aprovou com um movimento de cabeça a atitude sábia do cliente recém-chegado a Hong Kong. Certamente, era melhor pagar uns quantos dólares a mais que andar à procura de hotel naquela colônia britânica. Por outro lado, mister Clark Coleman parecia não carecer de nada. Saltava à vista que tinha tudo quanto um homem pode desejar: juventude, musculatura, inteligência, desembaraço, elegância... e dinheiro. O “American Hotel” de Hong Kong nada tem de barato. Mas mister Coleman, com suas duas grandes maletas, sua pasta e sua personalidade dominadora, além da excelente qualidade de suas roupas, teria que ser admitido gostosamente em qualquer hotel do mundo, por muito luxuoso que fosse... Enquanto anotava dados do passaporte do novo hóspede, o homem da portaria olhava com certo sorrisinho irônico para algumas damas que havia no vestíbulo e que desde o primeiro momento pareciam ter ficado hipnotizadas por ele. O elegante atleta como que emitia poderosas ondas de rádio, as quais se espalhavam simetricamente a seu redor, chegando a toda parte. — Suíte 217, mister Coleman... Boy! O boy que esperava perto do balcão, entre as duas maletas de Coleman, aproximou-se, recebeu a chave e, após introduzi-la num bolso da jaqueta, encarregou-se outra vez da bagagem, encaminhando-se diretamente para um dos elevadores. Número Um foi atrás dele, com o ar de quem estivesse indiferente a tudo. Ou talvez indiferente mesmo, pois um só de seus golpes de vista, daqueles tão especiais, tinha-o convencido de que nada interessante ocorria a seu redor. Pelo menos, nada que se pudesse relacionar de algum modo com seu trabalho atual. O elevador deteve-se no segundo andar. Pouco depois, o boy abria a porta da suíte 217 e entrava com as maletas. Levou-as para o quarto; depois abriu a porta-janela que dava para o terraço, do qual se via a baía de Hong Kong. Voltou- se para o hóspede. — Posso servi-lo em mais alguma coisa, sir? — Não. O boy apanhou no ar a moeda, olhou-a com alegre sorriso e guardou-a a toda a pressa, enquanto exclamava: — Muito obrigado, sir. Segundos depois, Número Um ficava sozinho em sua suíte. Deu uma volta por ela, procurando em vão microfones ou quaisquer outros truques da espionagem convencional. Por fim, encolheu os ombros e dedicou-se a abrir suas maletas. Com uma rapidez e método admiráveis, transferiu sua bagagem para o armário em menos de dez minutos. Despiu-se, escovou a roupa que tirara e pendurou-a Possuía uma meticulosidade perfeita, exata; era como se todos aqueles movimentos tivessem sido ensaiados mil vezes. Finalmente, deixou sobre a cama outro traje: um smoking. Camisa, meias, gravatas, lenços, cigarros, pistola com seu coldre axilar, isqueiro... Completamente nu, entrou no banheiro, de uma suave tonalidade rósea. Franziu um instante a testa ao olhar-se no espelho. O lado direito do seu tórax tinha três feias marcas, deixadas por outras tantas balas que lhe haviam perfurado o corpo graças à traição da CIA. Outra cicatriz, longa e larga, do lado esquerdo, muito pouco abaixo do coração, passando entre duas costelas... Por um segundo, Número Um julgou sentir aquele frio talho em sua carne, produzido pela facada que também quase lhe tirara a vida. Sombrio, virou-se de costas, voltando a cabeça para ver no espelho as duas linhas paralelas que cruzavam sua região lombar, aparecendo entre elas a carne macerada, ali onde três anos antes um agente soviético o golpeara com uma barra de ferro. Depois, aproximando-se mais do espelho, contemplou a pequena cicatriz sobre o supercílio direito, recordação de uma coronhada em Berlim, junto ao chamado Muro da Vergonha. Tudo isso trabalhando para a CIA. Realmente, não valera a pena. Olhando pelo espelho, viu a rosa vermelha. Uma rosa vermelha natural, que estava cravada pelo talo ao sabonete da banheira. E vendo-a, Número Um sorriu. Um sorriso tão natural quanto aquela rosa Um sorriso amável, onde se misturavam nostalgia e esperança. Foi como se, de pronto, aquele homem taciturno recuperasse a alegria de viver. Mas no segundo imediato o sorriso extinguiu-se em seu rosto pétreo, bronzeado. Aproximou-se da banheira e apanhou a rosa com seus dedos longos, fortes, como de aço. Aspirou lentamente a flor, prolongando aquele simples e romântico prazer. Seus olhos escuros mostravam agora uma ternuraque teria grandemente surpreendido Zorevic e Fanikar... Ou a quem quer que alguma vez houvesse tratado com Número Um, o mais implacável, desapiedado, inflexível espião de todos os tempos. — Em troca disto — murmurou —, sempre valerá a pena arriscar a vida. Ainda que seja por uma garrafa de uísque. * * * Poucos minutos antes das oito, um táxi deixava Número Um na borda do cais das barcas, escassamente iluminado, bem em frente da outra margem, de onde se viam as não muito abundantes luzes de Kowloon, no continente. Pagou a corrida, desceu e caminhou com decisão para o embarcadouro. Dentro da baía, à direita, viam-se numerosas sampanas, vivendas naturais de muitos chineses pobres de Hong Kong. Brilhavam fracamente as luzes coloridas de inúmeras lanternas de papel. Sobre as cobertas, famílias inteiras dedicavam-se a comer peixe, pois era hora de seu parco jantar habitual. As sampanas com redondas lanternas de palha quase pareciam alegres, mas não assim as que utilizavam simples lampiões a petróleo. Um cheiro acre de suor, de peixe e o fumo se misturava ao do mar, que por sua vez cheirava a óleo e a madeiras apodrecidas. Como autênticas sombras chinesas, viam-se em silhueta os cônicos chapéus de palha e os torsos nus dos pescadores, que brilhavam com um frio tom prateado e vermelho à luz das lanternas. Sob seus pés, junto à borda do cais, havia diversas embarcações leves. Na maioria delas viam-se mocinhas pouco mais que adolescentes, sentadas entre os remos. Após olhar um instante, mudas de adoração, o atlético americano, começaram a oferecer seus serviços: — Táxi marítimo, senhor? Táxi marítimo? Número Um olhou-as durante uns segundos. Depois olhou para a esquerda, onde ficavam os restaurantes flutuantes. Todos eles de fundo chato e muito largo, apresentando grande estabilidade. De suas fachadas brotavam luzes de néon de todas as cores, traçando caminhos luminosos sobre a água negra. Luzes azuis, vermelhas, amarelas, verdes, roxas... Era como uma silenciosa explosão de fogos de artifícios, tão apreciados pelos chineses. Após olhar lentamente a seu redor, Número Um embarcou num dos táxis marítimos, sendo recebeu por um muito obsequioso sorriso da jovem remadora. Com um dedo ele indicou os restaurantes flutuantes. — “Sea Palace” — disse. — Sim senhor, sim senhor... A garota começou a remar, afastando-se do embarcadouro, onde suas companheiras tinham ficado desiludidas. Um cliente é sempre um cliente, mas qualquer delas teria levado grátis o atleta americano dos cabelos rebeldes, cor de cobre. O sea-taxi devia estar ainda a menos de vinte metros do embarcadouro, quando lá se deteve um rickshaw e uma mulher saltou rapidamente, estendendo uma cédula ao cule. Enquanto acendia um cigarro, Número Um viu-a escassamente, às incertas luzes. Era de estatura mediana e seus cabelos pareciam muito louros, ou talvez acinzentados... Não era possível precisar muito bem esse detalhe. Usava um vestido de noite bastante decotado, na verdade sugestivo. E parecia muito jovem e formosa. Pelo menos, não se podia duvidar da perfeição absoluta de sua esbelta silhueta, de pé à beira do embarcadouro, chamando uma das garotas dos sea- taxis. Atenuada, de um modo estranho, a voz daquela mulher chegou aos ouvidos do espião particular. Uma voz clara, leve, alegre. Falava em inglês. Um inglês ianque, evidentemente. Número Um guardou o isqueiro e deixou de olhar para a jovem dos cabelos claros. Voltou-se para os restaurantes, olhando-os criticamente, o cigarro preso entre os lábios cerrados, imóveis. A todo o momento, dava a impressão de que seria empresa difícil obter um sorriso sincero daqueles lábios duros. Dois dos restaurantes foram deixados para trás chinesinha, que remava com grande facilidade e desenvoltura, sem fazer o menor esforço, ao que parecia. Finalmente, o “Sea Palace” ofereceu-se todo ao olhar de Número Um. Possivelmente, era o maior de toda a baía de Hong Kong e, sem dúvida, um dos que gozavam de mais renome internacional. À medida que se aproximava, ia vendo com precisão os detalhes, apesar do brilho ofuscante de suas luzes na água, luzes que formavam uma grande mancha de colorido enlouquecedor. Naquela mancha se misturavam todos os matizes possíveis e imagináveis, como se milhões de diminutos cristais de luzes viva se estivessem partindo na negra superfície da água. O “Sea Palace” constava de dois andares, com um teto inclinado em cujas bordas brilhavam lâmpadas amarelas. Não havia muita luz no primeiro andar, mas sim no segundo. Através de vidraças, viam-se lustres de cristal pendentes do teto da sala de refeições, que abria para um pequeno terraço; ao nível deste, em letras amarelas sobre fundo vermelho, destacava-se o nome do restaurante: SEA PALACE, com tubos de luz esverdeada a ambos os lados. Embaixo, à entrada, uma fileira de luzes quase tocando a água marcava a localização dos dois degraus de madeira, que levavam a um saguão profusamente decorado com motivos chineses. Aos lados, os múltiplos faróis da esplendorosa iluminação a cores e, nos flancos daquela espécie de grande barca, duas grandes rodas de madeira, cheias também de luzes, parecendo gigantescos chifres de carneiro. Era um espetáculo sem dúvida extraordinário, com todo aquele excesso de brilho e colorido. O aspecto do “Sea Palace” era sem dúvida bonito, seu reflexo na água tomava impossível qualquer descrição... Quando Número Um chegou lá o maitre estava à sua espera, com um amplo sorriso de boas-vindas em seu amarelado rosto oriental, que agora se tingia de todas as cores. Usava uma longa túnica de seda policrômica e tinha um pequeno barrete negro na pelada cabeça. Por um instante, pareceu que ia estender a mão ao cliente, mas desistiu de imediato. Esperou em silêncio que Número Um pagasse generosamente a garota do sea-taxi e, então, inclinou-se formal, sem sorrir agora, como se compreendesse que aquele cliente preferia mais sobriedade de maneiras. — Boa noite, sir... Vem só? — Venho. Prefiro ir para cima. — Pois não. Algo de especial quanto ao cardápio, sir? — Não. Era justamente o que tinha esperado o maitre chinês, que não se alterou em absoluto. Pareceu a ponto de acompanhar o recém-chegado, mas então viu outro sea-taxi que se aproximava, trazendo a bordo a jovem de cabelos acinzentados, de modo que acenou para um garçom, deu-lhe instruções em chinês e olhou para o atlético americano, o qual, Por sua vez, olhava fixamente para aquela que se aproximava no táxi marítimo. — Yin o levará a uma excelente mesa, sir. — Obrigado. Número Um seguiu o chinês que se postara a seu lado e um pouco à frente. Um chinesinho jovem, de expressão simpática e maliciosa, vestido a europeia, de jaqueta branca e gravata borboleta. Pausadamente, o espião particular subiu atrás dele e encaminhou-se para a mesa que lhe indicou o jovem oriental. Ficava junta à ampla janela da direita, de modo que, uma vez sentado, pôde ver todo o panorama noturno de Hong Kong, ascendendo em pontos luminosos pelas escalonadas ladeiras até o Peak. As luzes da cidade refletiam-se festivamente nai águas do porto. — Agrada-lhe a mesa, sir? — Muito. Apanhou o cardápio e lançou-lhe um olhar distraído... Na verdade, estava olhando para a porta, pela qual apenas cinco segundos depois entrou a jovem dos cabelos cor de cinza. Vê-la era como receber um impacto de inesperada formosura; inevitavelmente a beleza daquela mulher, que parecia ter apenas vinte e cinco anos, tinha que fazer reagir qualquer homem. Cabelos cinzentos emoldurando-lhe o rosto, boquinha rosada de expressão doce, grandes olhos verdes, resplandecentes, corpo escultural, pele suavemente dourada... Era uma joia rara envolta num delicado vestido de noite. O sorriso, a elegância, a beleza... Vê-la e receber o mencionado impactoeram coisas atordoadoras que aconteciam ao mesmo tempo, sem remissão, inevitavelmente. Com uma perfeita graça, caminhava atrás do maitre chinês, cujas maneiras não podiam ser mais obsequiosas, enquanto prolongava em inglês elaboradas frases de boas- vindas. A jovem o ouvia com um leve sorriso nos doces lábios. Quer dizer, ouvia-o, mas não o escutava. Seus magníficos olhos verdes estavam fixos no rosto severo de Número Um e, por um instante, pareceram lançar um vivido clarão. E justamente quando passava junto à mesa de Número Um, sobreveio à belíssima loura um pequeno contratempo: seu pé direito se torceu. Ela soltou uma exclamação abafada, desequilibrou-se um pouco, moveu os braços como à procura de algo em que se firmar... e encontrou as mãos tisnadas do espião, que se havia posto de pé como um relâmpago, muito oportunamente. Ficaram se olhando um momento, enquanto o maitre chinês se voltava, alarmado, com os oblíquos olhos possivelmente arregaladíssimos. — Sente alguma coisa, miss...? — Não... — murmurou ela. — Não é nada... — Está mesmo bem? — interessou-se Número Um. — Estou... Obrigada. Creio que algo aconteceu com meu sapato... Ainda amparando-a com uma das mãos, ele inclinou-se e, com a outra, segurou o sapatinho da jovem, acabando de tirá- lo do pé. Ergueu-se e mostrou-o, sorrindo. O salto se havia desprendido quase completamente. Um salto muito alto, muito fino... Não parecia estranho que se pudesse perder o equilíbrio com semelhante calçado. — O salto se soltou — disse Número Um, com divertido. — Um desses inconvenientes da elegância feminina, suponho... Posso ajudá-la em alguma coisa? — Não sei... Que faço agora sem um sapato? — Se me permite — interveio o maitre —, Yin é muito habilidoso: creio que poderá consertá-lo em poucos minutos. — Oh, que bom! Acha que ele poderá? Eu lhe ficaria muito grata! — Voltou-se para Número Um. — Importa-se que eu sente um instante à sua mesa, cavalheiro? Ele continuava sorrindo divertido, com algo de infantil e inocente no rosto másculo. — Pelo contrário... — disse cortês. — Será um prazer para eu tê-la à minha mesa. Pena que se já só por alguns minutos. Sente-se, por favor... Ajudou-a a sentar-se, sempre retendo uma de suas mãos. Olharam-se por dois segundos e, finalmente. Número Um soltou-a, tomando lugar do outro lado da mesa, diante dela. O maitre contemplou os dois, sorriu compreensivamente e afastou-se, levando o sapatinho avariado. Havia alguns chineses ocupando outras mesas, um par que parecia também americano e mais dois de tipo nórdico, alemães ou escandinavos. Um grupo de rapazes e moças, ao fundo, após interessar-se pelo pequeno acidente, retornou a seus risos e brincadeiras em torno ao esforço que significava colher os alimentos com os pauzinhos chineses — O senhor é americano? — perguntou ela, como se não soubesse o que dizer. — Sou — respondeu ele, ainda mais lacônico. — Eu também... — Ah, sim? — assombrou-se ironicamente Número Um. — Então não duvido de que nos entendamos bem... durante estes minutos. Posso convidá-la a tomar um aperitivo? — Por que não? Está sendo muito amável, mister... — Coleman. Clark Coleman. — O meu nome é Nora Teasdale... Apertaram-se a mão por cima da mesa. Ele olhou para o maitre, que reaparecia então, e fez-lhe um sinal. O chinês acorreu prontamente e assentiu ao receber o pedido de dois martinis secos, com gelo. — Querem examinar o cardápio, agora? — propôs. — Boa ideia. Um minuto mais tarde, outro garçom servia-lhes os martinis e deixava um cardápio diante deles. Estava escrito em chinês, inglês, francês e alemão. Número Um estendeu-o à jovem, que o recebeu hesitante, com uma expressão bem visível de embaraço mal dissimulado. Ele acendeu um cigarro, tomou um gole do martini e mais uma vez sorriu. — Tenho a impressão de que não está muito certa do que deseja jantar — disse amavelmente. — Tem razão, mister Coleman. — Veio só? Quero dizer que talvez tenha um encontro aqui com alguém. — Não, não. Estou sozinha em Hong Kong. Férias... Tinha muita vontade de vir ao Oriente. — Hong Kong é um lugar exótico — admitiu Número Um —, mas parece-me que não reflete muito bem o Oriente que lhe interessa. Há demasiada... civilização, de um modo geral. — Creio que sim. Mas penso que por alguma parte do Oriente devo começar. — Isso é indiscutível. Eu também estou só em Hong Kong. E lhe ficaria muito grato se aceitasse compartilhar minha mesa... e meu jantar, naturalmente. Talvez possa sugerir-lhe alguns pratos adequados ao momento e a seu desejo de exotismo. — Vai jantar pratos chineses? — Sem dúvida. — Oh, então aceito encantada. Bem entendido, cada um pagará sua parte, mister Coleman. — Gostaria que se considerasse minha convidada. — Não. Não me parece justo. — Como queira. Vejamos esse cardápio. Falavam em voz um tanto alta, muito clara. Qualquer um que sentisse interesse por sua conversa não teria a menor dificuldade em ouvi-la, até cinco metros de distância. Eram os clássicos americanos, seguros de si mesmos, indiferentes ao que acontecesse a seu redor. Para eles, jantar num restaurante de Hong Kong não tinha por que ser algo misterioso ou muito extraordinário. Uma vez examinado o cardápio, Número Um chamou o maitre, que se mantinha em expectativa. — Jantaremos juntos — disse-lhe, ignorando o seu sorriso de tácita cumplicidade. — Mande-nos sopa de salangana, deem-sum, cochinilha, barbatana de tubarão, chow-fan... E para beber, shau-shing. Creio que será suficiente. O maitre retirou-se e Um olhou novamente a jovem, que o contemplava com expressão assustada. — Que... que foi que pediu, mister Coleman? — Tudo muito gostoso... — sorriu ele. — Nunca experimentou a comida chinesa? — Nunca. — Pois chegou a hora. Na verdade, nós quase são vamos comer, em comparação com o que comem os chins. Eles pedem pratos e mais pratos... Vinte ou trinta, às vezes. Nós seremos muito mais frugais. A menos que lhe interesse arranjar uma fenomenal indigestão. — Oh, nada disso... Mas o que é tudo isso que pediu? — A sopa de salangana é saborosíssima. É feita com ninhos de pássaros fervidos, provenientes das ilhas malaias, via Cingapura. O mais curioso a respeito desses ninhos é que as salanganas os formam com saliva... — Com... saliva...? — Parece um pouco asqueroso, não é verdade? Entretanto, os chineses os comem... e estão vivos. As salanganas são uma espécie de andorinhas e constroem seus ninhos com saliva, que se solidifica rapidamente em contato com o ar. Esses ninhos, submersos em água fervendo, deixam um sabor delicioso. — Santo Deus... E que mais encomendou. — O resto é menos... impressionante — quase riu Número Um. — O que chamamos deem-sum é uma mistura de entremeios mais ou menos comuns, amêijoas, ostras, mexilhões, aipo, azeitonas, gengibre... A barbatana de tubarão é... barbatana de tubarão, simplesmente, preparada de um modo especial, com creme de leite. — Creme de leite? — Nunca tomou leite às refeições? — Oh, claro que sim... Suponho que não seja algo tão extraordinário... E o tal chow-fan? — Arroz com ovo — informou Um, divertido — Sempre preparado de um modo especial. Não quis exagerar o exotismo de seu primeiro jantar chinês. Ah, quanto ao shau- shing, não é mais que uma das variedades do vinho de arroz; algo parecido com o saquê... Não se inquiete: asseguro-lhe que tudo será perfeitamente comestível e digerível... Esta vez, pelo menos. — Esta vez? — Na verdade, deveríamos ter tomado chá em lugar de martini. É muito mais suave para o paladar, não o embota, mas ao contrário: prepara-o para delicados sabores de um autêntico jantar chinês. Sabe usar os pauzinhos? — Claro que não! — alarmou-se ela. — De qualquer modo, serão trazidos... E também uma bonita colher de porcelana. — Menos mal! Riramos dois. Nora Teasdale esteve depois uns segundos contemplando a iluminada Hong Kong, através da janela panorâmica, antes de perguntar: — Por que disse que o jantar será comestível e digerível... esta vez? Supõe que o próximo me fará mal? — Não me referia exatamente ao jantar. Na verdade, estava pensando que se nos tomássemos a ver, talvez seu estômago não estivesse preparado para uma refeição mais... chinesa. Mas foi uma ideia que descartei rapidamente. — Por quê? — Porque, ainda que desejasse, não disporei de tempo suficiente para importuná-la fazendo-lhe convites: devo partir logo de Hong Kong. Talvez amanhã mesmo. — Oh... Bom, tampouco penso ficar muitos dias aqui. Na verdade, meus planos eram diferentes. Volta aos Estados Unidos, mister Coleman? — Ainda não. Antes deverei viajar para Tóquio... — Tóquio? Que casualidade! Também eu tenho ideia de ir a Tóquio. — Interessante! Quando? — Não sei... Ainda não decidi. Mas lhe darei telefonema ao chegar lá, se me disser em que pensa hospedar-se. — Seria muito agradável para mim. Mas também em Tóquio não ficarei muito tempo. Deverei partir para Vladivostok. E de lá, pelo Transiberiano, para Moscou. — Oh, deve ser uma viagem interessantíssima, mister Coleman! — Acredito que sim, miss Teasdale. — Gostaria de poder viajar tanto como o senhor. — Pois se o fizer pelo Transiberiano, não lhe sairá muito caro. De Vladivostok a Moscou, o preço da passagem por trem é reduzido. Menos da metade, realmente. — Mas viajar pela Sibéria... Brrr! — Não faz frio nesta época do ano. As pessoas geralmente se enganam a respeito da Sibéria. É verdade que há zonas muito frias, mas os verões da parte meridional são bastante agradáveis. Preferia fazer esse percurso em julho ou agosto, mas mesmo em setembro não é muito frio. — Parece conhecer todo o mundo, mister Coleman. É jornalista? — Não. Viajo para uma firma que negocia em bebidas. De preferência, uísque... Um uísque excelente, sem dúvida. Talvez não acredite, miss Teasdale, mas terminaram-me as amostras, a tal ponto que só disporei de uma garrafa durante todo o percurso de Hong Kong a Moscou. Parece tolice, mas se me pagam para levar uma garrafa a Moscou, por minha parte não há inconveniente. De qualquer modo, apostaria que, antes de chegar a Moscou, alguém me tirará das mãos essa garrafa. E a partir de então, suponho que meu trabalho terá terminado, já que um viajante sem amostras não terá nada a fazer. E assim sendo, quando eu tiver entregado essa garrafa, poderei considerar-me um verdadeiro turista. — Deve divertir-se bastante, com tantas viagens. — Tudo cansa nesta vida. Quase tudo, quero dizer. Não gostaria de viajar no Transiberiano? — Creio que não, mister Coleman. Faltam-me amigos na Rússia. E temo que na Sibéria não se fale muito inglês... Em Hong Kong, Tóquio, Cingapura, Manila é diferente. Mas a Sibéria é... muito longe para mim. — Pena... Está se divertindo em Hong Kong? — Só um pouco. Na verdade, estas minhas férias me parecem algo monótonas. — Bom, penso que divertir-se é coisa que está em nós mesmos. É preciso contemplar o mundo com simpatia, disposto a ver tudo, a admirar tudo. Os chineses comem cães e ratos, por exemplo. Muito bem: melhor para eles. Por outro lado, pergunto-me que diferença tão notável pode existir entre um rato bem tratado e um coelho ou lebre, ou entre uma cabra ou cordeiro e um cão. No meu entender, tudo é carne. — Está quase me assustando, mister Coleman... Fala mesmo sério? — Completamente. Ah: aqui temos a sopa de salangana. Espero que minha escolha seja de seu agrado, com referência a todo o cardápio. — Eu também espero — disse ela, com certa expressão de dúvida. — Podemos fazer uma aposta — propôs Número Um: — se não gostar do que vamos comer, nos separaremos e tudo estará terminado. Mas se achar bom, aceitará uma taça de champanha em Hong Kong, esta mesma noite. Poderíamos ir a algum espetáculo ou a um night-club, dançar... E sobretudo o champanha. Aceita a aposta? — Aceito — disse ela, rindo. — Acho-o muito simpático, mister Coleman! CAPÍTULO TERCEIRO Acidente em Peak Road Apenas uma sombra que passa sem ser vista Afinal, há muitas pernas bonitas no mundo... Finalmente, por volta da uma hora da noite, o táxi deteve- se no estacionamento do “Victoria Peak Hotel”, quase em frente à entrada dos pequenos jardins suspensos, dos quais se divisava toda a cidade de Hong Kong, lá embaixo, resplandecente de luzes. Número Um falou ao chofer chinês, saltou e tendeu a mão a Nora Teasdale para ajudá-la a sair do veículo. Um carro passou junto ao estacionamento, lentamente. Dentro iam dois homens, um deles ao volante, mas de olhos fixos na entrada do jardim, como o outro. — Siga mais um pouco... — disse este. — parece que, afinal, ela vai ficar aqui. — Divertiram-se à grande, hem? — murmurou seu companheiro. — Os espiões americanos são tipos curiosos: sabem combinar a diversão com o trabalho. — É que sabem viver melhor do que nós. — Vá até mais adiante e dê a volta. Não creio que ele demore muito a sair. E tomará o mesmo táxi. Caso pensasse em ficar o teria despedido. — Não seria surpreendente que ela aceitasse sua companhia esta noite. É um tipo de boa pinta, não há dúvida. — Deixe de bobagens, Orlov. Este encolheu os ombros, levando o carro até apenas cem metros adiante do hotel. Deu a volta na ampla Peak Road e veio em direção à zona baixa de Hong Kong. Ao passar novamente por diante do hotel, ambos tornaram a olhar para a entrada dos jardins, rodando em pouquíssima velocidade. — Ainda estão aí... — disse Schenko. — São muito românticos, você não acha? A visão foi mais clara para eles: Número Um segurava a mão da jovem e mantinha-se muito perto dela, que o olhava com expressão doce e o ouvia atenta. Foi uma visão de dois segundos apenas, pois o carro prosseguiu como se voltasse para o centro da cidade. Duzentos metros mais abaixo, saiu da estrada para o lado direito, subitamente, metendo-se entre umas árvores. — O táxi descerá pela esquerda — disse desnecessariamente Schenko. — Boa ideia a dos ingleses, de circular ao contrário do resto do mundo: assim, o táxi vai ficar muito perto da beira da estrada. Não falhe o golpe, Orlov. Orlov permaneceu silencioso. Voltou-se no assento para olhar o “Victoria Peak Hotel”, assim imitando Schenko. — Embora me pergunte se não seria melhor empregar as pistolas... — murmurou este. — É um homem que demonstrou ser muito perigoso na Grécia, ao liquidar os nossos dois companheiros. — Com o carro é mais seguro, justamente porque ele é perigoso. De qualquer modo, continuo insistindo em que não deveríamos matá-lo, mas apanhá-lo vivo e fazê-lo explicar o que está tramando com Zorevic e Fanikar. — Perguntaremos a eles no seu devido tempo. No momento, trata-se de demonstrar que ninguém mata impunemente dois agentes soviéticos. Depois nos encarregaremos dos tchecos... Cuidado! Um carro tão negro como o deles passou estrada acima, muito perto do lugar onde se haviam escondido, a toda a velocidade. Orlov carregou o cenho. — Pareciam... — Aí vem o americano. Atenção. Com efeito, o táxi deixava o estacionamento do hotel, lentamente. Enfiou estrada abaixo e deslizou em silêncio, lançando para o asfalto as luzes curtas. Em poucos segundos, passou por diante deles, em velocidade moderada. Orlov pôs de novo o motor em marcha, esperou cinco segundos, depois saiu de trás de entre as árvores, colocando-se com rapidez atrás do táxi. À esquerda de ambos, o corte abrupto da estrada, obrigado pelos numerosos terraços escalonados de que consta Hong Kong à proporção que sobe para o Peak, e nos quais se situam as formosas vilas, os luxuosos hotéis. — Não espere mais. Tem que ser agora, na zona dos terraços. Mais embaixo teríamos que empregar as armas.— Está bem. Orlov calcou o acelerador e o carro pareceu saltar furiosamente, aproximando-se mais do outro veículo. Acionou uma pequena alavanca no painel de instrumentos, enviando dois rápidos jatos de luz para avisar o táxi de que ia ultrapassá-lo. O táxi desviou-se um pouco para a esquerda, dando passagem, e o carro negro logo emparelhou com ele, lançado a toda a velocidade. — Agora! — a voz de Schenko soou tensa. Orlov moveu o volante para a esquerda, de chofre, justamente, quando estava à altura do táxi. Ouviu-se um ranger de metal contra metal, o áspero estrídulo das fuselagens entrechocando-se, o som inconfundível dos pneus guinchando sobre o asfalto. O taxi aproximou-se da borda da estrada e Schenko ver o rosto do chinês que ia ao volante, de tom muito mais claro que o habitual em sua nçi, mais abertos os olhos, os lábios crispados num jfcto de espanto... Viu-o também girando freneticamente o volante para a direita, querendo desviar a marcha dos dois carros para o centro da estrada. — Bmpurre-o! *— gritou para o companheiro. — Empurre mais.., I Orlov também tinha o rosto crispado e agarrava fortemente o volante, torcendo-o sempre para a esquerda. Com um sinistro ranger metálico e um som agudo de pneus, ambos os veículos traçaram uma linha ondulada sobre o asfalto, afastando-se e aproximando-se da borda, cada vez mais devagar, pois o chofer chinês havia metido o pé no freio, até o fundo, tentando deter o carro, que realmente, pouco menos que incrustado no outro, deixava-se arrastar com as rodas travadas... Após o sexto ziguezague, o táxi perdeu definitivamente a peleja, aproximando-se de forma inevitável do pequeno abismo que separava uma curva da outra. E por fim, meio veículo ficou para fora da estrada. Orlov deu um último golpe de volante, apertou o acelerador ao máximo: o táxi saltou no vácuo, enquanto o carro negro dos russos seguia adiante, perigosamente para a esquerda. No momento justo em que Orlov freava em seco, com a roda dianteira esquerda quase saindo da estrada, lá embaixo brotava uma labareda, simultaneamente com o estrondo do táxi ao espatifar-se. Uma enorme língua de fogo subiu, envolta em fumaça negra. — Marcha à ré — excitou-se Schenko. — para trás, Orlov, ou também nós caímos! Orlov deu marcha à ré velozmente. Com um chiar violento, o carro recuou, percorrendo não menos quinze metros de um só golpe, até o centro da estrada... na qual, procedentes da parte alta, viam-se as luzes de um veículo que descia para Hong Kong. — Depressa! Temos que deixar atrás esse que ai vem...! Com o carro parado, Orlov estava ligando a primeira para arrancar a toda a velocidade estrada abaixo, quando Schenko se calou de repente, ficando com a boca aberta pelo súbito assombro que paralisou todos os seus músculos. Através do vidro da porta, estava vendo o atlético americano, de pé junto ao carro, com a mão direita estendida para eles. Schenko, que afinal recuperara a voz, ia advertir seu companheiro, quando da arma empunhada pelo americano brotou um clarão e todo o carro pareceu vibrar, enquanto no vidro surgia uma estranha teia de aranha. O segundo tiro acabou de partir o vidro, que caiu sobre Schenko como uma chuva brilhante, batendo em seu rosto crispado. Tinha já metido a mão direita sob a axila esquerda, mas ao terceiro disparo foi atingido na testa e tombou contra Orlov, que naquele momento, após haver ligado a primeira, apertava o podal do acelerador. O carro arrancava a toda a velocidade, quando o espião americano atirou pela quarta vez, com uma frieza arrepiante, como num exercício rotineiro de tiro ao alvo. Mas a parte superior da cabeça de Orlov saltou em pedaços. O carro pareceu correr como um surpreendente coelho, depois, quando Orlov ficou caído sobre o volante, com o pé ainda pressionando o acelerador, continuou a marcha, em primeira, o motor rugindo furioso... Desviou-se para a direita, saiu da estrada, meteu-se por entre as árvores, chocou-se contra uma delas. O para-brisa voou em brilhantes fragmentos e uma labareda ainda mais intensa que a que se via lá embaixo envolveu o carro. A essa altura, Número Um já havia atravessado a estrada e corria para as árvores. Com extraordinária agilidade, colocou-se entre duas árvores, voltando a cabeça para o outro carro que chegava, disposto a atirar contra quem quer que chegasse em ajuda dos homens do primeiro carro, que ardia mais abaixo. Um homem saltou do carro recém-chegado assim que este se deteve com uma freada gritante. Agitou os braços para as árvores e sua voz chegou clara até o espião ianque. — Number One! — chamou. — Venha! Corra! Sem hesitar, Número Um regressou à estrada, metendo-se rapidamente dentro do carro, que arrancou a toda a velocidade, lançando-se como um foguete pela Peak Road abaixo, enquanto do “Victoria Peak Hotel” começavam a sair pessoas, que se precipitavam para o local do acidente. Número Um olhou pelo espelho retrovisor. — Saia desta estrada no primeiro desvio, Fanikar — Está bem. Zorevic, sentado no banco traseiro, junto a Número Um, olhava-o com olhos espantados. — Não está ferido? — Não. Somente um pouco empoeirado. Tive que saltar do táxi em marcha. Guardou a pistola e sacudiu com fria indiferença as lapelas do smoking, levantando nuvenzinhas de fino pó. Virou a cabeça para trás e encolheu os ombros. A polícia colonial britânica se defrontaria com um caso bastante complicado aquela noite, mas certamente não seria ele quem a ajudasse a resolvê-lo. Apenas um minuto mais tarde, Fanikar enfiou o carro por um caminho lateral, mais estreito, mas muito bem asfaltado. Número Um acendeu um cigarro e olhou com expressão sarcástica para Zorevic, apenas visível a seu lado. — Vocês me estiveram seguindo desde que cheguei a Hong Kong — disse. — Mas, segundo parece, não se deram conta de que alguém mais o fazia. — Ao contrário, demo-nos conta sim — replicou o tcheco —, mas não esperávamos que se atrevessem a isto. Pensamos que só queriam vigiá-lo e já procurávamos um modo de fazê-lo escapar dessa vigilância a caminho de Tóquio. — Sim? E... que grande plano tinham vocês para furar o cerco russo ao meu redor? — Tínhamos pensado... — Deixe estar — cortou desdenhosamente Número Um. — Por sorte minha, não preciso da coloração de vocês em nenhum sentido. Têm já pronta a garrafa de uísque e a senha para o homem que a pedirá? — Tudo isto provocou uma mudança de planos, Número Um. — Ah, sim? Que mudança? — A garrafa de uísque só lhe será entregue em Tóquio. — Supondo-se que eu chegue a Tóquio, não? Vou dizer uma coisa a vocês: isto não me havia ocorrido nunca. Quando Número Um trabalha, é apenas uma sombra que passa sem ser vista. Entretanto, desde que entrei em contato com vocês, tivemos um tropeço no Pireu e podiam ter-me liquidado poucos minutos atrás. — Todos temos falhas — resmungou Zorevic. — Sem dúvida. E eu mesmo já as tive. Mas quando me matarem, preferiria que fosse por um erro meu, não por um erro de vocês, que não têm nem ideia da grande quantidade de possibilidade de um espião para localizar pintos. — Está nos chamando de... pintos? — Nem sequer são isso. Tenho a impressão de ainda não saíram do ovo. Diabo, não percebem que o MVD está perseguindo-os com tanta facilidade, como se vocês lhe enviassem cartões postais notificando-o de onde se encontram a todo momento? — Isso é... um exagero! — Acha? Pois fiquem sabendo: se em Tóquio acontecer a mesma coisa que no Pireu e em Hong Kong, será melhor que procurem um substituto para Número Um. Gosto do papel de espião, não do de pato. — Nada ganharemos discutindo — alegou razoavelmente Zorevic. — Quem é essa mulher? — Que mulher? — perguntou com ingenuidade defensiva o espião ianque. — Peço-lhe ter em mente que somos seus chefes, Number One. Quinhentosmil dólares não são uma bagatela. Quem é? — Nora Teasdale. — A que se dedica? — Está de férias. Gosta do Oriente. Fanikar, ao volante, lançou um resmungo. Zorevic armou-se de paciência. — Segundo nos consta, vocês dois se conheceram no restaurante “Sea Palace”. Como foi isso? — Ela teve um pequeno acidente e caiu em meus braços... É muito bonita. E eu sou um homem normal. Zorevic foi quem se permitiu agora um sorriso irônico. — Normal? Talvez seja verdade, Number One. Mas as informações que temos a seu respeito dizem contrário. — Você me surpreende, Zorevic. Está dando a entender que me supõe um invertido? Fanikar soltou uma risada e Zorevic resmungou alguma coisa em tcheco... até que as seguintes palavras do americano o deixaram gelado de espanto: — Se tomar a chamar-me de filho de qualquer coisa, meto-lhe a mão na cara. — Você fala minha língua! — balbuciou o tcheco. — Só um pouco. Mas uma das primeiras coisas que aprendi foi isso de xingar a mãe dos outros... Tenha cuidado com o que diz. Tinham chegado a Hong Kong e Fanikar, após deter o carro numa rua estreita e mal iluminada, voltou-se no assento, dirigindo um olhar conciliatório a Número Um. — Será melhor que dominemos nossos nervos... — murmurou. — Não creio que Zorevic tenha pretendido ofendê-lo realmente. Entretanto, parece-me que deveria dizer-nos quem é essa mulher. Sem ironias nem embromações. E, claro está, prescindindo da estúpida possibilidade de que você seja um invertido. É natural que lhe agradem as mulheres, nisso acreditamos firmemente. Mas, sem dúvida de nenhuma espécie, sabemos que Número Um nunca mistura assuntos desta classe com seus trabalhos de espionagem. Embora tampouco eu seja um invertido, reconheço que em seus momentos de folga é desses homens que só precisa mover um dedo para conseguir a melhor garota do balneário Agora, insisto: quem é ela? — Nora Teasdale, secretária de uma empresa que produz máquinas agrícolas na Califórnia, de férias. É simpática, educada e culta. Aparenta ter uns vinte e cinco anos, mas reage como se tivesse menos. Tem um sólido estômago capaz de suportar a cozinha chinesa, gosta de champanha e de dançar. Não é nenhuma sirigaita. Mais alguma coisa? — Você a beijou? — Com efeito. — É dessa classe de garotas que se... divertem durante as férias? — É simplesmente uma moça livre e sem preconceitos. Sabe muito bem que só se vive uma vez. — Combinaram outro encontro? — Naturalmente. Ela me agrada. — Esqueça-a. Pelo menos enquanto durar este assunto. Depois de tudo concluído, estará livre para fazer com ela o que quiser. Serão apenas duas semanas. Talvez menos. — Receio bastante que para tornar a vê-la teria que viajar até os Estados Unidos. — Não creio que encontre muita dificuldade em fazer isso, com quinhentos mil dólares no bolso. Esta, portanto decidido, Número Um. Não tornará a ver essa jovem até que nosso trabalho esteja terminado. Temos sua palavra? — Não — sorriu o americano. — Ouça, nós não vamos consentir...! — Querem saber de uma coisa? Pois aí vai: tenho em um banco da Suíça quase três milhões de dólares, de modo que posso perfeitamente prescindir dos seus quinhentos mil dólares. Agora, outro detalhe: eu me comprometi a entregar essa garrafa de uísque... Okay? — Exatamente! — Pois a entregarei. É tudo. Digam-me simplesmente quais deverão ser meus próximos movimentos. Agora era Fanikar quem estava vermelho de raiva, e teve que ser Zorevic quem contemporizasse. — Tomará um avião da “Japan Airlines”, que sai amanhã às oito da manhã para Tóquio. Uma vez lá, hospede-se no “American Hotel”. — Que originalidade! — Em todas as grandes cidades do mundo há um “American Hotel”. E não é culpa nossa. Agora, vamos levá- lo ao seu hotel, depois nos veremos era Tóquio. — Quando? — Não se preocupe por isso. Hospede-se no “American Hotel”, naturalmente com o mesmo nome de Clark Coleman, e espere-nos. Vamos, Fanikar. Dez minutos mais tarde, Número Um entrava em seu hotel, diretamente para o balcão de recepção. O adormecido encarregado de raça branca se ergueu quase em sobressalto para atender ao hóspede que regressava às duas da madrugada. Número Um pediu-lhe que obtivesse uma passagem para Tóquio no voo das oito da manhã da “Japan Airlines” apanhou a chave e dirigiu-se para o elevador da direita, olhando de relance a mulher que estava sentada, sozinha, como adormecida, numa das cadeiras de vime do vestíbulo, ao fundo. Parecia uma asiática, a julgar por seu bonito sarong, de um perfeito exotismo para uma festa noturna. Tinha a cabeça caída sobre o peito e seus longos cabelos negros tombavam para um lado. As pernas estavam cruzadas e sua esbeltes ressaltava extraordinariamente. Formosas pernas, sem dúvida. Número Um entrou no elevador e apertou o botão do segundo andar. Já estava chegando, quando estalou bruscamente os dedos. — A garota do Pireu! — exclamou, aborrecido consigo mesmo por não a ter relacionado antes com o porto grego. O elevador se deteve no segundo andar, mas o espião apertou o botão para voltar ao térreo, impaciente. Saiu a toda a pressa para o vestíbulo... que já estava deserto. À direita, o homem atrás do balcão olhava-o expectante, quase sobressaltado, mas não lhe fez o menor caso. Caminhou, quase correu para a saída do hotel. E quando chegou à rua, sabia muito bem que não veria mais aquela jovem. Realmente. Não a viu. Cada vez mais aborrecido consigo mesmo, regressou ao vestíbulo e aproximou-se do homem do balcão, que parecia agora completamente desperto. — Quem é? — perguntou-lhe. — Quem, mister Coleman? — Essa jovem que acaba de sair. — Ah... Não sei, mister Coleman. — Não sabe? Não está hospedada neste hotel? — Não senhor. Chegou aqui às dez e um quarto, mais ou menos, e sentou-se... Pareceu-me que esperava alguém, pelo que não julguei necessário interessar-me por ela. Se quisesse algo de mim, naturalmente falaria comigo. — Claro. Boa-noite. E obrigado. Um quarto de hora mais tarde, após um rápido chuveiro frio e já metido num pijama de calças e mangas curtas, Número Um dedicava-se a recarregar sua “Astra”, testa franzida, entre fechando um olho para evitar a fumaça do cigarro que tinha entre os lábios. Não lhe agradava ser descuidado. De qualquer modo, tinha que ser benévolo consigo mesmo: a visão de uns cabelos negros e umas bonitas pernas não costuma ser suficiente para identificar uma mulher no mesmo instante. Há muitíssimas pernas bonitas neste mundo, afinal. CAPÍTULO QUARTO Três chineses e uma mulher de qualquer raça Trinta mil almas russas Sensacional despertar da bela adormecida. A moça do sarong, sentada no banco traseiro junto a Zorevic, assentiu com a cabeça, enquanto expelia a fumaça de um cigarro. O veículo já estava longe do “American Hotel”, Fez um sinal, e Fanikar aproximou-se do meio-fio, freando suavemente e parado o carro, ela sacudiu pensativa a cabeça. — Não me agrada isto... — murmurou. — E devo dizer que vocês estão-se revelando bastante inábeis. Precisamos admitir que Número Um tem razão, ou seja, que vocês nunca deviam ser seguido pelos russos até Hong Kong. Não estamos metidos em nenhuma brincadeira e é fácil compreender como seria catastrófico para mim que o MVD tornasse a localizá-los, o que equivaleria a localizar também Número Um. — Não sabemos como isso pode acontecer — murmurou Zorevic. — Negligência, tão-somente. Zorevic moveu-se inquieto no assento. — Bom, já viu que seu agente especial regressou são e salvo ao hotel, não é mesmo? — Mas não graças a vocês. Ele saiu da enrascada sozinho, É, na verdade, um homem muito especial. Qualquer outro estaria agora carbonizado dentro daquele táxi. Sim... é muito especial. — De fato... Já matou quatro, desde que se meteu neste assunto. — Dois. — Como: dois? Os daquide Hong Kong e os de Pireu. — Esses eu matei. Fanikar e Zorevic olharam-na estupefatos. Parecia muito jovem e tinha um corpo esbelto, de linhas suaves, mas acentuadamente femininas; seus olhos eram muito grandes, negríssimos, rasgados. A cor do sua pele era tão extraordinariamente desconcertante que ela tanto podia passar por hindu, como por malaia, filipina ou azerbajaniana... Ou não seria simplesmente grega? Ou turca? Sua boca era fresca e risonha, o que fazia com que seus dentes branquíssimos brilhassem com frequência. Tinha a testa lisa, ampla, e o pescoço era delicado, aristocrático. Do lado direito da face, dois lindos sinais do tamanho de lentilhas, E quanto a suas pernas, descobertas agora até metade da coxa, eram de uma perfeição absolutamente, fora de qualquer dúvida. — Você? — exclamou Zorevic. — Julguei que nenhum de vocês três se tivesse dado conta de que os vigiavam, portanto, assim que os vi abordar a lancha, achei melhor emudecer os soviéticos antes que utilizassem um rádio de bolso... Era o que iam fazer quando os surpreendi. Matei-os e levei o radinho. Por uma questão de segundos Número Um não me encontrou ainda entre as pilhas de caixotes. — Mas ele disse que os tinha eliminado... — Não... — esclareceu Fanikar. — Quando lhe jantamos isso, respondeu: “estão mortos”. Não disse que tivesse sido ele, Zorevic. — Tem um correto sentido de decência o nosso amigo americano — sorriu alegremente a jovem amorenada. — Evidentemente, não lhes mentiu. Disse que estavam mortos e era verdade. Também é verdade que matou os dois outros em Peak Road... Protestou porque não lhe entregaram a garrafa de uísque? — Se protestou? Parece que não deu ao fato a mínima importância! Pergunto-me se esse homem lealmente lhe vai ser de utilidade, Aziza. — Decerto, será mais útil que vocês. Não quero novas falhas, fiquem sabendo os dois. Para lhes ser sincera, pergunto-me se fiz bem os contratando para este trabalho. Quase teria sido melhor entender-me diretamente com Número Um. — Foi você quem nos procurou, e não nós a você — recordou asperamente Fanikar. — Eu sei, eu sei... Talvez tenha cometido um erro, mas pareceu-me que como membros pouco importantes da espionagem tcheca vocês eram os personagens adequados... Que diz Número Um sobre a garrafa de uísque? — Disse que não podia ser uísque o que a garrafa contém. Apenas isso. — Mas deve ter ficado surpreendido. — Não muito. Uma surpresa simples, comum. Não é normal oferecer-se cem mil dólares a uma pessoa para levar uma garrafa de uísque de um país a outro. Logicamente supõe que dentro da garrafa não há uísque. — E vocês... supõem o quê? — Nada. Ainda somos menos complicados que Número Um... Você nos procurou, nos paga bem, nos disse que a coisa prejudicaria a Rússia e aceitamos. Importa-nos bem pouco o que possa conter essa garrafa. — Ótimo. Têm alguma ideia a respeito dessa moça que esteve com Número Um? — Não. É muito formosa... Só sabemos isso. — Está bem. Partam amanhã para Tóquio, depois que ele partir. Já sabem como nos poremos em contato. E espero que não haja mais contratempos. Quero o nosso espião americano em perfeitas condições para atravessar a Sibéria. Isto é tudo. Despediu-se com um gesto, após meter o cigarro no cinzeiro embutido a seu lado, e saiu do carro. Zorevic e Fanikar afastaram-se em seguida. Ela percorreu uma rua inteira, atravessou para a outra calçada e na esquina seguinte dirigiu-se a um grande carro Dodge de cor grená, estacionado diante de uns pequenos jardins que cheiravam a gardênias. Entrou na parte traseira do carro, sentando-se junto a um homem. No assento da frente havia dois. — Aconteceu alguma coisa, não foi? — perguntou-lhe. — Culpa dessa dupla de errados. Por felicidade, nossa escolha de um homem especial foi boa. Número Um não sofreu qualquer dificuldade. Leve-me ao hotel, Wan To. O veículo pôs-se em marcha e, em determinado momento, uma das lâmpadas da iluminação pública tomou bastante claro seu interior, permitindo ver o rosto da jovem chamada Aziza e os dos três chineses vestidos à europeia. Durante o percurso até seu hotel, Aziza explicou o que por sua vez lhes haviam explicado os tchecos. Quando concluiu, o carro já estava parado diante de um hotel de tipo Standard, mas cujo aspecto era muito agradável; pelo menos no exterior. — Que pensa a respeito dessa moça americana? — perguntaram a Aziza. — Não tenho nenhuma ideia, Wei... Nenhuma. — Isso do salto do sapato soa de modo suspeito, naturalmente. Foi um truque para entrar em contato com o americano. Apostaria minha cabeça que ela é tão americana como eu. — É possível que seja russa, não pense você que eu não tenha pensado nisso. Talvez tenha dado um jeito de levar Número Um ao Peak, para que os outros dois o eliminassem... Mas não podemos ter certeza, Wei. — É verdade — sorriu geladamente o chinês — fica a dúvida. Aziza Kholgore contraiu as sobrancelhas. — Sim... Fica a dúvida. E não quero dúvidas nem hesitações neste assunto. Você, Chu — olhou o chinês que estava ao seu lado e que não havia dito nem uma palavra —, irá matá-la. Está hospedada no “Victoria Peak Hotel”. Consiga localizar sua suíte, coisa que não lhe será difícil sabendo seu nome. Pode simular uma ligação telefônica errada... Qualquer coisa. Lembra-se do nome? — Nora Teasdale. — Isso mesmo. Vá matá-la. Há trinta mil porcas almas russas flutuando neste assunto e não quero que nos escapem, porque são muito importantes... Será um golpe mortal para elas. — Eu a matarei — Chu dispôs-se a sair do carro. Aziza reteve-o um instante pelo braço. — Este é um bom momento... — disse. — E não deixe de ligar para mim tão logo o tenha feito. Depois, reúna-se com Wei e Wan To. Já sabem onde nos veremos em Tóquio. Entendido? — Sim. Posso matá-la a faca? — Como você quiser — sorriu Aziza. * * * Depois de escalar aquela fachada do “Victoria Peik Hotel”, o chinês encontrou-se, finalmente, no terraço da suíte que lhe interessava. Olhou para baixo e houve um leve piscar em seus olhos oblíquos ao compreender todo o risco que correra subindo por aquela parte. Quando viera, por Peak Road, ainda tinha visto dois carros da Polícia Colonial na estrada e alguns peritos de acidentes, que tomavam medidas com uma longa fita métrica para chegar a conclusões mais ou menos acertadas a respeito do que sucedera entre os dois carros incendiados. Mas, certamente, a vista dos dois cadáveres com as cabeças perfuradas por balaços levava a investigação mais além dos limites do regulamento sobre a circulação de veículos em Hong Kong. Tudo isto interessava bem pouco a Chu, que estava limpando o suor da testa com a mão, a qual depois esfregou nas calças. Lá embaixo, a cidade continuava brilhando com seus milhares e milhares de luzes de diversas cores; muitas já se haviam apagado, mas as que restavam era suficientes para que a baía parecesse um espelho policrômico. Sacou o lenço para enxugar ainda melhor a mão. Depois apertou a mola da navalha e a lâmina, com seco estalido, cintilou na penumbra. Sabia que com aquela navalha podia abrir qualquer janela comum, nem sequer teve necessidade disso: ao que parecia, Nora Teasdale era uma pessoa de hábitos saudáveis e gostava de dormir com a porta-janela abertas o suficiente para que o ar do quarto se renovasse. Chu empurrou a folha de madeira e vidro com a mão esquerda, entrou velozmente e ficou imóvel na zona de sombra. Pouco a pouco, foi abrindo a porta-janela, até que o resplendor da lua no terraço se estendeu também pelo aposento. Dois minutos mais tarde, os oblíquos e negros olhos do chinês, semelhantes aos de um rato, tinham-se acostumado à escuridão relativa do quarto. O bastante, sem dúvida, para ver no leito a jovem americana, deitada de lado. Ela dormia completamente