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Sumário Sumário Ficha catalográfica Créditos Agradecimentos Epígrafe Prefácio Apresentação Nota Notas introdutórias: mais de uma década de Hermenêutica e(m) Crise Notas 1. A Modernidade tardia no Brasil: o papel do Direito e as promessas da modernidade – da necessidade de uma crítica da razão ínica no Brasil e o binômio “estamentos-patrimonialismo” Notas 2. O Estado Democrático de Direito e a (dis)funcionalidade do Direito 2.1. Da interindividualidade à transindividualidade – a transição de modelos de Direito 2.2. “O Direito importa e por isso é que nos incomodamos com essa história” 2.3. Elementos para um debate acerca do papel do Direito e dos Tribunais no Estado Democrático de Direito 2.4. A Constituição e o constituir da sociedade: a superação da crise de paradigmas como condição de possibilidade Notas 3. A não recepção da viragem ontológico-linguística pelo modelo interpretativo (ainda) dominante em terrae brasilis 3.1. A crise de paradigma (de dupla face) e o senso comum teórico dos juristas como horizonte de sentido da dogmática jurídica Notas 4. Dogmática e ensino jurídico: o dito e o não dito do senso comum teórico – o universo do silêncio (eloquente) do imaginário dos juristas Notas 5. A fetichização do discurso e o discurso da fetichização: a dogmática jurídica, o discurso jurídico e a interpretação da lei 5.1. A fetichização do discurso jurídico e os obstáculos à realização dos direitos: uma censura significativa 5.2. O processo de (re)produção do sentido jurídico e a busca do “significante primeiro” ou de como a dogmática jurídica ainda não superou os paradigmas que se sustentam no esquema sujeito-objeto 5.3. O sentido da interpretação e a interpretação do sentido ou de como a dogmática jurídica (continua) interpreta(ndo) a lei: no centro do debate, a história do positivismo jurídico e as tentativas de sua superação – do exegetismo (e pandectismo) à jurisprudência dos valores (isto é, da “razão” à “vontade”) 5.3.1. Sobre (alguns) mal-entendidos acerca do positivismo 5.3.2. Voluntas legis versus voluntas legislatoris: uma discussão ultrapassada 5.3.2.1. Subjetivismo e objetivismo e o problema dos paradigmas filosóficos 5.3.2.1.1. Objetivismo e subjetivismo na perspectiva epistêmica de Ferraz Jr. 5.3.2.1.2. O que são paradigmas filosóficos? De que modo eles condicionam a interpretação? 5.3.2.2. O dilema Objetivismo v.s. Subjetivismo no âmbito (hermenêutico) da aplicação do direito: o problema dos “cruzamentos fundacionais” 5.3.2.3. Objetivismo e Subjetivismo – voluntas legis v.s. voluntas legislatoris e o senso comum teórico dos juristas 5.3.3. As lacunas (hermenêuticas) do Direito 5.3.4. As técnicas de interpretação: a hermenêutica normativa bettiana e a preocupação na fixação de regras interpretativas. O método em debate 5.3.5. Os princípios constitucionais e a superação dos princípios gerais do Direito – o problema do pamprincipiologismo Notas 6. A filosofia e a linguagem ou de como tudo começou com “o Crátilo” 6.1. A primeira filosofia de Aristóteles: o nascimento da metafísica e o surgimento de seu maior adversário 6.2. O longo caminho até o século XX – a continuidade da tradição metafísica e as reações à busca da essência e da coisa em si 6.3. O grande acontecimento ruptural: o surgimento do sujeito – a modernidade e seu legado Notas 7. Hamann-Herder-Humboldt e o “primeiro” giro linguístico – as fontes gadamerianas do século XIX e a linguagem como abertura e acesso ao mundo Notas 8. Saussure e o (re)nascimento da linguística. Peirce e seu projeto semiótico – primeiridade secundidade e terceiridade. Os caminhos para a invasão da filosofia pela linguagem. Rumo à linguagem como abertura do mundo. 8.1. O projeto semiológico de Saussure 8.2. O projeto semiótico-pragmático de Charles S. Peirce 8.3. A Semiótica jurídica Notas 9. A viragem linguística da filosofia e o rompimento com a metafísica ou de como a linguagem não é uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto 9.1. A constituição de uma razão linguística como condição de possibilidade para o rompimento com a filosofia da consciência 9.2. A generalização do “giro”: em busca de superação dos Eingenschaften (atributos) dos paradigmas anteriores Notas 10. A interpretação do Direito no interior da viragem linguística (lato sensu) 10.1. A hermenêutica como uma “questão moderna” 10.2. A hermenêutica e seus três estágios: técnica especial para interpretação; teoria geral da interpretação e hermenêutica fundamental 10.2.1. Hermenêutica especial 10.2.2. Teoria geral da interpretação 10.2.3. Hermenêutica fundamental 10.3. A hermenêutica jurídica diante dessa intrincada tessitura 10.4. A hermenêutica filosófica: abrindo caminho para uma hermenêutica jurídica crítica 10.4.1. Da filosofia hermenêutica (Heidegger) à hermenêutica filosófica (Gadamer) 10.4.2. A hermenêutica jurídica gadameriana: a tarefa criativa e produtiva do Direito 10.5. A diferença (ontológica) entre “texto e norma” e “vigência e validade”: a ruptura com a tradição (metafísica) da dogmática jurídica – o necessário combate ao solipsismo 10.5.1. Hermenêutica versus crítica: uma questão secundária 10.5.2. A hermenêutica jurídico-filosófica, e o rompimento hermenêutico com os ”conceitos-em-si-mesmos-das-normas” e o crime de “porte ilegal da fala” 10.5.3. A hermenêutica e o combate ao solipsismo Notas 11. Hermenêutica jurídica e(m) crise: caminhando na direção de novos paradigmas 11.1. A modernidade, seu legado e seu resgate 11.2. O labor dogmático: uma (nova) forma de divisão do trabalho? 11.3. Dogmática e Hermenêutica: a tarefa da (razão) crítica do Direito 11.4. Hermenêutica jurídica e a relevância do horizonte de sentido proporcionado pela Constituição e sua principiologia 11.5. A proposição da nova postura hermenêutica: um modo-de-ser (condição de possibilidade) para a exploração hermenêutica da construção jurídica Notas 12. O abrir de uma clareira e a busca do acontecer do Direito: a hermenêutica e a resistência constitucional – um (necessário) posfácio 12.1. A abertura para a claridade 12.2. A busca do acontecimento (Ereignis) do Direito 12.3. A necessária ruptura com a tradição inautêntica 12.4. Como enfrentar a crise? O “estranho” representado pela Constituição 12.5. Pode o novo (o estranho) triunfar? A tarefa do des-vela- mento hermenêutico 12.6. O caráter não relativista da hermenêutica 12.7. A surgência constitucionalizante: o-vir-à-presença-do-fenômeno-do-Direito Notas Pós-posfácio – A resistência do positivismo – ainda o problema da discricionariedade interpretativa I. Uma advertência necessária: a necessidade da preservação da Constituição. A democracia como condição de possibilidade. II. O velho e o novo na hermenêutica: o problema da efetividade da Constituição em um país de modernidade tardia III. Hermenêutica e democracia: discricionariedades interpretativas, suas decorrências e consequências. De como o problema é paradigmático IV. O necessário repto à discricionariedade e aos decisionismos. De como as súmulas não devem ser entendidas como um “mal em si”. V. A resposta correta (adequada à Constituição) como direito fundamental do cidadão VI. Fazendo justiça a Dworkin e Gadamer. De como o juiz Hércules não é subjetivista (solipsista). As razões pelas quais “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa” Notas Bibliografia Lenio Luiz Streck Procurador de Justiça – RS Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Pós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica pela Universidade de Lisboa Professor Titular da Unisinos - RS (Mestrado e Doutorado) e Unesa-RJ; Professor Visitante e Convidado de Universidades brasileiras e estrangeiras (Faculdade de Direito de Coimbra-PT; Faculdade de Direito de Lisboa-PT; Universidad Javeriana-CO); membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional; Presidente de Honra do IHJ – Instituto de Hermenêutica Jurídica. HERMENÊUTICA JURÍDICA E(M) CRISE Uma exploração hermenêutica da construção do Direito 11ª EDIÇÃO revista,atualizada e ampliada Ficha catalográfica Conselho Editorial André Luís Callegari Carlos Alberto Alvaro de Oliveira Carlos Alberto Molinaro Daniel Francisco Mitidiero Darci Guimarães Ribeiro Draiton Gonzaga de Souza Elaine Harzheim Macedo Eugênio Facchini Neto Giovani Agostini Saavedra Ingo Wolfgang Sarlet Jose Luis Bolzan de Morais José Maria Rosa Tesheiner Leandro Paulsen Lenio Luiz Streck Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira ___________________________________________________________________ S914h Streck, Lenio Luiz Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito / Lenio Luiz Streck. 11. ed. rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014. ISBN 978-85-7350-139-1 1. Direito. 2. Dogmática jurídica (Bibliotecária responsável: Marta Roberto, CRB-10/652) Créditos © Lenio Luiz Streck, 2014 Revisão Rosane Marques Borba Projeto gráfico e diagramação Livraria do Advogado Editora Gravura da capa Honoré Daumier – Advogado de Lesender Direitos desta edição reservados por Livraria do Advogado Editora Ltda. Rua Riachuelo, 1300 90010-273 Porto Alegre RS Fone/fax: 0800-51-7522 editora@livrariadoadvogado.com.br www.doadvogado.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Agradecimentos O presente livro, já em sua décima primeira edição, é resultado de projeto de pesquisa patrocinado pela UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos –, através do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado, ligado ao Centro de Ciências Jurídicas e Sociais. Também foram fundamentais os diálogos com meus amigos Ernildo Stein (Porto Alegre) e Albano Marcos Bastos Pepe (Recife). Não posso olvidar a colaboração dos meus alunos dos Seminários de Hermenêutica Jurídica, dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, além dos participantes do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Rafael Tomaz de Oliveira, André Karam Trindade, Clarissa Tassinari, Rafael Köche, Fabiano Müller e Santiago Artur Berger Sito). Nesta 11ª edição, colaboraram Adriano Obach Lepper, André Karam Trindade, Clarissa Tassinari, Daniel Ortiz Matos, Danilo Pereira Lima, Fabiano Müller, Edson Vieira, Guilherme Mariani, Luis Henrique Braga Madalena, Rafael Giorgio Dalla Barba, Rafael Köche, Rafael Tomaz de Oliveira, Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior, Santiago Artur Berger Sito, Saulo Salvador Salomão, Vinicius de Melo Lima, Marcelo Cacinotti e Victoria Santos de Azevedo. Coaches do projeto: Clarissa, Daniel e Adriano. E para Rosane e Malu, que sabem por quê! Lenio Luiz Streck lenios@globo.com http://www.leniostreck.com.br http://www.facebook.com/LenioStreck Epígrafe Quando as águas da enchente derrubam as ca- sas, e o rio transborda arrasando tudo, quer dizer que há muitos dias começou a chover na serra, ainda que não nos déssemos conta. ERACLIO ZEPEDA Prefácio Sobre certos temas só deveríamos escrever quando com nossas análises conseguíssemos abrir um espaço novo. Caso contrário, caímos na repetição, na glosa ou mesmo na paródia. No campo do direito, tal situação tem acontecido com escandalosa frequência. Por isso nos alegramos sempre que uma perspectiva nova se apresenta, quer seja para ampliar a visão teórica, quer seja para levantar hipóteses sobre casuística, quer seja para trazer um aporte novo no universo epistêmico. Com o livro Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, foram ultrapassadas muitas expectativas que poderíamos alimentar entre nós neste setor. LENIO STRECK não se limitou àquilo que poderia trazer um bom livro de teoria ou de crítica. A análise que nos é apresentada inaugura um universo teórico que certamente nos traz novos parâmetros para o exame da crise do direito e sua superação. Mas a moldura teórica não se constitui simplesmente de uma apresentação brilhante de argumentos contra diversos grupos de autores. Nem se resume em introduzir uma nova alternativa para alguma área da ciência do direito ou da filosofia, partindo de determinados grupos de autores clássicos. Temos diante de nós um livro que revoluciona a própria concepção do direito positivo atual e da história do direito. Tal obra exige uma base muito ampla, uma arquitetônica inovadora e uma combinação de conceitos filosóficos novos e atuais. A obra de LENIO STRECK traz tudo isso e acrescenta ainda três dimensões absolutamente raras a se combinar: uma visão das questões concretas de direito e sua aplicação no conflituado terreno entre o social e o jurídico; uma análise crítica das teorias jurídicas principais que foram produzidas durante séculos, no empenho de encontrar soluções novas que, combinando o social, o político e o jurídico, afirmaram ter descoberto uma nova coordenação teórica harmônica num estado democrático; e os contornos de uma matriz teórica que permita situar todo o debate em torno da crise do direito, no contexto de um novo paradigma. O autor desenvolve em seu livro elementos centrais para uma hermenêutica jurídica que sirva de vetor e de moldura para todo o debate sobre a mudança de paradigma no universo jurídico. Hermenêutica perde aqui seu significado de rotina e de capa formal que vinha reforçar a aplicação conservadora da dogmática jurídica. Hermenêutica passa a nos remeter a uma nova matriz de racionalidade, em que se possa desenvolver toda crítica ao direito vigente e todo esforço na construção de um horizonte novo para pensarmos os fundamentos do conhecimento jurídico. Quem acompanhou o nascimento do paradigma hermenêutico seguiu em muitos passos o desenvolvimento da hermenêutica clássica e se deixou empolgar pelo novo trazido pela filosofia hermenêutica de Heidegger e pela hermenêutica filosófica de Gadamer, de um lado, e quem se aprofundou nas teorias contemporâneas do significado e da linguagem e nas diversas direções desenvolvidas pelas discussões linguísticas e da pragmática, de outro lado, pode avaliar o que o autor conseguiu articular no seu livro, a partir da filosofia atual da linguagem, na exploração da construção do direito. Não é simplesmente repetir o autor quando se procura ver na sua hermenêutica crítica o instrumento de ruptura do objetivismo ingênuo em que se funda toda construção jurídica na sua visão positivista, partindo da relação sujeito-objeto na fundamentação do conhecimento. A grande novidade da obra de STRECK nos leva para um território situado além das ontologias ingênuas que em geral sustentam a dogmática jurídica até hoje e lhe dão, assim, um irrenunciável caráter ideológico. Somente quando percebemos que tudo se funda na linguagem, que direito é linguagem, que seu funcionamento desliza sobre pressupostos linguísticos, é que começamos a perceber os contornos da profunda inovação que traz para a ciência e a filosofia do direito e para a hermenêutica jurídica, essa obra surpreendente. Mas o autor nos leva um passo adiante e com ele nos situa diante do desafio mais criativo: no direito, a hermenêutica filosófica nos leva a uma resolução da crise da representação através da superação das teorias da consciência. Todo o conteúdo epistêmico do direito até agora era apresentado através de múltiplas e aleatórias epistemologias jurídicas baseadas nas teorias da representação e orientadas na fundamentação, no esquema da relação sujeito- objeto. LENIO STRECK nos remete a um universo em que a hermenêutica se refere ao mundo prático, o mundo da pré-compreensão, em que já sempre somos no mundo e nos compreendemos como ser-no-mundo a partir e na estrutura prévia de sentido. É ela que nos carrega e é dela que surgimos enquanto estrutura quenos precede, e toda teoria da consciência chega tarde com sua pretensão de fundar. A linguagem torna-se aí o meio especulativo a partir do qual se determina a linguisticidade de todo o nosso conhecimento. Uma vez estabelecida tal matriz linguística que, ao mesmo tempo, nos sustenta, na qual nos movemos e de quem nunca somos proprietários, temos as condições para a instauração do diálogo. Todo conhecimento jurídico é situado inovadoramente pelo autor no quadro dessa matriz. É nesse contexto que o livro passa a definir sua forma e sua dinâmica interna. É no quadro da matriz hermenêutico-linguística que então terá que ser compreendida a condição essencial do direito na sua relação com a sociedade. Só assim a solução para sua crise se apresentará com um potencial de constante revisão e ajustamento. A crise do direito é crise de fundamento, e STRECK nos mostra isso através da crítica do paradigma que sustentou o direito até agora, introduzindo o paradigma hermenêutico- linguístico em que situa o direito e a todos os que com ele trabalham, no universo do sentido e da compreensão. O direito não trabalha com objetos, não opera com normas objetificadas, não se confronta com pessoas coaguladas em coisas, nem maneja a linguagem como instrumental rígido de retórica. O direito se sustenta na palavra plena, produz sentido, dialoga na sua aplicação, desde que a hermenêutica nos mostrou que “somos um diálogo”. O autor não nos apresenta simplesmente as teorias da compreensão e da interpretação, e filósofos como Heidegger e Gadamer, que estão, entre outros, na base de sua discussão. Ele luta por encontrar um caminho para o problema da hermenêutica jurídica que circule no discurso contemporâneo. Ele sabe da tarefa da filosofia que consiste em clarear expressões linguísticas e manter uma visão sobre o todo de nosso compreender, que também é autocompreensão e autocrítica. Mas, para além duma simples questão linguística, o autor redescobriu o lugar propriamente filosófico – que é a questão do sentido e do significado – e que se estabelece, não desde um sujeito soberano e um discurso dogmático, mas assume a sua historicidade como um acontecimento. É desse acontecimento que nos fala a hermenêutica existencial quando fala na história do ser. É a partir dela que podemos compreender os limites da interpretação e, ao mesmo tempo, as condições da filosofia hermenêutica que nos dá as bases para a hermenêutica filosófica, em que aprendemos a escutar aquilo “que para além de nós, para além do que queremos e fazemos, acontece conosco”. ERNILDO STEIN Apresentação LENIO LUIZ STRECK faz a autêntica crítica do Direito neste livro que tenho a honra de apresentar. Ademais, o fenômeno jurídico nele se apresenta como força viva, como um plano da realidade social que é. Por isso mesmo se pode dizer que o ritmo da linguagem do autor, solta e livre, assim se manifesta porque referida a essa força viva, plena de movimento. Muito se escreveu, e ainda se escreve, nesta última década do século, a propósito da crise do Direito, apresentada agora, definidamente – e sobretudo entre nós, brasileiros – sob feição particular, vale dizer, como crise do Poder Judiciário. É inegável a existência dessa crise. Não podemos deixar de apontar, contudo, duas evidências. Uma, a de que essa peculiar “crise do Direito” não é, originariamente, dele, senão de que o produz, o Estado. Vivemos, nesta última década, sob deliberado processo de enfraquecimento do Estado, patrocinado pelos governos neoliberais globalizantes dos Presidentes Collor e Cardoso. O exame das propostas frustradas de reforma constitucional pretendidas pelo primeiro e daquelas logradas pelo segundo evidencia a identidade de valores nos programas de um e de outro. Ora, obtida a fragilização do Estado, todos os seus produtos passam a exibir as marcas dessa fragilização. O Direito que imediatamente conhecemos e aplicamos, posto pelo Estado, dele dizemos ser “posto” pelo Estado não apenas porque seus textos são escritos pelo Legislativo, mas também porque suas normas são produzidas pelo Judiciário.1 Em segundo lugar, cumpre observar que a fragilização do Poder Judiciário atende a interesses bem marcados dos Executivos fortes, que se nutrem de projetos desdobrados de uma nítida transposição, hoje, dos quadros do privado para os do público, do individualismo possessivo. Penso podermos afirmar que, se de um lado o capitalismo já não padece do temor da contestação social, os executivos já não têm pejo de violar as Constituições e de violentar as exigências de harmonia entre os Poderes. A América Latina tem sido profusa e generosa em exemplos... O desconforto provocado por essa crise coloca os estudiosos do Direito sob o desafio do descobrimento de caminhos que conduzem à produção de justiça material, no mínimo a uma reeticização do Direito. LENIO STRECK cria suas próprias trilhas nessa busca, penetrando fundo pela análise da linguagem, especialmente da “viragem linguística da filosofia”, até alcançar, intensamente também, a semiótica e a hermenêutica filosófica, que abrem o caminho para uma hermenêutica jurídica crítica, no bojo da qual se põe em dinamismo uma razão crítica do Direito. Visualizada como processo de produção de sentido, a interpretação apresenta-se então como ponto de partida desde o qual não apenas a crítica é feita, mas também se pode empreender a construção de uma razão emancipatória para o Direito. O Direito, note-se bem, é um discurso constitutivo na medida em que designa/atribui significados a fatos e palavras, como mostra CARLOS CÁRCOVA. A concepção da interpretação como um processo criativo – que, de outra forma, tomo quando a qualifico de alográfica – conduz não apenas a uma nova hermenêutica, mas a um novo conjunto de possibilidades de produção de justiça material. Daí a importância deste livro. Necessitamos de novas trilhas, voltadas à reconstrução de conceitos, critérios e princípios, indispensáveis à superação da crise – o livro de LENIO LUIZ STRECK abre caminhos que devem, necessariamente, ser percorridos. Tiradentes, janeiro de 2004. EROS ROBERTO GRAU Nota 1 Permito-me remeter o leitor aos meus Direito posto e direito pressuposto, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, e La doble desestructuración y la interpretación del derecho, mencionado na bibliografia indicativa por LENIO STRECK. Notas introdutórias: mais de uma década de Hermenêutica e(m) Crise Há mais de uma década resolvi fazer uma viragem na interpretação do Direito. De uma trajetória inicial ligada às teorias analíticas, iniciei a incursão nas trilhas da hermenêutica filosófica, pavimentada pela filosofia hermenêutica. Isto porque me convenci, ainda nos anos 90, que perscrutar a linguagem no plano de um semantic sense não era suficiente para albergar a complexidade do Direito em terrae brasilis. O ponto central – inicial – foi a discussão da crise do Direito, do Estado e da dogmática jurídica, e seus reflexos na sociedade. Dizia então que o Direito e a dogmática jurídica (que o instrumentaliza), preparado/engendrado para o enfrentamento dos conflitos interindividuais, não conseguiam atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e conflituosa (J. E. Faria). O paradigma (modelo/modo de produção de Direito) liberal-individualista-normativista estava esgotado. O crescimento dos direitos transindividuais e a crescente complexidade social reclama(va)m novas posturas dos operadores jurídicos. Passados tantos anos, penso que isso, em grande medida, continua atual. A crise do modeloliberal-individualista não foi superada. Entretanto, o decorrer do tempo foi mostrando que o problema da inefetividade do Direito – compreendido a partir do Estado Democrático de Direito – não estava apenas na umbilical ligação do modelo liberal- individualista com o exegetismo ainda fortemente presente na doutrina e na jurisprudência, mas também no fenômeno que foi crescendo especialmente na última década: as teorias voluntaristas, que, sob pretexto de superar o “juiz boca da lei”, apostaram na liberdade interpretativa dos juízes e tribunais. Resultado: o establishment passou a investir em projetos de vinculação jurisprudencial. Essas novas questões foram recebendo atenção na presente obra, na medida em que novas edições foram surgindo. Pode-se dizer, assim, que a presente edição busca reunir os vários elementos da crise que atravessa o Direito, especialmente nestes vinte e cinco anos de Constituição compromissória e dirigente. O caminho passa pela (re)discussão das práticas discursivas/argumentativas dos juristas, a partir do questionamento das suas condições de produção, circulação e consumo. Isto porque, como diz Veron, “entre as lições de Marx, uma é mister não abandonar: ele nos ensinou que, se se souber olhar bem, todo produto traz os traços do sistema produtivo que o engendrou. Esses traços lá estão, mas não são vistos, por ‘invisíveis’. Uma certa análise pode torná-los visíveis: a que consiste em postular que a natureza de um produto só é inteligível em relação às regras sociais de seu engendramento”. O enorme fosso ainda existente entre o Direito e a sociedade, que é instituído e instituinte da/dessa crise de paradigmas, retrata a incapacidade histórica da dogmática jurídica (discurso oficial do Direito) em lidar com a realidade social. Afinal, o establishment jurídico- dogmático brasileiro produz doutrina e jurisprudência para que tipo de país? Para que e para quem o Direito tem servido? Para se ter uma ideia da dimensão do problema, ainda não conseguimos sequer entender que Kelsen não foi um positivista exegético e, sim, um positivista normativista...! Esse hiato e a crise de paradigma do modelo liberal-individualista-normativista retratam a incapacidade histórica da dogmática jurídica em lidar com os problemas decorrentes de uma sociedade díspar como a nossa. Na verdade, tais problemas são deslocados no e pelo discurso dogmático, estabelecendo-se uma espécie de transparência discursiva. Pode-se dizer, a partir das lições de A. Sercovich, que o discurso dogmático dominante é transparente porque as sequências discursivas remetem diretamente à “realidade”, ocultando as condições de produção do sentido do discurso. A este fenômeno podemos denominar de fetichização do discurso jurídico, é dizer, através do discurso dogmático, a lei passa a ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstraída das condições (histórico-sociais) que a engendra(ra)m, como se a sua condição-de- lei fosse uma propriedade “natural”. Parte-se, pois, da premissa de que as práticas argumentativas do Judiciário, da dogmática jurídica e das escolas de Direito são consubstanciadas pelo que se pode denominar de senso comum teórico dos juristas ou campo jurídico (Warat-Bourdieu), o qual se insere no contexto da crise do modelo de Direito de cunho liberal-individualista. Para tanto, basta um passar d’olhos no Direito penal e a cultura manualesca-estandartizada que domina a aplicação desse ramo do Direito. Essa crise do modelo (dominante) de Direito (ou modo de produção de Direito) institui e é instituída por uma outra crise, aqui denominada/trabalhada como crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, bases desse modelo liberal- individualista de interpretação/aplicação do Direito ainda dominante no “campo jurídico” vigorante no Brasil. Isto porque as práticas hermenêutico-interpretativas vigorantes/hegemônicas no campo da operacionalidade – incluindo aí doutrina e jurisprudência – ainda estão presas à dicotomia sujeito-objeto, carentes e/ou refratárias à viragem linguística de cunho pragmatista-ontológico ocorrida contemporaneamente, em que a relação passa a ser sujeito-sujeito. Dito de outro modo, no campo jurídico brasileiro, a linguagem ainda tem um caráter secundário, uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto, enfim, uma espécie de instrumento ou veículo condutor de “essências” e “corretas exegeses” dos textos legais. Ou, na outra ponta do problema, sob pretexto da superação das posturas objetivistas,vê-se o surgimento das diversas (neo)teorias, como o neoconstitucionalismo e o neoprocessualismo, que apostam no protagonismo judicial e no instrumentalismo processual, dando azo a uma verdadeira fábrica de princípios. Isso para dizer o mínimo. Daí a necessidade da elaboração de uma crítica à hermenêutica jurídica tradicional – ainda (fortemente) assentada nesses dois paradigmas filosóficos (metafísica clássica e filosofia da consciência) – através da fenomenologia hermenêutica, pela qual o horizonte do sentido é dado pela compreensão (Heidegger) e ser que pode ser compreendido é linguagem (Gadamer), onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado e a interpretação faz surgir o sentido. Por isso, o processo de produção do sentido (daquilo que é sentido/pensado/apreendido pelo sujeito) do discurso jurídico, sua circulação e seu consumo não podem ser guardados sob um hermético segredo, como se sua holding fosse uma abadia do medievo. Isto porque o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e oculta(da)s, “aparecem” como se fossem provenientes de um “lugar virtual”, ou de um “lugar fundamental”. Esse é o problema fulcral da dogmática jurídica e que procuro desmi(s)tificar ao longo destes anos. Ora, as palavras da lei não são unívocas; são, sim, plurívocas, questão que o próprio Kelsen já detectara de há muito. Mas isso não significa que o processo hermenêutico admita discricionariedades e decisionismos. É possível encontrar respostas corretas em direito, justamente pelo caráter antirrelativista da hermenêutica filosófica, que retrabalho na obra como uma Nova Crítica do Direito ou Crítica Hermenêutica do Direito. Venho procurando demonstrar, enfim, que a lei e o saber do Direito constituem um nível de relações simbólicas de poder (Warat). Consequentemente, visando a superar a crise de paradigma de dupla face antes delineada, faz-se necessário um trabalho de interrogação sobre o discurso jurídico, utilizando a lei e o saber contra eles mesmos, fazendo deles um lugar vazio, onde o sujeito necessariamente não seja (ou necessite ser) um transgressor, mas, sim, o protagonista que legitima a democracia (Warat). Buscando apresentar um ferramental para a interpretação do Direito, desde a primeira edição, venho utilizando, como fio condutor, o “método” fenomenológico-hermenêutico, visto, a partir de Heidegger,2 como “interpretação ou hermenêutica universal”, é dizer, como revisão crítica dos temas centrais transmitidos pela tradição filosófica através da linguagem, como destruição e revolvimento do chão linguístico da metafísica ocidental, mediante o qual é possível descobrir um indisfarçável projeto de analítica da linguagem, numa imediata proximidade com a praxis humana, como existência e faticidade, em que a linguagem – o sentido, a denotação – não é analisada num sistema fechado de referências, mas, sim, no plano da historicidade. Enquanto baseado no método hermenêutico-linguístico, o texto procura não se desligar da existência concreta, nem da carga pré-ontológica que na existência já vem sempre antecipada. Nesse período, construí as basesdaquilo que chamei inicialmente de Nova Crítica do Direito (NCD) – e que está desenvolvida também no meu Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica –, e que deve ser entendida como processo de desconstrução da metafísica vigorante no pensamento dogmático do direito (senso comum teórico). A tarefa da Nova Crítica do Direito, que doravante passo a denominar de Crítica Hermenêutica do Direito – CHD –, é a de “desenraizar aquilo que tendencialmente encobrimos” (Heidegger-Stein). É, em síntese, o desenrolar do método hermenêutico de que falei anteriormente. A metafísica pensa o ser e se detém no ente; ao equiparar o ser ao ente, entifica o ser, através de um pensamento objetificador.3 Ou seja, a metafísica, que na modernidade recebeu o nome de teoria do conhecimento (filosofia da consciência), faz com que se esqueça justamente da diferença que separa ser e ente. No campo jurídico, esse esquecimento corrompe a atividade interpretativa, mediante uma espécie de extração de mais-valia do ser (sentido) do Direito. O resultado disso é o predomínio do método, do dispositivo, da tecnicização e da especialização, que na sua forma simplificada redundou em uma cultura jurídica estandardizada, na qual o direito não é mais pensado em seu acontecer. Há que se retomar, assim, a crítica ao pensamento jurídico objetificador, refém de uma prática dedutivista e subsuntiva, rompendo-se com o paradigma metafísico-objetificante (aristotélico-tomista e da subjetividade), que impede o aparecer do direito naquilo que ele tem (deve ter) de transformador. A Crítica Hermenêutica do Direito, fincada na matriz teórica originária da ontologia fundamental, busca, através de uma análise fenomenológica, o des-velamento (Unverborgenheit) daquilo que, no comportamento cotidiano, ocultamos de nós mesmos (Heidegger): o exercício da transcendência, no qual não apenas somos, mas percebemos que somos (Dasein) e somos aquilo que nos tornamos através da tradição (pré-juízos que abarcam a faticidade e historicidade de nosso ser-no-mundo, no interior do qual não se separa o direito da sociedade, isto porque o ser é sempre o ser de um ente, e o ente só é no seu ser, sendo o direito entendido como a sociedade em movimento), e onde o sentido já vem antecipado (círculo hermenêutico). Afinal, conforme ensina Heidegger, “o ente somente pode ser descoberto seja pelo caminho da percepção, seja por qualquer outro caminho de acesso, quando o ser do ente já está revelado”. Trata-se, enfim, da elaboração de uma análise antimetafísica, isto porque, a partir da viragem linguística e do rompimento com o paradigma metafísico aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade. Melhor dizendo, a linguagem, mais do que condição de possibilidade, é, como bem assinala Luiz Rohden,4 “constituinte e constituidora do nosso saber, conhecer e agir”. Ao mesmo tempo, o processo interpretativo deixa de ser reprodutivo (Auslegung) e passa a ser produtivo (Sinngebung). É impossível ao intérprete desprender-se da circularidade da compreensão, isto é, como aduz com pertinência Stein, nós, que dizemos o ser, devemos primeiro escutar o que diz a linguagem. A compreensão e explicitação do ser já exige uma compreensão anterior. Há sempre um sentido que nos é antecipado. Opta-se, desse modo, por adotar a matriz heideggeriana, enquanto superação do esquema sujeito-objeto, representada pela busca na filosofia de um fundamento para o conhecimento, a partir do discurso em que impera a ideia de juízo (Stein). O privilegiamento da ontologia fundamental heideggeriana radica na construção das condições de possibilidades que esse ferramental representa para uma crítica ao pensamento objetificador que domina o pensamento dogmático do direito. A ontologia fundamental rompe com o processo de entificação do ser próprio do pensamento dogmático-jurídico. Dito de outro modo, enquanto a dogmática jurídica tenta explicar o direito, a partir da ideia de que o ser (o sentido) é um ente (isto é, como se o conceito de “coisa julgada” ou “legítima defesa” fosse um ente apreensível como ente), a partir de Heidegger pretendo mostrar que há uma clivagem entre nós e o mundo, porque nunca atingimos o mundo dos objetos de maneira direta, mas, sim, sempre pelo discurso.5 A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) sustenta-se na noção de “método” formulado por Heidegger, pelo qual a linguagem é comandada pela coisa mesma, torna-se absolutamente relevante sua inserção no direito, exatamente pelo fato de que o pensamento dogmático do direito, por ser objetificador e pensar o direito metafisicamente, esconde a coisa mesma, obnubilando o processo de interpretação jurídica. Essa coisa mesma que Heidegger persegue é a questão do ser no horizonte da diferença ontológica (Stein). Por isso, todo o trabalho de desconstrução do pensamento dogmático-objetificador do direito é feito, no interior da Crítica Hermenêutica do Direito, sob o signo desse fundamental teorema heideggeriano: a diferença ontológica. Assim, é para esta incursão hermenêutica que o leitor é convidado. Numa palavra: esta edição tem também um caráter comemorativo. Mas, fundamentalmente, a pretensão é atualizar o meu próprio pensamento e a minha trajetória. Da Dacha de São José do Herval, no verão tórrido de 2010/2011 e no início do inverno de 2013. Notas 2 Para tanto, ver Stein, Ernildo. A questão do método na filosofia. Um estudo do modelo heideggeriano. Porto Alegre: Movimento, 1983, p. 100 e 101. 3 Cf. Stein, Ernildo. Diferença e Metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 67 e segs. 4 Cf. Rohden, Luis. Hermenêutica e Linguagem. In: Hermenêutica Filosófica nas Trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 160. 5 Cf Stein, Diferença, op. cit., p. 48. 1. A Modernidade tardia no Brasil: o papel do Direito e as promessas da modernidade – da necessidade de uma crítica da razão ínica no Brasil e o binômio “estamentos- patrimonialismo” Em tempos de globalização, é inexorável que a questão da função do Estado e do Direito seja (re)discutida, assim como as condições de possibilidade da realização da democracia e dos direitos fundamentais em países saídos de regimes autoritários, carentes, talvez, de uma segunda transição (Guillermo O’Donnell). O (dominante) discurso desregulamentador – atravessado/impulsionado pelo fenômeno da democracia delegativa6 – adjudica sentidos em nosso cotidiano, tentando nos convencer de que a modernidade acabou. Pois é justamente neste contexto que estas reflexões se inserem, buscando a construção de um discurso que aborde criticamente o papel do Direito, do discurso jurídico e a justificação do poder oficial por meio do discurso jurídico em face da problemática da relação Direito-Estado-Dogmática Jurídica. Para grande parte das elites brasileiras, a modernidade acabou. Tudo isto parece estranho e ao mesmo tempo paradoxal. A modernidade nos legou a noção de sujeito, o Estado, o Direito e as instituições. Rompendo com o medievo, o Estado Moderno surge como um avanço. Em um primeiro momento, como absolutista e, depois, como liberal; mais tarde o Estado se transforma, surgindo o Estado Contemporâneo sob as suas mais variadas faces. Essa transformação decorre justamente do acirramento das contradições sociais proporcionadas pelo liberalismo (ou aquilo que representava um modelo de Estado que atravessa o século XIX e, no século XX, “dá de frente com as revoluções”). Veja-se que esse “Estado intervencionista nãoé uma concessão do capital, mas a única forma de a sociedade capitalista preservar-se, necessariamente mediante empenho na promoção da diminuição das desigualdades socioeconômicas. A ampliação das funções do Estado, tornando-o tutor e suporte da economia, agora sob conotação pública, presta-se a objetivos contraditórios: a defesa da acumulação do capital, em conformidade com os propósitos da classe burguesa, e a proteção dos interesses dos trabalhadores”.7 Além disto, é bom frisar que “o intervencionismo estatal também se constitui em defesa do capital contra as insurreições operárias, opondo-se à ilusão de igualdade de todos os indivíduos diante da lei”.8 Nessa linha, vem bem a propósito o dizer de Boaventura de Sousa Santos, para quem esse Estado, também chamado de Estado Providência ou Social, foi a instituição política inventada nas sociedades capitalistas para compatibilizar as promessas da Modernidade com o desenvolvimento capitalista. Este tipo de Estado,9 segundo as perspectivas “desreguladoras”, foi algo que passou, desapareceu, e o Estado simplesmente tem, agora, de se enxugar cada vez mais (embora – lembremos – na crise do setor financeiro mundial de 2008, quem tenha salvado a economia tenha sido justamente o “malsinado” Estado). Alguns dados podem auxiliar na compreensão desse fenômeno: em junho de 2009, a General Motors (GM), empresa que – ainda na década de 1970 – criou o ideal de “obsolecência programada”, dando início a uma nova fase do capitalismo, teve sua concordata decretada pelo Poder Judiciário estadunidense. A crise econômica gerada pela “bolha especulativa” que estourou em 2008 – a chamada “crise do sub prime” que contaminou as principais economias do mundo –10, fez com que a GM chegasse ao fim com uma dívida acumulada em 176 bilhões de dólares. Para que o desastre não fosse ainda maior, o governo dos Estados Unidos decidiu comprar 60% das ações da empresa. Ironicamente, uma das empresas responsáveis pela fustigante onda daquilo que, com Michel Foucault, podemos chamar de “fobia de Estado”, tem agora como efetivo “dono” o Estado estadunidense.11 Pouco antes, em março de 2009, importante revista brasileira (Carta Capital) trazia como matéria de capa a notícia de que havia aumentado o consenso entre os economistas no sentido de que o “resgate” do sistema bancário12 – o campo econômico afetado diretamente pela atual crise – passaria inevitavelmente por políticas de estatização.13 Essa fenomenologia pode ser corroborada por uma série de autores que também vislumbram o momento da crise econômica mundial – provocada por um excessivo ímpeto desregulamentador por parte dos agentes econômicos – como um retorno às propostas keynesianas. Nesse sentido, Fernando Cardim de Carvalho afirma que “a crise que começou como financeira no início de 2007 e transformou-se em uma crise da economia real ao final de 2008 e cuja resolução ainda se mostra extremamente incerta tem dado novo eco a proposições feitas por Keynes e lembradas por praticantes dessa nas muitas décadas em que ela ficou relegada ao submundo dos heréticos”.14 Em linha similar, também Bresser Pereira15 entende que essa crise enseja uma remodelação do capitalismo que deverá trazer consigo uma retomada das tendências econômicas presentes nos anos dourados do capitalismo – que vão do final da Segunda Guerra até o rompimento do acordo de Bretton Woods, que acabou com a paridade ouro-dólar – quando o domínio das políticas macroeconômicas propostas por Keynes fazia parte da cartilha dos economistas. Observe-se que, para os mesmos que, quando precisam, buscam socorro no Estado – inclusive por intermédio de políticas de welfare state ou, porque não dizer, keynesianas – o Estado continua sendo uma instituição anacrônica (sic), porque é uma entidade nacional, e tudo o mais está globalizado. Ora, paradoxalmente, a globalização sempre se colocou como o contraponto das políticas de intervenção do Estado e, principalmente, das políticas de regulação da economia. Nesse sentido, não surpreende que a falta de regula(menta)ção do sistema financeiro nos Estados Unidos tenha sido o principal motivo do desencadeamento da crise de 2008.16 Não é possível ainda saber se o capitalismo globalizado tirou lições dos episódios que abalaram a primeira década do século XXI. De todo modo, é possível dizer que “a lógica geral da competição globalizante [continua a ser] inequivocamente concentradora. Daí não apenas fusões, mas, sobretudo, a exclusão de grandes massas de trabalhadores da possibilidade de inserção apta no mundo econômico, o desemprego e a precarização do trabalho, a desigualdade social crescente mesmo nos países em que o desemprego é comparativamente reduzido, e os indicadores exibem saúde e pujança econômica – em suma, aquilo que alguns têm chamado de ‘brasilianização’ do capitalismo avançado. No caso brasileiro, acresce o fato de que nos inserimos mais precariamente no jogo, não só porque já somos o Brasil da pesada herança escravista e do fosso social, mas também porque nossas fragilidades nos tornam vítimas preferenciais, sempre prontas a surgir como ‘bola da vez’ nas perversidades da dinâmica transnacional”.17 A globalização aparece como a nova face/roupagem do capitalismo internacional. Nesse contexto, André-Noël Roth18 alerta para o fato de que a globalização nos empurra rumo a um modelo de regulação social neofeudal, através da constatação do debilitamento das especificidades que diferenciam o Estado moderno do feudalismo: a) a distinção entre esfera privada e esfera pública; b) a dissociação entre o poderio político e o econômico; e c) a separação entre as funções administrativas, políticas e a sociedade civil. Para Roth, o caráter neofeudal da regulamentação social reside em parte nessa evolução e em parte em uma leitura pessimista da forma decisória – a infinidade de foros de negociações descentralizados – sugerida pelo direito reflexivo (de cunho autopoiético). Evidentemente, a minimização do Estado em países que passaram pela etapa do Estado Providência ou welfare state tem consequências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve o Estado Social.19 O Estado interventor- desenvolvimentista-regulador, que deveria fazer esta função social, foi – especialmente no Brasil – pródigo (somente) para com as elites, enfim, para as camadas médio-superiores da sociedade, que se apropriaram/aproveitaram de tudo desse Estado, privatizando-o, dividindo/loteando com o capital internacional os monopólios e os oligopólios da economia e, entre outras coisas, construindo empreendimentos imobiliários com o dinheiro do fundo de garantia (FGTS) dos trabalhadores, fundo esse que, em 1966, custou a estabilidade no emprego para os milhões de brasileiros! Exemplo disto é que, enquanto os reais detentores/destinatários do dinheiro do FGTS não têm onde morar (ou se moram, moram em favelas ou bairros distantes), nossas classes médio-superiores obtiveram financiamentos (a juros subsidiados) do Banco Nacional da Habitação (sic) – depositário dos recolhimentos do FGTS – para construir casas e apartamentos na cidade e na praia... Isso para dizer o mínimo! Desnecessário lembrar que parcela considerável dos financiamentos realizados na década de 70 do século passado sequer foram pagos até o final dos contratos, pela singela circunstância de que as prestações ficaram tão baixas que não valia a pena a emissão dos carnês de cobrança. Existe, ainda, um imenso défice social em nosso país, e, por isso, temos que defender as instituições da modernidade. Por isso, o Estado não pode pretenderser fraco, lembra Boaventura Sousa Santos:20 “Precisamos de um Estado cada vez mais forte para garantir os direitos num contexto hostil de globalização neoliberal”. E acrescenta: “Fica evidente que o conceito de um Estado fraco é um conceito fraco.(...) Hoje, forças políticas se confrontam com diferentes concepções de reforma”. Como resultado, temos que, em terrae brasilis, as promessas da modernidade só são aproveitadas por um certo tipo de brasileiros. Para os demais, o atraso! O apartheid social! Para exemplificar, lembremos que um grupo de 5.000 famílias “muito ricas” – ou 0,001% do total de famílias do país – reúne um patrimônio que representa 46% do PIB.21 Mais: segundo dados divulgados em 2011 pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), os brasileiros de alta renda – aqueles (63.000 pessoas) com pelo menos R$ 1 milhão em aplicações, fecharam o ano de 2010 com R$ 371 bilhões investidos nos bancos. Por isso não surpreende a existência no Brasil de duas espécies de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidadão, que dispõe do sistema, mas a ele não se subordina, e o subintegrado ou subcidadão, que depende do sistema, mas a ele não tem acesso.22 Por que atingimos esse grau de desigualdade? E por que o Estado brasileiro é lócus da dilapidação da res publica? Uma das formas de explicar esse problema reside no binômio patrimonialismo-estamento, que Raymundo Faoro apresenta para construir sua interpretação do Brasil (desde as feitorias até a Era Vargas). Com efeito, em reduzida síntese, a tese de Faoro vai no sentido de que o poder político no Brasil se articula, devido a uma herança lusitana, a partir de um estado que é patrimonialista em seu conteúdo e estamental na forma. Patrimonialista porque os titulares do poder se apoderam do aparelhamento estatal de tal forma que acaba por gerar uma quase indistinção entre o que é bem público (Estado) e o que é o bem privado; ou seja, trata-se da utilização dos espaços estatais para realização e administração de interesses de origem privada. Isso tem consequências sérias. O estamento, por outro lado, é o que dá forma a esse exercício patrimonialista do poder. Trata-se de uma verdadeira casta que assume o controle do Estado, governando-o de acordo com seus interesses. Portanto, os estamentos, vistos a partir de Os Donos do Poder, mostra-nos que, em determinadas circunstâncias, o Brasil é ainda pré-moderno. Temos uma sociedade de estamentos, que “ficam de fora” da classificação tradicional de classes sociais. Nas palavras de Faoro: “sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém- vindos, imprimindo-lhes os seus valores”.23 Há, assim, brasileiros “diferentes” de outros brasileiros, circunstância reconhecida pela mais alta autoridade da nação (o então Presidente Luís Inácio Lula da Silva), ao sugerir que o Ministério Público, antes de denunciar alguém, examine antes o seu curriculum...!24 O binômio estamento-patrimonialismo pode ser detectado facilmente nos processos de privatização no Brasil. A partir deles, pode-se ver o modo como a res publica é vista pelos governantes e pelas elites. Em detalhado estudo trazido a lume em primeira mão pelo jornalista Elio Gaspari, Sérgio Lazzarino mostra que entre 1996 e 2009 a rede do Estado e dos burocratas de caixas de pensão (Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal etc.) expandiu-se. Em 1996, num universo de 516 grandes empresas, o BNDES e os fundos PREVI (Banco do Brasil), Petros (Petrobrás) e Funcef (Caixa Federal) participaram de 72 sociedades. Em 2003, numa amostra de 494 companhias, o Estado fazia-se presente em 95. Em 2009, num universo de 624, o Estado tinha um pé em 199 empresas. O livro de Lazzarini leva o sugestivo nome de Capitalismo de Laços, mostrando a herança patrimonialista presente nas diversas camadas do establishment. A obra inicia contando a investida do Governo no fundo de pensão Previ e do empresário Eike Batista sobre os administradores da Vale do Rio Doce, empresa privatizada no governo Fernando Henrique Cardoso por um valor simbólico. Em tese, a Vale é uma empresa privada. Na prática, pelo “capitalismo de laços”, o governo é seu maior acionista e, na ocasião, Eike Batista era o melhor amigo. Em 2008, foi o maior financiador do filme “Lula, o Filho do Brasil” e, em 2006, o maior doador individual da campanha que reelegeu Lula. E o maior doador corporativo foi a empresa “privada” Vale do Rio Doce.25 O mesmo estudo de Lazzarini mostra que o governo Fernando Henrique ajudou a sedimentar essa “capitalismo de laços” em terrae brasilis. Atualmente, esse “capitalismo de laços” pode ser visto, por exemplo, pela estrutura das grandes empresas: 11 grandes empresários participam de 66 conselhos de empresas. Como se pode perceber, não bastasse o modo como as empresas estatais foram privatizadas – aquilo que Gaspari vem chamando de “privataria” – construiu-se um segundo estágio nesse processo de “entrelaçamento entre o público e o privado”, isto é, o velho patrimonialismo tão bem denunciado por Raymundo Faoro. A pergunta que se faz é: em que medida o país avança no tocante à redução das desigualdades? Se no âmbito do “andar de cima” as elites conseguem se agrupar e reagrupar em todos os segmentos econômicos e financeiros, no “andar de baixo” os indicadores, mormente os da última década, de redução da pobreza e inclusão social decorrem de fortes investimentos governamentais. Ou seja, parece haver dois “mundos” separados: o “mundo” dos estamentos, para usar aqui a expressão de Raymundo Faoro, que funciona paralelamente ao “mundo” de baixo, que depende de políticas governamentais como o “bolsa-família”. Assim, paralelamente ao “capitalismo de laços”, que concentra mais e mais a riqueza nacional, não se pode deixar de assinalar uma melhora nos indicadores sociais. Com efeito, foram divulgados resultados do Censo de 2010, realizado pelo IBGE, de que 98,2% das crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos frequentam regularmente escolas,26 o que representa, certamente, um salto decisivo em direção à universalização do ensino preconizada no art. 208 da CF. Ao mesmo tempo, também com relação ao Ensino Superior, de 1998 a 2008, o número de jovens entre 18 e 24 anos cursando alguma Faculdade passou de 6,9% para 13,9%. Porém, se considerarmos o índice de brasileiros que frequentam a universidade, independente da idade, o índice chega em 30%. Assim, de um lado temos um forte componente estamental, fruto de uma herança patrimonialista e, na mesma linha, o “capitalismo de laços”. Não é difícil perceber o quadro de desigualdade social gerado no decorrer da história27 e, de certo modo, “aprimorado” nos anos de maior concentração de renda (período da ditadura militar). Um dos maiores problemas do país – e isso decorre da própria tradição patrimonialista- estamental – está na corrupção e nos desvios de dinheiro público lato sensu. Efetivamente, basta uma amostragem de menos de dez edições da Folha de São Paulo – e utilizo deliberadamente apenas um veículo de comunicação e em um curtíssimo espaço de tempo – para se ter uma ideia do grau de apropriação/privatização da res publica. Uma auditoria na Funasa, ligada ao Ministério da Saúde, constatou o desvio deaté R$ 500 milhões (mais de 300 milhões de dólares) somente no período de 2007 a 2010.28 Ao mesmo tempo, lê-se que, em Porto Alegre, o atendimento à saúde (hospitais da rede pública) entrou em colapso, em um quadro aterrador, em que centenas de pessoas aguardaram nos corredores, em macas improvisadas, vagas para internação.29 Outro dado que torna manifesto a mixagem entre o público e o privado, deixando sempre para o primeiro (o Estado) o pagamento da conta, diz respeito ao fato de os planos de saúde de terrae brasilis não restituírem ao SUS os atendimentos feitos na rede pública aos usuários dos planos privados.30 O valor devido é suficiente para a construção de dezenas de hospitais ou para equipar as emergências nas quais os pacientes são atendidos em macas improvisadas ou tomam soro em pé, como ocorreu, nos últimos anos, nos casos de surto de dengue no Rio de Janeiro e em Porto Seguro. Na mesma linha, foi noticiado que “documentos mostram falhas em escolha de agência de publicidade que vai gerir conta do Ministério da Saúde”, e que a maior licitação de publicidade de 2010 tem indício de fraude.31 Ainda do mês de janeiro de 2011 é a notícia de que Ministros e Procuradores do Tribunal de Contas utilizam verba pública para viajar aos seus Estados de origem. De todas as passagens emitidas em 2010, 68% foram usadas em fins de semana e feriados. Foram emitidas no ano 334 passagens aéreas. Somente um Ministro utilizou 65 passagens, das quais 54 foram para a sua cidade natal, Recife.32 Também os jornais dão conta de que “cliente do governo vende curso de presidente do Tribunal de Contas da União, chegando o valor, nos últimos dois anos, a R$ 2,1 milhões”.33 Estudo realizado pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que o Poder Executivo brasileiro dispõe de número exagerado de cargos de livre nomeação em comparação com outros países. São 22 mil,34 cerca do dobro dos existentes nos Estados Unidos. Para essas vagas não há critérios transparentes de escolha, tampouco descrição de funções e avaliação dos nomeados. Segundo editorial do jornal Folha de São Paulo, esse quadro é em tudo propício à indicação de apaniguados de políticos e governantes. Para agravar a situação, foi aprovada no ano de 2010 uma lei que aumenta a oferta de cargos em conselhos de administração de empresas estatais. Ministros e funcionários encontram nesses órgãos, em geral ornamentais, uma oportunidade para engordar seus vencimentos. O pagamento a esses “conselheiros” chega ao valor de 9 milhões de reais por ano.35 Há questões que vão do atacado ao varejo. Na verdade, o imaginário patrimonialista está incrustado na administração pública a ponto de ninguém se surpreender com o fato de a esposa de um secretário da Saúde do Distrito Federal, proprietária de uma clínica médica, receber 1,1 milhão de reais – do próprio Estado onde ele, o marido, é secretário – por serviços prestados.36 Não há limites, efetivamente, para a “invasão do público pelo privado”. Os deputados dos Estados de Goiás e Rondônia receberam, ao custo de R$ 506 mil no primeiro e R$ 217 mil no segundo, para uma sessão extra.37 Legislar em causa própria é forte sintoma da prevalência de um imaginário estamental. Exemplo disso é um deputado estadual que, por ter governado um Estado da federação por dez dias, passou a receber pensão vitalícia de R$ 15 mil. Na verdade, somente em pensão para ex-governadores o Estado brasileiro gasta anualmente mais de R$ 30 milhões, o equivalente ao pagamento do benefício de Bolsa- Família para mais de 30 mil famílias ou construir 800 casas populares (para acrescentar: somente no Estado de São Paulo são gastos mais de R$ 35 milhões para o pagamento de pensões a ex-deputados estaduais). Em 2010, o governo federal38 gastou R$ 80 milhões com cartões corporativos, dos quais R$ 11,2 milhões são com “gastos secretos”, volume que cresceu 67% em relação ao ano anterior. O Estado acaba sendo o lócus da apropriação privada, sob as mais variadas “rubricas”. Veja-se um dado curioso: durante doze meses, entre 2008 e 2009, a Petrobrás gastou R$ 609 milhões com patrocínios, festas, ONGs e congressos. E as cinco maiores empresas estatais doaram, entre os anos de 2006 e 2010, o montante de R$ 7,4 milhões para a comemoração do dia do trabalho, ocasião, aliás, em que são feitos sempre vigorosos discursos a favor da transparência, da ética e da função social do capital público...! Veja-se que se trata de uma pequeníssima amostra. Deliberadamente pequena para mostrar o conjunto de notícias transmitidas diariamente no país. Poder-se-ia acrescentar ainda outra faceta do imaginário estamental,39 por exemplo, noticiando que, de 1998 – ano que entrou em vigor a Lei de Lavagem de Dinheiro – até 2010, não mais de 17 processos tiveram resultado condenatório (paradoxalmente, mantemos presos em terrae brasilis mais de 80.000 pessoas pelo crime de furto...!). Também não podemos olvidar da sonegação de tributos (somente no ano de 2010 o valor apontado pela Receita Federal, apenas em multas, chegou quase à casa dos 100 bilhões de reais). Na verdade, os índices mais otimistas acerca da sonegação dão conta de que, para cada real arrecadado, um é sonegado. Tudo isso, à evidência, somente se mantém a partir de um forte componente ideológico. Ou seja, a maior parte da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem de verdade, na qual cada um tem o seu “lugar (de)marcado”.40 Vejamos a complexidade do problema da formação do Brasil. Em muitos pontos há concordância dos pesquisadores. Segundo Antonio Houaiss e Roberto Amaral, o pressuposto é aceito de forma geral: 1) um território precioso, 2) flora, fauna e clima esplêndidos, 3) um autoctonato de fácil superação, 4) uma consolidação linguística quase miraculosa, 5) a gestação de uma cultura popular e ágrafa rica e emocionante, 6) uma expansão demográfica rara, pela multiplicação, pela miscigenação tolerante e pela democracia empírica convivial. Eliminando os pontos positivos, restam, ao cabo dos quase cinco séculos de operação Brasil, os enigmas: a dívida social crescente – fome, ensino miserável, ausência de terra (guardada como “poupança”) para os aptos a trabalhá-la, trabalho no campo preferentemente para a exportação, a importação preferentemente para gáudio dos exportadores. As chamadas elites brasileiras, bem pensadas, parecem ter tido, excelente ou sobre-excelentemente, o mais puro sentido de autodefesa e sobrevivência: 1) aos trancos e barrancos, embora souberam reter para si o máximo dos bens materiais; 2) souberam harmonizar-se com os donos do mundo; conseguiram manter “seu” povo admiravelmente manietado, pela escravidão, pelo genocídio, pela ignorância, pela superstição – já que a terra lhes foi compensatoriamente tão generosa, que raros foram os Palmares e os Canudos e os Caldeirões em que criaram, embora efêmeras, suas pátrias de eleição possível.41 É nesse contexto que cada um “assume” o “seu” lugar. E estes compõem a maioria. Essa maioria, porém, não se dá conta de que essa “ordem”, esse “cada-um-tem-o-seu-lugar” engendra a verdadeira violência simbólica42 da ordem social, bem para além de todas as correlações de forças que não são mais do que a sua configuração movente e indiferente na consciência moral e política. O sistema cultural engendra exatamente um imaginário no qual, principalmente através dos meios de comunicação de massa, se faz uma amálgama do que não é amalgamável.43 Por isso, por exemplo, é possível – e observe-se a relevância dessa questão no plano simbólico – que o país mantenha impunemente um apartheid em elevadoressociais e de serviço, o que legitima o preconceito social! Não causa espanto, assim, em nossa “pós-modernidade” midiática, que, a exemplo de tantas pessoas, a dublê de atriz e modelo Carolina Ferraz justifique o apartheid nos elevadores de forma bastante solene: “As coisas estão tão misturadas, confusas, na sociedade moderna. Algumas coisas, da tradição, devem ser preservadas. É importante haver hierarquia”. Já a promoter paulista Daniela Diniz, assídua frequentadora das colunas sociais, não “nos deixa esquecer” que “... cada um deve ter o seu espaço. Não é uma questão de discriminação, mas de respeito”. Ou seja, para elas – e para quantos mais (!?) – a patuleia deve (continuar a) “saber-o-seu- lugar”...44 Discursos deste quilate não podem (e não devem) nos surpreender, até porque nada mais são do que reproduções do que ocorre cotidianamente ao nosso redor, reforçados pelos estereótipos produzidos pela mídia em larga escala.45 Daí que, usando como pano de fundo essa discussão, Contardo Calegaris46 procura explicar a atitude e o discurso das classes médias e médio-superiores brasileiras acerca desta problemática: “No Brasil, talvez por ele ter sido e talvez por ser ainda o maior sistema escravagista do mundo ocidental, a modernização aconteceu pela metade. Nas classes médias, geralmente a regra é o poder moderno sobre e pelas coisas. Podemos comprar o trabalho de um outro, seus serviços, mas não dispomos de seu corpo. Mas na relação entre as classes médias e as classes ditas eufemisticamente não favorecidas o poder ainda é poder sobre os corpos, construído no modelo da escravatura. As classes médias brasileiras não abriram as portas do poder sobre as coisas para metade da população do país. Não por razões econômicas: a manutenção do escravagismo caseiro é um péssimo negócio que estrangula o mercado interno. Foi por tradição ou por gosto atávico escravocrata”. Por isso, diz Calegaris, tanta violência no Brasil: o ladrão brasileiro não está só pedindo posse de mais coisas. Quer mais! Quer os corpos...!47 São eles que (os corpos) “é bom possuir”. E (de forma irônica) Calegaris acrescenta: “a violência (na sociedade) já reverte se os elevadores de serviço forem suprimidos”. A “aceitação” da exclusão social é cotidianamente reforçada/justificada pelos meios de comunicação. Veja-se, a propósito – e a crítica foi magnificamente feita pelo jornalista Vinícius Torres Freire em matéria intitulada “Carro grande e senzala” –,48 comercial veiculado em rede nacional de televisão, para lançamento de um certo automóvel “classe A”, onde um casal branco e bem vestido escorrega pelo piso ensaboado de uma garagem, em direção ao carro apregoado. Três faxineiros, morenos e miúdos como quase todo o povo, fazem pilhéria dos ricos à beira do tombo. Mas o casal classe “A” chega ao carro “A” e sai zunindo da garagem escorregadia – o carro é estável, é o que se vende. Os faxineiros ficam para trás com cara de besta. Um deles escorrega e cai feito um pateta. Em outro anúncio, novamente aparece a dualidade “elite branca e elegante” versus “plebe rude e ignara”: desta vez um engravatado regateia com um mendigo flanelinha a lavagem do mesmo carro “classe A”. Condescende com riso senhorial da esperteza do pedinte, que quer “dez real”, pois o carro aquele é grande por dentro. Como bem complementa Torres Freire, os aludidos anúncios reproduzem um clichê clássico do imaginário subdesenvolvido, em que os pobres são espertos, sensuais e marotos... “O Brasil jamais foi uma república de fato, ex-escravos continuaram pobres, pobres não têm direitos e são demais. O comercial de carro ‘A’ não os fará mais pobres, mas a naturalidade inconsciente com que mofa da patuleia é um sintoma. ‘Os nativos estão inquietos’, eles assaltam, mas são uma classe de gente diferente, que ficou para trás naturalmente, ridícula como um escravo ou um primitivo pateta”. Outro exemplo interessante é de um anúncio publicitário (premiado) que conseguiu transformar a exploração em “glamour” (ou consegue “justificar” a semiescravidão dos “velhos e bons tempos”). O cenário era uma antiga fazenda de café. Os personagens são dois recém-casados, que, ao acordarem, se encaminham ao café da manhã. Entrementes, a câmera mostra os empregados da Fazenda se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles tempos”). Enquanto os campesinos se afastam, o casal senta- se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato. A cena culminante é o café sendo servido, fumegante, denso, saboroso... e uma voz em off anunciando: Café “Pindorama Casagrande”:49 a volta dos bons tempos! Faltou apenas uma frase: bons tempos para quem? Tudo isto se encaixa, pois, em uma espécie de razão cínica brasileira. Invertendo a famosa frase de Marx dita em o Capital: “Sie wissen das nicht, aber sie tun es”, que significa “disso eles não sabem, mas o fazem”, Peter Sloterdijk nos ajuda a explicar a fórmula dessa razão cínica traduzida no comportamento de nossas classes dirigentes: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo”.50 Nossas classes dirigentes e o establishment jurídico sabem o que está ocorrendo, mas continuam a fazer as mesmas coisas que historicamente vêm fazendo. Não nos damos conta das questões mais prosaicas que nos rodeiam e que permeiam o nosso imaginário, problemática já analisada anteriormente. Esse estado da arte do binômio estamentos-patrimonialismo (além da razão cínica) pode ser ainda melhor ilustrado. Vejamos. Há um filme sobre uma peça de teatro que pretende contar a Revolução Francesa. Na primeira cena, o Rei e a Rainha fogem da França e são recapturados na fronteira. Alguém reclama, dizendo que a Revolução deve ser contada de outro modo. Na nova cena, aparece uma bacia com água quente, uma camponesa pronta para dar à luz e a parteira. Na sequência, entra um aristocrata, que voltava da caçada. Vendo aquela água límpida, lava as suas botas sujas na bacia destinada ao parto. Desdém, deboche e desprezo! Pronto: é assim que se conta a origem da Revolução. É assim que se resgata a capacidade de indignação. Pois examinando o projeto de lei federal (Dep. José Mentor) pretendendo conceder anistia a quem tenha remetido dinheiro ao exterior de forma ilegal (criminosa), penso no despudor do caçador aristocrata e, consequentemente, na nossa herança patrimonialista. É impossível não fazê-lo. Explico: nos últimos anos, bilhões de dólares foram sonegados, lavados e remetidos, à socapa e à sorrelfa, ao exterior.51 Não se sabe o quantum, mas se estima em mais de U$ 150 bilhões. É tanto dinheiro para retornar, que, se viesse mesmo, poderia, segundo alguns empresários do ramo exportador, provocar uma queda no câmbio em face da enxurrada de moeda estrangeira. O que não está dito é que a pesada máquina pública se mostrou ineficiente para punir os criminosos (afinal, la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos..., e, é claro, as leis disfuncionais colaboraram para esse mau resultado). Então, qual é a solução? Ora, segundo o projeto de lei, devemos anistiar os criminosos do colarinho branco; e, na sequência, um bom discurso para criarmos mais cargos públicos para o combate à sonegação e à evasão de divisas; e, na sequência, outra anistia...! Lembremos sempre do Dr. Pangloss, do Cândido (Voltaire): vivemos no melhor dos mundos! Na verdade, somos eficientes nisso. De há muito perseguimos com êxito ladrões de galinha e de sabonetes, mas não somos tão bons para “pegar” sonegadores e lavadores de dinheiro. Por todos, lembremos de um dos personagens mais marcantes da criminalidade do colarinho branco dos últimos tempos, Marcos Valério,que, no ano de 2008, mesmo já condenado à prisão, pagou o valor sonegado e teve extinta a sua punibilidade (a seu favor, a bondosa Lei 10.684 e uma generosa interpretação dada ao artigo 9º). Se não fosse trágico, seria engraçado, porque, ao mesmo tempo, milhares de ladrões (sic) continuam encarcerados (lembremos que temos mais de trezentos mil presos no Brasil por crimes contra o patrimônio individual e pouquíssimos por crimes de sonegação ou evasão de divisas). Veja-se: pelo projeto “anistiador”, que teve aprovação no Senado, basta que o “cidadão” declare o valor que remeteu ao exterior, pague o imposto de 6% e estará anistiado. Portanto, “vale a pena” remeter dinheiro ilegal para o exterior. Ou seja: o crime compensa. E, atenção: o sigilo será preservado (ainda bem... imagine-se que o povo saiba o nome dessas pessoas...!)! Trata-se da institucionalização da impunidade do “andar de cima”, para usar uma expressão de Elio Gaspari. É a “função social do crime!”. A questão é saber se o deputado autor do projeto concorda em fazer uma emenda, com base nos princípios da isonomia e igualdade, concedendo anistia também a todos aqueles que devolverem o valor produto de furtos, estelionatos e apropriações indébitas. Afinal, se vale para o “estamenteiros”, por que não estender a benesse à “patuleia”?52 Numa palavra final, vem bem a propósito disso o dizer de Jurandir Freire Costa,53 para quem “hoje aposentamos os Rousseau. Em vez de utopias, (existem os) manuais de autoajuda, psicofármacos, cocaína e terapêuticas diversas para os que têm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas sobrevivem”. Notas 6 Segundo O’Donnell, a transição de regimes autoritários para governos eleitos democraticamente não encerra a tarefa de construção democrática: é necessária uma segunda transição, até o estabelecimento de um regime democrático. A escassez de instituições democráticas e o estilo de governo dos presidentes eleitos em vários países que saíram recentemente de regimes autoritários – particularmente da América Latina – caracterizam uma situação em que, mesmo não havendo ameaças iminentes de regresso ao autoritarismo, é difícil avançar para a consolidação institucional da democracia. O estudo desses casos sugere a existência de um tipo peculiar de democracia em que a delegação prevalece sobre a representação, denominada pelo autor de democracia delegativa, fortemente individualista, com um corte mais hobbesiano do que lockiano. Consultar O’Donnell, Guillermo. Democracia delegativa? In: Novos Estudos Cebrap, n.31, out/91, p. 25 e segs. 7 Cf. Pereira e Silva, Reinaldo. O mercado de trabalho humano. São Paulo: LTr, 1998, p. 45. 8 Idem, ibidem. Ver também Carvalhosa, Modesto. Direito Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 100. 9 Sobre Estado Social, sua crise e suas transformações, ver: García-Pelayo, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. Madrid: Alianza Editorial, 1997; Capella, Juan Ramón. Fruta prohibida. Una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del Estado. Madrid: Editorial Trotta, 1997. Sempre é bom registrar que a República de Weimar, na “fase experimental” após a Primeira Grande Guerra, iniciou a implantação dos direitos sociais, também chamados de direitos de segunda geração. Em outros países, explica Capella, como Grã-Bretanha, França e Itália, teriam que aguardar ainda um quarto de século. Nos anos trinta, nos EUA, mediante métodos não legislativos, foi dado um passo para o reconhecimento dos direitos dos mais fracos, porém, apesar de ser a pátria do New Deal, os trabalhadores norte-americanos nunca tiveram a cobertura de direitos sociais dos trabalhadores da Europa ocidental (se aproximaram dos trabalhadores europeus por um brevíssimo momento, durante a administração Johnson, no final dos anos setenta). Em contrapartida, outros aspectos das políticas keynesianas se iniciaram nos Estados Unidos nos anos trinta, enquanto na Europa os trabalhadores tiveram que esperar até o final da segunda guerra mundial. Cf. Capella, op. cit., p. 172. Também Rosanvallon, Pierre. A crise do estado- providência. Goiania, Editora UNB, 1997, p. 38 e segs. 10 Até mesmo Richard Posner, o arauto do Law and Economics admitiu que a macroeconomia foi pensada tendo poucas interseções com o direito e, por isso, segundo ele, os teóricos da Análise Econômica do Direito – AED – não tinham conhecimentos de macroeconomia suficientes e, assim, não avaliaram bem o lado negativo da desregulamentação financeira. Admitiu que errou em suas previsões quanto à crise de 2008. Cf. Posner, Richard. On the Receipt of the Ronald H. Coase Medal: Uncertainty, the Economic Crisis, and the Future of Law and Economics. In American Law & Economics Review, Vol. 12 Issue 2, 2010, p. 268. Para Posner, a AED se tornou muito acadêmica e incapaz, assim, de prover uma resposta rápida para a crise econômica. Cf. Ibidem, p. 270. Mas, na verdade, a crise rompeu com o discurso neoliberal e da AED. Isto é, liberalismo só quando interessa. Depois reconheceu que a crise surpreendeu até mesmo os analistas econômicos, gerando dúvidas até mesmo sobre alguns pressupostos que norteiam a pesquisa econômica sobre o sistema legal. Para ele, seria preciso prestar atenção no fato de que a economia tem riscos que são racionalmente escolhidos economicamente. Seriam riscos incalculáveis, em alguns casos. Cf. Ibidem, p. 272. 11 Cf. GM, 1908-2009. In: Carta Capital. 10.06.2009, p. 50-52. 12 A intervenção do Estado para salvar determinado setor envolvido em crise é de longa data na História do Brasil, como o caso da compra de café na República Velha em 1906 devido a superprodução de café. Segundo o Convênio de Taubaté, o governo brasileiro compraria o excedente da produção para que a quantidade disponível no mercado fosse suficiente para garantir o preço aos cafeicultores. 13 Cf. O Capital é Vermelho. In: Carta Capital. 04.03.2009, p. 60/64. Nos termos da manchete: “salvar o sistema financeiro capitalista exigirá a estatização dos que já foram os maiores bancos do mundo”. 14 Cf. Carvalho, Fernando Cardim de. O Retorno a Keynes. In: Novos Estudos – CEBRAP, nº 83, março de 2009, p. 100. 15 Cf. Bresser-Pereira, Luiz Carlos. A Crise Financeira Global e depois: um novo capitalismo? In: Novos Estudos – CEBRAP, nº 86, março de 2010, p. 51. 16 A propósito, veja-se o documentário “Inside Job”, que conta a história da crise de 2008/09 (vencedor do Oscar), mostrando “o comportamento dos agentes de mercado, com sua insolência, leviandade, irresponsabilidade e arrogância. Capazes até de roubar as próprias firmas para as quais trabalham, ao lançar como despesas de serviço gastos com cocaína e com prostitutas de luxo. É o mercado, enfim. Dá náusea ver a omissão dos governantes, a promiscuidade com os negócios dessa gente. A começar de Ronald Reagan, com o qual se inicia o trabalho de desmanche da regulação que acaba, passados vários presidentes, montando o palco para os ‘senhores do universo’ provocarem o colapso que custou ao mundo dois anos de crescimento zero. (...) O sistema financeiro instalou portas giratórias no governo. Funcionários saem da banca para o governo, nada fazem para controlar o sistema de que saíram e voltam a ele, ganhando fábulas”. O documentário denuncia, com toda a razão, a “colonização” da academia pelos agentes de mercado. Professores de economia, das melhores grifes, têm empregos muito bem remunerados em conselhos e passam a produzir apenas a ideologia dos que lhes pagam, não a compilar informações e analisá-las de maneira tão objetiva quanto possível em se tratando de algo, a economia, que não
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