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1 UNIVERSIDADE FEEVALE MESTRADO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS CLÁUDIA GISELE MASIERO “ERA UMA VEZ…” – UM ESTUDO SOBRE CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM NARRATIVAS NOVO HAMBURGO 2014 2 UNIVERSIDADE FEEVALE MESTRADO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS CLÁUDIA GISELE MASIERO “ERA UMA VEZ...” – UM ESTUDO SOBRE CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM NARRATIVAS Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale. Orientadora: Profa. Dra. Cristina Ennes da Silva Novo Hamburgo 2014 3 4 UNIVERSIDADE FEEVALE MESTRADO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS CLÁUDIA GISELE MASIERO “ERA UMA VEZ...” – UM ESTUDO SOBRE CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM NARRATIVAS Dissertação de Mestrado aprovada pela banca examinadora em 27 de fevereiro de 2014, conferindo à autora o título de Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Componentes da Banca Examinadora ______________________________________________________ Profa. Dra. Cristina Ennes da Silva Universidade Feevale ______________________________________________________ Profa. Dra. Saraí Patrícia Schmidt Universidade Feevale ______________________________________________________ Profa. Dra. Flávia Brocchetto Ramos Universidade de Caxias do Sul (UCS) 5 Dedico este estudo àquelas crianças que foram trancadas na torre do esquecimento e da negligência, devoradas pelo lobo da violência ou do trabalho, sem poder contar com nenhum caçador ou fada para salvá-las. Envolvidas, elas, em contextos tão amargos que talvez nem consigam sonhar com as luzes brilhantes de dias melhores, mas a quem eu desejo que estes dias cheguem, como num final feliz das belas histórias. 6 AGRADECIMENTOS Quero agradecer à Capes e à Universidade Feevale pela bolsa de pesquisa que me foi concedida, por meio da qual pude me dedicar efetivamente ao mestrado. Aos professores do Curso de Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, pela dedicação e incentivo à busca pelo conhecimento. Aos colegas de curso pelas aprendizagens e experiências compartilhadas. Certamente nos tornamos grandes amigos e espero que ainda tenhamos muitos momentos juntos. Em especial, quero agradecer à amiga e colega Janice Roberta Schröder por ser minha companheira em todas as horas. À Profa. Dra. Saraí Patrícia Schmidt e à Profa. Dra. Flávia Brocchetto Ramos, que aceitaram o convite para fazer parte da banca. Obrigada pela atenção e contribuição a este estudo. São grandes pesquisadoras e pessoas muito especiais. Em especial, quero agradecer à minha orientadora, Profa. Dra. Cristina Ennes da Silva, que é incrível, motivada, sábia e justa. Obrigada pela dedicação em me orientar nesta pesquisa, pelo comprometimento, por todo carinho e aconchego que encontrei nas suas palavras e no seu abraço. Tenho uma profunda admiração pela pessoa e profissional que é. Serei eternamente sua orientanda porque os ensinamentos e exemplos recebidos me acompanharão para a vida inteira. À Profa. Dra. Paula Regina Puhl e à Profa. Dra. Sissa Jacoby pela contribuição à minha jornada acadêmica. À Luciane Pezzi de Oliveira, Liziane Engel e Cassiano Ricardo Haag, que me fizeram acreditar que o objetivo de me tornar professora mestre poderia ser alcançado. À minha família, que sempre me apoia e se orgulha de mim por eu ser professora! 7 A infância como algo outro não é o objeto (ou o objetivo) do saber, mas que escapa a qualquer objetivação e o que desvia de todo objetivo; não é o ponto de ancoragem do poder, mas o que marca sua linha de despenhadeiro, seu limite exterior, sua absoluta impotência; não é o que está presente em nossas instituições, mas o que permanece ausente e inabarcável, brilhando sempre fora de seus limites. Portanto, a alteridade da infância não significa que as crianças ainda resistam a ser plenamente apropriadas por nossos saberes, por nossas práticas e por nossas instituições; nem sequer significa que esta apropriação eventualmente nunca poderá realizar-se completamente. A alteridade da infância é algo muito mais radical: nada mais e nada menos do que sua absoluta heterogeneidade no que diz respeito a nós e a nosso mundo, sua absoluta diferença. Jorge Larrosa, em O enigma da infância 8 RESUMO Este estudo tem como tema a concepção de infância presente nos contos de fadas Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, escritos pelos Irmãos Grimm, no início do século XIX, bem como nos filmes de animação Deu a Louca na Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010), que se inspiram nesses contos. O objetivo é identificar e analisar a concepção de infância representada nesses produtos culturais de tempos e sociedades distintas, buscando compreender semelhanças e diferenças que apresentam, veiculadas, é claro, aos seus respectivos contextos de produção. Dessa forma, reflete-se sobre a infância entendendo-a como uma construção social que pode apresentar transformações segundo tempo e lugar, até mesmo em uma mesma sociedade. Assim, para compreender a infância e sua história se tem por base os estudos de Ariès (1981), Badinter (1985), Postman (1999), Heywood (2004), Steinberg e Kincheloe (2004) e Stearns (2006). A metodologia utilizada para tanto é a Análise de Conteúdo, segundo Bardin (2004), Moraes (1999) e Fonseca Júnior (2011). O tratamento dado a cada uma das fontes centrou-se na perspectiva de analisá-los sob três aspectos: a) como a protagonista se relaciona com seus pais ou pessoas mais velhas; b) a maneira como esses produtos culturais representam a sua subjetividade; e c) como age nas situações de conflito ou de aprendizagem. Neste sentido, também serão analisadas questões relativas ao imaginário, principalmente conforme Backzo (1985) e a representação social, segundo Chartier (2002). Palavras-chave: Infância. Cultura. Contos de Fadas. Cinema. 9 ABSTRACT This study has as its theme the concept of childhood in the fairy tales Little Red Riding Hood and Rapunzel, compiled by the Grimm Brothers in the early nineteenth century and in the animation movies Hoodwinked! (2005) and Tangled (2010), which were inspired by the tales. The goal is to identify and analyze the concept of childhood represented in these cultural products from different times and societies, seeking to understand similarities and differences they present, linked to their respective contexts of production. Thus, we are able to reflect about childhood, understanding it as a social construction that can show transformations according time and place, even within the same society. As it follows, to understand childhood and its history we use as a base the studies of Aries (1981), Badinter (1985), Postman (1999), Heywood (2004), Steinberg e Kincheloe (2004) and Stearns (2006). The methodology for this is Content Analysis according to Bardin (2004), Moraes (1999) and Fonseca Jr. (2011). The treatment given to each of the sources is focused on analyzing them regarding three aspects: a) how the protagonists relate to their parents or older people; b) how these cultural products represent their subjectivity; and c) how they act in conflict or learning situations. In this sense, the issues about the “imaginary” are going to be examined as well, mostly according to Backzo (1985) and social representation, according to Chartier (2002). Keywords: Childhood. Culture.Fairy tales. Cinema. 10 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Chapeuzinho Vermelho e suas relações ................................................ 56 Quadro 2 – Rapunzel e suas relações ...................................................................... 58 Quadro 3 – O mistério do roubo das receitas ............................................................ 59 Quadro 4 – O encontro com o coelho Boingo ........................................................... 61 Quadro 5 – A decepção de Chapeuzinho com a vovó .............................................. 62 Quadro 6 – A captura do bandido dos doces ............................................................ 64 Quadro 7 – Diálogo entre Senhora Gothel e Rapunzel ............................................. 65 Quadro 8 – O reencontro de Rapunzel com a Senhora Gothel ................................. 66 Quadro 9 – Rapunzel enfrenta a Senhora Gothel ..................................................... 67 Quadro 10 – De que maneira Chapeuzinho se vê ou é vista .................................... 71 Quadro 11 – Como Rapunzel se vê ou é vista .......................................................... 72 Quadro 12 – A canção de Chapeuzinho Vermelho ................................................... 73 Quadro 13 – Chapeuzinho telefona para a vovó ....................................................... 74 Quadro 14 – A reflexão de Chapeuzinho Vermelho .................................................. 76 Quadro 15 – A chegada da princesa Rapunzel ......................................................... 77 Quadro 16 – A rotina de Rapunzel ............................................................................ 78 Quadro 17 – “Ainda uma mudinha e muito nova!” ..................................................... 80 Quadro 18 – Rapunzel assume o seu lugar de princesa ........................................... 81 Quadro 19 – Chapeuzinho Vermelho em situações de conflito e aprendizagem ...... 84 Quadro 20 – Rapunzel nas situações de conflito e aprendizagem ............................ 86 Quadro 21 – A autodefesa de Chapeuzinho diante do Inspetor Pirueta ................... 87 Quadro 22 – O encontro de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo ............................. 88 Quadro 23 – A versão de Chapeuzinho sobre a história ........................................... 89 Quadro 24 – A campeã de Karatê ............................................................................. 91 Quadro 25 – A fragilidade da menina Chapeuzinho .................................................. 92 Quadro 26 – A autodefesa de Rapunzel ................................................................... 94 Quadro 27 – Rapunzel em contradição ..................................................................... 96 Quadro 28 – Revelações ........................................................................................... 97 Quadro 29 – Rapunzel e seu sonho .......................................................................... 98 Quadro 30 – A virada na história de Rapunzel .......................................................... 99 11 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12 2 A INFÂNCIA COMO TEMA DE ESTUDO ........................................................ 19 2.1 INFÂNCIA: DA COMPLEXIDADE DO TEMA AOS ESTUDOS HISTÓRICOS .. 22 2.2 METODOLOGIA DE PESQUISA ...................................................................... 31 2.3 LITERATURA, HISTÓRIA E INFÂNCIA ............................................................ 36 2.4 CINEMA, HISTÓRIA E INFÂNCIA .................................................................... 45 3 OS PRODUTOS CULTURAIS E AS REPRESENTAÇÕES DA INFÂNCIA .... 50 3.1 O RELACIONAMENTO COM SEUS PAIS OU COM PESSOAS MAIS VELHAS .................................................................................................................................. 55 3.2 COMO SE VÊ OU É VISTA ENQUANTO SUJEITO ......................................... 71 3.3 SITUAÇÕES DE CONFLITO E APRENDIZAGEM ............................................ 83 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 104 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 112 ANEXO A – Chapeuzinho Vermelho .................................................................... 117 ANEXO B – Rapunzel ............................................................................................ 121 ANEXO C – Ficha técnica do filme Deu a Louca na Chapeuzinho .................... 125 ANEXO D – Ficha técnica do filme Enrolados .................................................... 126 12 1 INTRODUÇÃO Era uma vez, em um tempo não muito distante, um mundo onde não havia o sentimento da particularidade infantil. Humanos, grandes ou pequenos, partilhavam das mesmas tarefas, formas de lazer e segredos. Tão logo as crianças adquiriam alguma independência, já participavam igualmente das atividades dos mais velhos. Foi então que algo diferente aconteceu, a criança passou a ser vista de uma forma particular e a infância surgiu. Não foi igual em todo lugar nem ao mesmo tempo. Foi um longo processo! Um mundo novo foi imaginado para as crianças, no qual estariam protegidas da violência, da promiscuidade e do sofrimento. A infância tinha que ser um tempo de inocência e felicidade. A família cada vez mais voltada para a sua privacidade ajudou na construção dessa “infância” e a criança passou a ser o centro das suas atenções. A escola se voltou para abrigar esses seres especiais e à educá-los, fornecendo gradativamente o conhecimento para que se tornassem, aos poucos preparados para a vida adulta em sociedade. Assim, o conceito de infância como se entende atualmente é bastante recente, é uma construção da modernidade. Construção essa que não se consolidou para todas as crianças e sofreu múltiplas influências, que contribuíram para que continuasse a se transformar. Na continuação desta história, a infância vem se constituindo como tema emergente de pesquisa. Segundo Castro (2007), pesquisadores de todo o mundo e de diversas áreas têm se dedicado cada vez mais a ela. No século XIX é que eclodem os estudos sobre esse tema, como afirma Heywood (2004). Trata-se de uma área relativamente recente e, por isso, é ainda também um campo vasto a ser explorado. Não é, contudo, simples de se estudá-lo, exigindo sensibilidade e atenção por parte do pesquisador. Mesmo a aparentemente simples tarefa de definir o que, de fato, é infância pode ser uma questão profundamente complexa. Cohn (2009) explica que essa tarefa pode até mesmo ser uma armadilha pois, justifica a autora, todos um dia foram crianças e desejaram ou não tê-las. Além disso, a literatura traz textos de autores que falam sobre a sua infância com certa nostalgia, o que faz pensar que já se sabe tudo sobre essa fase da vida. A autora alerta também para o fato de que, caso se recolham as informações sobre o que é a infância, diferentes ideias irão se apresentar. Todas elas remeteriam a uma imagem negativa da criança, pois quando se pensa no assunto, na verdade, está se fazendo 13 um contraponto para falar de outras coisas, por exemplo, sobre a vida em sociedade ou sobre as responsabilidades da vida adulta. A ideia central dessa autora, ao discutir a antropologia da infância, é a de que é necessário se desvencilhar das imagens preconcebidas que se apresentam, para abordar esse universo procurando entender o que há nele e não o que se quer que ele ofereça. Por isso, aposta em estudos capazes de entender a criança por seu próprioponto de vista, considerando o que ela própria pensa sobre si mesmo, ou seja, busca abordá-la em suas práticas, considerando-a como sujeito social. Larrosa (2010) problematiza o entendimento que se tem da infância fazendo pensar que não é o que já sabemos, tampouco o que ainda não sabemos, mas justamente “algo outro”. Assim, é o que escapa a qualquer objetivação que se venha a fazer, é pensar sobre a inquietude, o questionamento e o vazio. Não é o que está demarcado pelas instituições, mas é o que permanece ausente. O autor argumenta que se deve considerar a alteridade da infância e como ela é capaz de fazer com que se repense a sua própria definição, ou seja, o que podemos e o que sabemos sobre ela e também acerca dos lugares que construímos para ela. A criança é portadora de uma verdade, a qual se deve escutar, pois a alteridade da infância não é regida nem por nosso saber nem por nosso poder, é o que está além. Desta forma, para o autor, a infância é um enigma. Na área da sociologia que se dedica ao mesmo tema, há também uma preocupação com as crianças como atores sociais. Delgado e Müller (2005) consideram que essa visão deve observar não somente as internalizações e as adaptações do processo de socialização, mas também os processos de apropriação, reinvenção e reprodução das crianças, considerando a sua importância no coletivo, ou seja, como negociam, compartilham e criam culturas com os adultos e com os seus pares, pois, “todas as vezes que as crianças interagem e se comunicam com a natureza, a sociedade e com outras pessoas, tanto adultos quanto pares, elas estão contribuindo para a formação quer da infância quer da sociedade” (QVORTRUP, 2011, p. 206). A proposta de dar voz à criança, entendendo-a como sujeito social, é, de fato, interessante tanto aos fazeres antropológico e sociológico, como se viu, como também o é para as demais áreas. Conforme Nascimento et al. (2008) ver e ouvir a criança é fundamental em qualquer estudo que realmente deseja se dedicar a esse tema. 14 Em áreas como a História, dar voz às crianças nem sempre está acessível, já que uma aproximação física para dialogar com elas somente é possível nas abordagens da história do presente. Tampouco é fácil encontrar entre os vestígios ou documentos históricos algo que tenha sido produzido originalmente pela criança, pois, como explica Heywood (2004), as próprias crianças geralmente não deixam registros, o que dificulta o estudo da história da infância por meio do olhar das próprias crianças. Stearns (2006) também fala que é difícil elaborar histórias bem feitas sobre esse tema, porque, além dos poucos registros diretos que existem o que se tem de vestígios é trazido à tona pelos adultos. Ou seja, o que geralmente permanece acerca das crianças de um tempo passado são artigos que o mundo adulto produziu e a elas destinou, como roupas, brinquedos e livros. Além disso, o conceito de infância é definido por adultos e por instituições adultas. Em outras palavras, é por intermédio dos adultos que essa definição surge. Qvortrup (2011) concorda com a abordagem que caracteriza a criança como grupo minoritário, definido em relação ao grupo dominante, que possui status social mais alto e maiores privilégios, isto é, neste caso, os adultos. Portanto, ao fazer historiográfico cabe reconhecer tal condição de talvez não se ter fontes advindas da própria criança e, com isso, a opção que se apresenta é analisar a construção do imaginário e das representações correntes sobre a infância e não tanto a produção da própria criança em si. A questão é que para a escrita da história os documentos produzidos pelos adultos constituem a principal (ou quase exclusiva) fonte para pesquisa. Como aponta Gouvea (2009), tanto nos textos voltados para a construção de um imaginário sobre a infância, quanto nos documentos para normatização das práticas de cuidado da criança, o adulto projeta uma determinada representação sobre a identidade infantil, sua particularidade, que definiria as estratégias de formação e de intervenção. Quando se busca estudar a infância por um viés histórico, então, o caminho que quase sempre se percorre é analisar o que se pensava sobre o que vinha a ser essa fase da vida e consequentemente como se agia com as crianças, ou seja, investigam-se as concepções de infância surgidas em diferentes tempos e espaços geográficos. Conforme explica Heywood (2004), a criança é um constructo social que se transforma com o passar do tempo e, não menos importante, varia entre grupos sociais e étnicos dentro de qualquer sociedade. Para o autor, a imaturidade da criança é um fato biológico, mas a forma como ela é compreendida e o modo 15 como se atribuem significados a ela são fatos culturais. Dessa forma, não se pode realizar uma pesquisa sobre a infância que não considere o contexto histórico, social e cultural de cada época. Qualquer tentativa de generalização não encontrará suporte, como esclarece Cohn (2009), dizendo que a infância é um modo particular, e não universal, de pensar a criança. A infância reflete a sociedade em que se insere e também ajuda a construí-la, como propõe Stearns (2006). Por essas razões e partindo dessas indagações, este estudo busca identificar e analisar a concepção de infância representada em dois contos de fadas dos Irmãos Grimm, Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, publicados no início do século XIX. Posteriormente, essa identificação e análise será realizada sobre dois filmes de animação que são releituras dos contos referidos, respectivamente, Deu a Louca na Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010), lançados no início do século XXI. Com a intenção de contribuir para a continuação e o aprofundamento do estudo da história da infância, entende-se que estes podem ser indicativos do modo como se pensou a infância em cada contexto do qual são procedentes. Não se tem a pretensão de analisar os contos ou os filmes em si, mas o modo como representam implícita ou explicitamente as concepções de infância. Interessa, num primeiro momento, identificar elementos comuns, que se apresentam de modo semelhante ou diverso, nas narrativas. As obras referidas são, portanto, as fontes de análise1. Desde já se reconhece que as conclusões obtidas por meio desta análise não representam a única ideia que se tinha da infância em cada período estudado; são um exemplo dentre uma multiplicidade de modos de ver a criança. Ao se considerar, como já dito, que a infância é uma construção social, pode- se dizer também, que a forma como cada sociedade a vê é fundamentalmente uma questão cultural e não há outra forma de entendê-la senão por esse caminho. Parte- se do entendimento de que a cultura deve ser estudada em sua materialidade, ou seja, por meio de suas manifestações e de seus produtos. Com isso justifica-se o fato de se terem escolhido produtos culturais para se analisarem concepções de infância, como se pretende aqui. A opção por se estudar a história da infância se deu pela empatia com o tema e pela necessidade de discutir, enquanto sociedade, a construção de suas 1 Segundo Pinsky (2011), fontes históricas são o material do qual se apropriam os historiadores por meio de abordagens específicas, métodos e técnicas variadas, para tecerem seus discursos históricos. É o olhar do historiador que transforma o documento em fonte. 16 concepções ao longo do tempo, inclusive a concepção atualmente vigente. Dessa forma, observando os produtos com os quais as crianças têm contato atualmente, ganham destaque os filmes de animação e entre estas obras, a recorrente temática dos contos de fadas. Ao se estudar sobre os contos de fadas, então, percebe-se a importância do trabalho dos Irmãos Grimm, no século XIX, uma vez que suas narrativas ajudaram a construir o que se entende hoje por LiteraturaInfantil. A seleção dos produtos culturais que serão analisados se deu, também, a partir da perspectiva da existência dessas narrativas em dois espaços temporais diferentes, ou seja, nos séculos XIX e XXI. Isso permite que se possa refletir sobre as permanências e as alterações na concepção de infância, contudo, sem a pretensão de se fazer um estudo comparado. Parte-se do fato de que cada uma dessas épocas pensou a infância de uma forma particular, ou seja, houve transformações. No entanto, é intrigante a perspectiva de que em momentos tão distintos, se utilize a mesma temática para a sua elaboração, ao mesmo tempo em que chamam a atenção as diferentes formas de se contar a mesma história. Também se observou que, especialmente na última década, uma grande quantidade de produtos, principalmente de filmes, têm feito releituras dos contos de fadas, dedicadas ou não às crianças2, constituindo-se num fenômeno a ser estudado. Tanto os contos quanto os filmes foram produzidos para grande circulação e talvez se possa dizer que seu alcance é considerável, uma vez que os contos ainda perduram e os filmes de animação estão sendo produzidos em larga escala pela indústria cinematográfica. Acredita-se ser importante analisar produtos culturais que provêm de contextos distintos, porque “a experiência humana é sempre histórica, no sentido de que uma nova experiência é sempre assimilada aos resíduos do que passou, e no sentido que, ao procurar compreender o que é novo, nós sempre construímos sobre o que já está presente” (THOMPSON, 2002, p. 361). Entende-se ainda que esse tema é bastante relevante, uma vez que a concepção que se tem do que é infância norteia não apenas as ações dos adultos para com os pequenos, mas também a 2 Como é o caso de filmes como “Os Irmãos Grimm” (2005), “Deu a louca na Cinderela” (2006), “Deu a louca na Branca de Neve” (2009), “A garota da capa vermelha” (2011), “Branca de Neve e o Caçador” (2012), “Espelho, Espelho Meu” (2012), “João e Maria: Caçadores de Bruxas” (2013), a série “Once Upon a time” (2011) e a série “Grimm” (2011), entre outros produtos culturais, incluindo aqueles que, neste estudo, são tomados como fonte. 17 forma como a própria criança se vê, bem como norteia o que é produzido econômica e culturalmente para ela, podendo inclusive influenciar os princípios educacionais. Dessa maneira, no Capítulo 2, serão apresentados alguns dos importantes estudos já realizados sobre a história da infância como os escritos por Ariès (1981), Badinter (1985), Heywood (2004), Stearns (2006), Steinberg e Kicheloe (2004) e Postman (1999). Serão também discutidos os conceitos que farão parte da análise, como o de representação social, segundo Chartier (2002) e o conceito de imaginário, segundo Backzo (1985). A proposta deste estudo será retomada em conjunto com a metodologia utilizada, que se trata da análise de conteúdo. Essa metodologia permite tanto análise de textos verbais quanto de imagens em movimento, e sua proposta tem por base os seguintes autores: Bardin (2004), Moraes (1999) e Fonseca Júnior (2011). Posteriormente, será discutida a relação entre esse tema de pesquisa, a Literatura e a História, por meio dos contos como elementos a serem analisados. Da mesma maneira, é objetivo debater a relação entre infância, cinema e história, devido à presença dos filmes de animação. Já no Capítulo 3 será realizada a análise das fontes. Será feita, primeiramente, uma apresentação mais aprofundada dos documentos a serem analisados e do seu contexto de produção. Posteriormente, serão analisadas três categorias principais, em cada uma das quatro narrativas que são tomadas como fonte. Essas categorias constituirão a temática dos respectivos subcapítulos: a) como a personagem principal se relaciona com seus pais ou pessoas mais velhas; b) a maneira como esses produtos culturais mostram como a protagonista se percebe ou é vista como sujeito; e c) como age nas situações de conflito ou de aprendizagem. Nesse momento, também serão discutidos os dados obtidos, analisando as representações da concepção de infância que trazem em si, com base no referencial teórico. É preciso dizer que estudos como este somente são possíveis, na atualidade, porque a História, como disciplina, foi marcada por mudanças estruturais profundas durante o século XX, quando o próprio objetivo de atingir a “verdade” foi posto à prova como uma reação ao paradigma tradicional3. Chartier (2002) explica que essa área do conhecimento expandiu como nunca suas fontes de estudo, permeando 3 Essa nova fase foi inaugurada na França, na década de 1930, associada à “École des Analles”, agrupada em torno da revista “Analle: économies, societés, civilisations”, como explica Burke (1992). Há um sentimento de incerteza frequentemente anunciado, de dúvidas e de interrogações, como diz Chartier (2002). 18 outras áreas, estabelecendo para si uma legitimação científica renovada por meio dos estudos culturais. Dentre os novos paradigmas pretendidos pela disciplina, está a busca por novos objetos de estudo e por novos métodos para analisá-los, permitindo pensar sobre o indivíduo e o mundo social de uma maneira inédita. Dentre os temas recentes, certamente está a “infância”; entre as novas fontes, documentos vindos da Literatura e da Comunicação, por exemplo, como se pretende aqui. Para atingir o objetivo proposto para este estudo, então, é necessário que se busque um diálogo entre diferentes áreas do conhecimento como a História, a Comunicação e a Literatura, procurando um olhar interdisciplinar4. Em síntese, esta é uma pesquisa básica, que procura gerar novos conhecimentos, mas sem a intenção de aplicação dos mesmos. Considerando os seus objetivos é uma pesquisa exploratória, que, segundo Prodanov e Freitas (2009), tem finalidade de proporcionar mais informações sobre o assunto a ser investigado, bem como defini-lo e delimitá-lo. Quanto aos procedimentos, é uma pesquisa bibliográfica e documental. Além disso, é fundamentalmente um estudo qualitativo, ainda que apresente alguns dados quantitativos. 4 Paviani (2008) explica que o conceito de interdisciplinaridade pode ser entendido como uma maneira de integração entre as disciplinas, cuja função é a de atender à necessidade de resolver problemas pedagógicos e científicos novos e complexos. 19 2 A INFÂNCIA COMO TEMA DE ESTUDO A fim de contribuir para o debate acerca da história da infância, busca-se, como já mencionado, analisar a concepção de infância representada em alguns produtos culturais determinados. Mais especificamente, a análise se dará a partir de dois contos de fadas compilados pelos Irmãos Grimm, no início do século XIX, Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, e de dois filmes de animação, Deu a Louca na Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010), lançados no início do século XXI, os quais se inspiram, respectivamente, nos referidos contos. Dessa forma, é preciso dizer que a infância é a categoria de análise que permeia todo este estudo. Atendendo às palavras de Gouvea (2009), não apenas irá se considerar o levantamento e a categorização das fontes, pois essa não é a principal questão para o historiador da infância. Considera-se, então, que é fundamental ter em vista que os documentos só são passíveis de análise a partir de perguntas postas pelo investigador. Assim, o principal objetivo deste estudo é perceber e analisar as representações da concepção de infância presente tanto nos contos quanto nos filmes. Desse modo, visa-se refletir sobre se o formato e o conteúdo das narrativas representa o que cada sociedade pensava a respeito da criança, bem como sobre a maneira como o fazem. Valeavaliar, ainda, se os produtos culturais seguem a mesma tendência, ou se a concepção de infância sofreu modificações, e isso neles se reflete, considerando que estão distantes cronologicamente5. Sempre lembrando que o dito e o que não se disse podem ter a mesma importância, pois “o silêncio é significante” (ORLANDI, 2007, p.23). Neste trabalho, considera-se cultura como um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, bem como perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (GEERTZ, 1989). Cultura se refere a um processo dinâmico que produz os comportamentos, as práticas, as instituições e os significados que constituem a nossa existência, como define Turner (1997). Assume, assim, seu papel constituinte em todos os aspectos da vida social, como mostra Hall (1997), ao afirmar que toda ação social é cultural. Diante disso, pode-se dizer que as 5 Ainda que seja ambição deste estudo refletir sobre a infância em ambos os contextos, não se almeja realizar um estudo comparado. Não seria mesmo possível comparar duas fontes diferentes, em contextos distintos. Isso, porém, não exclui a possibilidade de analisá-los no mesmo estudo, e por meio disso, discutir as permanências e as mudanças que estes suscitam acerca da infância. 20 concepções de infância são, também, resultado de processos culturais, que, por sua vez, geram produtos culturais. Dessa forma, os vestígios deixados pelas sociedades ajudam a compreender como essas diferentes concepções foram construídas e moldadas aos padrões culturais de seu tempo e lugar. Quer sejam pinturas, roupas, narrativas, brinquedos, objetos, textos, fotografias, filmes, enfim, todas essas manifestações representam a cultura em sua materialidade. É por meio delas, em grande parte, que o estudo da história da infância se viabiliza. As representações sociais contidas nos produtos culturais em questão – ou seja, as formas simbólicas pelas quais se fez circular e, de certa maneira, se firmar o que se pensa sobre a criança em ambos os contextos – são oriundas de um imaginário coletivo, ao mesmo tempo em que contribuem para reforçá-lo. Sendo assim, um dos conceitos-chave para este estudo é o imaginário social. Para Backzo (1985) o imaginário é uma das forças reguladoras da vida coletiva6. Mediante essa reflexão, conclui que os bens simbólicos fabricados por qualquer sociedade não são nada irrisórios e não existem em quantidades ilimitadas. Em um esforço de síntese, diz que O social produz-se através de uma rede de sentidos, de marcos de referência simbólicos por meio dos quais os homens comunicam, se dotam de uma identidade colectiva [sic] e designam as suas relações com as instituições políticas, etc. A vida social é produtora de valores e normas e, ao mesmo tempo, de sistemas de representações que as fixam e as traduzem. Assim se define um código colectivo [sic] segundo o qual se exprimem as necessidades e as expectativas, as esperanças e as angústias dos agentes sociais. Por outras palavras, as relações sociais nunca se reduzem aos seus componentes físicos e materiais (BACKZO, 1985, p. 308). Sendo assim, as concepções de infância estão, por assim dizer, no plano das ideias. Entende-se, neste trabalho, que elas são formuladas pelo imaginário, que é parte da cultura. Como se afirmou anteriormente, essas concepções são construídas socialmente e, por isso mesmo, variam em cada sociedade, enquanto construções simbólicas. Acredita-se que são elas que norteiam as ações com as crianças e o que para elas é produzido em uma sociedade. Pode-se complementar a afirmação anterior com as palavras de Backzo (1985, p. 309): “todas as épocas têm as suas 6 Para explicar o que é imaginário, o autor apresenta algumas reflexões. Por exemplo, questiona se em uma guerra ou em uma revolução, as imagens exaltantes e magnificentes dos objetos a atingir e os símbolos da vitória procurada não seriam uma condição de possibilidade das próprias forças em presença? Ou ainda, será que as ações guiadas por essas representações não seriam capazes de modelar comportamentos, mobilizando as energias e legitimando a violência? 21 modalidades específicas de imaginar, reproduzir e renovar o imaginário, assim como possuem modalidades específicas de acreditar, sentir e pensar”, tal como ocorre com o que se pensa sobre a infância. Silva (2012) explica que o imaginário é diferente do imaginado, ou seja, para o autor, imaginado é uma projeção irreal que poderá se tornar real; já o imaginário emana do real, estrutura-se como ideal e retorna a ele como elemento propulsor. Ainda considerando as ideias de Backzo (1985), o imaginário é também uma peça de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder; é, ao mesmo tempo, o lugar e o objeto dos conflitos sociais. Como também já se disse, no caso da infância, quem tem o poder de defini-la são os adultos, majoritariamente. Não é, portanto, uma definição de si, mas uma definição para outrem, o que precisa ser levado em consideração. Compartilha-se do pensamento de Backzo (1985), cuja ideia é que o imaginário social torna-se inteligível e comunicável por meio da produção dos discursos nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas numa linguagem e, assim, contribui para o entendimento do modo como o imaginário pode ser estudado, desvendado. Maffesoli (2001, p. 75), por exemplo, afirma que “o imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável”. Para o autor, o imaginário é algo que ultrapassa o indivíduo, impregna o coletivo, ou ao menos parte dele, caracterizando-o como cimento social. Diz também que não são as imagens que produzem o imaginário, mas o contrário, ou seja, o imaginário empreende e consolida representações. Dessa forma, os filmes e os contos podem ser entendidos como representações do imaginário acerca da infância, considerando seus contextos de origem. Outro conceito-chave para o estudo da temática proposta é, então, o de representação social. Segundo Chartier (2002), não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações mediante as quais os indivíduos e os grupos dão sentido a seu mundo. Dessa forma, como aponta o autor, precisa-se dar atenção às condições e aos processos que sustentam as operações de construção de sentido, ou seja, é necessário observar as lutas de representações, as estratégias simbólicas, que têm por objetivo a ordenação da própria estrutura social. Essas lutas têm tanta importância quanto, por exemplo, as lutas econômicas, para “compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua 22 concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” (CHARTIER, 2002, p. 17). O autor complementa ainda com a seguinte afirmação: As representações do mundo social são assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 2002, p. 17). É fundamental entender que, segundo o autor, o conceito de representação está ligado ao entendimento do modo como, em diferentes momentos históricos, uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Alexandre (2004) fala do conceito de representação social como uma modalidade particular, isso porque não é todo “conhecimento” que pode ser considerado representação social, mas somente aquele que faz parte da vida cotidiana das pessoas, por meio do senso comum, que é elaborado socialmente e que funciona nosentido de interpretar, pensar e agir sobre a realidade. A representação é, portanto, sempre um discurso que quer significar algo e há sempre quem representa e para quem se representa, ou seja, quem a vê. Quando a questão é a infância e suas representações, é preciso pensar sempre na relação de tensionamento entre o universo adulto e o infantil. Diante das questões expostas acima e da complexidade do tema, já revelado anteriormente, faz-se necessário refletir sobre o conceito “infância” e também apresentar alguns importantes estudos que se dedicaram a compreendê-la ao longo do tempo. 2.1 INFÂNCIA: DA COMPLEXIDADE DO TEMA AOS ESTUDOS HISTÓRICOS Sabe-se que o termo “infância” necessariamente deve ser entendido em uma concepção plural. Isso porque, como preconiza Stearns (2006), a infância pode apresentar variações impressionantes, de uma sociedade ou de um tempo a outro. Por exemplo, a forma como as populações pré-colombianas da América tratavam suas crianças era diferente da forma como faziam os europeus da mesma época. É claro que certas características são padronizadas, independentemente de tempo e de lugar, mas o que prevalece é a pluralidade. Segundo o autor, todas as sociedades, ao longo da história, lidaram amplamente com a criança, porque sempre e em toda parte, as crianças precisaram e precisam receber alguma preparação 23 para o estágio adulto. Dessa forma, estudar “a história da infância impõe um confronto entre o que é ‘natural’ na experiência das crianças e o que é construído por forças históricas específicas, e essa confrontação é tanto estimulante quanto instrutiva” (STEARNS, 2006, p. 15). Para Steinberg e Kincheloe (2004), a infância não é uma simples entidade biológica, mas um artefato histórico e social, cujo conceito fundamental envolve o formato dessa fase humana, moldada por forças sociais, culturais, políticas e econômicas que atuam sobre ela. Conforme Marín-Diaz (2010), estudá-la implica que se saiba compreender também que as formas de pensar na infância estão atravessadas tanto pelas experiências quotidianas com as crianças como pelos debates e pelas discussões acadêmicas, políticas e econômicas atuais que circulam e percorrem as nossas formas de agir. Um dos fatores que se precisa levar em consideração ao se tomar a infância como tema de estudo é que este é um conceito relativamente recente e portanto, não se pode olhar para sua história apenas com base nas percepções do período atual ou da sociedade na qual se está inserido. Postman esclarece que, De fato, se tomamos a palavra crianças para significar uma classe especial de pessoas situadas entre sete e, digamos, dezessete anos, que requerem formas especiais de criação e proteção e que se acredita serem qualitativamente diferentes dos adultos, então há ampla evidência de que as crianças existem a menos de quatrocentos anos. Na verdade, se usamos a palavra crianças no sentido mais lato, em que se entende o americano médio, a infância não tem mais que cento e cinquenta anos” (POSTMAN, 1999, p. 11). Outro aspecto importante a se considerar é que não se pode atribuir linearidade à história da infância. Ela “tem seus marcos, mas também se move por linhas sinuosas com o passar dos séculos, a criança poderia ser considerada impura no início do século XX tanto quanto na alta Idade Média” (HEYWOOD, 2004, p. 45). Exemplo que se pode dar sobre isso é o fato de ainda existir trabalho infantil na atualidade quando existem leis que estabelecem que essa não é uma atividade adequada para a criança e, na sociedade, de maneira geral, há um consenso que condena tal ato. Ketzer (2003) afirma que a condição vivida socialmente pela criança, no fim do século XVII e início do século XVIII, pode ser vista na contemporaneidade em camadas da população socialmente desprivilegiada, em que o infante divide, em pé de igualdade com o adulto, as agruras da vida impostas pela lei da sobrevivência. 24 Isso leva a pensar que nem todas as crianças são beneficiadas ou mesmo afetadas pela concepção de infância que é construída e que vigora na sociedade à qual pertencem. Assim sendo, segundo a autora, a criança afetada pela produção cultural que tem acesso aos meios de produção cultural (por exemplo, gibi, livro, cinema, teatro, programas de televisão, internet, brinquedos) não é a mesma que está nas ruas pedindo esmolas. Afirma também que os estratos sociais definem, inclusive, um tipo de infância e de infante, cuja cultura, por tais circunstâncias, estará profundamente marcada. Podem-se encontrar compiladas em Frota (2007) algumas tentativas de definir, então, o que vem a ser infância na atualidade, quanto às questões legais. Os dicionários de língua portuguesa, por exemplo, definem infância como o período de crescimento que vai do nascimento até o ingresso na puberdade. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considera-se criança a pessoa até doze anos incompletos. Segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas, a criança é definida como todo o ser humano com menos de dezoito anos, exceto se a lei nacional confere a maioridade mais cedo. Quanto à palavra, etimologicamente, vem do latim infantia, que se refere ao indivíduo que não é capaz de falar. Embora seja necessário evidenciar tais tentativas de definição, se sabe que “a idade cronológica não é suficiente para caracterizar a infância” (FROTA, 2007, p. 150) e, assim, volta-se a dizer que “a infância é uma criação da sociedade, sujeita a mudar sempre que surgem transformações sociais mais amplas” (STEINBERG; KINCHELOE, 2004, p. 12). Tais variações podem ser vistas por meio de alguns dos estudos sobre sua história, o que se pretende descrever adiante. Phillippe Ariès, estudioso da história da infância, foi o precursor dos estudos que tomaram a infância como objeto central ou exclusivo. Sua tese é de que, na sociedade medieval, o sentimento de infância não existia, o que não queria dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. Não se tratava de não ter afeição pelas crianças, mas de considerá-las em sua particularidade. Ou seja, para o autor, na referida época, a infância não era vista como uma fase muito distinta da vida adulta. Explica que tão logo as crianças tinham independência física, eram introduzidas no mundo dos adultos e participavam inclusive de jogos e orgias, assim como trabalhavam e presenciavam enforcamentos públicos. Por meio de uma análise iconográfica, Ariès (1981) conclui que o sentimento de infância teria 25 emergido no século XVII, vinculado ao sentimento de família, pois as crianças passaram a ser retratadas com cada vez mais frequência e os retratos de família tenderam a se organizar em torno da criança. Então, esta teria se tornado um elemento indispensável da vida cotidiana e os adultos passaram a se preocupar com sua educação, sua carreira e seu futuro. Assim, a família e a escola, juntas, teriam retirado a criança da sociedade dos adultos. As pesquisas que se sucederam a Ariès trouxeram mais informações para a reconstrução da história da infância através de outros enfoques. Badinter (1985) se centra na questão da construção do amor materno, no que chama de “o mito do amor materno”, e, por isso, traz algumas questões acerca da história da infância, principalmente da Europa. Além disso, fala com profundidade de alguns pensadores que influenciam o pensamento sobre a infância em momentos importantes. Por exemplo, aborda as ideias de Santo Agostinho7, que considerava que a criança era um símbolo da força do mal, um ser imperfeito, esmagado pelo peso do pecado original. A natureza seria tão corrompida neste ser que o trabalho de recuperação seria penoso, justificando de antemão todas as ameaças, varas e palmatórias. Esse pensamento, ainda segundo a autora, reinou pormuito tempo na história da pedagogia, ao menos até o fim do século XVII, e também foi o responsável por manter uma atmosfera de dureza nas famílias e nas escolas. A autora, traz ainda, o pensamento de Descartes (1596-1650), explicando que para ele a infância era, antes de tudo, fraqueza do espírito, período da vida em que a faculdade de conhecer e o entendimento estão sob a total dependência do corpo. A criança não tem outros pensamentos senão as impressões suscitadas pelo corpo. O fato de o homem ter sido criança é que seria a causa de seus erros. Diante desses pensamentos é preciso que se diga que A imagem trágica da infância, como a concebiam teólogos, pedagogos e filósofos, não era provavelmente a mais fixada pelo povo em geral. Embora não devamos negligenciar a influência dos ideólogos e dos intelectuais nas classes dominantes e cultas, essa influência era claramente limitada nos outros meios sociais (BADINTER, 1985, p. 63). Badinter (1985, p. 54) sustenta que “foi Rousseau, com a publicação de Émile, em 1762, que cristalizou as novas ideias e deu um verdadeiro impulso inicial à família moderna, isto é, a família fundada no amor materno”. Assim, depois da 7 Cristão e teólogo que viveu nos séculos IV e V d.C. 26 publicação desse livro8, durante dois séculos, todos os pensadores que se ocupam da infância retornaram ao pensamento rousseauniano para levar cada vez mais longe suas implicações. Rousseau defendia a ingenuidade da criança e, assim sendo, a necessidade de respeitá-la e de deixá-la livre, favorecendo seu desenvolvimento. Heywood (2004) também tem por objetivo refletir sobre as concepções de infância ao longo da história, no que diz respeito ao Ocidente. Ele partilha da ideia de que “somente em épocas comparativamente recentes é que veio a surgir um sentimento de que as crianças são especiais e diferentes e, portanto, dignas de serem estudadas por si só” (HEYWOOD, 2004, p. 10). Reconhece a validade dos estudos de Ariès, mas deixa claro que é demasiadamente simplista a sua proposta de considerar a presença ou a ausência do sentimento de infância em determinada época ou período e que seria mesmo um exagero afirmar a inexistência da infância na Idade Média. Para Heywood (2004), o fato de as crianças estarem ausentes nas obras de artista da época se dá pela valorização dos temas religiosos, mais do que à vida cotidiana, e, dessa forma, não somente a criança teria ficado de fora das representações. Ele propõe que seria mais frutífero buscar essas diferentes concepções sobre a infância em vários períodos e lugares e tentar explicá-las à luz do material e das condições culturais predominantes, compreendendo que não há somente uma infância, mas várias, e que estas diferem de acordo com o espaço e o tempo. Outra ressalva que o autor faz é que não seria adequado insistir em um marco para a descoberta da infância, como tanto insiste Ariès, afirmando ser o século XVII. Em vez disso, aposta em uma história cíclica e não linear da infância, falando de várias descobertas. Por exemplo, segundo Heywood (2004), entre os séculos XVI e XVII, se pensou ser apropriado isolar as crianças do mundo dos adultos, sugerindo que as percepções de uma criança eram diferentes. Nos séculos XVIII e XIX, os pais passaram a receber uma carga cada vez maior de orientação dos médicos e de outros profissionais para a criação dos filhos. Começa-se também, na Europa, a se 8 Segundo Dalbosco (2009), o Émile é um livro dirigido aos pais, com instruções sobre como educar os filhos, constituindo o que chama de “educação natural”. Nesse livro, incentivava a amamentação e o cuidado dos pais na primeira infância. Também acreditava que constituição familiar e o papel dos pais eram indispensáveis contra os maus costumes e como forma de preparar a criança contra uma educação viciada. Nas palavras do autor acima citado, Rousseau, “ao pensar especificamente no papel do adulto, indica o grau de complexidade presente em sua relação com a criança, mostrando que a tarefa adulta movimenta-se no fio da navalha de não adestrar a criança e nem se deixar ser por ela escravizada” (DALBOSCO, 2009, p. 183). 27 pensar em termos de um sistema nacional de educação. O autor fala do surgimento da obra de John Locke, que acreditava que a criança era uma tábula rasa, que nascia como uma folha em branco, na qual se poderia escrever o que se quisesse. Com essa ideia, questionou-se outra posição mais antiga, mas que perdurava até então, de que a criança era fruto do pecado original e, portanto irremediavelmente impura, como afirmava Santo Agostinho. A relação das crianças com seus pais e pares em diversos contextos históricos também é discutida pelo autor. Afirma que, em todas as épocas, as pessoas casadas geralmente esperavam ter filhos, mas não muitos. Porém, as famílias mais pobres sempre lutavam para alimentar bocas extras que surgiam, e manter os filhos aquecidos era mais um desafio. As mães, por darem à luz repetidas vezes, sentiam-se desgastadas, sendo que “o nascimento dos filhos ainda era percebido, na verdade, como um momento de risco para o bebê, bem como para a mãe, até os séculos XIX e XX” (HEYWOOD, 2004, p. 78). A prática do infanticídio era bastante comum, e o nível de abandono, ainda segundo o autor, era impressionante, em particular durante o final dos séculos XVIII e XIX. Geralmente, esses surtos de abandono coincidiam com os períodos de crise econômica. Talvez, uma das mais importantes contribuições de Heywood (2004) é a de que as crianças não tenham sido vítimas passivas de toda a sua história, mas que possuíam alguma capacidade de resistência e de escolha. Talvez, um dos estudos mais completos e esclarecedores na atualidade sobre a história da infância seja o de Peter Stearns (2006). O que se deve, em parte, por ser mais recente e por ter utilizado estudos anteriores como base – Colin Heywood, por exemplo, foi colaborador de seus estudos. Por isso, parece importante que se faça uma síntese de suas ideias. Stearns, como os demais já citados, concorda que, quando se trata do tema infância, as variações e as potenciais transformações são surpreendentes. Sua análise da infância inicia com o relato de que, em sociedades caçadoras-coletoras, as crianças podiam, por vezes, ajudar no trabalho e que os adultos já reservavam tempo para brincar com elas. O autor segue expondo as consequências do surgimento da agricultura nessas sociedades quanto ao modo como se via a criança por volta de 10 mil anos atrás. Esse sistema econômico inteiramente novo, como explica o autor, trouxe grandes implicações para a criança, redefinindo a utilização delas no trabalho, mais do que no período anterior. É sabido que as crianças geravam algum custo, especialmente antes dos cinco anos quando 28 ainda não podiam trabalhar, mas a extensão do trabalho que desempenhavam explica sua importância: Crianças pequenas podiam ajudar as mães nas atividades domésticas; crianças um pouco mais velhas poderiam tomar conta de animais domesticados e auxiliar em trabalhos mais leves nos campos, inclusive na colheita. Meninos adolescentes poderiam caçar, como auxilio à produção principal, mas o ponto-chave era a atividade de trabalho regular como parte da equipe de trabalho da família” (STEARNS, 2006, p. 28). A agricultura teria também possibilitado abundância de alimentos e automaticamente aumentado a taxa de fecundidade e de natalidade, embora a mortalidade ainda tenha continuado a ser companheira das crianças. A infância se tornou até mesmo elemento de identificação para as próprias crianças, já que “havia mais irmãos com os quais interagir, e povoados agrícolas, com várias centenas de pessoas em vez das 40-60 pessoas dos grupos caçadores-coletores, estavamcheios de companheiros em potencial” (STEARNS, 2006, p. 27). Depois desse período, as civilizações antigas passaram a desenvolver leis que ajudaram a definir a infância e suas obrigações e tornavam as crianças legalmente pertencentes ao grupo no qual nasciam. Essas civilizações, considerando o destacado por Stearns, registraram momentos ternos com as crianças em brincadeiras e durante o crescimento, mas as crianças viviam para trabalhar (ou estudar) e para dar sequência à trajetória da família, e não para propagar sua expressão pessoal ou sua individualidade. Ao refletir sobre o papel desempenhado pelas religiões naquilo que se refere à criança, Stearns (2006) observa que, de um modo geral, elas ajudaram a refletir sobre o infanticídio e, em muitos dos seus textos, enfatizavam a importância das crianças, da responsabilidade dos pais e da obediência a eles por parte dos filhos. Também permitiam a punição física, com algumas discrepâncias, dependendo da religião envolvida, e ressaltavam a necessidade de educação religiosa. Porém, ainda assim, não mudaram as características básicas da infância, mantidas desde as sociedades agrícolas. Mudanças mais amplas na visão sobre a infância, entre elas a ênfase na importância de tratar as crianças com carinho e maior evidência na escolaridade, vieram na modernidade. Stearns (2006) enfatiza que o que teria causado essas e outras mudanças teria sido o desenvolvimento da ciência, em confronto com a religião tradicional e sua clara demonstração de que o conhecimento poderia 29 avançar além do dogma cristão, o que estimulou o repensar da questão. O autor também lembra que, nessa direção, atuou ainda a crescente prosperidade de muitos europeus, o que permitiu prover novos tipos de cuidados para com as crianças, basicamente por volta do século XVIII, ou seja, trata-se da classe burguesa. A infância moderna para Stearns (2006), surgida primeiro no Ocidente, possui três características essenciais. A primeira é a passagem da infância, até então voltada para o trabalho e para a escolaridade. Ou seja, quando o trabalho deixou a residência com a industrialização, as crianças não trabalhavam mais junto aos pais e estavam na escola. Tal mudança contribui para a reconfiguração da infância em todas as classes. A segunda é que a família ficou menor do que nunca, estimulada pela urbanização mais geral que dificultava o cuidado das crianças. E a terceira é a redução da taxa de mortalidade infantil. Diante de todos esses fatores, a relação entre adultos e crianças modificou-se bastante, visto que A escolaridade reduziu o controle paterno sobre as crianças. Tal fato podia ser preocupante, principalmente quando as escolas representavam valores de classe social, éticos e religiosos distintos da família. Por outro lado, os contatos dos adultos com crianças pequenas aumentaram pela simples razão de que, com taxas de natalidade mais baixas e as meninas saindo de casa para ir à escola com mais frequência, havia menos filhos maiores disponíveis para olhar crianças em idade pré-escolar. Passou a haver mais cuidado direto de um dos pais (geralmente a mãe) sobre as crianças pequenas ou tornou-se essencial a ajuda externa paga (STEARNS, 2006, p. 92). Dessa maneira, o imaginário coletivo acerca do que é infância, possivelmente, está ligado a essas questões. Isso porque se acredita que tais concepções são o resultado de um modo diferente de pensá-la. Essas são mudanças que ocorrem primeiramente na mentalidade, posteriormente, geram representações. Perdura no imaginário a ideia de que os pais precisam proteger seus filhos e passar valores. Há também destaque ao amor familiar e à escolaridade. Há ganhos reais às crianças com a implementação dessas questões, que se conceitua como “concepção moderna de infância”, conforme Stearns (2006), mas é preciso considerar que há também o surgimento de alguns problemas e que nem todas as crianças são beneficiadas por essa concepção. Para citar algumas das questões sobre as quais se tem refletido, pode-se falar do enaltecimento da criança consumidora, cada vez mais foi sendo cercada de produtos industrializados destinados a ela, combinados com o apelo midiático. Além disso, há o debate acerca do trabalho infantil, que ainda 30 não foi totalmente erradicado, juntamente à situação de risco na qual se encontram alguns infantes. Alguns estudos surgidos nas últimas décadas têm refletido sobre a infância na atualidade. Por exemplo, Postman (1999) afirma que até a invenção da imprensa e, portanto, antes da grande maioria das sociedades terem se tornado cada vez mais letradas, não havia um conceito muito preciso de idade adulta, muito menos de criança. Segundo ele, na Idade Média, a infância terminava ao sete anos, isso porque, nessa idade, já se dominava a palavra, ou seja, naquele “mundo oral”, elas já podiam dizer e compreender o que os adultos, por sua vez, diziam e compreendiam. Os segredos da vida adulta, antes expostos pela palavra oral, passaram a habitar na palavra escrita. Assim, nas palavras do referido autor, a imprensa e, com isso, a necessidade da alfabetização criaram uma nova definição de idade adulta, com base na competência de leitura, bem como uma nova concepção de infância, baseada na incapacidade de ler. Sendo assim, “uma das diferenças importantes entre a criança e o adulto residia no fato de os adultos estarem em posse de informação que não era considerada adequada às crianças” (POSTMAN, 1999, p. 63). Uma vez excluídas do mundo adulto, tornou-se necessário que se encontrasse outro mundo no qual elas pudessem habitar e este outro mundo veio a se tornar conhecido como infância. Depois de uma fase áurea, a infância, segundo Postman (1999), estaria desaparecendo, porque o surgimento dos meios de comunicação modernos, mais precisamente do sistema de mídia, estaria novamente fornecendo informações e o que chama de segredos do mundo adulto, desfazendo a separação que fora construída/estabelecida entre este e o mundo infantil. Para ele, esse novo ambiente midiático fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação e, desse modo, sem segredos, não pode haver uma coisa chamada infância. Visto que, As crianças são um grupo de pessoas que não sabem certas coisas que os adultos sabem. Na Idade Média não havia crianças porque não havia para os adultos meio de contar com a informação exclusiva. Na era de Gutenberg surgiu esse meio. Na era da televisão ele se dissolveu (POSTMAN, 1999, p. 99). Steinberg e Kincheloe (2004) compartilham também da ideia de que a mudança na realidade econômica, associada ao acesso das crianças a informações sobre o mundo adulto, transformou drasticamente a infância. Os autores destacam que há o que chamam de “cultura infantil”, que é construída por corporações que, 31 por seus produtos são capazes de penetrar, constantemente, na vida privada das crianças e, com isso, desestabilizar-lhes a identidade. Para eles, também não resta dúvida de que a infância está mudando, muitas vezes, como resultado de seu contato com a cultura infantil e outras manifestações mais adultas da cultura média, contribuindo para que noções mais tradicionais da infância como um tempo de inocência e de dependência do adulto foram minadas pelo acesso das crianças à cultura popular durante o século XX. Marín-Díaz (2010) traz como contraponto às ideias dos últimos autores, que acreditam no desaparecimento da infância, o estudo de Rushkoff e Tapscott (1998), que afirmam que o uso dos meios de comunicação e de informação não só mantém as fronteiras entre os mundos adulto e infantil, como ainda acabam por produzir e ampliar as fronteiras entre as gerações. Desse modo, em vez de serem dominados pelas mídias, utilizam-nas em seu próprio benefício, tornando-as instrumentos de força e de diferenciação do adulto pela naturalidade comque o fazem. Deve-se dizer que ideias como esta são menos recorrentes. Todos esses estudos citados, embora sejam alguns conflitantes entre si, são importantes para que se tenha conhecimento sobre a história da infância e sua condição no tempo presente, mas fundamentalmente possibilitam uma multiplicidade de olhares sobre ela, necessária ao pesquisador. Como o intuito desta pesquisa é também debater sobre este tema, é preciso que, primeiramente, se faça uma aproximação com as pesquisas já realizadas e os conceitos já formulados, como se fez. Depois de se ter feito isso, parte-se para a exposição da metodologia de pesquisa que serve de base para este estudo. 2.2 METODOLOGIA DE PESQUISA A metodologia utilizada é a Análise de Conteúdo. Por meio dela se dará o tratamento adequado as fontes de análise, ou seja, os contos de fadas Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel e os filmes de animação Deu a Louca na Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010). Segundo Bardin (2004), o maior interesse da Análise de Conteúdo, para além de suas funções heurísticas e verificativas, reside na proposta de alongar o tempo de latência entre as intuições ou hipóteses de partida e as interpretações definitivas, procurando levar à interpretação mais sã e consciente. Ou seja, pensa-se que as 32 várias fases pelas quais passa a análise permitem que o pesquisador realmente se debruce sob o objeto e mature as suas conclusões. Quanto aos seus objetivos, durante muito tempo, essa metodologia se sustentou numa ênfase quantitativa, mas, ao longo de seu desenvolvimento, adquiriu também aspecto qualitativo. Ou seja, superou seu caráter descritivo, permitindo e valorizando a inferência feita pelo pesquisador. Bardin (2004) esclarece que a análise de conteúdo já não é considerada exclusivamente como descritiva, mas que, antes, sua função é a inferência e que esta pode também se realizar com base nos dados quantitativos. Moraes (1999) afirma que essa metodologia obteve grande produtividade quando orientada pelo paradigma positivista, valorizando a quantificação, mas que, à medida que se integra cada vez mais na exploração qualitativa das mensagens, atinge novas e desafiadoras possibilidades. Pode-se dizer, então, que “oscila entre esses dois polos, ora valorizando o aspecto quantitativo, ora o qualitativo, dependendo da ideologia e dos interesses do pesquisador” (FONSECA JÚNIOR, 2011, p. 285). O interesse, neste estudo, é dar ênfase ao aspecto qualitativo desse método. Não se tem a preocupação acerca da frequência com que as categorias aparecem, mas sobre as formas simbólicas que são construídas nas fontes analisadas e sobre o que estas representam. Para Moraes (1999), os dados das fontes chegam em estado bruto ao pesquisador, necessitando ser processados para facilitar o trabalho de compreensão, interpretação e inferência a que aspira a análise de conteúdo. O autor diz que, de certo modo, essa metodologia é uma interpretação pessoal do pesquisador com relação à percepção que tem desses dados, não sendo possível uma leitura neutra. As fases da análise de conteúdo, propostas por Bardin (2004) organizam-se em três pólos cronológicos: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; e 3) o tratamento dos resultados, quando da inferência e da interpretação destes. A primeira fase é a organização propriamente dita, quando se constrói o plano de análise, sistematizando-se as ideias iniciais. Essa primeira fase tem três missões, ou seja, a escolha dos documentos a serem submetidos à análise, a formulação dos objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentam a interpretação final. Essa organização se dá durante o que se intitula de “leitura flutuante”, em um primeiro encontro com os documentos que se pretende analisar. 33 As regras para a escolha do corpus, estipuladas por Bardin (2004), também foram consideradas. Cabe aqui desvelá-las. A regra da exaustividade diz respeito ao comprometimento da análise total do material selecionado, não deixando nenhum elemento para trás. A regra da pertinência quer que todos os documentos retidos sejam adequados, como fonte de informação, de modo a corresponderem ao objetivo que suscita a análise. A regra da homogeneidade estabelece que todos os documentos selecionados sejam oriundos de um mesmo tema, vale lembrar que as quatro narrativas que se analisa possuem a mesma temática. Fonseca Júnior (2011) afirma que não se podem incluir, simultaneamente, gêneros diferentes em um mesmo corpus, porém, a escolha dos documentos selecionados para a análise se sustenta, uma vez que, primeiramente, não se quer compará-los, depois, todos são considerados produtos culturais e, como tal, serão analisados. Além disso, embora estejam em suportes distintos, o que será devidamente considerado, todos são vistos fundamentalmente como narrativas, isto é, são versões diferentes, advindas dos contos de fadas, que fazem parte da cultura há milênios, advindos da tradição oral. Essa escolha se justifica, uma vez que A análise de conteúdo (seria melhor falar em análises de conteúdo), é um método muito empírico, dependente do tipo de “fala” a que se dedica e do tipo de interpretação a que se pretende como objetivo. Não existe um pronto-a-vestir em análise de conteúdo, mas somente algumas regras de base, por vezes dificilmente transponíveis. A técnica de análise de conteúdo adequada ao domínio e ao objetivo pretendidos, tem de ser reinventada a cada momento, exceto para usos simples e generalizações, (...) (BARDIN, 2004, p. 31). Já na segunda fase, que é a exploração do material, cada categoria será analisada individualmente em cada produto cultural em questão, formando cada uma um bloco. Para que fique mais claro, é preciso dizer que essa fase “não é mais do que a administração sistemática das decisões tomadas” (BARDIN, 2004, p. 101). Nesse momento, faz-se o tratamento do material, administrando a técnica sobre o corpus. A técnica que se julgou mais apropriada para esse estudo é a análise categorial, não somente porque é a mais antiga e, na prática, a mais utilizada ao se fazer a análise de conteúdo, mas porque foi a que melhor correspondeu ao estudo. Sabe-se que “as categorias representam o resultado de um esforço de síntese de uma comunicação, destacando neste processo seus aspectos mais importantes” (MORAES, 1999, p. 19). 34 A análise categorial “funciona por operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos” (BARDIN, 2004, p. 153). Essas unidades podem ser tanto palavras, frases, como temas ou mesmo documentos em sua forma integral. Em primeiro lugar, “texto” pode ser entendido como a fonte de análise, seja ela uma fotografia, um texto verbal, escrito ou um filme. As unidades de análise para a interpretação dos contos serão as frases9 e, para interpretação os filmes, as cenas, que remetem a três categorias: a) a relação da personagem principal da narrativa com seus pais ou com as pessoas mais velhas; b) a maneira como esses produtos culturais mostram como ela se percebe ou é vista como sujeito e c) como age nas situações de aprendizagem, identificando, assim, que representações trazem em si. Conforme proposto, foram selecionadas todas as frases e cenas de acordo com as categorias pré-estabelecidas. Todos os elementos destacados da narrativas foram categorizados, ou seja, organizados na respectiva categoria. Primeiramente, analisaram-se os contos Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel. E, posteriormente, a análise recaiu sobre os filmes Deu a Louca Na Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010). As frases e as cenas foram organizadas em quadros individuais para que se obtivesse uma melhor compreensão delas, pois sua visualização é, assim, facilitada, e as informações básicas também se encontram neles contidos. Juntamente à cada frase, se colocou o “momento da narrativa”da qual foi retirada. Quanto às cenas, utilizou-se a proposta de Rose (2008) para analisar imagens em movimento, o que permitiu que se pudessem categorizar as cenas dos filmes. A autora propõe um conjunto de conceitos e de técnicas que servem de orientação para a análise de representações sociais no mundo audiovisual. Propõe que se exponha a dimensão visual e verbal de cada cena, tornando-a uma unidade passível de análise. As categorias de análise devem estar em concordância com algumas regras, descritas por Bardin (2004) e Moraes (1999). Elas devem ser homogêneas, fundamentadas em um único princípio ou critério de classificação; exaustivas ao se esgotar a totalidade do texto; exclusivas, ou seja, um mesmo elemento do texto não pode ser classificado em duas categorias diferentes; objetivas, não deve restar 9 Quanto ao estudo das frases, não se trata de um estudo linguístico. A análise de conteúdo se aproxima da Linguística, como explica Bardin (2004), pois ambas têm o mesmo objeto, ou seja, a linguagem. Porém, segundo a autora, a Linguística estuda a língua para entender o seu funcionamento; já a análise de conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça. A primeira é o estudo da língua e a segunda é uma busca de outras realidades por meio das mensagens. 35 nenhuma dúvida quanto à categoria a que cada unidade do texto deve integrar; adequadas ou pertinentes, sendo adaptadas ao conteúdo e ao objetivo. A terceira fase é o momento no qual serão feitas inferências a partir dos dados obtidos. Fonseca Junior (2011) argumenta que, na análise de conteúdo, a inferência é considerada uma operação lógica, destinada a extrair conhecimentos sobre os aspectos latentes da mensagem analisada e que também se trata do momento mais fértil, estando centrado nos aspectos implícitos da mensagem analisada. Sabe-se que “uma boa análise de conteúdo não deve limitar-se à descrição. É importante que procure ir além, atingir compreensão mais aprofundada do conteúdo das mensagens mediante inferência e interpretação” (MORAES, 1999, p. 24). Dessa maneira, não interessa apenas a obtenção dos dados, ou seja, a categorização, mas se considera que o mais importante é a reflexão que se faz por meio deles. Quanto a esse momento interpretativo, Moraes (1999) salienta que pode haver duas vertentes. Ou seja, uma que se relaciona a estudos com fundamentação teórica bastante clara, quando a interpretação é feita mediante exploração dos significados expressos nas categorias de análise numa conexão com esta fundamentação; e outra na qual a teoria é construída com base nos dados, emergindo das informações e das categorias, sendo a própria teoria uma interpretação. Neste estudo, optou-se pela primeira vertente, cuja interpretação se dá com a fundamentação teórica pré-estabelecida. Isso porque o objetivo deste trabalho é analisar de que maneira cada um dos produtos culturais em questão representou a concepção de infância. Trata-se de ir do nível manifesto do conteúdo analisado ao latente, ou seja, do que está “dito” ao que está implícito. É nessa última fase que cada um dos elementos será debatido e examinado a partir do referencial teórico. A análise de conteúdo exige que se traga para exame o contexto do qual os documentos são originários com o objetivo de aprofundar o entendimento sobre eles. Quanto a esse aspecto, há uma diferença importante entre os documentos da análise, a qual será devidamente considerada a seguir. 36 2.3 LITERATURA, HISTÓRIA E INFÂNCIA Os contos Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, fixados pelos Irmãos Grimm10, constituem-se como fonte deste estudo e, portanto, faz-se necessário discutir as implicações teóricas que isso representa. Baccega (2010) fala de uma inter-relação entre o discurso da História e o da Literatura. Embora primeiramente deixe clara uma distinção entre essas áreas, o que também é necessário que se faça, dizendo que a primeira se prende à ciência, à consciência social, e a segunda, à ficção, à consciência estética, diz, sobretudo, que ambas buscam no cotidiano a sua matéria- prima e se utilizam da palavra como base de seus discursos. Assim, esses discursos se interpenetram, pois neles há uma gama extremamente variada de saberes que circulam em outras formações discursivas e que podem até ser por elas incorporados. A relação entre a História e a Literatura é bastante estreita, como afirma Ricoeur (2010), pois quando se analisa a leitura como um ato fenomenológico, pode- se observar um entrecruzamento e certa convergência entre a narrativa histórica e a narrativa de ficção. Nesse sentido, se, por um lado, a História se serve de alguma maneira da ficção para refigurar o tempo, por outro, a ficção se serve da História com o mesmo intuito, uma vez que narrar qualquer coisa é narrar como se isso tivesse se passado. Se a História reinscreve o tempo da narrativa no tempo do universo, imita em sua escrita os tipos de composição da intriga que a tradição literária legou. Sendo assim, além de estar presente em sua composição, também está em sua configuração, uma vez que aprendemos a ver como trágico ou como cômico determinado encaminhamento de eventos. Ainda sobre essa questão pode- se dizer que Os eventos só adquirem sentido e só são compreensíveis no interior de uma trama, de um enredo, de uma intriga. Deste ponto de vista, a historiografia não se diferenciaria do romance, pois ambos são narrativas onde os eventos só fazem sentido no interior de um enredo. [...] Enfim, a historiografia e o romance são modos de narrar eventos humanos com o objetivo de extrair seus significados (DECCA, 1997, p. 200). 10 Os contos analisados aqui estão na obra “Contos de Grimm” (Anexos A e B). Nessa coletânea, a tradução da obra dos Irmãos Grimm é de David Jardim Júnior. Essas narrativas foram comparadas, por exemplo, com as trazidas por Tatar (2004), estudiosa dos contos de fadas, não apresentando mudanças significativas. 37 Nas palavras de Ricoeur (2010), por vezes, se lê um livro de História como sendo um romance, ou o contrário, um romance, por vezes, consegue construir com até mais força a representação de um determinado fenômeno histórico. Dentre as muitas aproximações possíveis, cada vez mais a História vem se utilizando dos textos literários como fonte para estudar o passado, fato que não termina com a autonomia da Literatura como disciplina. Portanto, embora até aqui tenha se debatido a relação entre História e Literatura em condições de igualdade, a partir de agora, passa-se a considerar a sua produção como documento histórico. Como explica Ferreira (2009), a pesquisa histórica tem contribuído para o entendimento dos diversos papéis que a Literatura desempenhou na existência dos seres humanos e também para a compreensão dos modos como foi concebida, particularizada, transmitida, lida, compartilhada ou apropriada, pelos diferentes grupos sociais de distintas épocas e sociedades. Pode-se dizer, então, que a própria Literatura também é beneficiada quando tomada como fonte de estudo por outra disciplina, neste caso, pela História. Considerar um texto literário como fonte historiográfica nem sempre foi possível, pois este não era considerado um documento oficial, capaz de conter a verdade histórica. Para isso, foi preciso compreender que “a história também comportava dimensões subjetivas, imaginárias, oníricas e ficcionais, tão importantes quanto os acontecimentos políticos sociais e econômicos” (FERREIRA, 2009, p. 84). Ainda segundo Ferreira, nas últimas décadas, os textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados ao entendimento do universo cultural,
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