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© 1969 – LOU CARRIGAN 
TRANSIBERIANO 
Ilustração de capa por Benicio 
Colaboração de Carlos Natali 
® 530614 
CAPÍTULO PRIMEIRO 
Tipos em contraste 
Muitas são as maneiras de entrar e sair da Rússia 
A ajuda de ninguém 
 
Os dois homens entraram na taberna do porto de Pireu, 
por onde Atenas tem seu contato com o mar. Uma taberna 
acanhada, de paredes brancas e grandes arcadas que ainda 
mais apequenavam o recinto destinado aos clientes. 
Um deles permaneceu quase no umbral, segurando ainda 
os fios da cortina de contas coloridas, enquanto olhava com 
indiferença a seu redor. O outro tocou-lhe suavemente com o 
cotovelo e, ao ser interrogado com um olhar, indicou com o 
queixo um dos fregueses sentado a uma mesa, sozinho. 
Depois ambos se dirigiram ao balcão, onde alguns 
frequentadores de negríssimos cabelos e grandes bigodes 
bebiam e riam alegremente. Apoiaram-se um instante a ele e, 
ao aproximar-se o garçom, um apontou para a mesa do 
homem solitário. 
— Leve-nos uma jarra de vinho para lá. 
O garçom assentiu e os dois homens caminharam a passo 
lento para onde estava aquele tipo isolado, que também 
tomava seu vinho, sossegadamente, com o aspecto de quem 
está dedicando uns minutos a beber e refletir, esquecendo o 
mundo que o rodeia. Era um homem interessante, decerto. 
Havia mais mesas ocupadas, mas apenas ele estava só. 
Entretanto, não era isto o que fazia destacar-se dos demais e 
sim seu aspecto físico. Tendo-se em conta a enormidade de 
seu tórax, podia-se calcular sua estatura em um metro e 
oitenta e cinco, pelo menos. Ombros poderosos, pescoço 
musculoso, mãos grandes e bem feitas, bronzeadas pelo sol. 
Mesmo sem vê-lo completamente, podia-se adivinhar que 
seu corpo era atleticamente perfeito, sem exageros de 
musculatura, mas forte como aço. 
O mais notável, entretanto, era seu rosto, de maxilar 
agressivo e boca firme, que parecia talhado em granito. 
Tinha o nariz reto e a testa Usa. Os cabelos, algo rebeldes, 
eram cor de cobre. E naquele rosto, o que mais 
impressionava eram os olhos: grandes, negros, inteligentes, 
dando a impressão de que nada poderia ocorrer perto dele 
sem que tais olhos imediatamente vissem. Pouco importava 
sua indolência, sua aparente indiferença. Tudo quanto 
acontecesse dentro dos limites do campo óptico daquele 
homem seria percebido por seus frios, serenos olhos negros. 
Mas, isto sim, nenhuma de suas feições se alteraria. 
E, com efeito, não se alteraram quando os dois recém-
chegados se detiveram diante de sua mesa e ficaram 
expectantes, aparentemente um tanto dominados pelo seu 
olhar. O contraste era absoluto entre eles, e muito 
desfavorável aos que permaneciam de pé, sem dúvida, 
começando por suas espalhafatosas roupas listradas e 
camisas de gola aberta, em contraposição ao simples trajo 
castanho do homem sentado, seu jérsei negro de gola alta, e 
terminando por seus rostos esbranquiçados e vulgares, em 
tudo opostos ao semblante viril e enérgico do bebedor 
solitário. 
Após alguns segundos de constrangimento, um dos dois 
perguntou: 
— Number One? 
Os olhos negros não se alteraram e a resposta, em grego, 
foi interrogativa: 
— Como dizem? 
Os dois homens trocaram um breve olhar inquieto. 
— Não é Número Um? — insistiu o mesmo de antes. 
— Se estão procurando alguém, devem estar enganados, 
senhores. Não os conheço. 
— Bem... Foi-nos dito que viéssemos a esta taberna, hoje, 
a esta hora. E entendemos que seria possível o contato... O 
senhor deve ser a pessoa que procuramos. 
— Por que motivo creem que sou essa pessoa? 
— Talvez por sua aparência... A pessoa que procuramos, 
se está nesta taberna, só pode ser o senhor. Entretanto — 
apressou-se a acrescentar o homem —, talvez pensemos que 
o senhor é Número Um pelo simples fato de que o meltemi 
sopra no verão. 
A última frase foi dita intencionalmente e o solitário 
bebedor de vinho assentiu com a cabeça, esboçando um 
pequeno sorriso irônico. 
— Sentem-se... — disse. — Com efeito, o meltemi 
refresca as ilhas gregas durante o verão. É um vento... 
simpático. 
Os dois homens sentaram-se. Um deles colocou sobre a 
mesa uma pasta de couro negro, à qual o chamado Número 
Um dirigiu um olhar rápido. O garçom chegou à mesa, 
trazendo a jarra de vinho e dois copos. Quando se afastou, o 
outro ergueu a jarra, olhando para Número Um. 
— Mais vinho? — ofereceu. 
— Ainda tenho em minha jarra. E nunca bebo das jarras 
alheias. 
— É uma medida prudente. Eu sou Zorevic — serviu-se 
de vinho e passou a jarra a seu companheiro — e ele é 
Fanikar. Espero que, finalmente, admita que é Número Um. 
— Sou. Os senhores são tchecos? 
— Somos. 
— Que querem de mim? 
— Que faça uma viagem bastante longa. Para isso lhe 
pagaremos cem mil dólares. 
— Destino? 
— Moscou. 
— Motivos? 
Zorevic e Fanikar outra vez entreolharam-se. 
— Bom... — disse este. — Entendemos que é um homem 
especial, Número Um. Em todos os sentidos, realmente. Até 
dois anos atrás, as façanhas de Número Um eram o assunto 
preferido de todos os espiões na Europa. Evidentemente, 
sabia-se que trabalhava para a CIA, de onde a conclusão, 
talvez errônea, de que é americano. Ê? 
— Talvez. 
— Por favor, responda com clareza. Para este trabalho é 
imprescindível que seja americano. É? 
— Sou. Mas se estão procurando um contato com a CIA, 
perdem seu tempo. 
— Não, não... Sabemos muito bem que algo aconteceu 
entre Número Um e a CIA. Consta que esta o traiu, que o... 
vendeu. Supomos que para fazer isso a CIA tivesse enormes 
interesses em jogo. Mas é algo que não vem ao caso. O que 
importa são os rumores atuais. Segundo estes, depois de ser 
traído pela CIA, Número Um dedicou-se à espionagem por 
conta própria. Quero dizer com isto que, segundo consta, 
trabalha para quem paga, não cogitando se o dinheiro é 
russo, americano, francês, tcheco, alemão, chinês... Isto é 
verdade? 
— É. 
— Ótimo. Queremos que entenda bem, desde o princípio, 
que o senhor não nos interessa pessoalmente. Interessa-nos 
apenas seu trabalho. Pensamos muito antes de decidir-nos, 
mas, ao fazê-lo, quisemos escolher o melhor espião que 
jamais tenha existido... 
— Estão exagerando, não acham? 
— Nós, não. Se houver exagero, será dos que falam de 
Número Um. Se os espiões profissionais asseguram que é o 
melhor, não temos nenhuma razão de duvidar. Não queremos 
saber onde vive, que nome usa, quais seus projetos no 
momento, se possui família... Insisto em que, pessoalmente, 
não nos interessa. Queremos apenas encarregar do trabalho 
um homem que seja capaz de realizá-lo... antes de qualquer 
coisa. E esse homem é o senhor. 
— Que querem que eu faça? 
— Em primeiro lugar, manter em absoluto segredo sua 
viagem. Sabemos que tem amigos em toda a Europa, no 
Norte da África... Possivelmenté, terá também amigos na 
América e inclusive na África. Outra das coisas que se dizem 
a seu respeito é que conta com recursos ilimitados, 
justamente por essa rêde de colaboradores que lhes são fiéis 
até à morte. Mas, no caso atual, não deverá recorrer a eles. 
Não deverá recorrer a ninguém. Nós lançamos o chamado a 
Número Um, alguém o recebeu, avisou-o, notificou-nos de 
que deveríamos vir aqui e a aqui estamos. Mas a partir deste 
momento esquecerá todos os seus amigos. Trabalhará 
absolutamente sozinho. 
— Sempre trabalho só. Meus amigos fazem apenas 
pequenas coisas, subsidiariamente. Se estão de acordo, não 
falemos mais a meu respeito e passemos ao assunto. Que 
devo fazer em Moscou? Eliminar alguém? 
Olhou friamente para Zorevic, o qual sorriu, trocando um 
novo olhar com seu companheiro. 
— Se supõe que seu trabalho se relacione de algum modo 
com qualquer espécie de represália ou rancor tcheco contra a 
Rússia, está enganado. Sua missão absolutamente nada terá a 
ver com a invasão da Tchecoslováquia pelos russos. 
— Isso não me importaria. O que está me fatigando é que 
não falem claro comigo. Qual é o motivode minha viagem a 
Moscou? 
— Levar uma garrafa de uísque. 
O imperturbável rosto de Número Um alterou-se um 
instante, revelando autêntica surpresa. 
— Levar uma garrafa de uísque? — repetiu. 
— Apenas isso. 
— Acho que estão pagando regiamente um serviço tão 
simples, senhores. Porque, se pensaram que terei 
dificuldades para chegar a Moscou, devo desenganá-los; 
conheço dezessete maneiras de atravessar a Rússia em todas 
as direções e vinte e duas de entrar em Moscou, bem como 
trinta e quatro de sair dessa cidade e sessenta e duas de 
escapar da Rússia. 
Fanikar e Zorevic estavam atônitos. 
— Não é possível... 
— É — sorriu brevemente Número Um. — E se todo o 
problema consiste em chegar a Moscou, creio que deviam 
procurar outro espião mais... barato. Hoje em dia, chegar ao 
coração da Rússia está ao alcance de qualquer, ou pouco 
menos. Pela quarta parte dessa soma que me oferecem, 
qualquer espião levará essa garrafa a Moscou. 
— Bom... Talvez devamos esclarecer um ponto. Não 
queremos que essa garrafa chegue via Europa. 
— Via América, talvez? — Número Um apertou as 
pálpebras. 
— Via Sibéria. 
— Não. 
Um serviu-se de mais vinho, bebeu-o lentamente, depois 
passou a língua pelos lábios, pensativo. 
— Que contém a garrafa? — perguntou. 
— Uísque. 
— Ora, vamos... 
— Deve convir que não temos que lhe dar explicações. 
Temos somente que dar-lhe cem mil dólares. Em troca disso, 
irá a Moscou, via Sibéria, para levar a garrafa. É tudo. Diga-
nos apenas se lhe interessa ou não. 
— Como faria a viagem? Em etapas aéreas? 
— Daqui a Tóquio, sim. De Tóquio a Vladivostok, 
primeiro de barco e depois num pequeno trem. Em seguida, 
o Transiberiano. 
— Devo atravessar toda a Ásia de trem? 
— No Transiberiano, justamente. Alguma vez já fez essa 
viagem? 
— É possível. Que teria que fazer com a garrafa, 
finalmente? 
— Entregá-la a uma pessoa. 
— Ao chegar a Moscou? 
— Isso não depende de nós. Em determinado momento, 
alguém o abordará, dará a senha combinada e o senhor lhe 
entregará a garrafa. Tanto se estiverem em Moscou como a 
três mil quilômetros da capital russa. 
— Qual é essa senha? 
— Ser-lhe-á comunicada em Hong Kong, que é onde lhe 
será entregue a garrafa de uísque, salvo uma modificação de 
planos que oportunamente lhe anunciaremos. 
— Isto quer dizer que os senhores e eu tornaremos a ver-
nos, não é assim? 
— Realmente. Tudo bem compreendido? 
— Sem dúvida — murmurou Número Um. — Que 
deverei fazer, uma vez tenha entregado a garrafa de uísque a 
quem me der a senha? 
— Nada. A partir desse momento, seu trabalho estará 
terminado e já não haverá ligação de qualquer espécie entre 
o senhor e nós. Missão cumprida. 
— Parece um trabalho fácil — sorriu Número Um. 
— Para o senhor, sim. Aceita? 
— Quando receberei o dinheiro? 
— A metade agora. A outra metade será depositada num 
banco da Suíça e poderá sacá-la quando terminar seu 
trabalho. A pessoa que receber a garrafa lhe entregará um 
cheque perfeitamente legal, com que poderá retirar o 
dinheiro. Não temos a menor intenção de enganá-lo. 
— Seria uma estupidez — comentou Número Um, 
tranquilamente. 
Fanikar empurrou sua pasta para o espião sem pátria. 
— Aqui tem a primeira metade. São sessenta mil 
dólares... Cinquenta mil limpos, para o senhor. Os outros dez 
mil para os gastos. 
Número Um abriu a pasta e lançou uma olhadela a seu 
conteúdo, folheando os maços de dinheiro. Evidentemente, 
ali não podia haver muito menos de sessenta mil dólares. E 
pensar que iriam enganá-lo nuns poucos milhares seria 
absoluta tolice. Fechou a pasta, deixou-a sobre a mesa e 
olhou os dois homens. 
— Gosto que confiem em mim — declarou. — Espero 
que entendam que nada me seria mais fácil que desaparecer 
com este dinheiro. 
— Naturalmente. Mas sabemos que não fará isso — 
sorriu Fanikar. 
— Sabem? Estão certos de que jogarei limpo? 
— Estamos. Como já lhe foi dito, sabemos muitas coisas 
a seu respeito. Para falar a verdade, só nos faltava conhecê-lo 
pessoalmente. Quanto ao resto, nossa confiança no senhor é 
completa. Estamos convencidos de que realizará seu 
trabalho. 
— Por que tão convencidos? 
— É um motivo de ordem psicológica. Quando um 
espião atinge o mais elevado grau de competência 
profissional, isto quer dizer que é um espião nato. O senhor, 
evidentemente, nasceu para espionar. Sua inteligência e 
cultura lhe permitiriam dedicar-se com notável êxito a 
qualquer outra atividade... mas não o fará enquanto estiver 
em condições de continuar praticando a espionagem. 
Enquanto seu corpo e sua mente responderem, o senhor será 
espião. Gosta do trabalho, vive dele e para ele. Estamos 
certos de que não deixará um sem fazer só para embolsar uns 
míseros sessenta mil dólares. Temos certeza de que já possui 
muito dinheiro, a ponto dessa importância que lhe 
entregamos poder parecer-lhe ridícula... mas principalmente 
se comparada com a satisfação de realizar mais um trabalho, 
de espionar, de lutar... Não, Número Um, não temos a menor 
dúvida de que irá a Moscou entregar a garrafa. 
— Talvez nos enganemos, Fanikar — disse Zorevic, 
sorrindo. 
— Que ele responda — sorriu também Fanikar. 
E por sua vez sorriu Número Um. 
— Não... — disse quase divertido. — Não se enganam. 
Farei esse trabalho. Detesto o ócio. Não sou uma pessoa 
capaz de aborrecer-se, mas detesto os ociosos. Levarei a 
garrafa a Moscou. 
— Ótimo. Oh, mas lembre-se de que talvez a peçam 
antes. 
— Não esquecerei. Agora, senhores, quero esclarecer um 
ponto muito importante: meu preço por este trabalho são 
quinhentos mil dólares. 
Zorevic e Fanikar empalideceram. 
— Está louco! — quase gritou o primeiro. 
— Não gosto da Sibéria — disse Número Um. — Eis 
tudo. 
— Mas quinhentos mil dólares para atravessar a Sibéria... 
— Não, não. É que há outro serviço complementar por 
minha parte. Vieram sozinhos? 
— Claro... 
— Então, estão sendo vigiados... Não se virem! Por que 
não bebem um pouco mais de vinho? Tranquilos. 
Fanikar serviu vinho nos dois copos. 
— Quem nos vigia? — sussurrou Zorevic. 
— Dois homens. Entraram separadamente, pouco depois 
dos senhores. Trocaram apenas um olhar, mas é suficiente... 
para mim, pelo menos. Tudo isto tem algo a ver com o MVD 
soviético? 
— Bom... 
— É evidente que tudo quanto se relaciona com a Rússia 
tem a ver com o Ministerstvo Vnutrennikh Dgel, ou, se o 
quiserem em grego, com o Ministério do Interior. Na 
verdade, o que queria perguntar- lhes era se já tiveram algum 
contato ou tropeço com o serviço secreto russo. 
— Não. Nenhum, pode crer. 
— Nesse caso, deveremos uma vez mais admirar o 
sistema de espionagem e contraespionagem soviético. E, por 
consequência, suponho meu dever opinar que são ambos os 
senhores muito inábeis. Ou que estão me enganando. 
— Em que poderíamos enganá-lo? — murmurou 
nervosamente Zorevic. 
— Não sei. Mas compreendam que tudo isso da garrafa 
de uísque é uma... tolice. Que contém a garrafa? 
— Já lhe dissemos que... 
— Não creio que contenha uísque. É absurdo. Mas não 
vou perguntar mais nada. Eu farei o trabalho... Se se pode 
chamar trabalho levar uma garrafa a Moscou. Entrementes, 
insisto em que meu serviço aos senhores deverá começar 
agora mesmo. Devem compreender que não penso deixar-me 
seguir por nenhum agente da MVD. 
— Não lhe estamos preparando nenhuma cilada, se é isso 
o que pensa! — exclamou Zorevic. 
— Geralmente, não costumo ser truculento — disse Um, 
com um frio sorriso. — Mas digo-lhes que se tivesse 
suspeitado isso, ambos já estariam mortos. Creio que o 
melhor será sairmos daqui, por enquanto. 
— Mas não resolvemos tudo ainda... 
— Pouco resta a resolver. Aceitam meu preço ou não? 
— Quinhentos mil dólares é um preço excessivo. 
— É o meu preço. De qualquer modo, embora não 
aceitem, gostaria de não deixá-los na enrascada. Estão 
armados? Posso ajudá-los a sair daqui com certa segurança, 
se desejarem. 
— Recusaos cem mil dólares? 
— Definitivamente. Quinhentos mil. 
Fanikar e Zorevic entreolharam-se, agora com desalento. 
— Serão quinhentos mil — disse o segundo. — Não 
quero ocultar que necessitamos de seu serviço. 
— Onde e quando nos veremos? 
— Já lhes dissemos que em Hong Kong. Dentro de quatro 
dias... Podemos sugerir-lhe uma linha de viagem aérea: de 
Atenas a Teerã, depois a Nova Deli, a Saigon e finalmente a 
Hong Kong. “American Hotel”, em Queen Road. 
— Perfeito. Não esqueçam que o cheque que receberei ao 
entregar a garrafa deverá ser de quatrocentos e cinquenta mil 
dólares. Nenhum engano a este respeito. Os senhores não 
poderiam localizar-me ainda que vivessem cem anos, mas eu 
os localizaria em duas semanas. Além disso, talvez, em lugar 
de entregar a garrafa, eu resolvesse bebê-la. 
Número Um notou claramente o sobressalto dos dois 
tchecos. 
— Não faça isso... — excitou-se Fanikar. — A garrafa irá 
fechada e selada. Em hipótese alguma deverá beber esse 
uísque. 
— Com quinhentos mil dólares poderei comprar muitas 
caixas de uísque — sorriu Número Um. — Se não têm nada 
mais a dizer-me, podemos ir. 
— E esses dois homens? 
— Tenho uma lancha no cais. Pelo caminho, pensaremos 
a respeito disso. Ultimamente fiz alguns trabalhos para os 
russos, de modo que preferiria não me inimizar seriamente 
com eles. Entretanto, temo que a decisão esteja fora de meu 
controle. Vamos? 
Número Um levantou-se, deixou umas células sobre a 
mesa e apanhou a pasta. Dirigiu-se tranquilamente para a 
saída, seguido pelos dois tchecos, que precisaram fazer um 
grande esforço para não olhar a seu redor, tentando localizar 
os dois homens mencionados por ele. 
Número Um afastou a cortina colorida, deixando passar 
aqueles que vinham de oferecer-lhe um formidável contrato 
de espionagem. Saiu atrás, sem olhar uma só vez para os 
dois indivíduos que supunha agentes do MVD russo. 
Fora soprava uma brisa fresca, possivelmente uma 
ramificação do meltemi, o vento que procede do Egeu e torna 
agradável o clima das ilhas. O ex-agente da CIA indicou o 
cais, onde se viam diversas embarcações, muitas delas com 
suas luzes vermelhas acesas. Mais além, a escuridão do mar 
com suas cintilações douradas sob a lua crescente. As velas 
de alguns barcos eram como manchas brancas no ambiente 
noturno. 
— Não se voltem. 
Até eles chegava o som vibrante de um sirtaki, a guitarra 
grega, proveniente de outra das tabernas, mais iluminada que 
aquela onde se efetuara o contato de que resultara um 
contrato por meio milhão de dólares. Algumas mulheres 
cruzaram com os três, sorrindo-lhes de maneira promissora, 
mas sem nenhum sucesso. Dois deles pareciam assustados e 
o outro dava a impressão de totalmente infensos às seduções 
do amor mercenário. 
Quando chegaram ao ponto onde Número Um tinha sua 
lancha, ele a indicou. 
— Posso deixá-los em Salamina ou Megara, se lhes 
convém. Não creio que estejam preparados para seguir-nos 
por mar. 
Zorevic e Fanikar saltaram à lancha, moderna, de aspecto 
estilizado; devia ser muito veloz. Número Um foi o último a 
abordá-la, dirigindo-se diretamente aos controles. 
— Salamina ou Megara? — perguntou. 
— Deveríamos ficar em Atenas... — murmurou Zorevic. 
— Além disso, julgamos que eles nos identificaram, o que é 
muito perigoso. Possivelmente, tiraram microfotos... Não 
creio que isso convenha a nenhum de nós três. 
— Querem que os mate? 
— Bom... Seria o mais acertado, tendo em vista a 
segurança de todo este assunto. Não será a primeira vez que 
mata, creio. 
— Por segurança pessoal ou sobrevivência — esclareceu 
secamente Número Um. 
— Este é o caso agora. 
— Não me parece que esses dois tipos possam causar-me 
sérias dificuldades — sorriu o espião. 
— O senhor está agora trabalhando para nós por 
quinhentos mil dólares. Aceitou o contrato. Ou não? 
— Claro que sim. 
— Neste caso, cumpra a primeira ordem: mate esses dois 
homens. 
Número Um olhou-os alternadamente, o rosto como se 
fosse de pedra. 
— Okay. Sabem manejar uma lancha? 
— Sim. 
— Deem uma volta pelo posto e regressem dentro de... 
três minutos. 
Meteu a mão sob a axila esquerda e sacou uma 
automática espanhola, marca “Astra”, de nove tiros, já com o 
silenciador colocado. Retirou o pente, olhou-o e tomou a 
encaixá-lo com um golpe seco. Indicou a saída do porto, 
antes de saltar para os degraus de pedra que levavam do 
nível da água até a borda do cais. Fanikar encarregou-se dos 
controles t em poucos segundos a lancha partia, deixando 
uma esteira de brilhante espuma nas águas negras. 
Número Um permaneceu talvez um minuto na escada de 
pedra, olhando para cima, alerta, preparado para atirar. 
Decorrido o minuto, franziu a testa, olhou para direita e 
esquerda... Não havia nem sinal dos dois homens que ele 
detectara na taberna. A possibilidade de ter-se equivocado 
passou um instante por sua mente, mas descartou-a de 
imediato. Aos trinta e quatro anos, com quase quinze de 
espionagem profissional, era pouco provável que se pudesse 
enganar em algo tão simples como aquilo. 
Não sem certa apreensão, galgou os degraus de pedra, 
sempre alerta. Os dois sujeitos tinham que estar ali, talvez 
olhando para onde a lancha se dirigia e enviando pelo rádio 
uma mensagem a outros companheiros que disporiam de 
lancha. Ou talvez estivessem procurando desesperadamente 
uma lancha para seguir a dele... Tinham que estar ali, perto 
do cais. 
Não estavam. 
Já sobre as lajes de pedra, ergueu-se completamente, a 
todo risco. Acertar um alvo como o que oferecia tinha que 
ser fácil, com sua notável robustez e elevada estatura. Era 
apenas necessário acertar bem o primeiro tiro, pois se assim 
não fosse sempre lhe sobrariam energias para resolver a 
questão a seu favor. Tempos atrás, quando a CIA o vendera 
na jogada mais suja da espionagem mundial, recebera três 
balaços no peito... e ainda estava vivo. E não tinha sido 
muito longe dali, daquele mesmo lugar onde agora punha os 
pés...
1
 
Viu algumas pessoas caminhando mais ou menos perto 
dele, mas por completo alheias à sua presença. Ninguém lhe 
prestava atenção. Tudo parecia normal. 
E quanto aos dois homens que vira na taberna, não 
estavam à vista. 
Cenho carregado, desviou o olhar para as pilhas de 
caixotes armadas a menos de quinze metros de distância, 
formando degraus, deixando diversos corredores entre elas. 
E pareceu intensificar-se o olhar de seus olhos negros. 
Depois olhou de relance para os dois lados e, finalmente, 
dirigiu-se para as pilhas de caixotes. Estava a menos de 
 
1
 Ver aventura “Operação: Estrelas”, número 51 desta coleção. NR 
cinco metros delas, mando viu aparecer subitamente a 
mulher. Viu-a já de costas, caminhando garbosamente, com 
inegável força feminina, para as tabernas. Ainda se ouvia o 
artaki e a mulher, estalando os dedos, movia as pernas ao 
compasso da música. Umas pernas muito bonitas. E os 
longos cabelos pareciam negros. 
Número Um esteve tentado a não se dar o trabalho de 
percorrer os estreitos corredores entre as pilhas de caixotes. 
Talvez encontrasse ali algum homem, mas estaria 
relacionado com aquela mulher e não com os que ele 
buscava. Às vezes, entre umas pilhas de caixotes, tudo é 
mais simples e econômico que alugando um quarto num 
hotel do porto... 
Resolveu dar uma olhadela por ali, já que lhe restava um 
minuto e meio até que Zorevic e Fanikar regresassem com a 
lancha. Segundos depois, estava passando lentamente, 
pistola em punho, por entre as pilhas de caixotes. E viu o 
homem. De pé, ele apoiava-se fatigadamente em uns 
caixotes. Tinha a cabeça caída sobre o peito e seus braços 
pendiam, soltos, frouxos. Quando se deteve diante dele, viu 
seus olhos, abertos, estranhamente fixos no chão. Agarrou os 
cabelos do homem, lhe ergueu a cabeça e, enquanto o 
reconhecia como um dos dois que lhe tinham parecido 
espiõesrussos, ele desmoronava molemente, escapando de 
seus dedos, entre os quais deixou ficar alguns fios de cabelo. 
Número Um limpou a mão na calça e pôs um joelho no chão. 
Virou o corpo do homem, podendo assim ver com clareza a 
mancha de sangue que brilhava em seu peito. Sangue fresco, 
que ainda continuava escorrendo. 
Meia dúzia de passos mais além, viu os pés, de súbito. Os 
pés de um homem que estava estendido em decúbito dorsal 
entre as pilhas de caixotes. Deslizou silenciosamente até lá, 
agarrou um dos pés c puxou-o, de modo que todo o corpo do 
segundo homem apareceu ao resplendor da lua, que chegava 
ao estreito corredor formado pelos caixotes. Este segundo 
homem tinha os olhos fechados e a boca furiosamente 
torcida para um lado. Decerto fora aquela sua última 
expressão, antes que uma bala lhe perfurasse a testa, 
matando-o de modo fulminante. 
Sem possibilidade de dúvida, ali estavam os cadáveres 
dos dois que o vigiavam e aos tchecos na taberna. 
— A mulher — pensou Número Um. 
Ergueu-se e saiu a toda a pressa de entre os caixotes, 
sempre com a pistola na mão, mas ocultando-a atrás da perna 
direita. Não se decepcionou absolutamente ao constatar que 
a mulher tinha desaparecido; era lógico. Depois de eliminar 
dois homens, o normal é fugir com a máxima rapidez. E ele 
havia concedido tempo de sobra àquela mulher. Encontrar 
agora no cais do Pireu uma jovem de cabelos negros e 
bonitas pernas, coisas ambas que só pudera ver por trás, era 
algo absurdo. De modo que Número Um guardou sua pistola 
e retornou à beirada do cais. 
Poucos segundos depois, a lancha se detinha no mesmo 
lugar onde havia estado antes. Número Um saltou para ela e, 
colocando-se ao volante, lançou a veloz embarcação por 
sobre as águas do Golfo de Egina. 
— Matou-os? — perguntou Zorevic. 
— Estão mortos. 
— Os dois? 
— Claro. 
— Bom trabalho. Quinhentos mil dólares é muito 
dinheiro, certamente, mas seu trabalho os vale, sem dúvida 
alguma. 
— Quem mais trabalha com os senhores neste assunto? 
— Ninguém... Ninguém! 
— Estão mentindo — Número Um virou a cabeça para 
eles. — Mas não é de minha conta. Daremos uma volta e os 
deixarei em outro lugar deste mesmo cais. Então nos 
despediremos. A respeito do modo pelo qual chegarei a 
Hong Kong, suponho que isso não lhes cause preocupações. 
— Mas... não lhe agrada nosso itinerário? 
— Viajarei à minha maneira. 
— Bem... Tanto faz, contanto que esteja em Hong Kong 
na data combinada. E lembre-se, Number One: não deve 
recorrer a ninguém para que o ajude seja no que for. 
— Top secret — sorriu friamente o espião particular. — 
Em minha opinião, uma garrafa de uísque se esvazia melhor 
em boa companhia, mas, como se trata de não bebê-la e sim 
de levá-la pelo Transiberiano até Moscou, ou a um ponto 
intermediário, espero não necessitar da ajuda de ninguém. 
CAPÍTULO SEGUNDO 
Em Hong Kong a noite resplandece 
Acidente com um salto de sapato 
Bizarras da culinária chinesa 
 
— Com efeito, mister Coleman: recebemos seu pedido de 
reserva. Ocupará a suíte agora mesmo? 
— Se estiver disponível, sim — disse Número Um. — 
Quero tomar um banho imediatamente. 
— Está disponível desde ontem. Entendemos que sua 
reserva devia ser folgada. Evidentemente, deverá 
responsabilizar-se pelo dia de ontem também, visto que a 
suíte está reservada desde... 
— Compreendo — cortou Número Um. — E não me 
importa pagar um dia mais. É preferível isso a encontrar-se 
sem alojamento em Hong Kong. 
O encarregado da portaria do “American Hotel” aprovou 
com um movimento de cabeça a atitude sábia do cliente 
recém-chegado a Hong Kong. Certamente, era melhor pagar 
uns quantos dólares a mais que andar à procura de hotel 
naquela colônia britânica. Por outro lado, mister Clark 
Coleman parecia não carecer de nada. Saltava à vista que 
tinha tudo quanto um homem pode desejar: juventude, 
musculatura, inteligência, desembaraço, elegância... e 
dinheiro. O “American Hotel” de Hong Kong nada tem de 
barato. Mas mister Coleman, com suas duas grandes maletas, 
sua pasta e sua personalidade dominadora, além da excelente 
qualidade de suas roupas, teria que ser admitido 
gostosamente em qualquer hotel do mundo, por muito 
luxuoso que fosse... 
Enquanto anotava dados do passaporte do novo hóspede, 
o homem da portaria olhava com certo sorrisinho irônico 
para algumas damas que havia no vestíbulo e que desde o 
primeiro momento pareciam ter ficado hipnotizadas por ele. 
O elegante atleta como que emitia poderosas ondas de rádio, 
as quais se espalhavam simetricamente a seu redor, 
chegando a toda parte. 
— Suíte 217, mister Coleman... Boy! 
O boy que esperava perto do balcão, entre as duas maletas 
de Coleman, aproximou-se, recebeu a chave e, após 
introduzi-la num bolso da jaqueta, encarregou-se outra vez 
da bagagem, encaminhando-se diretamente para um dos 
elevadores. Número Um foi atrás dele, com o ar de quem 
estivesse indiferente a tudo. Ou talvez indiferente mesmo, 
pois um só de seus golpes de vista, daqueles tão especiais, 
tinha-o convencido de que nada interessante ocorria a seu 
redor. Pelo menos, nada que se pudesse relacionar de algum 
modo com seu trabalho atual. 
O elevador deteve-se no segundo andar. Pouco depois, o 
boy abria a porta da suíte 217 e entrava com as maletas. 
Levou-as para o quarto; depois abriu a porta-janela que dava 
para o terraço, do qual se via a baía de Hong Kong. Voltou-
se para o hóspede. 
— Posso servi-lo em mais alguma coisa, sir? 
— Não. 
O boy apanhou no ar a moeda, olhou-a com alegre sorriso 
e guardou-a a toda a pressa, enquanto exclamava: 
— Muito obrigado, sir. 
Segundos depois, Número Um ficava sozinho em sua 
suíte. Deu uma volta por ela, procurando em vão microfones 
ou quaisquer outros truques da espionagem convencional. 
Por fim, encolheu os ombros e dedicou-se a abrir suas 
maletas. Com uma rapidez e método admiráveis, transferiu 
sua bagagem para o armário em menos de dez minutos. 
Despiu-se, escovou a roupa que tirara e pendurou-a Possuía 
uma meticulosidade perfeita, exata; era como se todos 
aqueles movimentos tivessem sido ensaiados mil vezes. 
Finalmente, deixou sobre a cama outro traje: um smoking. 
Camisa, meias, gravatas, lenços, cigarros, pistola com seu 
coldre axilar, isqueiro... 
Completamente nu, entrou no banheiro, de uma suave 
tonalidade rósea. Franziu um instante a testa ao olhar-se no 
espelho. O lado direito do seu tórax tinha três feias marcas, 
deixadas por outras tantas balas que lhe haviam perfurado o 
corpo graças à traição da CIA. Outra cicatriz, longa e larga, 
do lado esquerdo, muito pouco abaixo do coração, passando 
entre duas costelas... Por um segundo, Número Um julgou 
sentir aquele frio talho em sua carne, produzido pela facada 
que também quase lhe tirara a vida. Sombrio, virou-se de 
costas, voltando a cabeça para ver no espelho as duas linhas 
paralelas que cruzavam sua região lombar, aparecendo entre 
elas a carne macerada, ali onde três anos antes um agente 
soviético o golpeara com uma barra de ferro. Depois, 
aproximando-se mais do espelho, contemplou a pequena 
cicatriz sobre o supercílio direito, recordação de uma 
coronhada em Berlim, junto ao chamado Muro da Vergonha. 
Tudo isso trabalhando para a CIA. Realmente, não valera 
a pena. 
Olhando pelo espelho, viu a rosa vermelha. Uma rosa 
vermelha natural, que estava cravada pelo talo ao sabonete 
da banheira. E vendo-a, Número Um sorriu. Um sorriso tão 
natural quanto aquela rosa 
Um sorriso amável, onde se misturavam nostalgia e 
esperança. Foi como se, de pronto, aquele homem taciturno 
recuperasse a alegria de viver. Mas no segundo imediato o 
sorriso extinguiu-se em seu rosto pétreo, bronzeado. 
Aproximou-se da banheira e apanhou a rosa com seus 
dedos longos, fortes, como de aço. Aspirou lentamente a 
flor, prolongando aquele simples e romântico prazer. Seus 
olhos escuros mostravam agora uma ternuraque teria 
grandemente surpreendido Zorevic e Fanikar... Ou a quem 
quer que alguma vez houvesse tratado com Número Um, o 
mais implacável, desapiedado, inflexível espião de todos os 
tempos. 
— Em troca disto — murmurou —, sempre valerá a pena 
arriscar a vida. Ainda que seja por uma garrafa de uísque. 
* * * 
Poucos minutos antes das oito, um táxi deixava Número 
Um na borda do cais das barcas, escassamente iluminado, 
bem em frente da outra margem, de onde se viam as não 
muito abundantes luzes de Kowloon, no continente. Pagou a 
corrida, desceu e caminhou com decisão para o 
embarcadouro. Dentro da baía, à direita, viam-se numerosas 
sampanas, vivendas naturais de muitos chineses pobres de 
Hong Kong. Brilhavam fracamente as luzes coloridas de 
inúmeras lanternas de papel. Sobre as cobertas, famílias 
inteiras dedicavam-se a comer peixe, pois era hora de seu 
parco jantar habitual. As sampanas com redondas lanternas 
de palha quase pareciam alegres, mas não assim as que 
utilizavam simples lampiões a petróleo. Um cheiro acre de 
suor, de peixe e o fumo se misturava ao do mar, que por sua 
vez cheirava a óleo e a madeiras apodrecidas. Como 
autênticas sombras chinesas, viam-se em silhueta os cônicos 
chapéus de palha e os torsos nus dos pescadores, que 
brilhavam com um frio tom prateado e vermelho à luz das 
lanternas. 
Sob seus pés, junto à borda do cais, havia diversas 
embarcações leves. Na maioria delas viam-se mocinhas 
pouco mais que adolescentes, sentadas entre os remos. Após 
olhar um instante, mudas de adoração, o atlético americano, 
começaram a oferecer seus serviços: 
— Táxi marítimo, senhor? Táxi marítimo? 
Número Um olhou-as durante uns segundos. Depois 
olhou para a esquerda, onde ficavam os restaurantes 
flutuantes. Todos eles de fundo chato e muito largo, 
apresentando grande estabilidade. De suas fachadas 
brotavam luzes de néon de todas as cores, traçando caminhos 
luminosos sobre a água negra. Luzes azuis, vermelhas, 
amarelas, verdes, roxas... Era como uma silenciosa explosão 
de fogos de artifícios, tão apreciados pelos chineses. 
Após olhar lentamente a seu redor, Número Um 
embarcou num dos táxis marítimos, sendo recebeu por um 
muito obsequioso sorriso da jovem remadora. Com um dedo 
ele indicou os restaurantes flutuantes. 
— “Sea Palace” — disse. 
— Sim senhor, sim senhor... 
A garota começou a remar, afastando-se do 
embarcadouro, onde suas companheiras tinham ficado 
desiludidas. Um cliente é sempre um cliente, mas qualquer 
delas teria levado grátis o atleta americano dos cabelos 
rebeldes, cor de cobre. 
O sea-taxi devia estar ainda a menos de vinte metros do 
embarcadouro, quando lá se deteve um rickshaw e uma 
mulher saltou rapidamente, estendendo uma cédula ao cule. 
Enquanto acendia um cigarro, Número Um viu-a 
escassamente, às incertas luzes. Era de estatura mediana e 
seus cabelos pareciam muito louros, ou talvez acinzentados... 
Não era possível precisar muito bem esse detalhe. Usava um 
vestido de noite bastante decotado, na verdade sugestivo. E 
parecia muito jovem e formosa. Pelo menos, não se podia 
duvidar da perfeição absoluta de sua esbelta silhueta, de pé à 
beira do embarcadouro, chamando uma das garotas dos sea-
taxis. Atenuada, de um modo estranho, a voz daquela mulher 
chegou aos ouvidos do espião particular. Uma voz clara, 
leve, alegre. Falava em inglês. Um inglês ianque, 
evidentemente. 
Número Um guardou o isqueiro e deixou de olhar para a 
jovem dos cabelos claros. Voltou-se para os restaurantes, 
olhando-os criticamente, o cigarro preso entre os lábios 
cerrados, imóveis. A todo o momento, dava a impressão de 
que seria empresa difícil obter um sorriso sincero daqueles 
lábios duros. 
Dois dos restaurantes foram deixados para trás 
chinesinha, que remava com grande facilidade e 
desenvoltura, sem fazer o menor esforço, ao que parecia. 
Finalmente, o “Sea Palace” ofereceu-se todo ao olhar de 
Número Um. Possivelmente, era o maior de toda a baía de 
Hong Kong e, sem dúvida, um dos que gozavam de mais 
renome internacional. À medida que se aproximava, ia vendo 
com precisão os detalhes, apesar do brilho ofuscante de suas 
luzes na água, luzes que formavam uma grande mancha de 
colorido enlouquecedor. Naquela mancha se misturavam 
todos os matizes possíveis e imagináveis, como se milhões 
de diminutos cristais de luzes viva se estivessem partindo na 
negra superfície da água. 
O “Sea Palace” constava de dois andares, com um teto 
inclinado em cujas bordas brilhavam lâmpadas amarelas. 
Não havia muita luz no primeiro andar, mas sim no segundo. 
Através de vidraças, viam-se lustres de cristal pendentes do 
teto da sala de refeições, que abria para um pequeno terraço; 
ao nível deste, em letras amarelas sobre fundo vermelho, 
destacava-se o nome do restaurante: SEA PALACE, com 
tubos de luz esverdeada a ambos os lados. Embaixo, à 
entrada, uma fileira de luzes quase tocando a água marcava a 
localização dos dois degraus de madeira, que levavam a um 
saguão profusamente decorado com motivos chineses. Aos 
lados, os múltiplos faróis da esplendorosa iluminação a cores 
e, nos flancos daquela espécie de grande barca, duas grandes 
rodas de madeira, cheias também de luzes, parecendo 
gigantescos chifres de carneiro. Era um espetáculo sem 
dúvida extraordinário, com todo aquele excesso de brilho e 
colorido. O aspecto do “Sea Palace” era sem dúvida bonito, 
seu reflexo na água tomava impossível qualquer descrição... 
Quando Número Um chegou lá o maitre estava à sua 
espera, com um amplo sorriso de boas-vindas em seu 
amarelado rosto oriental, que agora se tingia de todas as 
cores. Usava uma longa túnica de seda policrômica e tinha 
um pequeno barrete negro na pelada cabeça. Por um instante, 
pareceu que ia estender a mão ao cliente, mas desistiu de 
imediato. Esperou em silêncio que Número Um pagasse 
generosamente a garota do sea-taxi e, então, inclinou-se 
formal, sem sorrir agora, como se compreendesse que aquele 
cliente preferia mais sobriedade de maneiras. 
— Boa noite, sir... Vem só? 
— Venho. Prefiro ir para cima. 
— Pois não. Algo de especial quanto ao cardápio, sir? 
— Não. 
Era justamente o que tinha esperado o maitre chinês, que 
não se alterou em absoluto. Pareceu a ponto de acompanhar 
o recém-chegado, mas então viu outro sea-taxi que se 
aproximava, trazendo a bordo a jovem de cabelos 
acinzentados, de modo que acenou para um garçom, deu-lhe 
instruções em chinês e olhou para o atlético americano, o 
qual, Por sua vez, olhava fixamente para aquela que se 
aproximava no táxi marítimo. 
— Yin o levará a uma excelente mesa, sir. 
— Obrigado. 
Número Um seguiu o chinês que se postara a seu lado e 
um pouco à frente. Um chinesinho jovem, de expressão 
simpática e maliciosa, vestido a europeia, de jaqueta branca 
e gravata borboleta. Pausadamente, o espião particular subiu 
atrás dele e encaminhou-se para a mesa que lhe indicou o 
jovem oriental. Ficava junta à ampla janela da direita, de 
modo que, uma vez sentado, pôde ver todo o panorama 
noturno de Hong Kong, ascendendo em pontos luminosos 
pelas escalonadas ladeiras até o Peak. As luzes da cidade 
refletiam-se festivamente nai águas do porto. 
— Agrada-lhe a mesa, sir? 
— Muito. 
Apanhou o cardápio e lançou-lhe um olhar distraído... Na 
verdade, estava olhando para a porta, pela qual apenas cinco 
segundos depois entrou a jovem dos cabelos cor de cinza. 
Vê-la era como receber um impacto de inesperada 
formosura; inevitavelmente a beleza daquela mulher, que 
parecia ter apenas vinte e cinco anos, tinha que fazer reagir 
qualquer homem. Cabelos cinzentos emoldurando-lhe o 
rosto, boquinha rosada de expressão doce, grandes olhos 
verdes, resplandecentes, corpo escultural, pele suavemente 
dourada... Era uma joia rara envolta num delicado vestido de 
noite. O sorriso, a elegância, a beleza... Vê-la e receber o 
mencionado impactoeram coisas atordoadoras que 
aconteciam ao mesmo tempo, sem remissão, 
inevitavelmente. 
Com uma perfeita graça, caminhava atrás do maitre 
chinês, cujas maneiras não podiam ser mais obsequiosas, 
enquanto prolongava em inglês elaboradas frases de boas-
vindas. A jovem o ouvia com um leve sorriso nos doces 
lábios. Quer dizer, ouvia-o, mas não o escutava. Seus 
magníficos olhos verdes estavam fixos no rosto severo de 
Número Um e, por um instante, pareceram lançar um vivido 
clarão. 
E justamente quando passava junto à mesa de Número 
Um, sobreveio à belíssima loura um pequeno contratempo: 
seu pé direito se torceu. Ela soltou uma exclamação abafada, 
desequilibrou-se um pouco, moveu os braços como à procura 
de algo em que se firmar... e encontrou as mãos tisnadas do 
espião, que se havia posto de pé como um relâmpago, muito 
oportunamente. Ficaram se olhando um momento, enquanto 
o maitre chinês se voltava, alarmado, com os oblíquos olhos 
possivelmente arregaladíssimos. 
— Sente alguma coisa, miss...? 
— Não... — murmurou ela. — Não é nada... 
— Está mesmo bem? — interessou-se Número Um. 
— Estou... Obrigada. Creio que algo aconteceu com meu 
sapato... 
Ainda amparando-a com uma das mãos, ele inclinou-se e, 
com a outra, segurou o sapatinho da jovem, acabando de tirá-
lo do pé. Ergueu-se e mostrou-o, sorrindo. O salto se havia 
desprendido quase completamente. Um salto muito alto, 
muito fino... Não parecia estranho que se pudesse perder o 
equilíbrio com semelhante calçado. 
— O salto se soltou — disse Número Um, com divertido. 
— Um desses inconvenientes da elegância feminina, 
suponho... Posso ajudá-la em alguma coisa? 
— Não sei... Que faço agora sem um sapato? 
— Se me permite — interveio o maitre —, Yin é muito 
habilidoso: creio que poderá consertá-lo em poucos minutos. 
— Oh, que bom! Acha que ele poderá? Eu lhe ficaria 
muito grata! — Voltou-se para Número Um. — Importa-se 
que eu sente um instante à sua mesa, cavalheiro? 
Ele continuava sorrindo divertido, com algo de infantil e 
inocente no rosto másculo. 
— Pelo contrário... — disse cortês. — Será um prazer 
para eu tê-la à minha mesa. Pena que se já só por alguns 
minutos. Sente-se, por favor... 
Ajudou-a a sentar-se, sempre retendo uma de suas mãos. 
Olharam-se por dois segundos e, finalmente. Número Um 
soltou-a, tomando lugar do outro lado da mesa, diante dela. 
O maitre contemplou os dois, sorriu compreensivamente e 
afastou-se, levando o sapatinho avariado. Havia alguns 
chineses ocupando outras mesas, um par que parecia também 
americano e mais dois de tipo nórdico, alemães ou 
escandinavos. Um grupo de rapazes e moças, ao fundo, após 
interessar-se pelo pequeno acidente, retornou a seus risos e 
brincadeiras em torno ao esforço que significava colher os 
alimentos com os pauzinhos chineses 
— O senhor é americano? — perguntou ela, como se não 
soubesse o que dizer. 
— Sou — respondeu ele, ainda mais lacônico. 
— Eu também... 
— Ah, sim? — assombrou-se ironicamente Número Um. 
— Então não duvido de que nos entendamos bem... durante 
estes minutos. Posso convidá-la a tomar um aperitivo? 
— Por que não? Está sendo muito amável, mister... 
— Coleman. Clark Coleman. 
— O meu nome é Nora Teasdale... 
Apertaram-se a mão por cima da mesa. Ele olhou para o 
maitre, que reaparecia então, e fez-lhe um sinal. O chinês 
acorreu prontamente e assentiu ao receber o pedido de dois 
martinis secos, com gelo. 
— Querem examinar o cardápio, agora? — propôs. 
— Boa ideia. 
Um minuto mais tarde, outro garçom servia-lhes os 
martinis e deixava um cardápio diante deles. Estava escrito 
em chinês, inglês, francês e alemão. Número Um estendeu-o 
à jovem, que o recebeu hesitante, com uma expressão bem 
visível de embaraço mal dissimulado. Ele acendeu um 
cigarro, tomou um gole do martini e mais uma vez sorriu. 
— Tenho a impressão de que não está muito certa do que 
deseja jantar — disse amavelmente. 
— Tem razão, mister Coleman. 
— Veio só? Quero dizer que talvez tenha um encontro 
aqui com alguém. 
— Não, não. Estou sozinha em Hong Kong. Férias... 
Tinha muita vontade de vir ao Oriente. 
— Hong Kong é um lugar exótico — admitiu Número 
Um —, mas parece-me que não reflete muito bem o Oriente 
que lhe interessa. Há demasiada... civilização, de um modo 
geral. 
— Creio que sim. Mas penso que por alguma parte do 
Oriente devo começar. 
— Isso é indiscutível. Eu também estou só em Hong 
Kong. E lhe ficaria muito grato se aceitasse compartilhar 
minha mesa... e meu jantar, naturalmente. Talvez possa 
sugerir-lhe alguns pratos adequados ao momento e a seu 
desejo de exotismo. 
— Vai jantar pratos chineses? 
— Sem dúvida. 
— Oh, então aceito encantada. Bem entendido, cada um 
pagará sua parte, mister Coleman. 
— Gostaria que se considerasse minha convidada. 
— Não. Não me parece justo. 
— Como queira. Vejamos esse cardápio. 
Falavam em voz um tanto alta, muito clara. Qualquer um 
que sentisse interesse por sua conversa não teria a menor 
dificuldade em ouvi-la, até cinco metros de distância. Eram 
os clássicos americanos, seguros de si mesmos, indiferentes 
ao que acontecesse a seu redor. Para eles, jantar num 
restaurante de Hong Kong não tinha por que ser algo 
misterioso ou muito extraordinário. 
Uma vez examinado o cardápio, Número Um chamou o 
maitre, que se mantinha em expectativa. 
— Jantaremos juntos — disse-lhe, ignorando o seu 
sorriso de tácita cumplicidade. — Mande-nos sopa de 
salangana, deem-sum, cochinilha, barbatana de tubarão, 
chow-fan... E para beber, shau-shing. Creio que será 
suficiente. 
O maitre retirou-se e Um olhou novamente a jovem, que 
o contemplava com expressão assustada. 
— Que... que foi que pediu, mister Coleman? 
— Tudo muito gostoso... — sorriu ele. — Nunca 
experimentou a comida chinesa? 
— Nunca. 
— Pois chegou a hora. Na verdade, nós quase são vamos 
comer, em comparação com o que comem os chins. Eles 
pedem pratos e mais pratos... Vinte ou trinta, às vezes. Nós 
seremos muito mais frugais. A menos que lhe interesse 
arranjar uma fenomenal indigestão. 
— Oh, nada disso... Mas o que é tudo isso que pediu? 
— A sopa de salangana é saborosíssima. É feita com 
ninhos de pássaros fervidos, provenientes das ilhas malaias, 
via Cingapura. O mais curioso a respeito desses ninhos é que 
as salanganas os formam com saliva... 
— Com... saliva...? 
— Parece um pouco asqueroso, não é verdade? 
Entretanto, os chineses os comem... e estão vivos. As 
salanganas são uma espécie de andorinhas e constroem seus 
ninhos com saliva, que se solidifica rapidamente em contato 
com o ar. Esses ninhos, submersos em água fervendo, 
deixam um sabor delicioso. 
— Santo Deus... E que mais encomendou. 
— O resto é menos... impressionante — quase riu 
Número Um. — O que chamamos deem-sum é uma mistura 
de entremeios mais ou menos comuns, amêijoas, ostras, 
mexilhões, aipo, azeitonas, gengibre... A barbatana de 
tubarão é... barbatana de tubarão, simplesmente, preparada 
de um modo especial, com creme de leite. 
— Creme de leite? 
— Nunca tomou leite às refeições? 
— Oh, claro que sim... Suponho que não seja algo tão 
extraordinário... E o tal chow-fan? 
— Arroz com ovo — informou Um, divertido — Sempre 
preparado de um modo especial. Não quis exagerar o 
exotismo de seu primeiro jantar chinês. Ah, quanto ao shau-
shing, não é mais que uma das variedades do vinho de arroz; 
algo parecido com o saquê... Não se inquiete: asseguro-lhe 
que tudo será perfeitamente comestível e digerível... Esta 
vez, pelo menos. 
— Esta vez? 
— Na verdade, deveríamos ter tomado chá em lugar de 
martini. É muito mais suave para o paladar, não o embota, 
mas ao contrário: prepara-o para delicados sabores de um 
autêntico jantar chinês. Sabe usar os pauzinhos? 
— Claro que não! — alarmou-se ela. 
— De qualquer modo, serão trazidos... E também uma 
bonita colher de porcelana. 
— Menos mal! 
Riramos dois. Nora Teasdale esteve depois uns segundos 
contemplando a iluminada Hong Kong, através da janela 
panorâmica, antes de perguntar: 
— Por que disse que o jantar será comestível e digerível... 
esta vez? Supõe que o próximo me fará mal? 
— Não me referia exatamente ao jantar. Na verdade, 
estava pensando que se nos tomássemos a ver, talvez seu 
estômago não estivesse preparado para uma refeição mais... 
chinesa. Mas foi uma ideia que descartei rapidamente. 
— Por quê? 
— Porque, ainda que desejasse, não disporei de tempo 
suficiente para importuná-la fazendo-lhe convites: devo 
partir logo de Hong Kong. Talvez amanhã mesmo. 
— Oh... Bom, tampouco penso ficar muitos dias aqui. Na 
verdade, meus planos eram diferentes. Volta aos Estados 
Unidos, mister Coleman? 
— Ainda não. Antes deverei viajar para Tóquio... 
— Tóquio? Que casualidade! Também eu tenho ideia de 
ir a Tóquio. 
— Interessante! Quando? 
— Não sei... Ainda não decidi. Mas lhe darei telefonema 
ao chegar lá, se me disser em que pensa hospedar-se. 
— Seria muito agradável para mim. Mas também em 
Tóquio não ficarei muito tempo. Deverei partir para 
Vladivostok. E de lá, pelo Transiberiano, para Moscou. 
— Oh, deve ser uma viagem interessantíssima, mister 
Coleman! 
— Acredito que sim, miss Teasdale. 
— Gostaria de poder viajar tanto como o senhor. 
— Pois se o fizer pelo Transiberiano, não lhe sairá muito 
caro. De Vladivostok a Moscou, o preço da passagem por 
trem é reduzido. Menos da metade, realmente. 
— Mas viajar pela Sibéria... Brrr! 
— Não faz frio nesta época do ano. As pessoas 
geralmente se enganam a respeito da Sibéria. É verdade que 
há zonas muito frias, mas os verões da parte meridional são 
bastante agradáveis. Preferia fazer esse percurso em julho ou 
agosto, mas mesmo em setembro não é muito frio. 
— Parece conhecer todo o mundo, mister Coleman. É 
jornalista? 
— Não. Viajo para uma firma que negocia em bebidas. 
De preferência, uísque... Um uísque excelente, sem dúvida. 
Talvez não acredite, miss Teasdale, mas terminaram-me as 
amostras, a tal ponto que só disporei de uma garrafa durante 
todo o percurso de Hong Kong a Moscou. Parece tolice, mas 
se me pagam para levar uma garrafa a Moscou, por minha 
parte não há inconveniente. De qualquer modo, apostaria 
que, antes de chegar a Moscou, alguém me tirará das mãos 
essa garrafa. E a partir de então, suponho que meu trabalho 
terá terminado, já que um viajante sem amostras não terá 
nada a fazer. E assim sendo, quando eu tiver entregado essa 
garrafa, poderei considerar-me um verdadeiro turista. 
— Deve divertir-se bastante, com tantas viagens. 
— Tudo cansa nesta vida. Quase tudo, quero dizer. Não 
gostaria de viajar no Transiberiano? 
— Creio que não, mister Coleman. Faltam-me amigos na 
Rússia. E temo que na Sibéria não se fale muito inglês... Em 
Hong Kong, Tóquio, Cingapura, Manila é diferente. Mas a 
Sibéria é... muito longe para mim. 
— Pena... Está se divertindo em Hong Kong? 
— Só um pouco. Na verdade, estas minhas férias me 
parecem algo monótonas. 
— Bom, penso que divertir-se é coisa que está em nós 
mesmos. É preciso contemplar o mundo com simpatia, 
disposto a ver tudo, a admirar tudo. Os chineses comem cães 
e ratos, por exemplo. Muito bem: melhor para eles. Por outro 
lado, pergunto-me que diferença tão notável pode existir 
entre um rato bem tratado e um coelho ou lebre, ou entre 
uma cabra ou cordeiro e um cão. No meu entender, tudo é 
carne. 
— Está quase me assustando, mister Coleman... Fala 
mesmo sério? 
— Completamente. Ah: aqui temos a sopa de salangana. 
Espero que minha escolha seja de seu agrado, com referência 
a todo o cardápio. 
— Eu também espero — disse ela, com certa expressão 
de dúvida. 
— Podemos fazer uma aposta — propôs Número Um: — 
se não gostar do que vamos comer, nos separaremos e tudo 
estará terminado. Mas se achar bom, aceitará uma taça de 
champanha em Hong Kong, esta mesma noite. Poderíamos ir 
a algum espetáculo ou a um night-club, dançar... E sobretudo 
o champanha. Aceita a aposta? 
— Aceito — disse ela, rindo. — Acho-o muito simpático, 
mister Coleman! 
CAPÍTULO TERCEIRO 
Acidente em Peak Road 
Apenas uma sombra que passa sem ser vista 
Afinal, há muitas pernas bonitas no mundo... 
 
Finalmente, por volta da uma hora da noite, o táxi deteve-
se no estacionamento do “Victoria Peak Hotel”, quase em 
frente à entrada dos pequenos jardins suspensos, dos quais se 
divisava toda a cidade de Hong Kong, lá embaixo, 
resplandecente de luzes. 
Número Um falou ao chofer chinês, saltou e tendeu a 
mão a Nora Teasdale para ajudá-la a sair do veículo. 
Um carro passou junto ao estacionamento, lentamente. 
Dentro iam dois homens, um deles ao volante, mas de olhos 
fixos na entrada do jardim, como o outro. 
— Siga mais um pouco... — disse este. — parece que, 
afinal, ela vai ficar aqui. 
— Divertiram-se à grande, hem? — murmurou seu 
companheiro. 
— Os espiões americanos são tipos curiosos: sabem 
combinar a diversão com o trabalho. 
— É que sabem viver melhor do que nós. 
— Vá até mais adiante e dê a volta. Não creio que ele 
demore muito a sair. E tomará o mesmo táxi. Caso pensasse 
em ficar o teria despedido. 
— Não seria surpreendente que ela aceitasse sua 
companhia esta noite. É um tipo de boa pinta, não há dúvida. 
— Deixe de bobagens, Orlov. 
Este encolheu os ombros, levando o carro até apenas cem 
metros adiante do hotel. Deu a volta na ampla Peak Road e 
veio em direção à zona baixa de Hong Kong. Ao passar 
novamente por diante do hotel, ambos tornaram a olhar para 
a entrada dos jardins, rodando em pouquíssima velocidade. 
— Ainda estão aí... — disse Schenko. — São muito 
românticos, você não acha? 
A visão foi mais clara para eles: Número Um segurava a 
mão da jovem e mantinha-se muito perto dela, que o olhava 
com expressão doce e o ouvia atenta. Foi uma visão de dois 
segundos apenas, pois o carro prosseguiu como se voltasse 
para o centro da cidade. Duzentos metros mais abaixo, saiu 
da estrada para o lado direito, subitamente, metendo-se entre 
umas árvores. 
— O táxi descerá pela esquerda — disse 
desnecessariamente Schenko. — Boa ideia a dos ingleses, de 
circular ao contrário do resto do mundo: assim, o táxi vai 
ficar muito perto da beira da estrada. Não falhe o golpe, 
Orlov. 
Orlov permaneceu silencioso. Voltou-se no assento para 
olhar o “Victoria Peak Hotel”, assim imitando Schenko. 
— Embora me pergunte se não seria melhor empregar as 
pistolas... — murmurou este. — É um homem que 
demonstrou ser muito perigoso na Grécia, ao liquidar os 
nossos dois companheiros. 
— Com o carro é mais seguro, justamente porque ele é 
perigoso. De qualquer modo, continuo insistindo em que não 
deveríamos matá-lo, mas apanhá-lo vivo e fazê-lo explicar o 
que está tramando com Zorevic e Fanikar. 
— Perguntaremos a eles no seu devido tempo. No 
momento, trata-se de demonstrar que ninguém mata 
impunemente dois agentes soviéticos. Depois nos 
encarregaremos dos tchecos... Cuidado! 
Um carro tão negro como o deles passou estrada acima, 
muito perto do lugar onde se haviam escondido, a toda a 
velocidade. Orlov carregou o cenho. 
— Pareciam... 
— Aí vem o americano. Atenção. 
Com efeito, o táxi deixava o estacionamento do hotel, 
lentamente. Enfiou estrada abaixo e deslizou em silêncio, 
lançando para o asfalto as luzes curtas. Em poucos segundos, 
passou por diante deles, em velocidade moderada. Orlov pôs 
de novo o motor em marcha, esperou cinco segundos, depois 
saiu de trás de entre as árvores, colocando-se com rapidez 
atrás do táxi. À esquerda de ambos, o corte abrupto da 
estrada, obrigado pelos numerosos terraços escalonados de 
que consta Hong Kong à proporção que sobe para o Peak, e 
nos quais se situam as formosas vilas, os luxuosos hotéis. 
— Não espere mais. Tem que ser agora, na zona dos 
terraços. Mais embaixo teríamos que empregar as armas.— Está bem. 
Orlov calcou o acelerador e o carro pareceu saltar 
furiosamente, aproximando-se mais do outro veículo. 
Acionou uma pequena alavanca no painel de instrumentos, 
enviando dois rápidos jatos de luz para avisar o táxi de que ia 
ultrapassá-lo. O táxi desviou-se um pouco para a esquerda, 
dando passagem, e o carro negro logo emparelhou com ele, 
lançado a toda a velocidade. 
— Agora! — a voz de Schenko soou tensa. 
Orlov moveu o volante para a esquerda, de chofre, 
justamente, quando estava à altura do táxi. Ouviu-se um 
ranger de metal contra metal, o áspero estrídulo das 
fuselagens entrechocando-se, o som inconfundível dos pneus 
guinchando sobre o asfalto. O taxi aproximou-se da borda da 
estrada e Schenko ver o rosto do chinês que ia ao volante, de 
tom muito mais claro que o habitual em sua nçi, mais abertos 
os olhos, os lábios crispados num jfcto de espanto... Viu-o 
também girando freneticamente o volante para a direita, 
querendo desviar a marcha dos dois carros para o centro da 
estrada. 
— Bmpurre-o! *— gritou para o companheiro. — 
Empurre mais.., I 
Orlov também tinha o rosto crispado e agarrava 
fortemente o volante, torcendo-o sempre para a esquerda. 
Com um sinistro ranger metálico e um som agudo de pneus, 
ambos os veículos traçaram uma linha ondulada sobre o 
asfalto, afastando-se e aproximando-se da borda, cada vez 
mais devagar, pois o chofer chinês havia metido o pé no 
freio, até o fundo, tentando deter o carro, que realmente, 
pouco menos que incrustado no outro, deixava-se arrastar 
com as rodas travadas... Após o sexto ziguezague, o táxi 
perdeu definitivamente a peleja, aproximando-se de forma 
inevitável do pequeno abismo que separava uma curva da 
outra. 
E por fim, meio veículo ficou para fora da estrada. Orlov 
deu um último golpe de volante, apertou o acelerador ao 
máximo: o táxi saltou no vácuo, enquanto o carro negro dos 
russos seguia adiante, perigosamente para a esquerda. 
No momento justo em que Orlov freava em seco, com a 
roda dianteira esquerda quase saindo da estrada, lá embaixo 
brotava uma labareda, simultaneamente com o estrondo do 
táxi ao espatifar-se. 
Uma enorme língua de fogo subiu, envolta em fumaça 
negra. 
— Marcha à ré — excitou-se Schenko. — para trás, 
Orlov, ou também nós caímos! 
Orlov deu marcha à ré velozmente. Com um chiar 
violento, o carro recuou, percorrendo não menos quinze 
metros de um só golpe, até o centro da estrada... na qual, 
procedentes da parte alta, viam-se as luzes de um veículo 
que descia para Hong Kong. 
— Depressa! Temos que deixar atrás esse que ai vem...! 
Com o carro parado, Orlov estava ligando a primeira para 
arrancar a toda a velocidade estrada abaixo, quando Schenko 
se calou de repente, ficando com a boca aberta pelo súbito 
assombro que paralisou todos os seus músculos. 
Através do vidro da porta, estava vendo o atlético 
americano, de pé junto ao carro, com a mão direita estendida 
para eles. Schenko, que afinal recuperara a voz, ia advertir 
seu companheiro, quando da arma empunhada pelo 
americano brotou um clarão e todo o carro pareceu vibrar, 
enquanto no vidro surgia uma estranha teia de aranha. O 
segundo tiro acabou de partir o vidro, que caiu sobre 
Schenko como uma chuva brilhante, batendo em seu rosto 
crispado. Tinha já metido a mão direita sob a axila esquerda, 
mas ao terceiro disparo foi atingido na testa e tombou contra 
Orlov, que naquele momento, após haver ligado a primeira, 
apertava o podal do acelerador. O carro arrancava a toda a 
velocidade, quando o espião americano atirou pela quarta 
vez, com uma frieza arrepiante, como num exercício 
rotineiro de tiro ao alvo. 
Mas a parte superior da cabeça de Orlov saltou em 
pedaços. O carro pareceu correr como um surpreendente 
coelho, depois, quando Orlov ficou caído sobre o volante, 
com o pé ainda pressionando o acelerador, continuou a 
marcha, em primeira, o motor rugindo furioso... Desviou-se 
para a direita, saiu da estrada, meteu-se por entre as árvores, 
chocou-se contra uma delas. O para-brisa voou em brilhantes 
fragmentos e uma labareda ainda mais intensa que a que se 
via lá embaixo envolveu o carro. 
A essa altura, Número Um já havia atravessado a estrada 
e corria para as árvores. Com extraordinária agilidade, 
colocou-se entre duas árvores, voltando a cabeça para o 
outro carro que chegava, disposto a atirar contra quem quer 
que chegasse em ajuda dos homens do primeiro carro, que 
ardia mais abaixo. 
Um homem saltou do carro recém-chegado assim que 
este se deteve com uma freada gritante. Agitou os braços 
para as árvores e sua voz chegou clara até o espião ianque. 
— Number One! — chamou. — Venha! Corra! 
Sem hesitar, Número Um regressou à estrada, metendo-se 
rapidamente dentro do carro, que arrancou a toda a 
velocidade, lançando-se como um foguete pela Peak Road 
abaixo, enquanto do “Victoria Peak Hotel” começavam a 
sair pessoas, que se precipitavam para o local do acidente. 
Número Um olhou pelo espelho retrovisor. 
— Saia desta estrada no primeiro desvio, Fanikar 
— Está bem. 
Zorevic, sentado no banco traseiro, junto a Número Um, 
olhava-o com olhos espantados. 
— Não está ferido? 
— Não. Somente um pouco empoeirado. Tive que saltar 
do táxi em marcha. 
Guardou a pistola e sacudiu com fria indiferença as 
lapelas do smoking, levantando nuvenzinhas de fino pó. 
Virou a cabeça para trás e encolheu os ombros. A polícia 
colonial britânica se defrontaria com um caso bastante 
complicado aquela noite, mas certamente não seria ele quem 
a ajudasse a resolvê-lo. 
Apenas um minuto mais tarde, Fanikar enfiou o carro por 
um caminho lateral, mais estreito, mas muito bem asfaltado. 
Número Um acendeu um cigarro e olhou com expressão 
sarcástica para Zorevic, apenas visível a seu lado. 
— Vocês me estiveram seguindo desde que cheguei a 
Hong Kong — disse. — Mas, segundo parece, não se deram 
conta de que alguém mais o fazia. 
— Ao contrário, demo-nos conta sim — replicou o 
tcheco —, mas não esperávamos que se atrevessem a isto. 
Pensamos que só queriam vigiá-lo e já procurávamos um 
modo de fazê-lo escapar dessa vigilância a caminho de 
Tóquio. 
— Sim? E... que grande plano tinham vocês para furar o 
cerco russo ao meu redor? 
— Tínhamos pensado... 
— Deixe estar — cortou desdenhosamente Número Um. 
— Por sorte minha, não preciso da coloração de vocês em 
nenhum sentido. Têm já pronta a garrafa de uísque e a senha 
para o homem que a pedirá? 
— Tudo isto provocou uma mudança de planos, Número 
Um. 
— Ah, sim? Que mudança? 
— A garrafa de uísque só lhe será entregue em Tóquio. 
— Supondo-se que eu chegue a Tóquio, não? Vou dizer 
uma coisa a vocês: isto não me havia ocorrido nunca. 
Quando Número Um trabalha, é apenas uma sombra que 
passa sem ser vista. Entretanto, desde que entrei em contato 
com vocês, tivemos um tropeço no Pireu e podiam ter-me 
liquidado poucos minutos atrás. 
— Todos temos falhas — resmungou Zorevic. 
— Sem dúvida. E eu mesmo já as tive. Mas quando me 
matarem, preferiria que fosse por um erro meu, não por um 
erro de vocês, que não têm nem ideia da grande quantidade 
de possibilidade de um espião para localizar pintos. 
— Está nos chamando de... pintos? 
— Nem sequer são isso. Tenho a impressão de ainda não 
saíram do ovo. Diabo, não percebem que o MVD está 
perseguindo-os com tanta facilidade, como se vocês lhe 
enviassem cartões postais notificando-o de onde se 
encontram a todo momento? 
— Isso é... um exagero! 
— Acha? Pois fiquem sabendo: se em Tóquio acontecer a 
mesma coisa que no Pireu e em Hong Kong, será melhor que 
procurem um substituto para Número Um. Gosto do papel de 
espião, não do de pato. 
— Nada ganharemos discutindo — alegou razoavelmente 
Zorevic. — Quem é essa mulher? 
— Que mulher? — perguntou com ingenuidade defensiva 
o espião ianque. 
— Peço-lhe ter em mente que somos seus chefes, Number 
One. Quinhentosmil dólares não são uma bagatela. Quem é? 
— Nora Teasdale. 
— A que se dedica? 
— Está de férias. Gosta do Oriente. 
Fanikar, ao volante, lançou um resmungo. Zorevic 
armou-se de paciência. 
— Segundo nos consta, vocês dois se conheceram no 
restaurante “Sea Palace”. Como foi isso? 
— Ela teve um pequeno acidente e caiu em meus 
braços... É muito bonita. E eu sou um homem normal. 
Zorevic foi quem se permitiu agora um sorriso irônico. 
— Normal? Talvez seja verdade, Number One. Mas as 
informações que temos a seu respeito dizem contrário. 
— Você me surpreende, Zorevic. Está dando a entender 
que me supõe um invertido? 
Fanikar soltou uma risada e Zorevic resmungou alguma 
coisa em tcheco... até que as seguintes palavras do americano 
o deixaram gelado de espanto: 
— Se tomar a chamar-me de filho de qualquer coisa, 
meto-lhe a mão na cara. 
— Você fala minha língua! — balbuciou o tcheco. 
— Só um pouco. Mas uma das primeiras coisas que 
aprendi foi isso de xingar a mãe dos outros... Tenha cuidado 
com o que diz. 
Tinham chegado a Hong Kong e Fanikar, após deter o 
carro numa rua estreita e mal iluminada, voltou-se no 
assento, dirigindo um olhar conciliatório a Número Um. 
— Será melhor que dominemos nossos nervos... — 
murmurou. — Não creio que Zorevic tenha pretendido 
ofendê-lo realmente. Entretanto, parece-me que deveria 
dizer-nos quem é essa mulher. Sem ironias nem 
embromações. E, claro está, prescindindo da estúpida 
possibilidade de que você seja um invertido. É natural que 
lhe agradem as mulheres, nisso acreditamos firmemente. 
Mas, sem dúvida de nenhuma espécie, sabemos que Número 
Um nunca mistura assuntos desta classe com seus trabalhos 
de espionagem. Embora tampouco eu seja um invertido, 
reconheço que em seus momentos de folga é desses homens 
que só precisa mover um dedo para conseguir a melhor 
garota do balneário Agora, insisto: quem é ela? 
— Nora Teasdale, secretária de uma empresa que produz 
máquinas agrícolas na Califórnia, de férias. É simpática, 
educada e culta. Aparenta ter uns vinte e cinco anos, mas 
reage como se tivesse menos. Tem um sólido estômago 
capaz de suportar a cozinha chinesa, gosta de champanha e 
de dançar. Não é nenhuma sirigaita. Mais alguma coisa? 
— Você a beijou? 
— Com efeito. 
— É dessa classe de garotas que se... divertem durante as 
férias? 
— É simplesmente uma moça livre e sem preconceitos. 
Sabe muito bem que só se vive uma vez. 
— Combinaram outro encontro? 
— Naturalmente. Ela me agrada. 
— Esqueça-a. Pelo menos enquanto durar este assunto. 
Depois de tudo concluído, estará livre para fazer com ela o 
que quiser. Serão apenas duas semanas. Talvez menos. 
— Receio bastante que para tornar a vê-la teria que viajar 
até os Estados Unidos. 
— Não creio que encontre muita dificuldade em fazer 
isso, com quinhentos mil dólares no bolso. Esta, portanto 
decidido, Número Um. Não tornará a ver essa jovem até que 
nosso trabalho esteja terminado. Temos sua palavra? 
— Não — sorriu o americano. 
— Ouça, nós não vamos consentir...! 
— Querem saber de uma coisa? Pois aí vai: tenho em um 
banco da Suíça quase três milhões de dólares, de modo que 
posso perfeitamente prescindir dos seus quinhentos mil 
dólares. Agora, outro detalhe: eu me comprometi a entregar 
essa garrafa de uísque... Okay? 
— Exatamente! 
— Pois a entregarei. É tudo. Digam-me simplesmente 
quais deverão ser meus próximos movimentos. 
Agora era Fanikar quem estava vermelho de raiva, e teve 
que ser Zorevic quem contemporizasse. 
— Tomará um avião da “Japan Airlines”, que sai amanhã 
às oito da manhã para Tóquio. Uma vez lá, hospede-se no 
“American Hotel”. 
— Que originalidade! 
— Em todas as grandes cidades do mundo há um 
“American Hotel”. E não é culpa nossa. Agora, vamos levá-
lo ao seu hotel, depois nos veremos era Tóquio. 
— Quando? 
— Não se preocupe por isso. Hospede-se no “American 
Hotel”, naturalmente com o mesmo nome de Clark Coleman, 
e espere-nos. Vamos, Fanikar. 
Dez minutos mais tarde, Número Um entrava em seu 
hotel, diretamente para o balcão de recepção. O adormecido 
encarregado de raça branca se ergueu quase em sobressalto 
para atender ao hóspede que regressava às duas da 
madrugada. Número Um pediu-lhe que obtivesse uma 
passagem para Tóquio no voo das oito da manhã da “Japan 
Airlines” apanhou a chave e dirigiu-se para o elevador da 
direita, olhando de relance a mulher que estava sentada, 
sozinha, como adormecida, numa das cadeiras de vime do 
vestíbulo, ao fundo. Parecia uma asiática, a julgar por seu 
bonito sarong, de um perfeito exotismo para uma festa 
noturna. Tinha a cabeça caída sobre o peito e seus longos 
cabelos negros tombavam para um lado. As pernas estavam 
cruzadas e sua esbeltes ressaltava extraordinariamente. 
Formosas pernas, sem dúvida. 
Número Um entrou no elevador e apertou o botão do 
segundo andar. Já estava chegando, quando estalou 
bruscamente os dedos. 
— A garota do Pireu! — exclamou, aborrecido consigo 
mesmo por não a ter relacionado antes com o porto grego. 
O elevador se deteve no segundo andar, mas o espião 
apertou o botão para voltar ao térreo, impaciente. Saiu a toda 
a pressa para o vestíbulo... que já estava deserto. À direita, o 
homem atrás do balcão olhava-o expectante, quase 
sobressaltado, mas não lhe fez o menor caso. Caminhou, 
quase correu para a saída do hotel. E quando chegou à rua, 
sabia muito bem que não veria mais aquela jovem. 
Realmente. Não a viu. 
Cada vez mais aborrecido consigo mesmo, regressou ao 
vestíbulo e aproximou-se do homem do balcão, que parecia 
agora completamente desperto. 
— Quem é? — perguntou-lhe. 
— Quem, mister Coleman? 
— Essa jovem que acaba de sair. 
— Ah... Não sei, mister Coleman. 
— Não sabe? Não está hospedada neste hotel? 
— Não senhor. Chegou aqui às dez e um quarto, mais ou 
menos, e sentou-se... Pareceu-me que esperava alguém, pelo 
que não julguei necessário interessar-me por ela. Se quisesse 
algo de mim, naturalmente falaria comigo. 
— Claro. Boa-noite. E obrigado. 
Um quarto de hora mais tarde, após um rápido chuveiro 
frio e já metido num pijama de calças e mangas curtas, 
Número Um dedicava-se a recarregar sua “Astra”, testa 
franzida, entre fechando um olho para evitar a fumaça do 
cigarro que tinha entre os lábios. Não lhe agradava ser 
descuidado. 
De qualquer modo, tinha que ser benévolo consigo 
mesmo: a visão de uns cabelos negros e umas bonitas pernas 
não costuma ser suficiente para identificar uma mulher no 
mesmo instante. 
Há muitíssimas pernas bonitas neste mundo, afinal. 
CAPÍTULO QUARTO 
Três chineses e uma mulher de qualquer raça 
Trinta mil almas russas 
Sensacional despertar da bela adormecida. 
 
A moça do sarong, sentada no banco traseiro junto a 
Zorevic, assentiu com a cabeça, enquanto expelia a fumaça 
de um cigarro. O veículo já estava longe do “American 
Hotel”, Fez um sinal, e Fanikar aproximou-se do meio-fio, 
freando suavemente e parado o carro, ela sacudiu pensativa a 
cabeça. 
— Não me agrada isto... — murmurou. — E devo dizer 
que vocês estão-se revelando bastante inábeis. Precisamos 
admitir que Número Um tem razão, ou seja, que vocês nunca 
deviam ser seguido pelos russos até Hong Kong. Não 
estamos metidos em nenhuma brincadeira e é fácil 
compreender como seria catastrófico para mim que o MVD 
tornasse a localizá-los, o que equivaleria a localizar também 
Número Um. 
— Não sabemos como isso pode acontecer — murmurou 
Zorevic. 
— Negligência, tão-somente. 
Zorevic moveu-se inquieto no assento. 
— Bom, já viu que seu agente especial regressou são e 
salvo ao hotel, não é mesmo? 
— Mas não graças a vocês. Ele saiu da enrascada 
sozinho, É, na verdade, um homem muito especial. Qualquer 
outro estaria agora carbonizado dentro daquele táxi. Sim... é 
muito especial. 
— De fato... Já matou quatro, desde que se meteu neste 
assunto. 
— Dois. 
— Como: dois? Os daquide Hong Kong e os de Pireu. 
— Esses eu matei. 
Fanikar e Zorevic olharam-na estupefatos. Parecia muito 
jovem e tinha um corpo esbelto, de linhas suaves, mas 
acentuadamente femininas; seus olhos eram muito grandes, 
negríssimos, rasgados. A cor do sua pele era tão 
extraordinariamente desconcertante que ela tanto podia 
passar por hindu, como por malaia, filipina ou 
azerbajaniana... Ou não seria simplesmente grega? Ou turca? 
Sua boca era fresca e risonha, o que fazia com que seus 
dentes branquíssimos brilhassem com frequência. Tinha a 
testa lisa, ampla, e o pescoço era delicado, aristocrático. Do 
lado direito da face, dois lindos sinais do tamanho de 
lentilhas, E quanto a suas pernas, descobertas agora até 
metade da coxa, eram de uma perfeição absolutamente, fora 
de qualquer dúvida. 
— Você? — exclamou Zorevic. 
— Julguei que nenhum de vocês três se tivesse dado 
conta de que os vigiavam, portanto, assim que os vi abordar 
a lancha, achei melhor emudecer os soviéticos antes que 
utilizassem um rádio de bolso... Era o que iam fazer quando 
os surpreendi. Matei-os e levei o radinho. Por uma questão 
de segundos Número Um não me encontrou ainda entre as 
pilhas de caixotes. 
— Mas ele disse que os tinha eliminado... 
— Não... — esclareceu Fanikar. — Quando lhe jantamos 
isso, respondeu: “estão mortos”. Não disse que tivesse sido 
ele, Zorevic. 
— Tem um correto sentido de decência o nosso amigo 
americano — sorriu alegremente a jovem amorenada. — 
Evidentemente, não lhes mentiu. Disse que estavam mortos e 
era verdade. Também é verdade que matou os dois outros em 
Peak Road... Protestou porque não lhe entregaram a garrafa 
de uísque? 
— Se protestou? Parece que não deu ao fato a mínima 
importância! Pergunto-me se esse homem lealmente lhe vai 
ser de utilidade, Aziza. 
— Decerto, será mais útil que vocês. Não quero novas 
falhas, fiquem sabendo os dois. Para lhes ser sincera, 
pergunto-me se fiz bem os contratando para este trabalho. 
Quase teria sido melhor entender-me diretamente com 
Número Um. 
— Foi você quem nos procurou, e não nós a você — 
recordou asperamente Fanikar. 
— Eu sei, eu sei... Talvez tenha cometido um erro, mas 
pareceu-me que como membros pouco importantes da 
espionagem tcheca vocês eram os personagens adequados... 
Que diz Número Um sobre a garrafa de uísque? 
— Disse que não podia ser uísque o que a garrafa 
contém. Apenas isso. 
— Mas deve ter ficado surpreendido. 
— Não muito. Uma surpresa simples, comum. Não é 
normal oferecer-se cem mil dólares a uma pessoa para levar 
uma garrafa de uísque de um país a outro. Logicamente 
supõe que dentro da garrafa não há uísque. 
— E vocês... supõem o quê? 
— Nada. Ainda somos menos complicados que Número 
Um... Você nos procurou, nos paga bem, nos disse que a 
coisa prejudicaria a Rússia e aceitamos. Importa-nos bem 
pouco o que possa conter essa garrafa. 
— Ótimo. Têm alguma ideia a respeito dessa moça que 
esteve com Número Um? 
— Não. É muito formosa... Só sabemos isso. 
— Está bem. Partam amanhã para Tóquio, depois que ele 
partir. Já sabem como nos poremos em contato. E espero que 
não haja mais contratempos. Quero o nosso espião 
americano em perfeitas condições para atravessar a Sibéria. 
Isto é tudo. 
Despediu-se com um gesto, após meter o cigarro no 
cinzeiro embutido a seu lado, e saiu do carro. Zorevic e 
Fanikar afastaram-se em seguida. Ela percorreu uma rua 
inteira, atravessou para a outra calçada e na esquina seguinte 
dirigiu-se a um grande carro Dodge de cor grená, 
estacionado diante de uns pequenos jardins que cheiravam a 
gardênias. 
Entrou na parte traseira do carro, sentando-se junto a um 
homem. No assento da frente havia dois. 
— Aconteceu alguma coisa, não foi? — perguntou-lhe. 
— Culpa dessa dupla de errados. Por felicidade, nossa 
escolha de um homem especial foi boa. Número Um não 
sofreu qualquer dificuldade. Leve-me ao hotel, Wan To. 
O veículo pôs-se em marcha e, em determinado 
momento, uma das lâmpadas da iluminação pública tomou 
bastante claro seu interior, permitindo ver o rosto da jovem 
chamada Aziza e os dos três chineses vestidos à europeia. 
Durante o percurso até seu hotel, Aziza explicou o que por 
sua vez lhes haviam explicado os tchecos. Quando concluiu, 
o carro já estava parado diante de um hotel de tipo Standard, 
mas cujo aspecto era muito agradável; pelo menos no 
exterior. 
— Que pensa a respeito dessa moça americana? — 
perguntaram a Aziza. 
— Não tenho nenhuma ideia, Wei... Nenhuma. 
— Isso do salto do sapato soa de modo suspeito, 
naturalmente. Foi um truque para entrar em contato com o 
americano. Apostaria minha cabeça que ela é tão americana 
como eu. 
— É possível que seja russa, não pense você que eu não 
tenha pensado nisso. Talvez tenha dado um jeito de levar 
Número Um ao Peak, para que os outros dois o 
eliminassem... Mas não podemos ter certeza, Wei. 
— É verdade — sorriu geladamente o chinês — fica a 
dúvida. 
Aziza Kholgore contraiu as sobrancelhas. 
— Sim... Fica a dúvida. E não quero dúvidas nem 
hesitações neste assunto. Você, Chu — olhou o chinês que 
estava ao seu lado e que não havia dito nem uma palavra —, 
irá matá-la. Está hospedada no “Victoria Peak Hotel”. 
Consiga localizar sua suíte, coisa que não lhe será difícil 
sabendo seu nome. Pode simular uma ligação telefônica 
errada... Qualquer coisa. Lembra-se do nome? 
— Nora Teasdale. 
— Isso mesmo. Vá matá-la. Há trinta mil porcas almas 
russas flutuando neste assunto e não quero que nos escapem, 
porque são muito importantes... Será um golpe mortal para 
elas. 
— Eu a matarei — Chu dispôs-se a sair do carro. 
Aziza reteve-o um instante pelo braço. 
— Este é um bom momento... — disse. — E não deixe de 
ligar para mim tão logo o tenha feito. Depois, reúna-se com 
Wei e Wan To. Já sabem onde nos veremos em Tóquio. 
Entendido? 
— Sim. Posso matá-la a faca? 
— Como você quiser — sorriu Aziza. 
* * * 
Depois de escalar aquela fachada do “Victoria Peik 
Hotel”, o chinês encontrou-se, finalmente, no terraço da suíte 
que lhe interessava. Olhou para baixo e houve um leve piscar 
em seus olhos oblíquos ao compreender todo o risco que 
correra subindo por aquela parte. Quando viera, por Peak 
Road, ainda tinha visto dois carros da Polícia Colonial na 
estrada e alguns peritos de acidentes, que tomavam medidas 
com uma longa fita métrica para chegar a conclusões mais 
ou menos acertadas a respeito do que sucedera entre os dois 
carros incendiados. Mas, certamente, a vista dos dois 
cadáveres com as cabeças perfuradas por balaços levava a 
investigação mais além dos limites do regulamento sobre a 
circulação de veículos em Hong Kong. 
Tudo isto interessava bem pouco a Chu, que estava 
limpando o suor da testa com a mão, a qual depois esfregou 
nas calças. Lá embaixo, a cidade continuava brilhando com 
seus milhares e milhares de luzes de diversas cores; muitas já 
se haviam apagado, mas as que restavam era suficientes para 
que a baía parecesse um espelho policrômico. 
Sacou o lenço para enxugar ainda melhor a mão. Depois 
apertou a mola da navalha e a lâmina, com seco estalido, 
cintilou na penumbra. Sabia que com aquela navalha podia 
abrir qualquer janela comum, nem sequer teve necessidade 
disso: ao que parecia, Nora Teasdale era uma pessoa de 
hábitos saudáveis e gostava de dormir com a porta-janela 
abertas o suficiente para que o ar do quarto se renovasse. 
Chu empurrou a folha de madeira e vidro com a mão 
esquerda, entrou velozmente e ficou imóvel na zona de 
sombra. Pouco a pouco, foi abrindo a porta-janela, até que o 
resplendor da lua no terraço se estendeu também pelo 
aposento. 
Dois minutos mais tarde, os oblíquos e negros olhos do 
chinês, semelhantes aos de um rato, tinham-se acostumado à 
escuridão relativa do quarto. 
O bastante, sem dúvida, para ver no leito a jovem 
americana, deitada de lado. Ela dormia completamente