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Concepções de Infância em Narrativas

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UNIVERSIDADE FEEVALE 
MESTRADO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CLÁUDIA GISELE MASIERO 
 
 
 
 
 
 
 
 
“ERA UMA VEZ…” – UM ESTUDO SOBRE CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM 
NARRATIVAS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NOVO HAMBURGO 
2014 
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UNIVERSIDADE FEEVALE 
MESTRADO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS 
 
 
 
 
 
CLÁUDIA GISELE MASIERO 
 
 
 
 
 
 
“ERA UMA VEZ...” – UM ESTUDO SOBRE CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM 
NARRATIVAS 
 
 
 
Dissertação de Mestrado apresentada 
como requisito parcial à obtenção do título 
de Mestre em Processos e Manifestações 
Culturais pela Universidade Feevale. 
 
 
 
 
Orientadora: Profa. Dra. Cristina Ennes da Silva 
 
 
 
 
Novo Hamburgo 
2014 
3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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UNIVERSIDADE FEEVALE 
MESTRADO EM PROCESSOS E MANIFESTAÇÕES CULTURAIS 
 
 
 
CLÁUDIA GISELE MASIERO 
 
 
 
“ERA UMA VEZ...” – UM ESTUDO SOBRE CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM 
NARRATIVAS 
 
 
 
 Dissertação de Mestrado aprovada pela banca examinadora em 27 de 
fevereiro de 2014, conferindo à autora o título de Mestre em Processos e 
Manifestações Culturais. 
 
Componentes da Banca Examinadora 
 
 
______________________________________________________ 
Profa. Dra. Cristina Ennes da Silva 
Universidade Feevale 
 
 
 
______________________________________________________ 
Profa. Dra. Saraí Patrícia Schmidt 
Universidade Feevale 
 
 
 
______________________________________________________ 
Profa. Dra. Flávia Brocchetto Ramos 
Universidade de Caxias do Sul (UCS) 
 
 
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Dedico este estudo àquelas crianças 
que foram trancadas na torre do 
esquecimento e da negligência, 
devoradas pelo lobo da violência ou do 
trabalho, sem poder contar com nenhum 
caçador ou fada para salvá-las. 
Envolvidas, elas, em contextos tão 
amargos que talvez nem consigam sonhar 
com as luzes brilhantes de dias melhores, 
mas a quem eu desejo que estes dias 
cheguem, como num final feliz das belas 
histórias. 
6 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Quero agradecer à Capes e à Universidade Feevale pela bolsa de pesquisa 
que me foi concedida, por meio da qual pude me dedicar efetivamente ao mestrado. 
 Aos professores do Curso de Mestrado em Processos e Manifestações 
Culturais, pela dedicação e incentivo à busca pelo conhecimento. 
 Aos colegas de curso pelas aprendizagens e experiências compartilhadas. 
Certamente nos tornamos grandes amigos e espero que ainda tenhamos muitos 
momentos juntos. Em especial, quero agradecer à amiga e colega Janice Roberta 
Schröder por ser minha companheira em todas as horas. 
 À Profa. Dra. Saraí Patrícia Schmidt e à Profa. Dra. Flávia Brocchetto Ramos, 
que aceitaram o convite para fazer parte da banca. Obrigada pela atenção e 
contribuição a este estudo. São grandes pesquisadoras e pessoas muito especiais. 
Em especial, quero agradecer à minha orientadora, Profa. Dra. Cristina Ennes 
da Silva, que é incrível, motivada, sábia e justa. Obrigada pela dedicação em me 
orientar nesta pesquisa, pelo comprometimento, por todo carinho e aconchego que 
encontrei nas suas palavras e no seu abraço. Tenho uma profunda admiração pela 
pessoa e profissional que é. Serei eternamente sua orientanda porque os 
ensinamentos e exemplos recebidos me acompanharão para a vida inteira. 
À Profa. Dra. Paula Regina Puhl e à Profa. Dra. Sissa Jacoby pela contribuição 
à minha jornada acadêmica. 
À Luciane Pezzi de Oliveira, Liziane Engel e Cassiano Ricardo Haag, que me 
fizeram acreditar que o objetivo de me tornar professora mestre poderia ser 
alcançado. 
À minha família, que sempre me apoia e se orgulha de mim por eu ser 
professora! 
 
 
 
 
 
 
 
 
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A infância como algo outro não é o objeto (ou o objetivo) do saber, mas que 
 escapa a qualquer objetivação e o que desvia de todo objetivo; não é o ponto de 
ancoragem do poder, mas o que marca sua linha de despenhadeiro, seu limite 
exterior, sua absoluta impotência; não é o que está presente em nossas instituições, 
mas o que permanece ausente e inabarcável, brilhando sempre fora de seus limites. 
Portanto, a alteridade da infância não significa que as crianças ainda resistam a ser 
plenamente apropriadas por nossos saberes, por nossas práticas e por nossas 
instituições; nem sequer significa que esta apropriação eventualmente nunca poderá 
realizar-se completamente. A alteridade da infância é algo muito mais radical: nada 
mais e nada menos do que sua absoluta heterogeneidade no que diz respeito a nós 
e a nosso mundo, sua absoluta diferença. 
 
Jorge Larrosa, em O enigma da infância 
 
8 
 
RESUMO 
 
Este estudo tem como tema a concepção de infância presente nos contos de fadas 
Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, escritos pelos Irmãos Grimm, no início do 
século XIX, bem como nos filmes de animação Deu a Louca na Chapeuzinho (2005) 
e Enrolados (2010), que se inspiram nesses contos. O objetivo é identificar e 
analisar a concepção de infância representada nesses produtos culturais de tempos 
e sociedades distintas, buscando compreender semelhanças e diferenças que 
apresentam, veiculadas, é claro, aos seus respectivos contextos de produção. 
Dessa forma, reflete-se sobre a infância entendendo-a como uma construção social 
que pode apresentar transformações segundo tempo e lugar, até mesmo em uma 
mesma sociedade. Assim, para compreender a infância e sua história se tem por 
base os estudos de Ariès (1981), Badinter (1985), Postman (1999), Heywood (2004), 
Steinberg e Kincheloe (2004) e Stearns (2006). A metodologia utilizada para tanto é 
a Análise de Conteúdo, segundo Bardin (2004), Moraes (1999) e Fonseca Júnior 
(2011). O tratamento dado a cada uma das fontes centrou-se na perspectiva de 
analisá-los sob três aspectos: a) como a protagonista se relaciona com seus pais ou 
pessoas mais velhas; b) a maneira como esses produtos culturais representam a 
sua subjetividade; e c) como age nas situações de conflito ou de aprendizagem. 
Neste sentido, também serão analisadas questões relativas ao imaginário, 
principalmente conforme Backzo (1985) e a representação social, segundo Chartier 
(2002). 
 
Palavras-chave: Infância. Cultura. Contos de Fadas. Cinema. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
9 
 
ABSTRACT 
 
 
This study has as its theme the concept of childhood in the fairy tales Little Red 
Riding Hood and Rapunzel, compiled by the Grimm Brothers in the early nineteenth 
century and in the animation movies Hoodwinked! (2005) and Tangled (2010), which 
were inspired by the tales. The goal is to identify and analyze the concept of 
childhood represented in these cultural products from different times and societies, 
seeking to understand similarities and differences they present, linked to their 
respective contexts of production. Thus, we are able to reflect about childhood, 
understanding it as a social construction that can show transformations according 
time and place, even within the same society. As it follows, to understand childhood 
and its history we use as a base the studies of Aries (1981), Badinter (1985), 
Postman (1999), Heywood (2004), Steinberg e Kincheloe (2004) and Stearns (2006). 
The methodology for this is Content Analysis according to Bardin (2004), Moraes 
(1999) and Fonseca Jr. (2011). The treatment given to each of the sources is 
focused on analyzing them regarding three aspects: a) how the protagonists relate to 
their parents or older people; b) how these cultural products represent their 
subjectivity; and c) how they act in conflict or learning situations. In this sense, the 
issues about the “imaginary” are going to be examined as well, mostly according to 
Backzo (1985) and social representation, according to Chartier (2002). 
 
Keywords: Childhood. Culture.Fairy tales. Cinema. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
10 
 
LISTA DE QUADROS 
 
Quadro 1 – Chapeuzinho Vermelho e suas relações ................................................ 56 
Quadro 2 – Rapunzel e suas relações ...................................................................... 58 
Quadro 3 – O mistério do roubo das receitas ............................................................ 59 
Quadro 4 – O encontro com o coelho Boingo ........................................................... 61 
Quadro 5 – A decepção de Chapeuzinho com a vovó .............................................. 62 
Quadro 6 – A captura do bandido dos doces ............................................................ 64 
Quadro 7 – Diálogo entre Senhora Gothel e Rapunzel ............................................. 65 
Quadro 8 – O reencontro de Rapunzel com a Senhora Gothel ................................. 66 
Quadro 9 – Rapunzel enfrenta a Senhora Gothel ..................................................... 67 
Quadro 10 – De que maneira Chapeuzinho se vê ou é vista .................................... 71 
Quadro 11 – Como Rapunzel se vê ou é vista .......................................................... 72 
Quadro 12 – A canção de Chapeuzinho Vermelho ................................................... 73 
Quadro 13 – Chapeuzinho telefona para a vovó ....................................................... 74 
Quadro 14 – A reflexão de Chapeuzinho Vermelho .................................................. 76 
Quadro 15 – A chegada da princesa Rapunzel ......................................................... 77 
Quadro 16 – A rotina de Rapunzel ............................................................................ 78 
Quadro 17 – “Ainda uma mudinha e muito nova!” ..................................................... 80 
Quadro 18 – Rapunzel assume o seu lugar de princesa ........................................... 81 
Quadro 19 – Chapeuzinho Vermelho em situações de conflito e aprendizagem ...... 84 
Quadro 20 – Rapunzel nas situações de conflito e aprendizagem ............................ 86 
Quadro 21 – A autodefesa de Chapeuzinho diante do Inspetor Pirueta ................... 87 
Quadro 22 – O encontro de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo ............................. 88 
Quadro 23 – A versão de Chapeuzinho sobre a história ........................................... 89 
Quadro 24 – A campeã de Karatê ............................................................................. 91 
Quadro 25 – A fragilidade da menina Chapeuzinho .................................................. 92 
Quadro 26 – A autodefesa de Rapunzel ................................................................... 94 
Quadro 27 – Rapunzel em contradição ..................................................................... 96 
Quadro 28 – Revelações ........................................................................................... 97 
Quadro 29 – Rapunzel e seu sonho .......................................................................... 98 
Quadro 30 – A virada na história de Rapunzel .......................................................... 99 
 
 
11 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12 
2 A INFÂNCIA COMO TEMA DE ESTUDO ........................................................ 19 
2.1 INFÂNCIA: DA COMPLEXIDADE DO TEMA AOS ESTUDOS HISTÓRICOS .. 22 
2.2 METODOLOGIA DE PESQUISA ...................................................................... 31 
2.3 LITERATURA, HISTÓRIA E INFÂNCIA ............................................................ 36 
2.4 CINEMA, HISTÓRIA E INFÂNCIA .................................................................... 45 
3 OS PRODUTOS CULTURAIS E AS REPRESENTAÇÕES DA INFÂNCIA .... 50 
3.1 O RELACIONAMENTO COM SEUS PAIS OU COM PESSOAS MAIS VELHAS
 .................................................................................................................................. 55 
3.2 COMO SE VÊ OU É VISTA ENQUANTO SUJEITO ......................................... 71 
3.3 SITUAÇÕES DE CONFLITO E APRENDIZAGEM ............................................ 83 
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 104 
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 112 
ANEXO A – Chapeuzinho Vermelho .................................................................... 117 
ANEXO B – Rapunzel ............................................................................................ 121 
ANEXO C – Ficha técnica do filme Deu a Louca na Chapeuzinho .................... 125 
ANEXO D – Ficha técnica do filme Enrolados .................................................... 126 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
12 
 
1 INTRODUÇÃO 
Era uma vez, em um tempo não muito distante, um mundo onde não havia o 
sentimento da particularidade infantil. Humanos, grandes ou pequenos, partilhavam 
das mesmas tarefas, formas de lazer e segredos. Tão logo as crianças adquiriam 
alguma independência, já participavam igualmente das atividades dos mais velhos. 
Foi então que algo diferente aconteceu, a criança passou a ser vista de uma 
forma particular e a infância surgiu. Não foi igual em todo lugar nem ao mesmo 
tempo. Foi um longo processo! Um mundo novo foi imaginado para as crianças, no 
qual estariam protegidas da violência, da promiscuidade e do sofrimento. A infância 
tinha que ser um tempo de inocência e felicidade. A família cada vez mais voltada 
para a sua privacidade ajudou na construção dessa “infância” e a criança passou a 
ser o centro das suas atenções. A escola se voltou para abrigar esses seres 
especiais e à educá-los, fornecendo gradativamente o conhecimento para que se 
tornassem, aos poucos preparados para a vida adulta em sociedade. Assim, o 
conceito de infância como se entende atualmente é bastante recente, é uma 
construção da modernidade. Construção essa que não se consolidou para todas as 
crianças e sofreu múltiplas influências, que contribuíram para que continuasse a se 
transformar. 
Na continuação desta história, a infância vem se constituindo como tema 
emergente de pesquisa. Segundo Castro (2007), pesquisadores de todo o mundo e 
de diversas áreas têm se dedicado cada vez mais a ela. No século XIX é que 
eclodem os estudos sobre esse tema, como afirma Heywood (2004). Trata-se de 
uma área relativamente recente e, por isso, é ainda também um campo vasto a ser 
explorado. Não é, contudo, simples de se estudá-lo, exigindo sensibilidade e 
atenção por parte do pesquisador. Mesmo a aparentemente simples tarefa de definir 
o que, de fato, é infância pode ser uma questão profundamente complexa. 
Cohn (2009) explica que essa tarefa pode até mesmo ser uma armadilha pois, 
justifica a autora, todos um dia foram crianças e desejaram ou não tê-las. Além 
disso, a literatura traz textos de autores que falam sobre a sua infância com certa 
nostalgia, o que faz pensar que já se sabe tudo sobre essa fase da vida. A autora 
alerta também para o fato de que, caso se recolham as informações sobre o que é a 
infância, diferentes ideias irão se apresentar. Todas elas remeteriam a uma imagem 
negativa da criança, pois quando se pensa no assunto, na verdade, está se fazendo 
13 
 
um contraponto para falar de outras coisas, por exemplo, sobre a vida em sociedade 
ou sobre as responsabilidades da vida adulta. A ideia central dessa autora, ao 
discutir a antropologia da infância, é a de que é necessário se desvencilhar das 
imagens preconcebidas que se apresentam, para abordar esse universo procurando 
entender o que há nele e não o que se quer que ele ofereça. Por isso, aposta em 
estudos capazes de entender a criança por seu próprioponto de vista, considerando 
o que ela própria pensa sobre si mesmo, ou seja, busca abordá-la em suas práticas, 
considerando-a como sujeito social. 
Larrosa (2010) problematiza o entendimento que se tem da infância fazendo 
pensar que não é o que já sabemos, tampouco o que ainda não sabemos, mas 
justamente “algo outro”. Assim, é o que escapa a qualquer objetivação que se venha 
a fazer, é pensar sobre a inquietude, o questionamento e o vazio. Não é o que está 
demarcado pelas instituições, mas é o que permanece ausente. O autor argumenta 
que se deve considerar a alteridade da infância e como ela é capaz de fazer com 
que se repense a sua própria definição, ou seja, o que podemos e o que sabemos 
sobre ela e também acerca dos lugares que construímos para ela. A criança é 
portadora de uma verdade, a qual se deve escutar, pois a alteridade da infância não 
é regida nem por nosso saber nem por nosso poder, é o que está além. Desta 
forma, para o autor, a infância é um enigma. 
Na área da sociologia que se dedica ao mesmo tema, há também uma 
preocupação com as crianças como atores sociais. Delgado e Müller (2005) 
consideram que essa visão deve observar não somente as internalizações e as 
adaptações do processo de socialização, mas também os processos de apropriação, 
reinvenção e reprodução das crianças, considerando a sua importância no coletivo, 
ou seja, como negociam, compartilham e criam culturas com os adultos e com os 
seus pares, pois, “todas as vezes que as crianças interagem e se comunicam com a 
natureza, a sociedade e com outras pessoas, tanto adultos quanto pares, elas estão 
contribuindo para a formação quer da infância quer da sociedade” (QVORTRUP, 
2011, p. 206). 
A proposta de dar voz à criança, entendendo-a como sujeito social, é, de fato, 
interessante tanto aos fazeres antropológico e sociológico, como se viu, como 
também o é para as demais áreas. Conforme Nascimento et al. (2008) ver e ouvir a 
criança é fundamental em qualquer estudo que realmente deseja se dedicar a esse 
tema. 
14 
 
Em áreas como a História, dar voz às crianças nem sempre está acessível, já 
que uma aproximação física para dialogar com elas somente é possível nas 
abordagens da história do presente. Tampouco é fácil encontrar entre os vestígios 
ou documentos históricos algo que tenha sido produzido originalmente pela criança, 
pois, como explica Heywood (2004), as próprias crianças geralmente não deixam 
registros, o que dificulta o estudo da história da infância por meio do olhar das 
próprias crianças. Stearns (2006) também fala que é difícil elaborar histórias bem 
feitas sobre esse tema, porque, além dos poucos registros diretos que existem o que 
se tem de vestígios é trazido à tona pelos adultos. Ou seja, o que geralmente 
permanece acerca das crianças de um tempo passado são artigos que o mundo 
adulto produziu e a elas destinou, como roupas, brinquedos e livros. Além disso, o 
conceito de infância é definido por adultos e por instituições adultas. Em outras 
palavras, é por intermédio dos adultos que essa definição surge. Qvortrup (2011) 
concorda com a abordagem que caracteriza a criança como grupo minoritário, 
definido em relação ao grupo dominante, que possui status social mais alto e 
maiores privilégios, isto é, neste caso, os adultos. 
Portanto, ao fazer historiográfico cabe reconhecer tal condição de talvez não 
se ter fontes advindas da própria criança e, com isso, a opção que se apresenta é 
analisar a construção do imaginário e das representações correntes sobre a infância 
e não tanto a produção da própria criança em si. A questão é que para a escrita da 
história os documentos produzidos pelos adultos constituem a principal (ou quase 
exclusiva) fonte para pesquisa. Como aponta Gouvea (2009), tanto nos textos 
voltados para a construção de um imaginário sobre a infância, quanto nos 
documentos para normatização das práticas de cuidado da criança, o adulto projeta 
uma determinada representação sobre a identidade infantil, sua particularidade, que 
definiria as estratégias de formação e de intervenção. 
Quando se busca estudar a infância por um viés histórico, então, o caminho 
que quase sempre se percorre é analisar o que se pensava sobre o que vinha a ser 
essa fase da vida e consequentemente como se agia com as crianças, ou seja, 
investigam-se as concepções de infância surgidas em diferentes tempos e espaços 
geográficos. Conforme explica Heywood (2004), a criança é um constructo social 
que se transforma com o passar do tempo e, não menos importante, varia entre 
grupos sociais e étnicos dentro de qualquer sociedade. Para o autor, a imaturidade 
da criança é um fato biológico, mas a forma como ela é compreendida e o modo 
15 
 
como se atribuem significados a ela são fatos culturais. Dessa forma, não se pode 
realizar uma pesquisa sobre a infância que não considere o contexto histórico, social 
e cultural de cada época. Qualquer tentativa de generalização não encontrará 
suporte, como esclarece Cohn (2009), dizendo que a infância é um modo particular, 
e não universal, de pensar a criança. A infância reflete a sociedade em que se insere 
e também ajuda a construí-la, como propõe Stearns (2006). 
Por essas razões e partindo dessas indagações, este estudo busca identificar 
e analisar a concepção de infância representada em dois contos de fadas dos 
Irmãos Grimm, Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, publicados no início do século 
XIX. Posteriormente, essa identificação e análise será realizada sobre dois filmes de 
animação que são releituras dos contos referidos, respectivamente, Deu a Louca na 
Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010), lançados no início do século XXI. Com a 
intenção de contribuir para a continuação e o aprofundamento do estudo da história 
da infância, entende-se que estes podem ser indicativos do modo como se pensou a 
infância em cada contexto do qual são procedentes. 
Não se tem a pretensão de analisar os contos ou os filmes em si, mas o modo 
como representam implícita ou explicitamente as concepções de infância. Interessa, 
num primeiro momento, identificar elementos comuns, que se apresentam de modo 
semelhante ou diverso, nas narrativas. As obras referidas são, portanto, as fontes de 
análise1. Desde já se reconhece que as conclusões obtidas por meio desta análise 
não representam a única ideia que se tinha da infância em cada período estudado; 
são um exemplo dentre uma multiplicidade de modos de ver a criança. 
Ao se considerar, como já dito, que a infância é uma construção social, pode-
se dizer também, que a forma como cada sociedade a vê é fundamentalmente uma 
questão cultural e não há outra forma de entendê-la senão por esse caminho. Parte-
se do entendimento de que a cultura deve ser estudada em sua materialidade, ou 
seja, por meio de suas manifestações e de seus produtos. Com isso justifica-se o 
fato de se terem escolhido produtos culturais para se analisarem concepções de 
infância, como se pretende aqui. 
A opção por se estudar a história da infância se deu pela empatia com o tema 
e pela necessidade de discutir, enquanto sociedade, a construção de suas 
 
1
 Segundo Pinsky (2011), fontes históricas são o material do qual se apropriam os historiadores por 
meio de abordagens específicas, métodos e técnicas variadas, para tecerem seus discursos 
históricos. É o olhar do historiador que transforma o documento em fonte. 
16 
 
concepções ao longo do tempo, inclusive a concepção atualmente vigente. Dessa 
forma, observando os produtos com os quais as crianças têm contato atualmente, 
ganham destaque os filmes de animação e entre estas obras, a recorrente temática 
dos contos de fadas. Ao se estudar sobre os contos de fadas, então, percebe-se a 
importância do trabalho dos Irmãos Grimm, no século XIX, uma vez que suas 
narrativas ajudaram a construir o que se entende hoje por LiteraturaInfantil. 
A seleção dos produtos culturais que serão analisados se deu, também, a 
partir da perspectiva da existência dessas narrativas em dois espaços temporais 
diferentes, ou seja, nos séculos XIX e XXI. Isso permite que se possa refletir sobre 
as permanências e as alterações na concepção de infância, contudo, sem a 
pretensão de se fazer um estudo comparado. Parte-se do fato de que cada uma 
dessas épocas pensou a infância de uma forma particular, ou seja, houve 
transformações. No entanto, é intrigante a perspectiva de que em momentos tão 
distintos, se utilize a mesma temática para a sua elaboração, ao mesmo tempo em 
que chamam a atenção as diferentes formas de se contar a mesma história. 
Também se observou que, especialmente na última década, uma grande quantidade 
de produtos, principalmente de filmes, têm feito releituras dos contos de fadas, 
dedicadas ou não às crianças2, constituindo-se num fenômeno a ser estudado. 
Tanto os contos quanto os filmes foram produzidos para grande circulação e talvez 
se possa dizer que seu alcance é considerável, uma vez que os contos ainda 
perduram e os filmes de animação estão sendo produzidos em larga escala pela 
indústria cinematográfica. 
Acredita-se ser importante analisar produtos culturais que provêm de 
contextos distintos, porque “a experiência humana é sempre histórica, no sentido de 
que uma nova experiência é sempre assimilada aos resíduos do que passou, e no 
sentido que, ao procurar compreender o que é novo, nós sempre construímos sobre 
o que já está presente” (THOMPSON, 2002, p. 361). Entende-se ainda que esse 
tema é bastante relevante, uma vez que a concepção que se tem do que é infância 
norteia não apenas as ações dos adultos para com os pequenos, mas também a 
 
2
 Como é o caso de filmes como “Os Irmãos Grimm” (2005), “Deu a louca na Cinderela” (2006), “Deu 
a louca na Branca de Neve” (2009), “A garota da capa vermelha” (2011), “Branca de Neve e o 
Caçador” (2012), “Espelho, Espelho Meu” (2012), “João e Maria: Caçadores de Bruxas” (2013), a 
série “Once Upon a time” (2011) e a série “Grimm” (2011), entre outros produtos culturais, incluindo 
aqueles que, neste estudo, são tomados como fonte. 
17 
 
forma como a própria criança se vê, bem como norteia o que é produzido econômica 
e culturalmente para ela, podendo inclusive influenciar os princípios educacionais. 
Dessa maneira, no Capítulo 2, serão apresentados alguns dos importantes 
estudos já realizados sobre a história da infância como os escritos por Ariès (1981), 
Badinter (1985), Heywood (2004), Stearns (2006), Steinberg e Kicheloe (2004) e 
Postman (1999). Serão também discutidos os conceitos que farão parte da análise, 
como o de representação social, segundo Chartier (2002) e o conceito de 
imaginário, segundo Backzo (1985). A proposta deste estudo será retomada em 
conjunto com a metodologia utilizada, que se trata da análise de conteúdo. Essa 
metodologia permite tanto análise de textos verbais quanto de imagens em 
movimento, e sua proposta tem por base os seguintes autores: Bardin (2004), 
Moraes (1999) e Fonseca Júnior (2011). Posteriormente, será discutida a relação 
entre esse tema de pesquisa, a Literatura e a História, por meio dos contos como 
elementos a serem analisados. Da mesma maneira, é objetivo debater a relação 
entre infância, cinema e história, devido à presença dos filmes de animação. 
Já no Capítulo 3 será realizada a análise das fontes. Será feita, 
primeiramente, uma apresentação mais aprofundada dos documentos a serem 
analisados e do seu contexto de produção. Posteriormente, serão analisadas três 
categorias principais, em cada uma das quatro narrativas que são tomadas como 
fonte. Essas categorias constituirão a temática dos respectivos subcapítulos: a) 
como a personagem principal se relaciona com seus pais ou pessoas mais velhas; 
b) a maneira como esses produtos culturais mostram como a protagonista se 
percebe ou é vista como sujeito; e c) como age nas situações de conflito ou de 
aprendizagem. Nesse momento, também serão discutidos os dados obtidos, 
analisando as representações da concepção de infância que trazem em si, com 
base no referencial teórico. 
É preciso dizer que estudos como este somente são possíveis, na atualidade, 
porque a História, como disciplina, foi marcada por mudanças estruturais profundas 
durante o século XX, quando o próprio objetivo de atingir a “verdade” foi posto à 
prova como uma reação ao paradigma tradicional3. Chartier (2002) explica que essa 
área do conhecimento expandiu como nunca suas fontes de estudo, permeando 
 
3
 Essa nova fase foi inaugurada na França, na década de 1930, associada à “École des Analles”, 
agrupada em torno da revista “Analle: économies, societés, civilisations”, como explica Burke (1992). 
Há um sentimento de incerteza frequentemente anunciado, de dúvidas e de interrogações, como diz 
Chartier (2002). 
18 
 
outras áreas, estabelecendo para si uma legitimação científica renovada por meio 
dos estudos culturais. Dentre os novos paradigmas pretendidos pela disciplina, está 
a busca por novos objetos de estudo e por novos métodos para analisá-los, 
permitindo pensar sobre o indivíduo e o mundo social de uma maneira inédita. 
Dentre os temas recentes, certamente está a “infância”; entre as novas fontes, 
documentos vindos da Literatura e da Comunicação, por exemplo, como se pretende 
aqui. Para atingir o objetivo proposto para este estudo, então, é necessário que se 
busque um diálogo entre diferentes áreas do conhecimento como a História, a 
Comunicação e a Literatura, procurando um olhar interdisciplinar4. 
Em síntese, esta é uma pesquisa básica, que procura gerar novos 
conhecimentos, mas sem a intenção de aplicação dos mesmos. Considerando os 
seus objetivos é uma pesquisa exploratória, que, segundo Prodanov e Freitas 
(2009), tem finalidade de proporcionar mais informações sobre o assunto a ser 
investigado, bem como defini-lo e delimitá-lo. Quanto aos procedimentos, é uma 
pesquisa bibliográfica e documental. Além disso, é fundamentalmente um estudo 
qualitativo, ainda que apresente alguns dados quantitativos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
4
 Paviani (2008) explica que o conceito de interdisciplinaridade pode ser entendido como uma 
maneira de integração entre as disciplinas, cuja função é a de atender à necessidade de resolver 
problemas pedagógicos e científicos novos e complexos. 
19 
 
2 A INFÂNCIA COMO TEMA DE ESTUDO 
A fim de contribuir para o debate acerca da história da infância, busca-se, 
como já mencionado, analisar a concepção de infância representada em alguns 
produtos culturais determinados. Mais especificamente, a análise se dará a partir de 
dois contos de fadas compilados pelos Irmãos Grimm, no início do século XIX, 
Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, e de dois filmes de animação, Deu a Louca na 
Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010), lançados no início do século XXI, os quais 
se inspiram, respectivamente, nos referidos contos. Dessa forma, é preciso dizer que 
a infância é a categoria de análise que permeia todo este estudo. 
Atendendo às palavras de Gouvea (2009), não apenas irá se considerar o 
levantamento e a categorização das fontes, pois essa não é a principal questão para 
o historiador da infância. Considera-se, então, que é fundamental ter em vista que os 
documentos só são passíveis de análise a partir de perguntas postas pelo 
investigador. Assim, o principal objetivo deste estudo é perceber e analisar as 
representações da concepção de infância presente tanto nos contos quanto nos 
filmes. Desse modo, visa-se refletir sobre se o formato e o conteúdo das narrativas 
representa o que cada sociedade pensava a respeito da criança, bem como sobre a 
maneira como o fazem. Valeavaliar, ainda, se os produtos culturais seguem a 
mesma tendência, ou se a concepção de infância sofreu modificações, e isso neles 
se reflete, considerando que estão distantes cronologicamente5. Sempre lembrando 
que o dito e o que não se disse podem ter a mesma importância, pois “o silêncio é 
significante” (ORLANDI, 2007, p.23). 
Neste trabalho, considera-se cultura como um sistema de concepções 
herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se 
comunicam, bem como perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas 
atividades em relação à vida (GEERTZ, 1989). Cultura se refere a um processo 
dinâmico que produz os comportamentos, as práticas, as instituições e os 
significados que constituem a nossa existência, como define Turner (1997). Assume, 
assim, seu papel constituinte em todos os aspectos da vida social, como mostra Hall 
(1997), ao afirmar que toda ação social é cultural. Diante disso, pode-se dizer que as 
 
5
 Ainda que seja ambição deste estudo refletir sobre a infância em ambos os contextos, não se almeja 
realizar um estudo comparado. Não seria mesmo possível comparar duas fontes diferentes, em 
contextos distintos. Isso, porém, não exclui a possibilidade de analisá-los no mesmo estudo, e por 
meio disso, discutir as permanências e as mudanças que estes suscitam acerca da infância. 
 
20 
 
concepções de infância são, também, resultado de processos culturais, que, por sua 
vez, geram produtos culturais. Dessa forma, os vestígios deixados pelas sociedades 
ajudam a compreender como essas diferentes concepções foram construídas e 
moldadas aos padrões culturais de seu tempo e lugar. Quer sejam pinturas, roupas, 
narrativas, brinquedos, objetos, textos, fotografias, filmes, enfim, todas essas 
manifestações representam a cultura em sua materialidade. É por meio delas, em 
grande parte, que o estudo da história da infância se viabiliza. 
As representações sociais contidas nos produtos culturais em questão – ou 
seja, as formas simbólicas pelas quais se fez circular e, de certa maneira, se firmar o 
que se pensa sobre a criança em ambos os contextos – são oriundas de um 
imaginário coletivo, ao mesmo tempo em que contribuem para reforçá-lo. Sendo 
assim, um dos conceitos-chave para este estudo é o imaginário social. 
Para Backzo (1985) o imaginário é uma das forças reguladoras da vida 
coletiva6. Mediante essa reflexão, conclui que os bens simbólicos fabricados por 
qualquer sociedade não são nada irrisórios e não existem em quantidades ilimitadas. 
Em um esforço de síntese, diz que 
 
O social produz-se através de uma rede de sentidos, de marcos de 
referência simbólicos por meio dos quais os homens comunicam, se dotam 
de uma identidade colectiva [sic] e designam as suas relações com as 
instituições políticas, etc. A vida social é produtora de valores e normas e, 
ao mesmo tempo, de sistemas de representações que as fixam e as 
traduzem. Assim se define um código colectivo [sic] segundo o qual se 
exprimem as necessidades e as expectativas, as esperanças e as angústias 
dos agentes sociais. Por outras palavras, as relações sociais nunca se 
reduzem aos seus componentes físicos e materiais (BACKZO, 1985, p. 
308). 
 
Sendo assim, as concepções de infância estão, por assim dizer, no plano das 
ideias. Entende-se, neste trabalho, que elas são formuladas pelo imaginário, que é 
parte da cultura. Como se afirmou anteriormente, essas concepções são construídas 
socialmente e, por isso mesmo, variam em cada sociedade, enquanto construções 
simbólicas. Acredita-se que são elas que norteiam as ações com as crianças e o que 
para elas é produzido em uma sociedade. Pode-se complementar a afirmação 
anterior com as palavras de Backzo (1985, p. 309): “todas as épocas têm as suas 
 
6
 Para explicar o que é imaginário, o autor apresenta algumas reflexões. Por exemplo, questiona se 
em uma guerra ou em uma revolução, as imagens exaltantes e magnificentes dos objetos a atingir e 
os símbolos da vitória procurada não seriam uma condição de possibilidade das próprias forças em 
presença? Ou ainda, será que as ações guiadas por essas representações não seriam capazes de 
modelar comportamentos, mobilizando as energias e legitimando a violência? 
21 
 
modalidades específicas de imaginar, reproduzir e renovar o imaginário, assim como 
possuem modalidades específicas de acreditar, sentir e pensar”, tal como ocorre 
com o que se pensa sobre a infância. 
Silva (2012) explica que o imaginário é diferente do imaginado, ou seja, para 
o autor, imaginado é uma projeção irreal que poderá se tornar real; já o imaginário 
emana do real, estrutura-se como ideal e retorna a ele como elemento propulsor. 
Ainda considerando as ideias de Backzo (1985), o imaginário é também uma peça 
de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder; é, 
ao mesmo tempo, o lugar e o objeto dos conflitos sociais. Como também já se disse, 
no caso da infância, quem tem o poder de defini-la são os adultos, majoritariamente. 
Não é, portanto, uma definição de si, mas uma definição para outrem, o que precisa 
ser levado em consideração. 
Compartilha-se do pensamento de Backzo (1985), cuja ideia é que o 
imaginário social torna-se inteligível e comunicável por meio da produção dos 
discursos nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas 
numa linguagem e, assim, contribui para o entendimento do modo como o 
imaginário pode ser estudado, desvendado. Maffesoli (2001, p. 75), por exemplo, 
afirma que “o imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção 
mental que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável”. Para o autor, o 
imaginário é algo que ultrapassa o indivíduo, impregna o coletivo, ou ao menos parte 
dele, caracterizando-o como cimento social. Diz também que não são as imagens 
que produzem o imaginário, mas o contrário, ou seja, o imaginário empreende e 
consolida representações. Dessa forma, os filmes e os contos podem ser entendidos 
como representações do imaginário acerca da infância, considerando seus 
contextos de origem. 
Outro conceito-chave para o estudo da temática proposta é, então, o de 
representação social. Segundo Chartier (2002), não há prática ou estrutura que não 
seja produzida pelas representações mediante as quais os indivíduos e os grupos 
dão sentido a seu mundo. Dessa forma, como aponta o autor, precisa-se dar 
atenção às condições e aos processos que sustentam as operações de construção 
de sentido, ou seja, é necessário observar as lutas de representações, as 
estratégias simbólicas, que têm por objetivo a ordenação da própria estrutura social. 
Essas lutas têm tanta importância quanto, por exemplo, as lutas econômicas, para 
“compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua 
22 
 
concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio” 
(CHARTIER, 2002, p. 17). O autor complementa ainda com a seguinte afirmação: 
 
As representações do mundo social são assim construídas, embora aspirem 
à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre 
determinadas pelos interesses que as forjam. Daí, para cada caso, o 
necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem 
os utiliza (CHARTIER, 2002, p. 17). 
 
É fundamental entender que, segundo o autor, o conceito de representação 
está ligado ao entendimento do modo como, em diferentes momentos históricos, 
uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Alexandre 
(2004) fala do conceito de representação social como uma modalidade particular, 
isso porque não é todo “conhecimento” que pode ser considerado representação 
social, mas somente aquele que faz parte da vida cotidiana das pessoas, por meio 
do senso comum, que é elaborado socialmente e que funciona nosentido de 
interpretar, pensar e agir sobre a realidade. A representação é, portanto, sempre um 
discurso que quer significar algo e há sempre quem representa e para quem se 
representa, ou seja, quem a vê. Quando a questão é a infância e suas 
representações, é preciso pensar sempre na relação de tensionamento entre o 
universo adulto e o infantil. 
Diante das questões expostas acima e da complexidade do tema, já revelado 
anteriormente, faz-se necessário refletir sobre o conceito “infância” e também 
apresentar alguns importantes estudos que se dedicaram a compreendê-la ao longo 
do tempo. 
2.1 INFÂNCIA: DA COMPLEXIDADE DO TEMA AOS ESTUDOS HISTÓRICOS 
Sabe-se que o termo “infância” necessariamente deve ser entendido em uma 
concepção plural. Isso porque, como preconiza Stearns (2006), a infância pode 
apresentar variações impressionantes, de uma sociedade ou de um tempo a outro. 
Por exemplo, a forma como as populações pré-colombianas da América tratavam 
suas crianças era diferente da forma como faziam os europeus da mesma época. É 
claro que certas características são padronizadas, independentemente de tempo e 
de lugar, mas o que prevalece é a pluralidade. Segundo o autor, todas as 
sociedades, ao longo da história, lidaram amplamente com a criança, porque sempre 
e em toda parte, as crianças precisaram e precisam receber alguma preparação 
23 
 
para o estágio adulto. Dessa forma, estudar “a história da infância impõe um 
confronto entre o que é ‘natural’ na experiência das crianças e o que é construído 
por forças históricas específicas, e essa confrontação é tanto estimulante quanto 
instrutiva” (STEARNS, 2006, p. 15). Para Steinberg e Kincheloe (2004), a infância 
não é uma simples entidade biológica, mas um artefato histórico e social, cujo 
conceito fundamental envolve o formato dessa fase humana, moldada por forças 
sociais, culturais, políticas e econômicas que atuam sobre ela. Conforme Marín-Diaz 
(2010), estudá-la implica que se saiba compreender também que as formas de 
pensar na infância estão atravessadas tanto pelas experiências quotidianas com as 
crianças como pelos debates e pelas discussões acadêmicas, políticas e 
econômicas atuais que circulam e percorrem as nossas formas de agir. 
Um dos fatores que se precisa levar em consideração ao se tomar a infância 
como tema de estudo é que este é um conceito relativamente recente e portanto, 
não se pode olhar para sua história apenas com base nas percepções do período 
atual ou da sociedade na qual se está inserido. Postman esclarece que, 
 
De fato, se tomamos a palavra crianças para significar uma classe especial 
de pessoas situadas entre sete e, digamos, dezessete anos, que requerem 
formas especiais de criação e proteção e que se acredita serem 
qualitativamente diferentes dos adultos, então há ampla evidência de que as 
crianças existem a menos de quatrocentos anos. Na verdade, se usamos a 
palavra crianças no sentido mais lato, em que se entende o americano 
médio, a infância não tem mais que cento e cinquenta anos” (POSTMAN, 
1999, p. 11). 
 
Outro aspecto importante a se considerar é que não se pode atribuir 
linearidade à história da infância. Ela “tem seus marcos, mas também se move por 
linhas sinuosas com o passar dos séculos, a criança poderia ser considerada impura 
no início do século XX tanto quanto na alta Idade Média” (HEYWOOD, 2004, p. 45). 
Exemplo que se pode dar sobre isso é o fato de ainda existir trabalho infantil na 
atualidade quando existem leis que estabelecem que essa não é uma atividade 
adequada para a criança e, na sociedade, de maneira geral, há um consenso que 
condena tal ato. 
Ketzer (2003) afirma que a condição vivida socialmente pela criança, no fim 
do século XVII e início do século XVIII, pode ser vista na contemporaneidade em 
camadas da população socialmente desprivilegiada, em que o infante divide, em pé 
de igualdade com o adulto, as agruras da vida impostas pela lei da sobrevivência. 
24 
 
Isso leva a pensar que nem todas as crianças são beneficiadas ou mesmo afetadas 
pela concepção de infância que é construída e que vigora na sociedade à qual 
pertencem. Assim sendo, segundo a autora, a criança afetada pela produção cultural 
que tem acesso aos meios de produção cultural (por exemplo, gibi, livro, cinema, 
teatro, programas de televisão, internet, brinquedos) não é a mesma que está nas 
ruas pedindo esmolas. Afirma também que os estratos sociais definem, inclusive, um 
tipo de infância e de infante, cuja cultura, por tais circunstâncias, estará 
profundamente marcada. 
Podem-se encontrar compiladas em Frota (2007) algumas tentativas de 
definir, então, o que vem a ser infância na atualidade, quanto às questões legais. Os 
dicionários de língua portuguesa, por exemplo, definem infância como o período de 
crescimento que vai do nascimento até o ingresso na puberdade. Para o Estatuto da 
Criança e do Adolescente (ECA), considera-se criança a pessoa até doze anos 
incompletos. Segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela 
Assembleia Geral nas Nações Unidas, a criança é definida como todo o ser humano 
com menos de dezoito anos, exceto se a lei nacional confere a maioridade mais 
cedo. Quanto à palavra, etimologicamente, vem do latim infantia, que se refere ao 
indivíduo que não é capaz de falar. Embora seja necessário evidenciar tais 
tentativas de definição, se sabe que “a idade cronológica não é suficiente para 
caracterizar a infância” (FROTA, 2007, p. 150) e, assim, volta-se a dizer que “a 
infância é uma criação da sociedade, sujeita a mudar sempre que surgem 
transformações sociais mais amplas” (STEINBERG; KINCHELOE, 2004, p. 12). Tais 
variações podem ser vistas por meio de alguns dos estudos sobre sua história, o 
que se pretende descrever adiante. 
Phillippe Ariès, estudioso da história da infância, foi o precursor dos estudos 
que tomaram a infância como objeto central ou exclusivo. Sua tese é de que, na 
sociedade medieval, o sentimento de infância não existia, o que não queria dizer que 
as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. Não se tratava 
de não ter afeição pelas crianças, mas de considerá-las em sua particularidade. Ou 
seja, para o autor, na referida época, a infância não era vista como uma fase muito 
distinta da vida adulta. Explica que tão logo as crianças tinham independência física, 
eram introduzidas no mundo dos adultos e participavam inclusive de jogos e orgias, 
assim como trabalhavam e presenciavam enforcamentos públicos. Por meio de uma 
análise iconográfica, Ariès (1981) conclui que o sentimento de infância teria 
25 
 
emergido no século XVII, vinculado ao sentimento de família, pois as crianças 
passaram a ser retratadas com cada vez mais frequência e os retratos de família 
tenderam a se organizar em torno da criança. Então, esta teria se tornado um 
elemento indispensável da vida cotidiana e os adultos passaram a se preocupar com 
sua educação, sua carreira e seu futuro. Assim, a família e a escola, juntas, teriam 
retirado a criança da sociedade dos adultos. As pesquisas que se sucederam a Ariès 
trouxeram mais informações para a reconstrução da história da infância através de 
outros enfoques. 
Badinter (1985) se centra na questão da construção do amor materno, no que 
chama de “o mito do amor materno”, e, por isso, traz algumas questões acerca da 
história da infância, principalmente da Europa. Além disso, fala com profundidade de 
alguns pensadores que influenciam o pensamento sobre a infância em momentos 
importantes. Por exemplo, aborda as ideias de Santo Agostinho7, que considerava 
que a criança era um símbolo da força do mal, um ser imperfeito, esmagado pelo 
peso do pecado original. A natureza seria tão corrompida neste ser que o trabalho 
de recuperação seria penoso, justificando de antemão todas as ameaças, varas e 
palmatórias. Esse pensamento, ainda segundo a autora, reinou pormuito tempo na 
história da pedagogia, ao menos até o fim do século XVII, e também foi o 
responsável por manter uma atmosfera de dureza nas famílias e nas escolas. A 
autora, traz ainda, o pensamento de Descartes (1596-1650), explicando que para ele 
a infância era, antes de tudo, fraqueza do espírito, período da vida em que a 
faculdade de conhecer e o entendimento estão sob a total dependência do corpo. A 
criança não tem outros pensamentos senão as impressões suscitadas pelo corpo. O 
fato de o homem ter sido criança é que seria a causa de seus erros. Diante desses 
pensamentos é preciso que se diga que 
 
A imagem trágica da infância, como a concebiam teólogos, pedagogos e 
filósofos, não era provavelmente a mais fixada pelo povo em geral. Embora 
não devamos negligenciar a influência dos ideólogos e dos intelectuais nas 
classes dominantes e cultas, essa influência era claramente limitada nos 
outros meios sociais (BADINTER, 1985, p. 63). 
 
Badinter (1985, p. 54) sustenta que “foi Rousseau, com a publicação de 
Émile, em 1762, que cristalizou as novas ideias e deu um verdadeiro impulso inicial 
à família moderna, isto é, a família fundada no amor materno”. Assim, depois da 
 
7
 Cristão e teólogo que viveu nos séculos IV e V d.C. 
26 
 
publicação desse livro8, durante dois séculos, todos os pensadores que se ocupam 
da infância retornaram ao pensamento rousseauniano para levar cada vez mais 
longe suas implicações. Rousseau defendia a ingenuidade da criança e, assim 
sendo, a necessidade de respeitá-la e de deixá-la livre, favorecendo seu 
desenvolvimento. 
Heywood (2004) também tem por objetivo refletir sobre as concepções de 
infância ao longo da história, no que diz respeito ao Ocidente. Ele partilha da ideia 
de que “somente em épocas comparativamente recentes é que veio a surgir um 
sentimento de que as crianças são especiais e diferentes e, portanto, dignas de 
serem estudadas por si só” (HEYWOOD, 2004, p. 10). Reconhece a validade dos 
estudos de Ariès, mas deixa claro que é demasiadamente simplista a sua proposta 
de considerar a presença ou a ausência do sentimento de infância em determinada 
época ou período e que seria mesmo um exagero afirmar a inexistência da infância 
na Idade Média. Para Heywood (2004), o fato de as crianças estarem ausentes nas 
obras de artista da época se dá pela valorização dos temas religiosos, mais do que à 
vida cotidiana, e, dessa forma, não somente a criança teria ficado de fora das 
representações. Ele propõe que seria mais frutífero buscar essas diferentes 
concepções sobre a infância em vários períodos e lugares e tentar explicá-las à luz 
do material e das condições culturais predominantes, compreendendo que não há 
somente uma infância, mas várias, e que estas diferem de acordo com o espaço e o 
tempo. Outra ressalva que o autor faz é que não seria adequado insistir em um 
marco para a descoberta da infância, como tanto insiste Ariès, afirmando ser o 
século XVII. Em vez disso, aposta em uma história cíclica e não linear da infância, 
falando de várias descobertas. 
Por exemplo, segundo Heywood (2004), entre os séculos XVI e XVII, se 
pensou ser apropriado isolar as crianças do mundo dos adultos, sugerindo que as 
percepções de uma criança eram diferentes. Nos séculos XVIII e XIX, os pais 
passaram a receber uma carga cada vez maior de orientação dos médicos e de 
outros profissionais para a criação dos filhos. Começa-se também, na Europa, a se 
 
8
 Segundo Dalbosco (2009), o Émile é um livro dirigido aos pais, com instruções sobre como educar 
os filhos, constituindo o que chama de “educação natural”. Nesse livro, incentivava a amamentação e 
o cuidado dos pais na primeira infância. Também acreditava que constituição familiar e o papel dos 
pais eram indispensáveis contra os maus costumes e como forma de preparar a criança contra uma 
educação viciada. Nas palavras do autor acima citado, Rousseau, “ao pensar especificamente no 
papel do adulto, indica o grau de complexidade presente em sua relação com a criança, mostrando 
que a tarefa adulta movimenta-se no fio da navalha de não adestrar a criança e nem se deixar ser por 
ela escravizada” (DALBOSCO, 2009, p. 183). 
27 
 
pensar em termos de um sistema nacional de educação. O autor fala do surgimento 
da obra de John Locke, que acreditava que a criança era uma tábula rasa, que 
nascia como uma folha em branco, na qual se poderia escrever o que se quisesse. 
Com essa ideia, questionou-se outra posição mais antiga, mas que perdurava até 
então, de que a criança era fruto do pecado original e, portanto irremediavelmente 
impura, como afirmava Santo Agostinho. 
A relação das crianças com seus pais e pares em diversos contextos 
históricos também é discutida pelo autor. Afirma que, em todas as épocas, as 
pessoas casadas geralmente esperavam ter filhos, mas não muitos. Porém, as 
famílias mais pobres sempre lutavam para alimentar bocas extras que surgiam, e 
manter os filhos aquecidos era mais um desafio. As mães, por darem à luz repetidas 
vezes, sentiam-se desgastadas, sendo que “o nascimento dos filhos ainda era 
percebido, na verdade, como um momento de risco para o bebê, bem como para a 
mãe, até os séculos XIX e XX” (HEYWOOD, 2004, p. 78). A prática do infanticídio 
era bastante comum, e o nível de abandono, ainda segundo o autor, era 
impressionante, em particular durante o final dos séculos XVIII e XIX. Geralmente, 
esses surtos de abandono coincidiam com os períodos de crise econômica. Talvez, 
uma das mais importantes contribuições de Heywood (2004) é a de que as crianças 
não tenham sido vítimas passivas de toda a sua história, mas que possuíam alguma 
capacidade de resistência e de escolha. 
Talvez, um dos estudos mais completos e esclarecedores na atualidade sobre 
a história da infância seja o de Peter Stearns (2006). O que se deve, em parte, por 
ser mais recente e por ter utilizado estudos anteriores como base – Colin Heywood, 
por exemplo, foi colaborador de seus estudos. Por isso, parece importante que se 
faça uma síntese de suas ideias. Stearns, como os demais já citados, concorda que, 
quando se trata do tema infância, as variações e as potenciais transformações são 
surpreendentes. Sua análise da infância inicia com o relato de que, em sociedades 
caçadoras-coletoras, as crianças podiam, por vezes, ajudar no trabalho e que os 
adultos já reservavam tempo para brincar com elas. O autor segue expondo as 
consequências do surgimento da agricultura nessas sociedades quanto ao modo 
como se via a criança por volta de 10 mil anos atrás. Esse sistema econômico 
inteiramente novo, como explica o autor, trouxe grandes implicações para a criança, 
redefinindo a utilização delas no trabalho, mais do que no período anterior. É sabido 
que as crianças geravam algum custo, especialmente antes dos cinco anos quando 
28 
 
ainda não podiam trabalhar, mas a extensão do trabalho que desempenhavam 
explica sua importância: 
 
Crianças pequenas podiam ajudar as mães nas atividades domésticas; 
crianças um pouco mais velhas poderiam tomar conta de animais 
domesticados e auxiliar em trabalhos mais leves nos campos, inclusive na 
colheita. Meninos adolescentes poderiam caçar, como auxilio à produção 
principal, mas o ponto-chave era a atividade de trabalho regular como parte 
da equipe de trabalho da família” (STEARNS, 2006, p. 28). 
 
A agricultura teria também possibilitado abundância de alimentos e 
automaticamente aumentado a taxa de fecundidade e de natalidade, embora a 
mortalidade ainda tenha continuado a ser companheira das crianças. A infância se 
tornou até mesmo elemento de identificação para as próprias crianças, já que “havia 
mais irmãos com os quais interagir, e povoados agrícolas, com várias centenas de 
pessoas em vez das 40-60 pessoas dos grupos caçadores-coletores, estavamcheios de companheiros em potencial” (STEARNS, 2006, p. 27). Depois desse 
período, as civilizações antigas passaram a desenvolver leis que ajudaram a definir 
a infância e suas obrigações e tornavam as crianças legalmente pertencentes ao 
grupo no qual nasciam. Essas civilizações, considerando o destacado por Stearns, 
registraram momentos ternos com as crianças em brincadeiras e durante o 
crescimento, mas as crianças viviam para trabalhar (ou estudar) e para dar 
sequência à trajetória da família, e não para propagar sua expressão pessoal ou sua 
individualidade. 
Ao refletir sobre o papel desempenhado pelas religiões naquilo que se refere 
à criança, Stearns (2006) observa que, de um modo geral, elas ajudaram a refletir 
sobre o infanticídio e, em muitos dos seus textos, enfatizavam a importância das 
crianças, da responsabilidade dos pais e da obediência a eles por parte dos filhos. 
Também permitiam a punição física, com algumas discrepâncias, dependendo da 
religião envolvida, e ressaltavam a necessidade de educação religiosa. Porém, ainda 
assim, não mudaram as características básicas da infância, mantidas desde as 
sociedades agrícolas. 
Mudanças mais amplas na visão sobre a infância, entre elas a ênfase na 
importância de tratar as crianças com carinho e maior evidência na escolaridade, 
vieram na modernidade. Stearns (2006) enfatiza que o que teria causado essas e 
outras mudanças teria sido o desenvolvimento da ciência, em confronto com a 
religião tradicional e sua clara demonstração de que o conhecimento poderia 
29 
 
avançar além do dogma cristão, o que estimulou o repensar da questão. O autor 
também lembra que, nessa direção, atuou ainda a crescente prosperidade de muitos 
europeus, o que permitiu prover novos tipos de cuidados para com as crianças, 
basicamente por volta do século XVIII, ou seja, trata-se da classe burguesa. 
A infância moderna para Stearns (2006), surgida primeiro no Ocidente, possui 
três características essenciais. A primeira é a passagem da infância, até então 
voltada para o trabalho e para a escolaridade. Ou seja, quando o trabalho deixou a 
residência com a industrialização, as crianças não trabalhavam mais junto aos pais e 
estavam na escola. Tal mudança contribui para a reconfiguração da infância em 
todas as classes. A segunda é que a família ficou menor do que nunca, estimulada 
pela urbanização mais geral que dificultava o cuidado das crianças. E a terceira é a 
redução da taxa de mortalidade infantil. Diante de todos esses fatores, a relação 
entre adultos e crianças modificou-se bastante, visto que 
 
A escolaridade reduziu o controle paterno sobre as crianças. Tal fato podia 
ser preocupante, principalmente quando as escolas representavam valores 
de classe social, éticos e religiosos distintos da família. Por outro lado, os 
contatos dos adultos com crianças pequenas aumentaram pela simples 
razão de que, com taxas de natalidade mais baixas e as meninas saindo de 
casa para ir à escola com mais frequência, havia menos filhos maiores 
disponíveis para olhar crianças em idade pré-escolar. Passou a haver mais 
cuidado direto de um dos pais (geralmente a mãe) sobre as crianças 
pequenas ou tornou-se essencial a ajuda externa paga (STEARNS, 2006, p. 
92). 
 
Dessa maneira, o imaginário coletivo acerca do que é infância, possivelmente, 
está ligado a essas questões. Isso porque se acredita que tais concepções são o 
resultado de um modo diferente de pensá-la. Essas são mudanças que ocorrem 
primeiramente na mentalidade, posteriormente, geram representações. Perdura no 
imaginário a ideia de que os pais precisam proteger seus filhos e passar valores. Há 
também destaque ao amor familiar e à escolaridade. Há ganhos reais às crianças 
com a implementação dessas questões, que se conceitua como “concepção 
moderna de infância”, conforme Stearns (2006), mas é preciso considerar que há 
também o surgimento de alguns problemas e que nem todas as crianças são 
beneficiadas por essa concepção. Para citar algumas das questões sobre as quais 
se tem refletido, pode-se falar do enaltecimento da criança consumidora, cada vez 
mais foi sendo cercada de produtos industrializados destinados a ela, combinados 
com o apelo midiático. Além disso, há o debate acerca do trabalho infantil, que ainda 
30 
 
não foi totalmente erradicado, juntamente à situação de risco na qual se encontram 
alguns infantes. 
Alguns estudos surgidos nas últimas décadas têm refletido sobre a infância na 
atualidade. Por exemplo, Postman (1999) afirma que até a invenção da imprensa e, 
portanto, antes da grande maioria das sociedades terem se tornado cada vez mais 
letradas, não havia um conceito muito preciso de idade adulta, muito menos de 
criança. Segundo ele, na Idade Média, a infância terminava ao sete anos, isso 
porque, nessa idade, já se dominava a palavra, ou seja, naquele “mundo oral”, elas 
já podiam dizer e compreender o que os adultos, por sua vez, diziam e 
compreendiam. Os segredos da vida adulta, antes expostos pela palavra oral, 
passaram a habitar na palavra escrita. Assim, nas palavras do referido autor, a 
imprensa e, com isso, a necessidade da alfabetização criaram uma nova definição 
de idade adulta, com base na competência de leitura, bem como uma nova 
concepção de infância, baseada na incapacidade de ler. Sendo assim, “uma das 
diferenças importantes entre a criança e o adulto residia no fato de os adultos 
estarem em posse de informação que não era considerada adequada às crianças” 
(POSTMAN, 1999, p. 63). Uma vez excluídas do mundo adulto, tornou-se 
necessário que se encontrasse outro mundo no qual elas pudessem habitar e este 
outro mundo veio a se tornar conhecido como infância. 
Depois de uma fase áurea, a infância, segundo Postman (1999), estaria 
desaparecendo, porque o surgimento dos meios de comunicação modernos, mais 
precisamente do sistema de mídia, estaria novamente fornecendo informações e o 
que chama de segredos do mundo adulto, desfazendo a separação que fora 
construída/estabelecida entre este e o mundo infantil. Para ele, esse novo ambiente 
midiático fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação e, desse modo, 
sem segredos, não pode haver uma coisa chamada infância. Visto que, 
 
As crianças são um grupo de pessoas que não sabem certas coisas que os 
adultos sabem. Na Idade Média não havia crianças porque não havia para 
os adultos meio de contar com a informação exclusiva. Na era de 
Gutenberg surgiu esse meio. Na era da televisão ele se dissolveu 
(POSTMAN, 1999, p. 99). 
 
Steinberg e Kincheloe (2004) compartilham também da ideia de que a 
mudança na realidade econômica, associada ao acesso das crianças a informações 
sobre o mundo adulto, transformou drasticamente a infância. Os autores destacam 
que há o que chamam de “cultura infantil”, que é construída por corporações que, 
31 
 
por seus produtos são capazes de penetrar, constantemente, na vida privada das 
crianças e, com isso, desestabilizar-lhes a identidade. Para eles, também não resta 
dúvida de que a infância está mudando, muitas vezes, como resultado de seu 
contato com a cultura infantil e outras manifestações mais adultas da cultura média, 
contribuindo para que noções mais tradicionais da infância como um tempo de 
inocência e de dependência do adulto foram minadas pelo acesso das crianças à 
cultura popular durante o século XX. 
Marín-Díaz (2010) traz como contraponto às ideias dos últimos autores, que 
acreditam no desaparecimento da infância, o estudo de Rushkoff e Tapscott (1998), 
que afirmam que o uso dos meios de comunicação e de informação não só mantém 
as fronteiras entre os mundos adulto e infantil, como ainda acabam por produzir e 
ampliar as fronteiras entre as gerações. Desse modo, em vez de serem dominados 
pelas mídias, utilizam-nas em seu próprio benefício, tornando-as instrumentos de 
força e de diferenciação do adulto pela naturalidade comque o fazem. Deve-se dizer 
que ideias como esta são menos recorrentes. 
Todos esses estudos citados, embora sejam alguns conflitantes entre si, são 
importantes para que se tenha conhecimento sobre a história da infância e sua 
condição no tempo presente, mas fundamentalmente possibilitam uma multiplicidade 
de olhares sobre ela, necessária ao pesquisador. Como o intuito desta pesquisa é 
também debater sobre este tema, é preciso que, primeiramente, se faça uma 
aproximação com as pesquisas já realizadas e os conceitos já formulados, como se 
fez. Depois de se ter feito isso, parte-se para a exposição da metodologia de 
pesquisa que serve de base para este estudo. 
2.2 METODOLOGIA DE PESQUISA 
A metodologia utilizada é a Análise de Conteúdo. Por meio dela se dará o 
tratamento adequado as fontes de análise, ou seja, os contos de fadas Chapeuzinho 
Vermelho e Rapunzel e os filmes de animação Deu a Louca na Chapeuzinho (2005) 
e Enrolados (2010). 
Segundo Bardin (2004), o maior interesse da Análise de Conteúdo, para além 
de suas funções heurísticas e verificativas, reside na proposta de alongar o tempo 
de latência entre as intuições ou hipóteses de partida e as interpretações definitivas, 
procurando levar à interpretação mais sã e consciente. Ou seja, pensa-se que as 
32 
 
várias fases pelas quais passa a análise permitem que o pesquisador realmente se 
debruce sob o objeto e mature as suas conclusões. 
Quanto aos seus objetivos, durante muito tempo, essa metodologia se 
sustentou numa ênfase quantitativa, mas, ao longo de seu desenvolvimento, 
adquiriu também aspecto qualitativo. Ou seja, superou seu caráter descritivo, 
permitindo e valorizando a inferência feita pelo pesquisador. Bardin (2004) esclarece 
que a análise de conteúdo já não é considerada exclusivamente como descritiva, 
mas que, antes, sua função é a inferência e que esta pode também se realizar com 
base nos dados quantitativos. Moraes (1999) afirma que essa metodologia obteve 
grande produtividade quando orientada pelo paradigma positivista, valorizando a 
quantificação, mas que, à medida que se integra cada vez mais na exploração 
qualitativa das mensagens, atinge novas e desafiadoras possibilidades. Pode-se 
dizer, então, que “oscila entre esses dois polos, ora valorizando o aspecto 
quantitativo, ora o qualitativo, dependendo da ideologia e dos interesses do 
pesquisador” (FONSECA JÚNIOR, 2011, p. 285). O interesse, neste estudo, é dar 
ênfase ao aspecto qualitativo desse método. Não se tem a preocupação acerca da 
frequência com que as categorias aparecem, mas sobre as formas simbólicas que 
são construídas nas fontes analisadas e sobre o que estas representam. 
Para Moraes (1999), os dados das fontes chegam em estado bruto ao 
pesquisador, necessitando ser processados para facilitar o trabalho de 
compreensão, interpretação e inferência a que aspira a análise de conteúdo. O autor 
diz que, de certo modo, essa metodologia é uma interpretação pessoal do 
pesquisador com relação à percepção que tem desses dados, não sendo possível 
uma leitura neutra. 
As fases da análise de conteúdo, propostas por Bardin (2004) organizam-se 
em três pólos cronológicos: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; e 3) o 
tratamento dos resultados, quando da inferência e da interpretação destes. 
A primeira fase é a organização propriamente dita, quando se constrói o plano 
de análise, sistematizando-se as ideias iniciais. Essa primeira fase tem três missões, 
ou seja, a escolha dos documentos a serem submetidos à análise, a formulação dos 
objetivos e a elaboração de indicadores que fundamentam a interpretação final. 
Essa organização se dá durante o que se intitula de “leitura flutuante”, em um 
primeiro encontro com os documentos que se pretende analisar. 
33 
 
As regras para a escolha do corpus, estipuladas por Bardin (2004), também 
foram consideradas. Cabe aqui desvelá-las. A regra da exaustividade diz respeito ao 
comprometimento da análise total do material selecionado, não deixando nenhum 
elemento para trás. A regra da pertinência quer que todos os documentos retidos 
sejam adequados, como fonte de informação, de modo a corresponderem ao 
objetivo que suscita a análise. A regra da homogeneidade estabelece que todos os 
documentos selecionados sejam oriundos de um mesmo tema, vale lembrar que as 
quatro narrativas que se analisa possuem a mesma temática. Fonseca Júnior (2011) 
afirma que não se podem incluir, simultaneamente, gêneros diferentes em um 
mesmo corpus, porém, a escolha dos documentos selecionados para a análise se 
sustenta, uma vez que, primeiramente, não se quer compará-los, depois, todos são 
considerados produtos culturais e, como tal, serão analisados. Além disso, embora 
estejam em suportes distintos, o que será devidamente considerado, todos são 
vistos fundamentalmente como narrativas, isto é, são versões diferentes, advindas 
dos contos de fadas, que fazem parte da cultura há milênios, advindos da tradição 
oral. Essa escolha se justifica, uma vez que 
 
A análise de conteúdo (seria melhor falar em análises de conteúdo), é um 
método muito empírico, dependente do tipo de “fala” a que se dedica e do 
tipo de interpretação a que se pretende como objetivo. Não existe um 
pronto-a-vestir em análise de conteúdo, mas somente algumas regras de 
base, por vezes dificilmente transponíveis. A técnica de análise de conteúdo 
adequada ao domínio e ao objetivo pretendidos, tem de ser reinventada a 
cada momento, exceto para usos simples e generalizações, (...) (BARDIN, 
2004, p. 31). 
 
Já na segunda fase, que é a exploração do material, cada categoria será 
analisada individualmente em cada produto cultural em questão, formando cada uma 
um bloco. Para que fique mais claro, é preciso dizer que essa fase “não é mais do 
que a administração sistemática das decisões tomadas” (BARDIN, 2004, p. 101). 
Nesse momento, faz-se o tratamento do material, administrando a técnica sobre o 
corpus. A técnica que se julgou mais apropriada para esse estudo é a análise 
categorial, não somente porque é a mais antiga e, na prática, a mais utilizada ao se 
fazer a análise de conteúdo, mas porque foi a que melhor correspondeu ao estudo. 
Sabe-se que “as categorias representam o resultado de um esforço de síntese de 
uma comunicação, destacando neste processo seus aspectos mais importantes” 
(MORAES, 1999, p. 19). 
34 
 
A análise categorial “funciona por operações de desmembramento do texto 
em unidades, em categorias segundo reagrupamentos analógicos” (BARDIN, 2004, 
p. 153). Essas unidades podem ser tanto palavras, frases, como temas ou mesmo 
documentos em sua forma integral. Em primeiro lugar, “texto” pode ser entendido 
como a fonte de análise, seja ela uma fotografia, um texto verbal, escrito ou um 
filme. As unidades de análise para a interpretação dos contos serão as frases9 e, 
para interpretação os filmes, as cenas, que remetem a três categorias: a) a relação 
da personagem principal da narrativa com seus pais ou com as pessoas mais 
velhas; b) a maneira como esses produtos culturais mostram como ela se percebe 
ou é vista como sujeito e c) como age nas situações de aprendizagem, identificando, 
assim, que representações trazem em si. Conforme proposto, foram selecionadas 
todas as frases e cenas de acordo com as categorias pré-estabelecidas. Todos os 
elementos destacados da narrativas foram categorizados, ou seja, organizados na 
respectiva categoria. Primeiramente, analisaram-se os contos Chapeuzinho 
Vermelho e Rapunzel. E, posteriormente, a análise recaiu sobre os filmes Deu a 
Louca Na Chapeuzinho (2005) e Enrolados (2010). 
As frases e as cenas foram organizadas em quadros individuais para que se 
obtivesse uma melhor compreensão delas, pois sua visualização é, assim, facilitada, 
e as informações básicas também se encontram neles contidos. Juntamente à cada 
frase, se colocou o “momento da narrativa”da qual foi retirada. Quanto às cenas, 
utilizou-se a proposta de Rose (2008) para analisar imagens em movimento, o que 
permitiu que se pudessem categorizar as cenas dos filmes. A autora propõe um 
conjunto de conceitos e de técnicas que servem de orientação para a análise de 
representações sociais no mundo audiovisual. Propõe que se exponha a dimensão 
visual e verbal de cada cena, tornando-a uma unidade passível de análise. 
As categorias de análise devem estar em concordância com algumas regras, 
descritas por Bardin (2004) e Moraes (1999). Elas devem ser homogêneas, 
fundamentadas em um único princípio ou critério de classificação; exaustivas ao se 
esgotar a totalidade do texto; exclusivas, ou seja, um mesmo elemento do texto não 
pode ser classificado em duas categorias diferentes; objetivas, não deve restar 
 
9
 Quanto ao estudo das frases, não se trata de um estudo linguístico. A análise de conteúdo se 
aproxima da Linguística, como explica Bardin (2004), pois ambas têm o mesmo objeto, ou seja, a 
linguagem. Porém, segundo a autora, a Linguística estuda a língua para entender o seu 
funcionamento; já a análise de conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras 
sobre as quais se debruça. A primeira é o estudo da língua e a segunda é uma busca de outras 
realidades por meio das mensagens. 
35 
 
nenhuma dúvida quanto à categoria a que cada unidade do texto deve integrar; 
adequadas ou pertinentes, sendo adaptadas ao conteúdo e ao objetivo. 
A terceira fase é o momento no qual serão feitas inferências a partir dos 
dados obtidos. Fonseca Junior (2011) argumenta que, na análise de conteúdo, a 
inferência é considerada uma operação lógica, destinada a extrair conhecimentos 
sobre os aspectos latentes da mensagem analisada e que também se trata do 
momento mais fértil, estando centrado nos aspectos implícitos da mensagem 
analisada. Sabe-se que “uma boa análise de conteúdo não deve limitar-se à 
descrição. É importante que procure ir além, atingir compreensão mais aprofundada 
do conteúdo das mensagens mediante inferência e interpretação” (MORAES, 1999, 
p. 24). Dessa maneira, não interessa apenas a obtenção dos dados, ou seja, a 
categorização, mas se considera que o mais importante é a reflexão que se faz por 
meio deles. 
Quanto a esse momento interpretativo, Moraes (1999) salienta que pode 
haver duas vertentes. Ou seja, uma que se relaciona a estudos com fundamentação 
teórica bastante clara, quando a interpretação é feita mediante exploração dos 
significados expressos nas categorias de análise numa conexão com esta 
fundamentação; e outra na qual a teoria é construída com base nos dados, 
emergindo das informações e das categorias, sendo a própria teoria uma 
interpretação. Neste estudo, optou-se pela primeira vertente, cuja interpretação se 
dá com a fundamentação teórica pré-estabelecida. Isso porque o objetivo deste 
trabalho é analisar de que maneira cada um dos produtos culturais em questão 
representou a concepção de infância. Trata-se de ir do nível manifesto do conteúdo 
analisado ao latente, ou seja, do que está “dito” ao que está implícito. É nessa última 
fase que cada um dos elementos será debatido e examinado a partir do referencial 
teórico. 
A análise de conteúdo exige que se traga para exame o contexto do qual os 
documentos são originários com o objetivo de aprofundar o entendimento sobre 
eles. Quanto a esse aspecto, há uma diferença importante entre os documentos da 
análise, a qual será devidamente considerada a seguir. 
 
 
 
36 
 
2.3 LITERATURA, HISTÓRIA E INFÂNCIA 
Os contos Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel, fixados pelos Irmãos Grimm10, 
constituem-se como fonte deste estudo e, portanto, faz-se necessário discutir as 
implicações teóricas que isso representa. Baccega (2010) fala de uma inter-relação 
entre o discurso da História e o da Literatura. Embora primeiramente deixe clara 
uma distinção entre essas áreas, o que também é necessário que se faça, dizendo 
que a primeira se prende à ciência, à consciência social, e a segunda, à ficção, à 
consciência estética, diz, sobretudo, que ambas buscam no cotidiano a sua matéria-
prima e se utilizam da palavra como base de seus discursos. Assim, esses discursos 
se interpenetram, pois neles há uma gama extremamente variada de saberes que 
circulam em outras formações discursivas e que podem até ser por elas 
incorporados. 
A relação entre a História e a Literatura é bastante estreita, como afirma 
Ricoeur (2010), pois quando se analisa a leitura como um ato fenomenológico, pode-
se observar um entrecruzamento e certa convergência entre a narrativa histórica e a 
narrativa de ficção. Nesse sentido, se, por um lado, a História se serve de alguma 
maneira da ficção para refigurar o tempo, por outro, a ficção se serve da História 
com o mesmo intuito, uma vez que narrar qualquer coisa é narrar como se isso 
tivesse se passado. Se a História reinscreve o tempo da narrativa no tempo do 
universo, imita em sua escrita os tipos de composição da intriga que a tradição 
literária legou. Sendo assim, além de estar presente em sua composição, também 
está em sua configuração, uma vez que aprendemos a ver como trágico ou como 
cômico determinado encaminhamento de eventos. Ainda sobre essa questão pode-
se dizer que 
 
Os eventos só adquirem sentido e só são compreensíveis no interior de 
uma trama, de um enredo, de uma intriga. Deste ponto de vista, a 
historiografia não se diferenciaria do romance, pois ambos são narrativas 
onde os eventos só fazem sentido no interior de um enredo. [...] Enfim, a 
historiografia e o romance são modos de narrar eventos humanos com o 
objetivo de extrair seus significados (DECCA, 1997, p. 200). 
 
 
10
 Os contos analisados aqui estão na obra “Contos de Grimm” (Anexos A e B). Nessa coletânea, a 
tradução da obra dos Irmãos Grimm é de David Jardim Júnior. Essas narrativas foram comparadas, 
por exemplo, com as trazidas por Tatar (2004), estudiosa dos contos de fadas, não apresentando 
mudanças significativas. 
 
37 
 
Nas palavras de Ricoeur (2010), por vezes, se lê um livro de História como 
sendo um romance, ou o contrário, um romance, por vezes, consegue construir com 
até mais força a representação de um determinado fenômeno histórico. 
Dentre as muitas aproximações possíveis, cada vez mais a História vem se 
utilizando dos textos literários como fonte para estudar o passado, fato que não 
termina com a autonomia da Literatura como disciplina. Portanto, embora até aqui 
tenha se debatido a relação entre História e Literatura em condições de igualdade, a 
partir de agora, passa-se a considerar a sua produção como documento histórico. 
Como explica Ferreira (2009), a pesquisa histórica tem contribuído para o 
entendimento dos diversos papéis que a Literatura desempenhou na existência dos 
seres humanos e também para a compreensão dos modos como foi concebida, 
particularizada, transmitida, lida, compartilhada ou apropriada, pelos diferentes 
grupos sociais de distintas épocas e sociedades. Pode-se dizer, então, que a própria 
Literatura também é beneficiada quando tomada como fonte de estudo por outra 
disciplina, neste caso, pela História. 
Considerar um texto literário como fonte historiográfica nem sempre foi 
possível, pois este não era considerado um documento oficial, capaz de conter a 
verdade histórica. Para isso, foi preciso compreender que “a história também 
comportava dimensões subjetivas, imaginárias, oníricas e ficcionais, tão importantes 
quanto os acontecimentos políticos sociais e econômicos” (FERREIRA, 2009, p. 84). 
Ainda segundo Ferreira, nas últimas décadas, os textos literários passaram a ser 
vistos pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, 
especialmente por sua riqueza de significados ao entendimento do universo cultural,

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