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FACULDADE FUTURA CURRÍCULOS EDUCACIONAIS VOTUPORANGA – SP 1 1 O CURRÍCULO NO CENÁRIO EDUCACIONAL CONTEMPORÂNEO Fonte:blogdoeloiltoncajuhy.com.br Nunca se constatou na história da educação uma tamanha importância atribu- ída às políticas e propostas curriculares, diria mesmo, um tamanho empoderamento do currículo enquanto definidor dos processos formativos e educacionais e suas con- cepções. No Brasil não é diferente. Parâmetros, Parâmetros em ação, Diretrizes Cur- riculares, leis específicas sobre conteúdos curriculares, fazem parte do cenário con- temporâneo de decisões educacionais em nosso país. Se levarmos em conta o con- texto de importância que o currículo assume no mundo, em termos da concepção e da construção contemporânea das formações, o seu empoderamento político-peda- gógico, assim como a complexidade que emerge dessas configurações, a explicitação reflexiva do campo curricular e da noção de currículo, no sentido de distinguir histórica e conceitualmente as perspectivas e as práticas, se torna uma responsabilidade for- mativa social e pedagógica incontestável. Junto com esse compromisso, faz-se necessário trazer para esse cenário dis- cursivo e elucidativo o lugar do debate e da diversidade das concepções, sem com isso aceitar os prejuízos conceituais e político-pedagógicos causados pelas perspec- tivas que acolhem posições do tipo: “você deve dominar e aplicar essa concepção de currículo porque é científica”, ou mesmo, “não é preciso conceituar algo que é extre- mamente complexo”. Diríamos que as práticas curriculares e suas urgentes demandas http://faculdadefutura.com.br/ 2 de compreensão e interferência político-pedagógica, bem como a necessidade do ar- gumento competente sobre o instituído e o instituinte desse campo, não mais legiti- mam reduções, pulverizações e concepções a críticas. É urgente, avaliamos, neste contexto da história das perspectivas e práticas curriculares, que os educadores en- trem no mérito do que se configura como currículo e saibam lidar com suas complexas e interessadas dinâmicas de ação, sob pena de deixarem que os burocratas da edu- cação continuem tomando de assalto um âmbito das políticas e práticas educacionais que hoje define, em muito, a qualidade e a natureza das opções formativas, na medida em que trabalha, fundamentalmente, nas organizações educacionais, com o conjunto dos conhecimentos e atividades eleitas como formativas. Este é o campo do currículo, que desejamos refletir profunda e democratica- mente. Os tecnocratas do currículo, em geral, não sabem e pouco se sensibilizam por aquilo que podemos denominar de um currículo educativo, formativo. Ou seja, um currículo em que as intenções formativas sejam explicitadas e se desenvolva, eluci- dando e compromissando-se com uma educação cidadã. “Pensam” sempre na arqui- tetura curricular, no seu desenho expresso nas antigas “grades”, hoje matrizes curri- culares, fixadas num documento. É preciso, portanto, que a sociedade, seus grupos de fato e os movimentos sociais implicados nos cenários e ações educacionais te- nham a oportunidade de compreender e debater bem o currículo, num processo de democratização radical da sua discussão conceitual e da elucidação das práticas e, a partir daí se apropriem e construam percepções e ações de descolonização nos âm- bitos das propostas curriculares correntes. Esse não é um esforço de fixação de conceitos, de dizer sobre um conceito correto-incorreto, mas, acima de tudo, um esforço de explicitação politizada de uma concepção sócio histórica importante; uma política de sentido em elucidação, fincada na relevância sócio educacional do compromisso com o trabalho de responsabilidade em dizer bem com implicação sobre as políticas e práticas curriculares. Não temos dúvida de que o currículo, uma significativa opacidade e dificuldade conceitual para muitos trabalhadores em educação e a sociedade em geral, ainda se constitui num dos dispositivos educacionais dos mais autoritários e excludentes, nes- tes termos seu conhecimento aprofundado é urgente como um ato democrático. Quando chegamos às nossas escolas, predominantemente, os currículos já estão prontos para serem oferecidos como um banquete a ser consumido, alguns com sabores e adornos extremamente sofisticados. Entendemos com isso, que nunca http://faculdadefutura.com.br/ 3 como hoje o trabalho crítico, diria intercrítico, é tão fecundo para deslocarmos propos- tas supostamente democráticas para o campo da radicalização da construção de no- vos sujeitos históricos, como partícipes ativos e crítico-reflexivos da cena curricular- educacional. É essa configuração que empresta ao currículo uma formidável perspectiva sis- têmica e complexa de um macro-conceito. Ou seja, um conceito de fecundas caracte- rísticas analisadoras do entendimento da educação contemporânea, ou seja, dotado de uma significativa capacidade de abraçar as mais diversas dimensões e perspecti- vas do ato educacional; sem, entretanto, perder a sua especificidade em termos de conceito, campo e história específicos. 2 DISTINÇÃO E RESPONSABILIDADE SÓCIO EDUCACIONAL Fonte:empresa-legal.blogspot.com.br A necessidade de distinguir e de relacionar de forma pertinente, são lógicas necessárias para que se possa trabalhar em prol da lucidez sempre necessária nos âmbitos do currículo, da formação e da atividade político educacional. Dizer que “cur- rículo é a vida da escola”, “tudo que acontece no convívio escolar”, “currículo é tam- bém o grau de limpeza dos corredores da escola”, ou mesmo reduzi-lo ao argumento da mercadorização da educação, como num escrito de uma prova de seleção de mes- trado onde se dizia: “currículo é o segredo e a alma do negócio promissor da educa- ção”, é aceitar perspectivas equivocadas, niilistas ou mercantilistas. Neste cenário de http://faculdadefutura.com.br/ 4 equívocos, vieses não elucidativos e reduções, em muitos momentos, currículo é mer- cado ou é tudo e nada. Os prejuízos éticos, políticos e formativos desses equívocos são fáceis de ser anunciado. O cultivo de compreensões como essas, e da aceitação fácil de inovações apenas comprometidas ou reduzidas a delírios pedagógicos, só favorecem as elabo- rações modelizadas de intelectuais delirantes e descomprometidos com as conse- quências sociais da educação, ou dos experts de gabinete, em geral, simpáticos às compreensões tecnicistas de currículo, porquanto ficam à vontade em trabalhar e prescrever através de seus modelos pretensamente “aplicáveis”. Estamos ainda vivendo numa percepção sócio pedagógica de currículo que dá preferência ao modelo e ao sistema pré-montado, em detrimento das pessoas, de suas demandas formativas, referências culturais e históricas; em detrimento dos con- textos e seus interesses ligados ao complexo mundo do trabalho e da produção; e em detrimento, por consequência, do debate de sentidos que deve ser formulado no co- letivo social. Nestes termos, a concepção de currículo expressa o desejo tecnocrata de uniformidade, de unicidade, como nos diz o educador português João Formosinho (1991, p. 1) “Currículo Uniforme pronto a vestir de tamanho único”. Ou mesmo, cai nas concepções delirantes de quem acha que as coisas da educação não têm espe- cificidade e que toda fonte de elucidação e debate é válida para compreender o ato educativo a partir, apenas, da sua própria lógica ou linguagem. No caso dos experts de gabinete, a diferença em educação, em geral, não faz diferença. Tudo é, a priori, passível de homogeneização. Em geral, o que não pode ser homogeneizado vira resíduo a ser descartado. Entretanto, da perspectiva da teoria dos sistemas e da crítica complexa, os resíduos são produtos de sistemas que, para construir suas coerências, eliminam elementos. Porém esses elementosnão desapa- recem. Eles se reagrupam na periferia e, num certo momento, podem retornar em avalanche e desestabilizar o sistema (LEFEBVRE apud HESS, 2005). O que nos mobiliza, em larga medida, neste momento, é a necessidade de os educadores saberem distinguir o campo e o objeto de estudo do currículo como pro- cessos históricos, como processos de interesse formativo e, ao mesmo tempo, de empoderamento político. Numa recente discussão sobre o currículo de licenciatura vivido por nossa faculdade, um representante estudantil se expressou: “Não sei dis- http://faculdadefutura.com.br/ 5 cutir currículo, não tenho os instrumentos conceituais para tal, só sei que estou impli- cado e tenho que discutir”. Essa é uma narrativa emblemática que ilustra bem a inqui- etação e a possibilidade de empoderamento que o saber curricular envolve. Parece-nos importante dizer que uma visão dialógica e não formal de currículo, em termos de seu desenho e conteúdo não nos remete necessariamente para fora da implicação com o campo, o debate e a reflexão enraizados aí. Ao longo de nossas elaborações sobre currículo, costumamos implicar a epistemologia, a sociologia, a an- tropologia, a política, a psicologia, o romance, a poesia, a fábula, o cinema, o teatro, o mito, a música, as artes plásticas e outras narrativas fora da prosa científico-educa- cional, como possibilidades de enriquecer/aguçar/ampliar/problematizar a compreen- são sobre as pautas e as práticas curriculares e suas questões, sem com isso perder de vista de onde falamos, de que falamos e qual o nosso compromisso explicativo em termos do objeto de reflexão e análise. 3 CONCEITO, CAMPO DE ATIVIDADES E IMPLICAÇÕES POLÍTICO-PEDAGÓ- GICAS Autorizamo-nos a dizer que o currículo tem um campo historicamente constru- ído, onde se desenvolve o seu argumento e o seu jogo de compreensões mediadoras. Há uma especificidade histórica que caracteriza este campo. Existem os substantivos cursus (carreira, corrida) e curriculum que, por ser neutro, tem o plural curricular. Sig- nifica “carreira”, em forma figurada. Daí derivam expressões como cursus forenses, carreira do foro; cursus honorum, carreira das honras, das dignidades funcionais pú- blicas, sucessiva e progressivamente ocupadas. O termo cursus passa a ser utilizado, com variedade semântica a partir dos séculos XIV e XV, nas línguas como o português, o francês, o inglês e outras, como linguagem universitária. A palavra curriculum é de uso mais tardio, nessas línguas. Em 1682, já se utiliza em inglês, a palavra curricle, com o sentido de “cursinho”. Nesta mesma língua, se utiliza, a partir de 1824, o termo curriculum com o sentido de um curso de aperfeiçoamento ou estudos universitários, traduzido também pela palavra course. Somente no século XX, a palavra curriculum migra da Europa para os Estados Unidos. Conforme elabora Beticelli (1999, p. 162), ainda que, a partir de 1920, já se http://faculdadefutura.com.br/ 6 tenha orientações sobre a problemática do currículo, é somente a partir da Segunda Guerra Mundial que vão aparecer às primeiras formulações. Na cultura educacional francesa, a discussão sobre currículo tardou a se con- figurar. Segundo considerações de Jean-Claude Forquin (1966), os teóricos da repro- dução, na elaboração da crítica da cultura escolar, tratam das questões curriculares de forma apenas indireta. Silva (1999, p. 21), a propósito, nos diz que a emergência do currículo como campo de estudo está estreitamente ligada a processos tais como a formação de um corpo de especialistas sobre currículo, a formação de disciplinas e departamentos universitários, a institucionalização de setores especializados sobre currículo na burocracia educacional do estado e o surgimento de revistas especializa- das. Este autor aponta que a própria emergência da palavra curriculum, como mo- dernamente conhecemos, está ligada à organização das experiências educativas. Faz-se necessário ressaltar que é na literatura estadunidense que o termo surge para designar um campo especializado de estudos. Foram talvez as condições associadas com a institucionalização da educação de massas que permitiram que o campo de estudos do currículo surgisse nos Estados Unidos, como um campo profissional es- pecializado. Estão entre essas condições: a formação de uma burocracia estatal encarre- gada dos negócios ligados à educação; o estabelecimento da educação como um objeto próprio de estudo científico; a extensão da educação escolarizada em níveis cada vez mais altos de segmentos cada vez maiores da população; as preocupações com a manutenção de uma identidade nacional, como resultado das sucessivas ondas de imigração; o processo de crescente industrialização e urbanização (SILVA, 1999, p. 22). Kemmis (1998, p. 14), argumenta que o currículo é “um terreno prático, social- mente construído, historicamente formado, que não se reduz a problemas de aplica- ção de saberes especializado desenvolvido por outras disciplinas, mas que possui um corpo disciplinar próprio”, no que acrescenta Pacheco (1996, p. 24), dizendo-nos que o conhecimento curricular se constitui “num corpo disciplinar próprio aqui designado por ‘Teoria e Desenvolvimento Curricular’ que se situa nos âmbitos teórico e prático do conhecimento educativo.” Inspirado nesse trabalho de compreensão é que nos sentimos instados a elaborar uma certa noção de currículo via um esforço de distinção relacional, implicado às nossas opções político-educacionais. http://faculdadefutura.com.br/ 7 Assim, compreendemos o currículo como uma “tradição inventada” (GOOD- SON, 1998), como um artefato sócio educacional que se configura nas ações de con- ceber/ selecionar/produzir, organizar, institucionalizar, implementar/dinamizar sabe- res, conhecimentos, atividades, competências e valores, visando uma “dada” forma- ção, configurada por processos e construções constituídos na relação com conheci- mento eleito como educativo. Enquanto uma construção social, e articulado de perto com outros processos e procedimentos pedagógico educacionais, o currículo, como qualquer artefato educa- cional, atualiza-se os atos de currículo de forma ideológica e, neste sentido, veicula “uma” formação ética, política, estética e cultural, nem sempre explícita (âmbito do currículo oculto), nem sempre coerente (âmbito dos dilemas, das contradições, das ambivalências, dos paradoxos) nem sempre absoluta (âmbito das derivas, das trans- gressões), nem sempre sólida (âmbito dos vazamentos, das brechas).É nestes ter- mos, que vive cotidianamente enquanto concepção e prática, a reprodução das ideo- logias, bem como permite, de alguma forma, a construção de resistências, bifurcações e vazamentos. É aqui que o currículo se configura como um produto das relações e das dinâmicas interativas, vivendo e instituindo poderes. Neste movimento, cultiva “uma” ética e “uma” política, ao fazer e realizar opções epistemológicas, pedagógicas, ao orientar-se por determinados valores. Em geral, o senso comum educacional percebe o currículo como um docu- mento (a grade) onde se expressa e se organiza a formação, ou seja, o arranjo, o desenho organizativo dos conhecimentos, métodos e atividade em disciplinas, maté- rias ou áreas, competências etc.; como um artefato burocrático pré-escrito. Não pers- pectivam o fato de que o currículo se dinamiza na prática educativa como um todo e nela assume feições que o conhecimento e a compreensão do documento por si só não permitem elucidar. O fato é que professores e educadores em geral, nos seus cenários formativos, atualizam, constroem e dão feição ao currículo, cotidianamente, relacionalmente, tendo como seu principal objetivo a formação e seus processos de interpretação e veiculação, daí sua inerente complexidade. Há uma costura, uma forma de tecer a formação, cuja compreensão não é possibilitadapor um documento apenas, a matriz curricular, por mais que os documentos educacionais, não só a pro- posta curricular, digam muito sobre o currículo, sua concepção e prática. É nestes termos que o currículo se atualiza como um fenômeno complexo. Sabemos que o currículo se move em sala de aula, nas palestras, nos laboratórios, http://faculdadefutura.com.br/ 8 nos estudos dos alunos e dos professores, sua vida não se encerra nas mãos e na cabeça daqueles que concebem a matriz curricular, que também é um ato de currí- culo, mas não-absoluto. Foi procurando desconstruir o caráter hierarquizante e linear que a perspectiva “dura” de currículo cultiva, que argumentamos o quanto este artefato concebido como trajetória e itinerário, se transforma numa forma de poda das possibilidades criativas das experiências aprendentes que emergem dos “sítios de pertencimento simbólico” (ZAOUAL, 2003) e suas formas de apropriação. Neste mesmo argumento, elabora- mos a ideia de currículo como itinerância e errância, onde mostramos a necessidade de se vivenciar também nas experiências formativas as interações bifurcantes, os de- vaneios e as errâncias criativas (MACEDO, 2002). É assim que compreendemos o currículo, como um complexo cultural tecido por relações ideologicamente organiza- das e orientadas. Como prática potente de significação, o currículo é, sobretudo, uma prática que bifurca. Neste sentido, não se pode conceber o currículo como prática de significação sem realçar seu caráter generativo, inventivo. Como tal, no seio do currículo, constituindo-o, os significados, os sentidos tra- balhados, a matéria significante, o subsídio cultural, são sempre e continuamente re- trabalhados. “São traduzidos, transpostos, deslocados, condensados, desdobrados, redefinidos, sofrem, enfim, um complexo e indeterminado processo de transformação” (SILVA, 1999, p. 13). Em termos políticos, faz-se necessário ressaltar, como nos alerta Silva (1999), que há uma tensão constante entre a necessidade de delimitar o signifi- cado e a rebeldia, também permanente, do processo de significação. É aqui que o conservadorismo está sempre às turras com o enfrentamento da tendência do significado ao deslizamento, à disseminação, ao vazamento, à trans- gressão e à traição. É fato que a prática introduz elementos e problemas significativos sobre e a partir dos quais se faz necessário refletir em termos coletivos. Faz-se ne- cessário perceber que o currículo indica caminhos, travessias e chegadas, que são constantemente realimentados e reorientados pela ação dos atores/autores da cena curricular. Neste mesmo veio, é necessário dizer que tal atitude vai de encontro a qualquer processo de homogeneização curricular, que tende a criar certa névoa de generalização, sacrificando a visão das situações curriculares específicas e suas sin- gularidades. As políticas e ações curriculares precisam nutrir-se de uma mirada clí- nica, ou seja, um olhar focado nos movimentos singulares dos cenários sócio educa- cionais. http://faculdadefutura.com.br/ 9 Neste aspecto, necessário se faz tomar a cultura e o currículo como relações de poder. Mais precisamente: é necessário entender que as relações de poder confi- guram os processos de significação, e é aqui que o currículo tem um papel político de extremo compromisso com uma outra ética, com uma outra política que não seja a do alijamento, tampouco do corporativismo disciplinar. É assim que as lutas por signifi- cado não se resolvem no terreno epistemológico formativo apenas, mas em muito no terreno político, ou seja, no terreno das relações de poder. Luta por significado é luta por recursos de poder. Um poder que, da nossa perspectiva, levando em conta a com- preensão do que seja o campo do currículo, requer do educador a capacidade de nocionar bem, de explicitar bem, para saber lidar. Um compromisso sócio pedagógico ineliminável da formação e dos formadores de educadores. Neste âmbito, Goodson traz uma discussão significativa, inspirado nas discussões de Michael Young sobre o currículo como fato e o currículo como prá- tica. [...] ao focalizar a definição pré-ativa de currículo escrito como algo constitutivo na criação de um currículo, não estou querendo especificamente promover um con- ceito exclusivo de ‘currículo como fato’. Todo conceito progressivo de currículo (e de criação de currículo) teria de trabalhar com o currículo realizado na prática como um componente central. Todavia, a crença absoluta nas propriedades de transformação do mundo que o currículo como prática possa ter, é, penso eu, insustentável [...] Uma visão assim é estimulada pelo atual estágio de subdesenvolvimento do nosso modo de entender o currículo pré-ativo. Entender a criação de um currículo é algo que deveria proporcionar mapas ilus- trativos das metas e estruturas prévias que situam a prática contemporânea (GOOD- SON, 1998, p. 21). Na lucidez das reflexões de Goodson, encontra-se a preocupação que fez brotar parte das formulações deste texto, ou seja, a atual e intensa confu- são/dispersão que atinge a compreensão da noção de currículo e o prejuízo formativo que envolve esse fato, com uma inquietação marcante entre as pessoas que precisam atuar política e pedagogicamente com as questões curriculares de fato. São comuns, por parte de estudantes e/ou educadores em formação, colocações como: “afinal, me informem sobre a especificidade do currículo, e como deverei compreender o que seja isso! ”; “currículo é política, é cultura, é poder, é complexo, mas, até agora, não sei dizer bem o que é realmente”. É aqui que entrar no mérito do que venha a ser currículo ultrapassa a pretensa propriedade privada dos especialistas, que preferem uma atitude definicional reduzida http://faculdadefutura.com.br/ 10 a uma pretensa compreensão puramente técnica de currículo. É aqui que habita a reivindicação de que todos os atores sociais têm o direito de compreender sua confi- guração conceitual enquanto fenômeno histórico-social e entrar no mérito das práti- cas. Há uma perplexidade demonstrada pelos professores, por exemplo, ao se con- vencerem de que não sabem solucionar o currículo, tampouco discutir suas implica- ções, mesmo reconhecendo-se atores constitutivos desse importante artefato educa- cional. Neste sentido, os movimentos sociais vêm jogando a última pá de cal na ideia de que o currículo é algo que, por ser muito complexo, não é, portanto, assunto das pessoas “comuns” e dos segmentos historicamente alijados dos bens da educação. Um exemplo importante dessa superação é a apropriação demonstrada na pu- blicação “Negros e Currículo”, lançada no Congresso de Cientistas Negros em São Luis do Maranhão, no ano de 2004, onde intelectuais e cientistas advindos da luta do movimento negro no Brasil ousam e se autorizam a falar de currículo da perspectiva da formação histórico-cultural do povo negro, mas, ao mesmo tempo, trazendo o campo curricular para o centro dos argumentos. Um outro exemplo é a construção, em parceria ativa com a Faculdade de Educação da UFBA, da concepção e organiza- ção dos currículos de formação de professores indígenas da Bahia, na qual encontros de trabalho e debates na universidade e nas aldeias se transformaram em dispositivos mutualistas e intercríticos (MACEDO; CORTES, 2003) de construção de currículo, tendo como produto um currículo ligado à história desses povos, suas culturas, con- textos e demandas, dentro de uma realidade social globalizada. Se, pelos argumentos aqui desenvolvidos, dizer é uma das maneiras de fazer, e o esforço de dizer bem é uma das maneiras de exercer poder numa realidade em muito mediada pela linguagem e seus jogos, pelo conhecimento e sua dinâmica am- bivalente e contraditória, estamos convencidos da necessidade de que os atores edu- cativos e a sociedade organizada passem a falar bem sobre o currículoe dos currícu- los obviamente e, neste sentido, exerçam nos seus âmbitos o poder-com; cerne do currículo percebido e edificado como concepção e prática intercríticas. http://faculdadefutura.com.br/ 11 4 HISTÓRIA DO CURRÍCULO Fonte:gazetadopovo.com.br 4.1 Os primórdios Preocupados em discutir a perspectiva disciplinar como orientação curricular, historiadores do currículo argumentam que já no período clássico grego podemos per- ceber indicativos dessa perspectiva. Nesse período, havia uma preocupação evidente em construir a formação através da organização dos conteúdos por áreas distintas. Gallo argumenta, enquanto filósofo do currículo que, em A República e As Leis, Platão concebia a construção do homem da Grécia Clássica nessa perspectiva. Assim procedeu Platão em A República e nas Leis, ao idealizar o extenso e demorado plano de estudos em que deveria se basear a formação dos guardiães, fornecendo uma base comum a todos os cidadãos de ambos os sexos até os 20 anos; sucedendo-se: a educação infantil, dos três aos cinco anos, composta de jogos, can- tos e fábulas; seguida, entre os sete e os dez anos, pela aprendizagem das letras a leitura e a escrita e pela introdução da aritmética e a geografia, cujo estudo se pro- longa até os 16 anos, acrescido da poesia e da música. Por fim a dança e a ginástica, que, como educação do corpo, estão presentes desde o início, são complementadas por exercícios militares e pelas artes marciais. A esse ciclo com o qual se completa a formação geral ou básica da maioria - sucede, para os se que revelaram mais aptos, uma propedêutica matemática centrada http://faculdadefutura.com.br/ 12 na aritmética, na geometria do plano e do espaço, na astronomia e na harmonia (PI- NHAÇOS DE BIANCHI, 2001, p.146-147, apud GALLO, 2004, p. 39). Vê-se também, na antiguidade grega e romana, que essa inspiração vai sofrer uma dupla reorganização: com a denominação de trivium, organizam-se as áreas da gramática, da retórica e da filosofia; com a denominação de quadrivium, organizam- se as áreas da aritmética, da geometria, da astronomia e da música. Essa perspectiva curricular vai dominar toda a Idade Média, juntamente com a imposição de um conhe- cimento mediado predominantemente pela fé e se prolonga no iluminismo. Convenci- dos de que o mundo não poderia ser abarcado na sua totalidade pela compreensão humana, para os educadores clássicos a saída era dividir o conhecimento em áreas. 4.2 O currículo moderno O currículo como nós conhecemos e experimentamos predominantemente, na sua versão moderna, portanto, consolidou - se na virada do século XIX para o século XX, em torno de um círculo coerente de saberes, bem como de uma estrutura didática para sua transmissão, desaguando no conceito de enciclopédia, como uma certa “educação geral”. Fonte:oglobo.globo.com Para o professor António Nóvoa, por exemplo, apesar de todas as inovações que ocorreram ao longo do século XX, esse círculo e essa estrutura mantiveram-se relativamente estáveis e se revelam incapazes de responder às novas necessidades educativas. Goodson (1998) nos diz, ademais, que o termo currículo, como uma ma- neira de organizar e controlar os ideários da formação vai surgir a partir da escola http://faculdadefutura.com.br/ 13 calvinista entre escoceses e holandeses. É interessante este aspecto histórico do cur- rículo, pelo fato de que, já nos seus primórdios, o currículo como conhecemos hoje, cultivava sua função de controle, dado importante para as elaborações dos teóricos críticos. No contexto educacional dos Estados Unidos do início do século passado, os estudiosos do currículo ligados a uma concepção tecnicista de currículo, queriam ver o currículo ser concebido e praticado tal qual se organiza a empresa e a fábrica, ori- entadas pelas ideias da administração científica da época. Precisar os objetivos e ob- ter, pelas ações minuciosamente conhecidas e fragmentadas, a eficiência e a eficácia transformou-se no método eleito e no caminho aceito científica e academicamente, para se obter a formação relevante para o contexto americano emergente. O currículo passou a ser gerenciado como uma mecânica, tamanha era a força das ideias deterministas de causa e efeito que operavam a concepção da formação e do próprio currículo como seu mais importante mediador. As experiências da psicolo- gia experimental da época, pautadas no valor da eficiência das aprendizagens por procedimentos e processos condicionantes, forjam a intenção de um certo gerencia- mento do aprendizado no seio do currículo, onde o controle dos conteúdos e objetivos pré-fixados, orientavam toda a organização pedagógica. Essa hegemonia se conso- lida, apesar de as ideias fincadas nos ideários democráticos já fazerem parte do con- texto das discussões estadunidenses sobre a organização das formações. É assim que a aliança do econômico com o técnico-científico predomina sobre os ideários de uma educação pautada em princípios da democracia liberal, concebida naquela época e naquele contexto. O currículo vai refletir isso até hoje, apesar de as contradições estarem muito mais presentes no desenvolvimento do próprio campo e das práticas. Numa tentativa de dar mais visibilidade ao movimento histórico do currículo, Pacheco (1996, p. 22) argumenta que Ralph Tyler, o mais importante dos discípulos de Bobbitt, dando con- tinuidade a uma conferência realizada em Chicago, em 1947, com o intuito de delimitar o campo curricular e de abordar teoricamente o ensino, publica, dois anos depois, conjuntamente com Virgel Herrick, Toward Improved Curriculum Theory. Quiçá, se- gundo Pacheco, não retirando a importância das obras de Bobbitt e Dewey, o grande marco da especialização curricular, ao salientar a necessidade de uma teoria sobre currículo. http://faculdadefutura.com.br/ 14 Importante configuração elucidativa nos traz Terigi (1996, p. 163). Segundo a distinção ternária dessa autora, podemos nos reportar à origem do currículo a partir de três enfoques, segundo três autores diferentes: Se curriculum é a ferramenta pedagógica de massificação da sociedade industrial, acharemos sua origem nos Estados Unidos, em meados do século, como a encontra Díaz Barriga, ou ainda um pouco antes, na dé- cada de 1920; Se é um plano estruturado de estudos, expressamente referido como curriculum, podemos achá-lo pela primeira vez em alguma universidade europeia, como propõe Hamilton; Se é qualquer indicação do que se ensina, podemos chegar, como Narsh, a Platão e, talvez, até antes dele. http://faculdadefutura.com.br/
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