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MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS Autoria: Graciela Márcia Fochi CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz Prof.ª Tathyane Lucas Simão Prof.ª Kelly Luana Molinari Corrêa Prof. Ivan Tesck Revisão de Conteúdo: Rubia Carla Erthal de Souza Revisão Gramatical: Iara de Oliveira Revisão Pedagógica: Bárbara Pricila Franz Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2017 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 709 F652m Fochi, Graciela Márcia Memória e história oral / Graciela Márcia Fochi. Indaial : UNIASSELVI, 2017. 135 p. : il. ISBN 978-85-69910-41-1 1. Arte – História. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci Graciela Márcia Fochi Possui mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Universidade da Região de Joinville/UNIVILLE (2011), no qual apresentou a pesquisa Morte, Cemitérios e Jazigos: um estudo do Cemitério Municipal de Joinville/SC; graduação em História pela Universidade de Passo Fundo/UPF (2003). Atua como docente no curso de História, Filosofia e Serviço Social, na modalidade EAD da Uniasselvi, nas disciplinas de Ética, Política e Sociedade e Homem, Cultura e Sociedade nos cursos de Engenharia Civil, Engenharia Elétrica e Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Leonardo da Vinci. Possui experiência em cursos de formação continuada de professores, como docente em curso de pós-graduação e na educação básica, educação inclusiva/ especial e educação de jovens e adultos/EJA. Atualmente, estuda e pesquisa temas de morte e cemitérios, patrimônio histórico e cultural, memória e identidade na região do Vale do Itajaí-SC. Realizou estágio junto ao Museu de História e Artes, participou de projetos de levantamentos antropológicos junto a comunidades remanescentes de quilombos, atuou como bolsista/pesquisadora para os temas de produção do conhecimento e didática da História, relações interétnicas, genealogia e história oral, patrimônio histórico e cultural (material e imaterial). Endereço para acessar este CV: http:// lattes.cnpq.br/3683103831654119 Sumário APRESENTAÇÃO ......................................................................7 CAPÍTULO 1 História, Tempo e Memória .....................................................9 CAPÍTULO 2 Memória Individual e Memória Coletiva ..............................41 CAPÍTULO 3 Os Ditos e Não Ditos, os Usos e Abusos na História Oral .....................................................................71 CAPÍTULO 4 Memória e História Oral: A Pesquisa, Aspectos Metodológicos e Éticos .....................................................103 APRESENTAÇÃO Estudar e analisar a memória e a história oral, apropriar-se das conceituações e dos pressupostos teórico-metodológicos não representam um ofício nada simples e sistemático, mas não é impossível, pelo contrário, é desafiador. O estudo requer conhecer as referências historiográficas que tratam e problematizam o tema, como, por exemplo, os profissionais da história e os métodos/técnicas de sensibilização, abordagem, registro e captação. O momento da realização de atividades com história oral e a memória exige do pesquisador sensibilidade e cuidados éticos, desde o ato de despertar, acessar até o manejar e o cuidar das lembranças e das memórias que os indivíduos se dispuseram a compartilhar. Quando a fala do entrevistado flui e se concatena com as imagens que ele possui do passado, quando o pensamento se ilumina e clareia, quando os objetivos, as perguntas, as questões começam a ser respondidas e reveladas, esse é momento clímax. Comove, fascina, é sublime... parece que a audição experimenta as emoções e as sensações de pleno encantamento e êxtase...é sagrado... eis a recompensa! Porém, tratam-se de momentos e experiências que não possuem muita relevância em meio à sociedade na qual nos encontramos inseridos, que é caracterizada por contradições, desigualdades, inversão de valores, extremismos, intolerâncias, desafetos e desencantos. Presencia-se a fugacidade e a liquidez do tempo e das relações humanas, o encurtamento das distâncias espaciais, o que, por sua vez, não significa aproximações emocionais e sociais, antes cadenciam o enfraquecimento das tradições e servem de aporte à fragmentação de identidades. Surgem grupos, espécies de nichos que formam mônodas, ilhas de diferenciação e distinção dos indivíduos em meio ao coletivo, tais como feministas, ambientalistas, vegetarianos, separatistas, neonazistas ou neofacistas. Este cenário cada vez mais consolidado e expandido em meio às sociedades, impinge suas marcas. A lógica racional e instrumental da globalização pretende homogeneizar e pasteurizar o desejo de consumo, os traços culturais, as experiências locais e regionais, bem como promover a obsolescência e a superação descartável de objetos e utensílios que fizeram e fazem parte do cotidiano, do viver e conviver dos indivíduos. Sendo assim, a memória tende a desaparecer gradualmente. O fato de ela ser socialmente mencionada e cogitada indica que a memória já não ocorre mais, de que está ausente e que não compõe as relações humanas e a experiência dos indivíduos. Benjamin (1994, p. 228) escreveu, no começo do século XX, que “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer”. Borges (2000, p. 64) disse que “o passado é indestrutível, mais cedo ou mais tarde as coisas retornam, e uma coisa que sempre volta é o projeto de destruir o passado”. Então, para você, pós-graduando(a) e profissional da história, ao pesquisador da memória e história oral é lançado o desafio de lembrar aos outros o que esqueceram e continuam esquecendo, juntar os fragmentos dispersos de lembranças, memórias, fatos, acontecimentos e movimentos; o que está condenado ao silêncio, acordar os mortos, rememorar, desvencilhar as memórias e o passado das quinquilharias e das forças que os mantém soterrados. Ao longo do caderno de estudos você encontrará quatro capítulos que almejam alcançar determinados objetivos. Veja: • Capítulo 1 (história, tempo e memória): serão apresentadas as concepções/ categorias teóricas e referências historiográficas que compõem e acompanham os conceitos e temas de história, tempo, memória e história oral; será possível constatar a dinâmica e a abordagem que os conceitos relacionados ao campo da história, memória e história oral receberam em outras épocas e em diferentes sociedades. • Capítulo 2 (memória individual e memória coletiva): serão problematizados os principais significados atribuídos à memória coletiva e individual, pública e privada, bem como a relação existente entre memória e as representações sociais e políticas; serão descritas as expressões, manifestações, espaços e lugares depositários da memória, do patrimônio histórico e cultural e dos bens simbólicos e imateriais. • Capítulo 3 (ditos e não ditos, usos e abusos na história oral): serão avaliadas as relações de codependência e/ou conflitos que existem entre as concepções de tradição e modernidade, novo e velho/antigo, testemunho (ver) e relato (ouvir), silêncio e repetição, lembrança e esquecimento, subjetividade e fragilidade, memória e imaginário; será abordado o campo de forças ideológicas e culturais que perpassam e forjam os interesses e os sentidos que são atribuídos à memória e às identidades. • Capítulo 4 (história oral: aspectos metodológicos e éticos): arrolar-se-á os principais procedimentosmetodológicos que são utilizados na realização da pesquisa em história oral, ou seja, a estruturação de questionários/entrevistas e os trâmites/cuidados éticos; ilustrar-se-á as principais formas de registro, sistematização, discurso/narrativa e comunicação do conhecimento histórico produzido a partir das fontes da história oral. Deseja-se uma construtiva e satisfatória jornada de estudos pela frente. Cordialmente, A autora. CAPÍTULO 1 História, Tempo e Memória A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Definir as concepções/categorias teóricas e as referências historiográficas que compõem e acompanham os conceitos/temas de história, tempo, memória e história oral. � Apresentar, de forma problematizada, a dinâmica que os conceitos relacionados ao campo da história, da memória e da história oral receberam em outras épocas e em diferentes sociedades. � Relacionar as principais abordagens, relevâncias e finalidades que a historiografia contemporânea atribui à história, ao tempo e à memória. 10 Memória e História Oral 11 História, Tempo e Memória Capítulo 1 Contextualização Felix (1998) discute que, quando perguntamos no presente pelo passado, a história tende a responder diante da inquietude da busca do sentido de nossa vida individual e da coletividade. Cada época faz as suas próprias perguntas ao passado e essas perguntas traduzem a essência dos problemas e da perplexidade em que o presente se debate. A velocidade e a liquidez do tempo, verificadas no conjunto das relações humanas no espaço de trabalho e nos espaços de convívio social, são responsáveis também por influenciar as relações do homem com ele mesmo, do homem com a natureza e do homem com sua espiritualidade. As descontinuidades, as rupturas, a fragmentação do tempo passado e a aceleração do tempo presente desencadeiam um processo de desreferencialização que, em um determinado momento, toma de assalto os indivíduos quando se veem sem referências imediatas, fazendo com que estes questionem a sua inserção social, sintam necessidade de identificar laços comuns e criar lugares de memória comuns/coletivos que preencham o vazio, que aplaquem a sensação de insegurança, que confiram afeto, conforto, senso de beleza, harmonia e que os humanizem sensivelmente. As indagações pelo sentido da origem, da condição humana e de sua trajetória estão na base da explicação que confere sentido e relevância ao fazer histórico. Nesse contexto, a memória, como saber-investigação-testemunho, representa um dos aportes essenciais ao encontrar-se, ressignificar-se, refazer- se e superar-se diante de momentos de crise, tanto em situações particulares quanto coletivas. A Dinâmica do Conceito de História “História, corpo do tempo”. José Honório Rodrigues Le Goff (1990) apresenta que a palavra história é oriunda do grego antigo, da expressão historie, que pertence primeiramente ao dialeto jônico e que tem sua raiz na palavra indo-europeia wid (weid), que designa a capacidade de ver. No sânscrito, no dialeto indo-árico do norte da Índia, a expressão tem como correspondente a palavra vettas, que designa testemunha e, no grego histor, que designa, também, testemunha, cuja decodificação significa aquele que vê. A síntese dessas expressões está na visão, considerada a fonte essencial de conhecimento. 12 Memória e História Oral Heródoto (1985) apresenta que o termo historein, no grego antigo, já incorporava a designação de procurar saber, informar-se, que solicitava o ofício de investigar e, por consequência, instaurou o primeiro ofício e problema real ao profissional da história, que é o de investigar, procurar, verificar e saber. Nas línguas românicas, que se desenvolveram posteriormente, a história adquiriu até três conceitos diferentes. Todos partem das teorizações apresentadas por Heródoto e reforçam a ideia de que consiste na procura das ações realizadas pelos homens, reforçando a necessidade de construí-la como uma ciência, a ciência histórica propriamente dita. Outro sentido é o da narração, no qual o repertório de referências do historiador é empregado, uma vez que é nesse aspecto que se cadenciam as discussões sobre parcialidade e imparcialidade, verdade e farsa/fábula histórica. Le Goff (1990) apresenta que o problema de verdade versus não verdade, história versus farsa/fábula, não ocorre na língua inglesa. Os termos history (história) e story (conto ou ficção) desfazem este impasse e ausentam o conhecimento histórico de maiores discussões e implicações epistemológicas. Outras línguas europeias esforçam-se por evitar esta ambiguidade. O italiano, por exemplo, utiliza da palavra storiografia para designar a ciência histórica. O alemão estabelece a diferença entre a atividade científica (geschichtschreibung) e a ciência histórica propriamente dita (geschichtswissenschaft). Bosi (1994) reforça que, na cultura grega, ocorria uma síntese plástica entre as instâncias da linguagem, do ver e do pensar. Contavam com a palavra eidos, que designava forma ou figura e que, por sua vez, possui afinidade coma palavra idea do latim. No latim, a expressão vídeo (eu vejo) e idea ilustram a síntese grega. Quando conjugadas e interpretadas, ambas sugerem a concepção de história como uma visão-pensamento que aconteceu. Uma questão em que as discussões entre história e lenda estão presentes, é sobre a fundação e povoamento das cidades e a formação dos primeiros governos. Roma talvez possua o exemplo mais expressivo dessa questão, inclusive, relacionado com a própria noção de história, que também possui uma versão mitológica (Clio a patrona/musa da história) e uma versão histórica (Heródoto, o pai da história). Clio a patrona/ musa da história, Heródoto, o pai da história. 13 História, Tempo e Memória Capítulo 1 Figura 1 - Clio, de Pierre Mignard, século XVII Disponível em: <http://goo.gl/cWrmTa>. Acesso em: 20 fev. 2016. Na mitologia grega existe Clio, que é filha de Zeus/Júpiter (deus dos deuses) e Mnemósine (deusa da memória). Clio deriva da palavra grega “celebrar” e, pelo fato de cantar a glória dos guerreiros e as conquistas de um povo, tornou-se a patrona da história. O fato de Heródoto de Halicarnasso ser considerado o pai da história, justifica-se quando no escrito de seu livro I expressa a seguinte declaração: Os resultados das investigações de Heródoto de Halicarnasso são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo e para que os feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles guerrearam (HERÓDOTO, 1985, p. 19). Heródoto de Halicarnasso manifestava preocupação com o fato de que os acontecimentos humanos estão fadados ao esquecimento. Entendia que era necessário distinguir os fatos e feitos humanos dos demais seres e coisas da natureza. Felix (1998) aponta que desde a Grécia antiga estavam postuladas as categorias fundamentais que recaem até hoje sobre o conhecimento histórico. Veja: 14 Memória e História Oral Caro(a) pós-graduando(a), observe abaixo as categorias históricas que foram defendidas ainda na Grécia antiga: • A história é constituída de relato e narração. • A finalidade da história é que a memória dos acontecimentos não se apague. • A história é temporal, baseada na sucessão de épocas e sociedades. • Existe um contraponto na história entre subjetividade e objetividade. Le Goff (1990) escreve que o saber ocidental parte do pressuposto de que a história nasceu com os gregos. Essa tese se encontra veiculada a motivação e necessidade em distinguir os gregos dos povos bárbaros, ou seja, trata-se de uma noção de diferenciação de desenvolvimento civilizacional. Hartog (2013) ilustra a questão, apontando que Heródoto considerava os líbios, os egípciose, principalmente, os citas e os persas, os bárbaros de seu tempo. Isso, por sua vez, transferia aos povos não gregos certo olhar étnico de diferenciação. Le Goff (1990) explica que, para os gregos, o nomadismo dos povos citas os inferiorizava como povo e civilização. Na perspectiva de julgamento grega, noção de fronteira, de imperialismo e hegemonia não podem ser desconsideradas. Na concepção de mundo dos gregos, os líbios, egípcios, citas e persas, ou melhor, os estrangeiros, representavam a barbárie. Os citas que atravessavam a fronteira e se aproximavam da civilização foram mortos. Arendt (1992) argumenta que o surgimento da historiografia na história ocidental acontece na antiguidade, quando ocorre a necessidade de distinguir a mortalidade dos homens da imortalidade dos seres da natureza, baseado na percepção das coisas que existiam por si mesmas na natureza e as que haviam sido feitas pelo homem, conforme é possível identificar na passagem abaixo: Todas as coisas que devem a sua existência aos homens, tais como obras, feitos e palavras, são perecíveis, como que contaminadas com a mortalidade de seus autores. Contudo, se os mortais conseguissem dotar suas obras, feitos e palavras de alguma permanência, e impedir sua perecibilidade, então essas coisas ao menos em certa medida entrariam no mundo da eternidade e aí estariam em casa, e os próprios mortais encontrariam seu lugar no cosmo, onde todas as coisas são imortais, exceto os homens (ARENDT, 1992, p. 72.) 15 História, Tempo e Memória Capítulo 1 Na obra intitulada a Ideologia Alemã, de 1846, Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895) abordam as bases do materialismo histórico e procuram defender que o homem é fruto do seu trabalho e das relações de produção, mas não da vida espiritual. Para Marx e Engels (2010), o trabalho diferencia e distingue os seres humanos das outras espécies. A concepção de história defendida por Marx e Engels reside na vida material, no modo de produção e na estruturação da sociedade civil. O historicismo, corrente historiográfica que prevaleceu na segunda metade do século XIX, dedicou-se especialmente a formular, pela primeira vez, a ideia da interpretação histórica como sendo a operação essencial do pesquisador. A interpretação histórica consistia em transformar os dados empíricos em fatos históricos, tecê-los em uma narrativa erudita uniforme e linear. Dosse (2003) discute que no século XIX, em meio às concepções metódicas e historicistas, prevaleceu uma noção de que o bom historiador era o que expressava amor e devoção ao trabalho, que deveria ser realizado com modéstia e profunda erudição, baseado em critérios incontestáveis de julgamento científico e controle da subjetividade, obtidos a partir da pesquisa para épocas distantes do presente. O movimento dos annales, a partir do século XX, dedicou-se à crítica da historiografia historicista, retomando a noção grega de história, ou seja, que a história constitui uma interpretação do passado que se dá a partir do presente. O aporte teórico e referencial dos estudiosos dos annales foi Benedetto Croce (1866-1952), responsável por escrever La storia come pensiero e come azione (A história como pensamento e como ação). Croce (1962) explica que, por mais afastados no tempo que pareçam os acontecimentos, a história liga-se e encontra-se legitimada às necessidades e às situações presentes, nas quais esses acontecimentos têm ressonância e impacto na realidade. De fato, Croce (1962) pensa que a partir do momento em que os acontecimentos históricos podem ser repensados constantemente, deixam de estar no tempo de forma aleatória e gratuita, pois, quando tomados aos estudos e à inteligibilidade pela história, fatos e acontecimentos adquirem caráter de conhecimento do eterno presente. Para Felix (1998, p. 27): A polissemia da palavra história permite que seja entendida como: ciência ou disciplina do acontecido, isto é, história- conhecimento; história como notícia dos fatos e história como fatos acontecidos, ou seja, história-processo. Os fatos históricos (em sua dimensão individual ou agrupados em 16 Memória e História Oral dimensões conjunturais e estruturais), objetos da história- conhecimento, foram percebidos e analisados diferentemente ao longo da trajetória da história-processo, permitindo, assim, a existência de um campo próprio do conhecimento histórico voltado para sua análise: a historiografia, à qual compete examinar as diferentes formas de conceber e escrever a história nos espaços e tempos. A história como conhecimento, isto é, como operação intelectual, envolve registro, distanciamento, problematização do objeto, crítica e reflexão. Ginzburg (1991 apud PALLARES-BURKE, 2000) afirma que a história é como a química antes de Boyle ou a Matemática antes de Euclides, ou seja, não houve um Galileu ou Newton que criasse um paradigma da história, e talvez jamais haja. Os historiadores podem dizer muitas coisas distintas e conflitantes, mas ainda assim serem considerados profissionais da história. Hegel (1798 apud NICOLA, 2005), dizia que a coruja de minerva alça seu voo ao crepúsculo, ou seja, o pássaro da história alcança seu voo quando a noite estiver caída, quando o presente estiver definitivamente morto. Os historiadores do século XIX defendiam que a história só nasce para uma época quando ela está inteiramente morta. A partir da renovação do pensamento histórico, em especial da história nova dos anos de 1970, a incumbência do historiador do presente está em fazer, de forma consciente, o passado manifestar-se no presente, ao invés de fazer o presente se manifestar no passado. Nesse processo apela à memória para renovar e ampliar o campo da história contemporânea. O Sentido da História “Para quem não tenha a alma pequena e vil, a experiência da história é de uma grandeza que nos aniquila”. Henri-Irenée Marrou Mesmo em meio a terreno incerto, é possível enumerar algumas definições que são historicamente legitimadas, que auxiliam no momento da experiência profissional e que justificam o conhecimento válido. Buscar o sentido da história é uma questão difícil, por isso, acaba embaraçando muitos estudiosos, não somente historiadores, mas também filósofos, pois na tentativa de apresentar respostas imediatas e eficientes, há risco de cair em definições simplistas, mecânicas e reducionistas. Por muito tempo a história foi definida como sendo um saber de natureza particular, que ocorre apenas uma vez, ou seja, um fato único, um acontecimento que não se repete, porém foi reelaborada e mais contemporaneamente se tornou consenso entre os A coruja de minerva alça seu voo ao crepúsculo. 17 História, Tempo e Memória Capítulo 1 historiadores, assim como das demais ciências que tratam do estudo do passado. Dosse (2003) reflete, dizendo que a disciplina de história constitui um conhecimento indireto, um saber que só chega, é captado e compreendido por meio de vestígios; e o que se faz é tentar preencher os vestígios em suas ausências. O passado é um conceito que pertence a uma temporalidade, o qual se encontra, de forma aleatória, desorganizado ou até sobreposto e que, por sua vez, pode ser transformado e sistematizado em conhecimento por meio das perguntas/problemas e das concepções teóricas/metodológicas, atribuídas a ele pelos pesquisadores/estudiosos. Le Goff (1990) descreve que os historiadores da antiguidade, quando estavam debruçados sobre as histórias de suas civilizações, impérios, povos e cidades, acreditavam estar dando conta de toda a história da humanidade. Os historiadores da época medieval, em sua maioria cristãos, dedicavam-se a escrever a história de deus, dos santos e da própria igreja. Os estudiosos do renascentismo e do iluminismo estavam convictos de que pesquisavam a história do homem. Já os pesquisadores da modernidade, entendiam que a história consistia em uma ciência emevolução, preocupando-se com a evolução das sociedades humanas. O teórico revolucionário do movimento comunista, Karl Marx (1818-1883), em suas reflexões sobre as teorias da história, descrevia que os homens são os responsáveis por fazer a sua própria história, mas devem estar atentos, pois existem condições e estruturas herdadas do passado, que influenciam e determinam o agir e o viver no presente. Júlio de Castilhos (1860-1903), político que se manteve atuante por muitos anos no Estado do Rio Grande do Sul pela vertente política do positivismo, gravou na lápide de seu jazigo no cemitério da Santa Casa da Misericórdia, na cidade de Porto Alegre/RS, a seguinte frase: “os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. 18 Memória e História Oral Figura 2 - Jazigo de Júlio de Castilhos Disponível em: <http://goo.gl/91eqkv>. Acesso em: 21 fev. 2016. Ambos, pertencendo ao mesmo momento histórico, porém em contextos políticos e ideológicos diferentes, apresentam uma compreensão semelhante sobre a influência do passado no presente, reconhecendo que a consciência dos vivos pode sofrer ou sofre a influência e determinação das gerações passadas. Rodrigues (1984) chama a atenção para a perspectiva de que a afirmação expressa por Júlio de Castilhos possui pouco espírito crítico e comprometido com o presente, pois pretende defender e restaurar o passado diante do presente, representando um equívoco que os historiadores não podem se dar ao luxo de cometer. O passado não volta, o historiador precisa estar comprometido com o seu tempo, o presente. Rüsen (1996) aborda que quando a história foi reconhecida como uma ciência (a ciência do passado), na segunda metade do século XIX, os estudiosos 19 História, Tempo e Memória Capítulo 1 historicistas herdaram toda uma tradição que atribuía à história a função de julgar o passado e instruir os homens para que tirassem o melhor proveito para sua geração e para as gerações sucessoras. No entanto, posicionaram-se contrários àquela função da história e defenderam que os historiadores, a partir do século XIX, deveriam somente mostrar e explicar como as coisas efetivamente aconteceram. Bloch (1886-1944), um dos principais idealizadores da escola do annales, procurou combater a ideia de estudar o passado pelo passado, dos fatos pelos fatos, posição que havia sido defendida no centro do movimento historicista e, com os demais adeptos dos annales, defendeu que o interesse pelo passado deveria ser o de esclarecer o presente, pois o passado é atingido/explicado a partir do presente. Essa concepção de história requer, por parte do historiador e dos profissionais da história, uma postura de deslocamento de percepção e entendimento, a qual, por sua vez, parte do presente em busca do tempo passado e, quando ambientado e contextualizado em meio ao passado, identifica/reconhece os embriões e as sementes que se desenvolvem no presente. Outra discussão de Bloch (2001) está na ideia de que a história se encontra desfavorável às certezas. A história é essencialmente equívoca, no sentido de que é virtualmente événementielle (eventual - eventualidade) e virtualmente estrutural. Le Goff (1990) contribui com as teses de Bloch, explicando que a história é um campo do inexato e isto é estrategicamente favorável ao historiador, pois o ponto de partida da investigação histórica é o da incerteza e o da dúvida. Segundo Bloch (2001), o que mais importa é mostrar, em primeiro plano, por meio de alguns exemplos, o tipo de relações que as sociedades históricas mantiveram com o seu passado e o lugar que a história ocupa no seu presente. Nesse sentido, as teorizações de Lucien Febvre (1978-1956), contemporâneo e parceiro intelectual de Bloch, defendem que a história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função das suas necessidades atuais, pois, segundo o autor, organizar o passado em função do presente alcança a função social da história. Tais teorizações, em contrapartida, foram amplamente criticadas por Hobsbawm (1998), interpretando que a história atualmente é revista ou inventada por gente que não procura ou deseja saber do passado como ele realmente ocorreu, mas pelo passado que sirva aos objetivos e aos interesses de quem o está buscando. O autor ainda prossegue, refletindo que hoje, no interior da produção do conhecimento histórico, vive-se uma grande era da mitologia histórica. 20 Memória e História Oral Le Goff (1990) descreve que a ciência histórica conheceu, a partir dos anos de 1970, avanços e renovações surpreendentes nos aspectos de novos temas, objetos e questões de pesquisa, enriquecimento de técnicas e métodos, bem como de aportes teóricos e de categorias de análise. Collingwood (1989) defende que existe uma relação muito próxima entre passado, presente e o ato de reflexão do historiador sobre o seu trabalho. O passado é um aspecto e/ou uma função do presente e é sempre assim que ele deve aparecer ao historiador o qual reflete inteligentemente sobre o seu próprio trabalho, ou, dito de outro modo, deve-se ter em vista a ideia de fazer também uma espécie de filosofia da história. No tempo presente, existe um grande fardo de tarefas e explicações que são herdadas das gerações anteriores, bem como são frutos de nosso próprio tempo (equívocos, injustiças e desigualdades). Isso faz com que muitos indivíduos prefiram, estrategicamente, refugiar-se em algum lugar do passado, quase sempre em um passado romântico, idealizado, isento de conflitos, impasses ou situações para resolver. O peso das tarefas do presente, muitas vezes, recai mais sobre os jovens do que sobre os antigos integrantes das gerações anteriores, pois aos jovens é conferida a missão de transformar a realidade. Quando ocorre a oportunidade de implementar algo novo no sentido de agir/transformar o presente, é comum surgir dicotomia nas opiniões dos indivíduos, na perspectiva de que alguns defendam que é necessário conservar tudo e outros, por sua vez, defendam que é preciso desfazer tudo e edificar/reescrever outra vez. Diante disso, Rodrigues (1913-1987) aponta que ambos os pontos de vista dialoguem no sentido de estabelecer uma proximidade de equilíbrio entre o ritmo da vida (presente) e da história (passado). Veja: O passado não deve ser estudado como um objeto morto, como uma ruína, nem como uma autoridade, mas como uma experiência. Uma experiência aprendida e consolidada. Por mais arrogante que seja o presente, nele se inserem forças do passado, sem cujo conhecimento a compreensão do presente é incompleto (RODRIGUES, 1966, p. 212-213). O citado autor defende que a história deve ser tanto mais viva quanto mais próxima da problemática da vida, assim terá condições de deixar de ser uma seara de fatos mortos e infecundos. Veja novamente: O objetivo da história é dar sentido ao passado; é conhecer e compreender não para contemplar um passado morto, mas para agir, para libertar consciências, para dar força às forças do progresso, para identificar e integrar o país com sua história 21 História, Tempo e Memória Capítulo 1 e seu futuro, essa é toda a tarefa da história (RODRIGUES, 1984, p. 39). Nos escritos de Glenisson (1991) também se encontram outras definições para a história e para orientação do profissional dessa área, tais como a de Henri Pirenne (1862-1935) para quem o historiador nada mais é do que um homem que se dá conta da mudança das coisas – a maioria das pessoas não toma consciência disso – e que procura a razão dessa mudança. Já para André Piganiol (1883-1968), a história está para a humanidade assim como a memória está para o indivíduo, considerando que a história é a memória coletiva. Para Gabriel Monod (1844-1912), trata- se do conjunto das manifestações da atividade e do pensamento humano, ambas consideradas em sucessão e desenvolvimento, com relações de conexão e/oudependência. Para Marc Bloch (1866-1944), o objeto da história é por natureza, o homem. A história pode ajudar a conectar as estratégias que as pessoas dispunham em seu momento histórico para transcender a realidade e mobilizar forças espirituais e psíquicas, a fim de conscientizar-se das chances de criatividade cultural e potencial de superação humana que há no presente, bem como as dificuldades em percebê-las e captá-las. O objeto da história é por natureza, o homem. Atividades de Estudos: Caro(a) pós-graduando(a), acerca das indagações e reflexões que vão desde o campo teórico/metodológico até o fazer histórico propriamente dito, responda às seguintes perguntas: 1) De onde vem sua motivação pela história? Qual o motivo da sua decisão ou escolha pela história? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Qual é a moral e o sentido que você atribui para a história? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 22 Memória e História Oral ____________________________________________________ ____________________________________________________ As Diferentes Noções de Tempo “História: homem no tempo”. Marc Bloch Na mitologia grega, existe a narrativa do deus do tempo, chamado de Cronos, filho de Urano (deus do céu) e Gaia (deusa da terra), o principal deus da linhagem dos titãs que regia os domínios da agricultura e do tempo, casado com Reia (também filha de Urano e Gaia). Para se precaver da profecia de que seria destronado por um dos filhos, devorou-os no momento do nascimento. Reia conseguiu esconder um deles, Zeus (deus dos deuses), no interior da ilha de Creta. Quando adulto, liberou os titãs e fez o pai, Cronos, regurgitar os filhos devorados. Uma vez que Zeus derrotou Cronos, o deus do tempo adquiriu o poder da imortalidade, que atribuiu aos demais deuses. Figura 3 - Cronos: o deus do tempo Disponível em: <https://goo.gl/3MBKEr>. Acesso em: 20 fev. 2016. 23 História, Tempo e Memória Capítulo 1 O deus mitológico Cronos vincula-se à representação que a palavra tempo adquire quando associada à idade. As pessoas de maneira geral não se sentem muito à vontade quando indagadas sobre sua idade. Isso é um fato da sociedade contemporânea, na qual os indivíduos almejam pela eterna juventude e os sentimentos de angústia e desespero, bem como as técnicas de rejuvenescimento e as tecnologias controlam e informam a passagem do tempo. Nesse contexto, José Saramago (1922-2010) possui uma crônica que pode promover uma relação mais sensível, significativa e valorativa da passagem do tempo, bem como da sua ação sobre o homem. Observe: QUANTOS ANOS TENHO? Tenho a idade em que as coisas são vistas com mais calma, mas com o interesse de seguir crescendo. Tenho os anos em que os sonhos começam a acariciar com os dedos e as ilusões se convertem em esperança. Tenho os anos em que o amor, às vezes, é uma chama intensa, ansiosa por consumir-se no fogo de uma paixão desejada. E outras vezes é uma ressaca de paz, como o entardecer em uma praia. Quantos anos tenho? Não preciso de um número para marcar, pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo caminho ao ver minhas ilusões despedaçadas… Valem muito mais que isso. O que importa se faço vinte, quarenta ou sessenta? O que importa é a idade que sinto. Tenho os anos que necessito para viver livre e sem medos. Para seguir sem temor pela trilha, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios. Quantos anos tenho? Isso a quem importa? 24 Memória e História Oral Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e o que sinto. Fonte: SARAMAGO, José. Quantos anos tenho? Disponível em: <http://goo.gl/OhAhWM>. Acesso em: 23 mar. 2016. Le Goff (1990) descreve que o calendário é o produto e a expressão da história. Encontra-se ligado às mais remotas origens míticas e religiosas da humanidade (festas), que, posteriormente, foi adaptado aos progressos tecnológicos e científicos (medida do tempo), à evolução econômica, social e cultural (tempo do trabalho e tempo de lazer). Ele manifesta o esforço das sociedades humanas em transformar/domar o tempo cíclico da natureza e dos mitos, do eterno retomo num tempo linear e sistemático em grupos de anos: triênios, lustros, décadas, olimpíadas, século, milênios, eras, entre outros. Os principais processos consistem na definição de pontos de partida cronológicos (fundação de Roma, era cristã, mês de ramadã, pentecostes, entre outros), na busca de uma periodização e na criação de unidades iguais e mensuráveis de tempo: dia de vinte e quatro horas, décadas, século, etc. Tem-se o calendário solar, que foi utilizado por inúmeras comunidades antigas e serviu de base para a formação do calendário gregoriano, o qual foi imposto pelo papa Gregório XIII no século XVI e que rapidamente foi adotado por quase todas as nações cristãs ocidentais da época. Le Goff (1990) analisa que a capacidade de universalização alcançada pelo calendário gregoriano foi possível porque congregou três dimensões temporais fundamentais: o tempo cíclico dos acontecimentos litúrgicos, como o natal, a páscoa e o dia dos principais santos; o tempo evolutivo, antes e depois de cristo; o tempo salvacionista, o tempo futuro da ressurreição e da redenção dos homens no reino de deus. Os tempos que sucederam a divulgação do calendário gregoriano foram os das grandes navegações e o da revolução industrial, em que os instrumentos de medição e controle do tempo foram aprimorados cada vez mais. Aliado a isso, ocorreram também mudanças na percepção e no valor atribuído ao tempo, em que o tempo adquire conotação do sistema econômico do capitalismo, caracterizado pelas noções de capital, produção, dinheiro e lucro. 25 História, Tempo e Memória Capítulo 1 A partir da sistematização do calendário gregoriano, os historiadores procederam a outras reorganizações do tempo, criando idades, décadas, séculos, milênios e situando os mais expressivos acontecimentos, eventos, revoluções e feitos em cada um deles, no sentido de demarcar o início e o término, a passagem de um para outro. Um dos problemas da criação das padronizações de tempo está no fato de que muitas vezes a passagem do tempo tende a ser percebida numa dinâmica linear, progressiva, evolucionista e triunfante, isenta de contradições, involuções, permanências, retrocessos, danos e perdas do ponto de vista técnico, em meio à natureza e de valores humanitários/ civilizacionais. Le Goff (1990) descreve que, até o renascimento ou mesmo até o final do século XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens e dos ancestrais, entendidos como tempos e épocas de inocência, fertilidade, proteção e felicidade. Imaginaram-se eras míticas: idades-do-ouro, o paraíso terrestre e o jardim do éden, porém conforme se aproximava do tempo presente, a história do mundo e da humanidade aparecia como uma longa decadência, de paraíso perdido, de privações e lamentos. Le Goff (1990) descreve que surgiu na Europa da segunda metade do século XVII e na primeira metade do século XVIII a evidência da oposição e disputa entre antigo/moderno. O debate foi proposto e sustentado em meio às teorias científicas, literárias e artísticas que estavam em crescente consolidação na época. O debate propunha a concepção de que o antigo era sinônimo de superado e o moderno, de novo, progressista e sofisticado. Essa concepção reinou absoluta ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, somente sendo questionada a partir das catastróficas experiências das guerrasmundiais. O autor prossegue, dizendo que os fracassos dos projetos de modernidade (industrialização, urbanização, racionalização do pensamento, secularização da sociedade, laicidade do Estado), modelos globalizantes, como o do marxismo, as denúncias das práticas stalinistas e do gulag, os horrores do fascismo e, principalmente, do nazismo, os campos de concentração, a revolução cultural chinesa, os mortos e as destruições das cidades pela segunda guerra mundial, a bomba atômica, somados aos processos de descoberta e reconhecimento de culturas distintas e distantes do norte do Atlântico e do Mediterrâneo, podem ser indicadas como as principais evidências desse processo (LE GOFF, 1990). Le Goff (1990) explica que essa avalanche, que vem renovando e multifacetando a produção do conhecimento histórico e que colocou ainda mais em xeque a crença no progresso linear, contínuo, triunfante e irreversível, sustentada em um único modelo totalizante e homogeneizante, também carrega 26 Memória e História Oral consigo outros problemas. A história passou a se defrontar com crenças que ganharam proporções de verdadeiras coqueluches mundiais, caracterizadas por uma espécie de grande revival, em que são retomadas profecias e visões, em geral catastróficas do fim do mundo ou, pelo contrário, revoluções iluminadas, que invocam milenarismos, favorecendo o surgimento de seitas neopentecostais, as quais abarcaram tanto as populações dos países em desenvolvimento como as do chamado primeiro mundo. Trata-se de um retorno à já conhecida escatologia. Escatologia: doutrina do destino último do homem (morte, ressureição, juízo final) e do mundo (estado futuro) (MICHAELIS, 2009). A preocupação com o tempo é um dos atributos específicos e particulares da história. Independente de qual for a concepção de história adotada, o tempo se impõe aos profissionais dela. Os fatos humanos são, por essência, fenômenos delicados e que podem escapar a qualquer medida matemática. O tempo verdadeiro constitui uma espécie de continuum e ao mesmo tempo uma perpétua mudança (BLOCH, 2001). Segundo Glenisson (1991), não é possível escapar da necessidade de datar ou fixar cronologias e, mais especificamente, impedir de determinar a duração dos fatos e eventos históricos. Historiadores, como Henri Pirenne e Marc Bloch, defendem que o profissional da história é aquele que percebe a mudança das coisas. Percepção que se dá somente quando são analisados os eventos e os acontecimentos por meio de uma dada organização cronológica. Tanto os esquemas (modos de produção) marxistas, como a cronologia europeia francesa, representam casos limites significativos, permitindo análises coerentes e seguras em termos de tempo histórico e dinâmicas políticas, econômicas, sociais e culturais, porém ambas representam condições históricas localizadas e generalizantes que, por sua vez, são frágeis para servirem de recipientes suficientes da complexidade das experiências e dos processos históricos que compõem a humanidade. A experiência humana, pensada na sua diversidade e complexidade, não cabe, transborda. Existem inúmeras noções que podem ser utilizadas na tentativa de captar o desenrolar do tempo, como a noção de tempo vivido (que é marcada no A experiência humana, pensada na sua diversidade e complexidade, não cabe, transborda. 27 História, Tempo e Memória Capítulo 1 intervalo transcorrido entre o nascimento e a morte), o tempo psicológico, o tempo biológico, o tempo concebido (que varia conforme cada sociedade compõe seu universo de valores e crenças), o tempo cronológico (geralmente regulado com a adoção de calendários), o tempo astronômico (caracterizado pelas órbitas de planetas ou presença de estrelas, cometas, etc.), o tempo geológico (que condiz com a formação do planeta terra e da natureza), entre outros. Outro processo que é necessário conhecer refere-se às sucessivas revoluções técnicas, à substituição de matérias-primas e aos novos objetos que são adicionados aos modos de vida que ampliam desmedidamente o intervalo psicológico entre uma geração e outra. Bloch (2001, p. 62) afirma que “não sem alguma razão, talvez o homem da era da eletricidade e do avião se sinta bem longe de seus ancestrais”. Outro aspecto que pode enriquecer a ampliar a percepção da passagem do tempo é alcançado relacionando e comparando a dinâmica de vida dos indivíduos que residem em cidades e se encontram num contexto de trabalho industrial, regrados pelos horários dos meios de transporte, das atividades comerciais; com a relação que as comunidades rurais e campesinas estabelecem com os ciclos e estações do ano, no manejo da terra e trato de animais, na percepção a partir dos rituais de grupos indígenas, na percepção do tempo das comunidades ribeirinhas diante da oscilação do nível das águas, das épocas de chuva e estiagem, assim como não se pode perder de vista a existência de lapsos, amnésias, esquecimentos (voluntários e involuntários), doenças como o mal de Alzheimer, entre outros fatores que sugerem observação e compreensão do tempo como sendo uma ocorrência relativa. Conforme Bittencourt (2008, p. 204), “um dos objetivos básicos da história é compreender o tempo vivido de outras épocas e converter o passado em nossos tempos”. Ou seja, aproximar e tornar familiar na experiência do tempo presente, os tempos distantes, o tempo passado, no sentido de reconhecer o que aquele conhecimento do passado pode contribuir para com as problemáticas e impasses que se apresentam na época presente. Ao dar conta desse exercício, o historiador pode utilizar-se de categorias temporais como o acontecimento, o ciclo, a estrutura, a conjuntura e, por sua vez, as noções de tempo qualitativo dos processos e das durações que procuram evidenciar as sucessões diacrônicas e marcar mudanças/rupturas, bem como a simultaneidade, as permanências e as continuidades. Caro(a) pós-graduando(a), não se esqueça das ressalvas proferidas por Bloch (2001): o tempo humano permanecerá sempre rebelde, tanto para a Conforme Bittencourt (2008, p. 204), “um dos objetivos básicos da história é compreender o tempo vivido de outras épocas e converter o passado em nossos tempos”. 28 Memória e História Oral implacável uniformidade como também para a divisão rígida do tempo do relógio. Faltam medidas adequadas que contemplem a variabilidade do ritmo e do desenrolar do tempo. Diante desse contexto de tensões e impasses sobre a periodização da história da humanidade, Fernand Braudel (1902-1985), estudioso francês, incorporou os fundamentos da antropologia, da economia e da geografia, no sentido de captar e perceber os diferentes ritmos e níveis que impregnam o tempo histórico. Braudel (2005) propôs três ordens que apresentam ritmos e dinâmicas diferentes: o acontecimento, a conjuntura e a estrutura. O acontecimento possui breve duração e engloba fatos de ordem acidental e individual, tal como um nascimento, uma morte, uma greve/invasão/ataque, um ato público ou um discurso, encontrando-se vinculado mais à esfera política das atividades humanas. A conjuntura apresenta média duração e registra as flutuações e os movimentos, como de uma revolução, uma guerra, os regimes de ditadura e democracia na américa latina, as crises econômicas, geralmente tratando das relações de poder que possuem dinâmica econômica e determinam as relações sociais. A estrutura corresponde à longa duração dos fenômenos que os marcos cronológicos não limitam ou não alcançam devido à lentidão na qual se processam no interior dos comportamentos coletivos. Os fenômenos estão fortemente sedimentados nas mentalidades dos indivíduos e são compostos de ideologias oriundas das tradições religiosas/culturais (judeus, islâmicos, cristãos) que, por sua vez, permeiam várias épocas, como, por exemplo, a prática da escravidão, os valores cristãos, as leis e os códigos morais. Le Goff (1990)discute que a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e coletiva, tende a introduzir, junto aos quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. Nesse cenário, o tempo histórico tem a oportunidade de encontrar, em um nível muito sofisticado de percepção do tempo, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta. Le Goff (1990) prossegue e alerta que existe uma relação de dependência da história do passado com a história do presente, requerendo, por sua vez, uma postura cautelosa por parte dos estudiosos, pois o passado não cessou de viver, de se atualizar e de se apresentar como presente com uma roupagem de novo. 29 História, Tempo e Memória Capítulo 1 Por outro lado, a consciência dessa perpetuação e perduração do passado não pode se tornar um empecilho e muito menos fazer o historiador de refém num passado longínquo. É prudente que o historiador e/ou o profissional da história mantenha uma distância reverente, respeitosa e necessária para evitar os possíveis anacronismos (o fato de atualizar ou utilizar elementos e personagens de outras épocas no tempo presente de forma equivocada). Atividades de Estudos: 1) Caro(a) pós-graduando(a), relacione os principais marcos temporais da sua vida, apresentando um resumo dos respectivos fatos e acontecimentos. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2) Em conjunto com outros integrantes da sua família, relacione os principais marcos temporais que compõem a história dessa família, apresentando um pequeno resumo dos respectivos fatos e acontecimentos. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 3) Qual a participação e a relação que você reconhece existir entre os fatos ocorridos no contexto familiar e os fatos que são específicos da sua vida? ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 30 Memória e História Oral O Espaço e as Relações Atribuídas à Memória “O mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu”. José Saramago Sentados em círculo, rodeando uma fogueira, aquecidos e acalentados pelas labaredas, os membros de tribos caçadoras e coletoras do período neolítico acompanhavam, de forma encantada e apreensiva, as narrativas sobre os nobres feitos de seus ancestrais, dos deuses, dos líderes guerreiros ou de seus sacerdotes. Nos tempos de forte predomínio das narrativas mitológicas da Grécia antiga, existia a deusa Mnemosine, a personificação da memória. A atribuição de Mnemosine naquela sociedade era revelar o que foi (passado) e o que seria (futuro). Presidia a função poética, concedia aos poetas e adivinhos o poder de voltar às origens e à essência (geralmente identificadas com o passado) para lembrá-las à coletividade. Também conferia o dom da imortalidade, uma das forças de vencer o tempo (BOSI, 2001). Nos tempos de forte predomínio das narrativas mitológicas da Grécia antiga, existia a deusa Mnemosine, a personificação da memória. Figura 4 - Escultura de granito representando Mnemosine Fonte: Disponível em: <https://goo.gl/kEuQAO>. Acesso em: 15 fev. 2016. 31 História, Tempo e Memória Capítulo 1 Mnemosine era filha de Urano (céu) e Gaia (terra), irmã de Cronos (deus do tempo). Era protetora das artes e da história e costumava ser invocada diante dos perigos do esquecimento e da finitude. Foi casada com Zeus, com quem teve nove filhos, entre eles, nasceu Clio, a musa da história, da criatividade e a responsável por divulgar e celebrar as realizações. Segundo Dantas (2010), uma das funções mais importantes da memória é ser fonte de respostas às questões que intrigam o ser humano, como, por exemplo, a sua origem, a sua identidade e a sua posição/papel no mundo, motivo pelo qual é muito significativo que Mnemosine esteja ligada à faculdade da orientação e da desorientação no tempo e no espaço. Outra função importante de Mnemosine era a seleção das informações que seriam transmitidas, havendo uma relação de dualidade diante da existência de Lemosyne (deusa do esquecimento). Enquanto vigorou e prevaleceu a sociedade mítica e oral na Grécia antiga, a memória era valorizada como imprescindível à coesão dos laços sociais. O aedo (inspirado pelas musas que cantavam em voz alta as mais diversas epopeias) foi o responsável por resgatar a memória e a sua importância. O grego Homero (928 a. C – 898 a. C) escritor de Ilíada e Odisseia foi um aedo. Aedo pode ser traduzido como poeta, que, em suas narrativas e declamações, confere grandeza, fama e glória aos seus personagens, com o intuito de monumentalizar e imortalizar os feitos dos deuses e homens. Alétheia é a palavra grega que designa verdade. Alétheia resulta da composição de a - alfa privativo + letheia – esquecimento, logo deduz-se que para os gregos a verdade poderia corresponder ao não esquecimento. O termo grego alétheia se refere ao que é conservado pela memória e pela palavra. A palavra deriva de léthe, que compreendia o campo do esquecimento, do silêncio e da obscuridade. Na mitologia grega, léthe foi um dos rios de hades, no mundo dos mortos, que ficava nos subterrâneos da terra. No mundo inferior, qualquer ser humano que bebesse ou se banhasse nas águas de léthe ficava sentenciado com a perda da memória e das lembranças. 32 Memória e História Oral A verdade, como consta na designação grega, não possui mais condições de ser associada ao sentido que a verdade recebe na época moderna, agora com conotação racional, que só é aceita a partir de comprovação por meio de fontes e testemunhos, que foram rigorosamente submetidos e testados por métodos científicos. Le Goff (1990) apresenta que, desde muito cedo, os chineses cumpriram dois gestos constitutivos do procedimento histórico, quais sejam, formar arquivos e datar os documentos. O autor prossegue dizendo que na China a história está estritamente ligada à escrita, porém os escritos não têm função de memória, mas sim função ritual, sagrada e mágica. São meios de comunicação com as potências divinas e com os ancestrais. São anotados para que os deuses os observem e, assim, tornem-se eficazes num eterno presente. O documento não é feito para servir de prova, mas para ser um objeto mágico, um talismã. Não é produzido para ser dedicado aos homens, mas sim aos deuses. Os gregos, quando da consolidação do pensamento racional, desconfiavam da memória, em especial Tucídides (460 a. C - 395 a. C), que privilegiava o testemunho ocular. Segundo Tucídides (2001), aquele que narra, esquece, não resiste ao prazer de agradar àquele que escuta ao ouvido. Esse debate foi reforçado no século XIX pelos historiadores do historicismo e somente ganhou espaço novamente a partir dos anos de 1970, porém com fortes ressalvas de que o historiador deveria saber se servir da memória e história oral com cautela e resguardos narrativos. Sigmund Freud (1856-1939) foi quem iniciou amplos debates em torno da memória humana, trazendo à tona seu caráter seletivo, ou seja, o fato de que nos lembramos das coisas de forma parcial, a partir de estímulos externos, escolhendo as lembranças que guardamos e relembramos. Freud (1970) distinguiu a memória de um simples repositóriode lembranças, pois, para ele, nossa mente não é um museu. Nesse aspecto, remete à Platão, que, na antiguidade, apresentava a memória como um bloco de cera no qual nossas lembranças são impressas. O estudo da memória não fica restrito à história e à psicanálise, mas passa da psicologia à neurofisiologia, pois cada aspecto seu interessa para uma ciência diferente, sendo a memória social um dos meios fundamentais para abordar os problemas do tempo e da história. A memória compõe os alicerces e as estruturas iniciais da história, permeia e se confunde com o documento, com o monumento e com a oralidade. Foi somente a partir dos anos de 1970, em meio às discussões do grupo da nova história, que passou a ser reconhecida pela historiografia. Para abordar os temas da memória, estreitou-se o diálogo com as áreas da filosofia, sociologia, antropologia, etnologia, psicanálise e história das mentalidades. Em 33 História, Tempo e Memória Capítulo 1 1970, nos países onde ocorriam regimes militares, como, por exemplo, no Brasil e no Chile, foi necessário mais tempo para que a temática da memória e história oral fosse contemplada. Coelho (1997) discute que a memória não consiste em referências passivas, fragmentadas e isoladas, pois entende que memória é um ícone, uma fração que reserva um todo. A memória participa da natureza do imaginário (conjunto de imagens) não gratuito, tratando- se de um princípio de organização que ordena o conjunto de todas as referências. Ki-Zerbo (2010) defende que a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade, no caso, a habilidade de escrever. São justamente as sociedades orais que melhor preservam a capacidade de compreensão de seu passado por meio da memória coletiva. As sociedades africanas podem fornecer exemplos expressivos dos processos de transmissão da história, dos rituais e dos saberes por meio da oralidade. Conforme Abbagnano (2007), a memória parece ser constituída por duas condições ou momentos distintos. A primeira é a conservação ou persistência de conhecimentos passados que, por serem do passado, não estão mais à vista. É chamada memória retentiva. A segunda trata da possibilidade de evocar, quando necessário, o conhecimento passado e torná-lo atual ou presente; é propriamente a recordação. Para Bergson (1999), a memória não consiste na regressão do presente para o passado, mas, ao contrário, no progresso do passado ao presente. É no passado que nos situamos de chofre e de um ponto estratégico. Segundo o autor, partimos de um estado virtual que, pouco a pouco, por meio de uma série de planos de consciência diferentes, vamos conduzindo até o termo em que ele se materializa no contexto e configuração atual, ou seja, até o ponto em que se transforma num estado presente e agente, até o plano extremo de nossa consciência sobre o qual se desenha e sustenta nosso corpo. Segundo o autor, a memória possui também função fantástica de eufemismo, que ignora a decadência e a morte, afronta o tempo, alisa e disfarça as marcas físicas/conceituais e transveste o passado com uma aura idealizada e romântica. Nora (1993) descreve que a memória é vida e é sempre carregada por grupos vivos, assim ela está em permanente evolução, suscetível à dialética da lembrança e do esquecimento, da desmemoria, do inconsciente de suas deformações sucessivas, descontextualizações, recontextualizações, vulnerável a Memória é um ícone, uma fração que reserva um todo. A memória possui também função fantástica de eufemismo, que ignora a decadência e a morte, afronta o tempo, alisa e disfarça as marcas físicas/conceituais e transveste o passado com uma aura idealizada e romântica. 34 Memória e História Oral todos os usos, abusos e demais manipulações, susceptível de longas latências, silêncios, vazios e de repentinos resgates, revitalizações, supervalorizações, sendo, nesse percurso, tudo enraizado no concreto, nos objetos, no espaço, nos costumes, nos gestos, nas imagens, nos imaginários, nas mentalidades e nos corpos. Brandão (2008) chama a atenção para o fato de que o passado não pode ser entendido somente a partir das marcas e vestígios vistos como explícitos e evidentes, pois, muitas vezes, tratam-se de situações e circunstâncias que são somente do presente e não possuem origem e recorrência com o passado. A tristeza, o sentimento de perda ou as cicatrizes físicas causadas por um acidente constituem os vestígios e não a memória do acidente, ao passo que as recordações podem estar disponíveis e prontas, latentes no campo emocional, sem precisar da ajuda de nenhum vestígio ou outro recurso para serem sensibilizadas e acionadas. Le Goff (1990) discute que uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas esteve e está em forjarem estruturas legais/oficiais e se tornarem senhores monitores da memória e do esquecimento. Assim, as memórias e os seus espaços não são espontâneos e naturais, seus agentes antes vigiam e definem o que há de ser lembrado e o que deve e pode ser esquecido. Fato que ilustra isso são os arquivos de guerras e de ditaduras, em que os governos, com receio do ônus e da responsabilidade que lhes possam recair, destroem os vestígios e/ou restringem o acesso das partes interessadas e da imprensa. Nora (1993, p. 13) diz que ao abordar a memória pelo aspecto do que deve e pode ser lembrado, comemorado e festejado, é necessário não perder de vista os seguintes aspectos: Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, é preciso criar arquivos, é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notoriar atas, porque essas operações não são naturais. [...] Sem vigilância comemorativa, a história depressa as varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de constituí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que elas envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, salvá- los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai e vem que os constitui. [...] Museus, arquivos, cemitérios, coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade. As memórias e os seus espaços não são espontâneos e naturais, seus agentes antes vigiam e definem o que há de ser lembrado e o que deve e pode ser esquecido. 35 História, Tempo e Memória Capítulo 1 Nora (1993) adverte que os empreendimentos e movimentos oficiais/festivos possuem caráter nostálgico, representando rituais de uma sociedade sem ritual, de sacralizações passageiras, que é dessacralizada e desespiritualizada; de fidelidades particulares de uma sociedade que enquadra e aplaina os particularismos; de diferenciações efetivas numa sociedade pós-moderna, que nivela por princípio; de sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais, comuns e idênticos. A sociedade que Nora (1993) explica como sociedade sem ritual, carrega consigo um estigma de vazio, falta de sentido e significado; o momento presente tem aspecto de frustração, fazendo com que se busque no passado o conforto; o retorno ao passado se dá de uma forma romântica e idealizada, em que cenários de outras épocas são refeitos, conceitos são atualizados (vintage, o rústico, o retrô), no sentido de conferir e agregar bem estar aos espaços e ambientes tanto públicos (restaurantes, cafés, bares) como privados (residências); o rompimento dos vínculos reais com o passado causa um sentimento de vazio e sem perspectiva de consolo. Hartog (2013) diz que nossa memória hojeé história, vestígio e triagem. Preocupada em fazer memória de tudo, ela é arquivística, uma espécie de historicização do presente e de caráter psicologizado. É instrumentalizadora de quem procura diferenciar sua identidade, como, por exemplo, descendente de indígenas, de portugueses, de italianos, de alemães e de espanhóis. A tarefa acaba em mim, sujeito com receio da desreferencialização e consciente de que o passado não está mais no mesmo plano. Assim, passou-se de uma história preocupada com a continuidade da memória, para uma memória que se projeta na descontinuidade da história, ou seja, a memória é o que faz com que o presente seja presente para si mesmo. Hartog (2013) problematiza ainda mais esse contexto de uso da memória, afirmando que as rupturas modernas conduziram a uma multiplicação de memórias coletivas, de maneira que a história se escreve agora sob sua pressão, ou seja, a própria história científica vê seus interesses e suas curiosidades ditadas por elas. Sendo assim, a análise das memórias deve se tornar a ponta da lança de uma história que se pretende contemporânea. A história é uma, enquanto há tantas memórias coletivas quantos grupos, nas quais cada um imprime sua própria duração. Felix (2002) entende que memória é essencialmente um ato de evocação, ou seja, é o ato de recuperar mentalmente a imagem. Portanto, é um ato de representação do real que se dá por meio de imagens mentais, pois o passado, como tal, não volta, ele apenas retorna em forma de lembranças. 36 Memória e História Oral Segundo Felix (2002), a evocação dessas imagens mentais se dá por meio de diferentes suportes e exemplares depositários de memória, que podem ser de natureza icnográfica, fotográficas e álbuns, como também de natureza objetal, com os diversos tipos de objetos materiais associados a uma determinada memória e que compõem o universo dos bens ou patrimônios materiais. Pode ser de natureza perspectiva e sensorial, quando desencadeada por ideias/ associações, como também de natureza do universo da memória dos sentidos, como, por exemplo, sons, ruídos e cheiros que compõem o rico e diversificado universo denominado de bens e patrimônios imateriais. O potencial da memória reside, também, em sensibilizar o que está à beira do esquecimento e trazer à luz o que se encontra em processo de ofuscamento, perda do brilho em meio à dinâmica do tempo, tirar o pó. Isso favorece a elaboração de genealogias, em que o enriquecimento narrativo na redação de biografias e demais temas da história solicita a compressão e a abordagem pelo campo da interdisciplinaridade. Pode ser feita a partir dos lugares topográficos, monumentos ou símbolos funcionais onde a sociedade deposita voluntariamente suas lembranças. Pode contemplar também o patrimônio imaterial/intangível que se encontra latente nos dialetos, sotaques, cheiros, constelações, paisagens, sons, antigos fazeres e dizeres. Além dos autores que foram arrolados durante o desenvolvimento do presente capítulo, a temática da memória também é abordada pelos pesquisadores das áreas de história, linguística, filosofia, antropologia e sociologia, como, por exemplo, Michael Pollack, Maurice Halbwachs, Vidal Naquet, Marcel Detiènne, Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Nicole Lourax, Adélia Bezerra de Menezes, Regina Horta Duarte, Miriam Barros, Ulpiano Bezerra de Menezes e outros. Conforme for possível, procure aproximar-se e se apropriar dos estudos desses autores! Sobre o tema da memória, sugere-se a leitura da seguinte obra: PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Lisboa: Relógio d’ água, 2003, 7 volumes. Tradução: Pedro Tamen. 37 História, Tempo e Memória Capítulo 1 Sobre o tema história oral, sugere-se o seguinte filme: Uma cidade sem passado. Michael Verhoeven. Alemanha,1990 (drama, 93 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=kKiykbMCtRM>. Atividade de Estudos: 1) Segundo as reflexões de Nora (1993) abordadas neste capítulo, quais são as principais problemáticas que acompanham a noção de memória? Enumere-as abaixo: ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Algumas Considerações Nossa época, marcada pela crise do otimismo, da redenção da ciência, do homem no futuro, conta com instituições e organizações sociais que se esforçam em amenizar e compensar os custos causados pelos projetos de modernidade (urbanização, industrialização, racionalização, secularização). Para tanto, podem encontrar na apreensão da noção de tempo, espacialidade, historicidade das memórias e lembranças recursos fundamentais promotores e ressignificadores dos valores/sentidos culturais da humanidade. Seixas (2004) nos ajuda a tecer algumas sistematizações mais pontuais como a de que a memória consiste na tradição viva, que a memória é a vida, é afetiva, é espontânea, é frágil, que está em processo contínuo de presentificação e atualização. A história, por sua vez, é construção intelectual, analítica, problematizadora, crítica e sistemática. A memória possui ritmo e sinuosidade sensível em meio às categorias de tempo e espaço. A história se debruça sobre acontecimentos e fatos que são reclamados pela sociedade. Os estudos sobre https://www.youtube.com/watch?v=kKiykbMCtRM https://www.youtube.com/watch?v=kKiykbMCtRM 38 Memória e História Oral memória se preocupam como os fatos e os acontecimentos que afetaram e impactaram numa comunidade e nos indivíduos. A memória representa uma possibilidade de recuperar o que está submerso no subsolo, na caixa preta, no sótão, nas mentalidades, no imaginário do indivíduo e do grupo. A história trabalha com o que a sociedade trouxe a público e, a partir do acesso e do empoderamento dessas informações, os sujeitos podem se munir de argumentos para ganhar coesão, sentirem-se pertencentes e contribuintes, empoderarem-se, no sentido de galgar por sua realização e a da coletividade na qual se encontram inseridos. Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ARENDT, H. O conceito de história: antigo e moderno. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 2. ed. São Paulo: Martins fontes,1999. BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das letras, 1994. BRANDÃO, V. M. A. Labirinto da memória: quem sou? São Paulo: Paulus, 2008. BRAUDEL, F. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2005. COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: FAPESP, 1997. COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Lisboa: Editorial Presença, 1989. 39 História, Tempo e Memória Capítulo 1 CROCE, Benedetto. A história: pensamento e ação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1962. DANTAS, F. S. Direito fundamental à memória. Curitiba: Juruá, 2010. DOSSE, F. A história. Bauru: EDUSC, 2003. FELIX, L. O. História e memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: Ediupf, 1998. _______. Política, memória e esquecimento, 2002. In: TEDESCO, J. C. (Org.). Usos de memórias. Passo Fundo: UPF, 2002. FREUD, S. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago,1970. GLENISSON, J. Iniciação aos estudos históricos. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. HARTOG, F. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. 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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. RÜSEN, J. Narratividade e objetividade nas ciências históricas. Textos de história, v. 4, n. 1, 1996. SEIXAS, J. A. de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.; NAXARA, M. (Org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2004. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. CAPÍTULO 2 Memória Individual e Memória Coletiva A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: � Estudar os elementos que corporificam a memória para o indivíduo, para a família e para a comunidade, ou seja, os componentes que forjam e sustentam a identidade. � Perceber a memória na sua dimensão coletiva, bem como a interface e o trânsito desta com os grupos sociais e a política. � Problematizar os principais significados que são atribuídos e reconhecidos à memória coletiva e individual, público e privado, e a relação existente entre memória, as lembranças e as representações sociais. � Identificar expressões, manifestações, espaços e lugares depositários de memória, patrimônio histórico e cultural, bem como os bens simbólicos e imateriais/intangíveis da humanidade. 42 Memória e História Oral 43 Memória Individual e Memória Coletiva Capítulo 2 Contextualização Tedesco (2001) apresenta que discutir a memória nas suas diversas dimensões, quer individual, coletiva e social; a relação que possui com a história, a manifestação oral, os lugares institucionais (museus, monumentos, cemitérios, arquivos...), informais e circunstanciais (casas, ruas, porões, baús, gavetas, paredes, galpões, caixas, armários, sótãos, porões...), os silêncios, os não ditos; representa uma tarefa desafiadora na dinâmica de sociedade em que nos encontramos. Halbwachs (1990), que estudou memória e sociedade ainda nas primeiras décadas do século XX, defendeu que a memória compreende desde o vivido, o concreto, o múltiplo, o sagrado, a imagem, o afeto, o mágico, enfim, tudo o que flutua, oscila em torno de um objeto ou lugar. À história, disciplina de conhecimento, cabe as funções de conceitualização, problematização, exercício crítico e laicizante. São campos tão distintos que se pode até pensar que a história começa quando a memória acaba. Nesse sentido, é possível perguntar: quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, seja ela individual ou coletiva? Como é possível a memória, no seu atributo formador de identidade, ao mesmo tempo identificar e integrar, como diferenciar, distinguir e afastar os indivíduos? Caro(a) pós-graduando(a), de antemão sugerimos que você tome bastante cuidado com definições rápidas e generalistas, pois a primeira impressão que se tem é que a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio e único da pessoa. A memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, invenções e mudanças constantes. Tedesco (2001) alerta que existe certa polêmica e diferenciação conceitual que dividem os estudiosos com relação à definição de memória coletiva, memória histórica, memória autobiográfica e memória individual. Mas isso está reservado para as próximas páginas. Deseja-se uma construtiva e satisfatória jornada de estudos pela frente! 44 Memória e História Oral O passado sobrevive de duas maneiras diferentes: nos mecanismos motores e nas lembranças independentes. Memória Individual: O Indivíduo e a Família “Uma vida sem memória não seria vida, como uma inteligência sem possibilidade de se expressar não seria inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, não somos nada”. Luiz Brunel Henri Bergson (1859-1941), filósofo e diplomata francês que publicou o livro “Matéria e memória (1896)”, procurou debater as ideias deterministas e biológicas que recaiam sobre as explicações e definições do homem ao longo do século XIX. Considerou temas como a intuição, o inconsciente e a consciência criadora. Em seus estudos, o citado autor procurou diferenciar dois tipos de memória, uma chamada memória-hábito, que é oriunda das experiências e sensações obtidas no campo prático, forjada de forma involuntária, sem muita busca, análise e enquadramento. A outra, a memória-pura, advém do repertório da consciência, das lembranças, das vivências elaboradas, amalgamadas pelas emoções. Esta última, por sua vez, é capaz de alcançar autonomia e independência em relação à primeira. Essas definições serviram de aporte para que Bergson defendesse a tese de que o passado sobrevive de duas maneiras diferentes: nos mecanismos motores e nas lembranças independentes. Bergson exemplificou e dirimiu cada uma delas, ilustrando que a memória- hábito é aquela em que o passado é ativado e incorporado ao presente como uma recitação de poema, que exige a competência e habilidade da memorização; e a memória-pura é a que evoca, rememora psicologicamente uma lembrança ou um aprendizado ocorrido num acontecimento singular. MUSEU DA PESSOA Trata-se de um museu virtual fundado em São Paulo, no ano de 1991. Tem como objetivo registrar, preservar e transformar em informação histórias de vida de toda e qualquer pessoa da sociedade de forma espontânea e colaborativa. O museu conta com um acervo de mais de 17 mil depoimentos em áudio, vídeo e texto, mais cerca de 60 mil fotos e inúmeros documentos digitalizados. 45 Memória Individual e Memória Coletiva Capítulo 2 Através das atividades de registro e das ações desenvolvidas pelo museu, os idealizadores pretendem fomentar e valorizar a diversidade cultural e a história de cada pessoa como patrimônio da humanidade e contribuir na ampliação de fontes de conhecimento, compreensão e conexão entre as mais diversas pessoas, culturas e povos, bem como a construção e consolidação de uma cultura de paz e tolerância. Para conhecê-lo, acesse o seguinte endereço eletrônico: <http:// www.museudapessoa.net/pt/home>. Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês que se dedicou ao estudo da memória ainda na primeira metade de século XX. O autor favoreceu muito a introdução do tema da memória nos estudos históricos, na articulação metodológica da história e memória oral. A ênfase que Halbwachs atribuiu à memória foi abordá-la na perspectiva social e no “campo de significados” que ela comporta, ultrapassando a dimensão individual e psicológica que até então lhe havia sido conferida. Barros (1989), à luz das teorizações de Halbwachs, descreve que: No ato de lembrar, nos servimos de ‘campos de significados’ - os quadros sociais - que nos servem de pontos de referência. As noções de tempo e de espaço, estruturantes dos quadros sociais da memória, são fundamentais para a rememoração do passado na medida em que as localizações espacial e temporal das
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