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Brasil Mãe muda na Justiça nome e gênero de filho que nasceu com dois sexos Ao nascer, bebê foi registrada como menina, com o tempo, porém, a mãe percebeu que era um menino e corrigiu o erro legalmente Por Fernanda Bassette access_time 11 abr 2018, 16h40 - Publicado em 11 abr 2018, 07h50 Criança intersexo de 3 anos (Arquivo pessoal/VEJA.com) Em uma decisão inédita, o Tribunal de Justiça do Acre determinou a mudança de nome e gênero no registro de nascimento de uma criança intersexo de apenas 3 anos que fora registrada inicialmente como menina. A decisão é definitiva e atendeu ao pedido feito pela Ordem dos Advogados do Brasil do Acre (OAB-AC). Não cabe recurso. O caso é bastante complexo. A criança nasceu com os dois sexos – algo bastante raro na literatura mundial – mas a mãe, Silvia* (nome fictício) só soube disso depois de registrá-la como menina. Durante todo https://veja.abril.com.br/brasil o pré-natal o bebê foi apontado como sendo uma menina. Ao nascer, a criança foi transferida para a UTI neonatal, o que impediu a mãe de ter contato físico imediato com ela. “Ninguém na maternidade percebeu o problema do meu filho”, diz. Dias depois, quando finalmente pôde pegar o bebê no colo e trocar sua fralda, Silvia observou que havia algo de errado com a genitália da criança: ela tinha um pequeno pênis. A mãe chamou a equipe médica, que confirmou que se tratava de uma menina. Mesmo assim, Silvia pediu a avaliação de uma médica geneticista (a única do Estado do Acre), que atestou que a criança tinha ambiguidade de sexo, ou seja, era uma criança intersexo. Silvia ficou surpresa com o diagnóstico, confirmado em um ultrassom feito quando a criança tinha apenas 19 dias. “Nesse momento, o meu mundo caiu, a minha vida acabou. Comecei a chorar desesperada, não aceitava de jeito nenhum. Entrei em depressão profunda. Não queria mais ver meu filho e nem ninguém, só conseguia chorar”, conta. “Desde os meus 6 anos de idade minha mãe dizia que nasciam muitas crianças hermafroditas [termo usado antigamente para intersexuais] no Brasil. Porém, nunca imaginei que isso iria acontecer comigo. Infelizmente aconteceu e meu único filho nasceu com dois sexos. Até hoje eu não me acostumei com essa ideia”, desabafou. Caso raro Criança intersexo de 3 anos Criança intersexo de 3 anos (Arquivo pessoal/VEJA.com) A intersexualidade é uma alteração cromossômica e/ou genital raríssima: estima-se que aconteça um caso a cada 100.000 nascimentos, segundo a Organização Mundial da Saúde. Não há dados específicos do Brasil. Segundo a farmacêutica Alícia Krüger, presidente da Associação Brasileira pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos (Abrasitti), a intersexualidade pode se manifestar tanto no cariótipo (exame dos cromossomos) quanto no fenótipo (características externas) da pessoa. “Não necessariamente a intersexualidade será manifestada pelo órgão genital. Há casos em que a pessoa tem apenas a alteração cromossômica”, afirmou ela. No caso do bebê do Acre, ao perceber que a criança se identificava e se comportava como sendo do sexo masculino, Silvia entrou em desespero para tentar resolver o problema. Não a matriculou na escola por medo do preconceito que iria sofrer na sala de aula. Na rua, constrangia-se toda vez que perguntavam sobre o nome da criança. “Desde muito cedo eu percebi que meu filho era um menino. Ele era um bebê que tinha uma força anormal, diferente das meninas. Além disso, eu comprava bonecas e ele jogava nos cantos da casa. Quando eu comprava carrinho, ele ficava feliz da vida brincando”, conta. Silvia foi orientada a recorrer ao exame de cariótipo, que avalia a estrutura cromossômica das células, para descobrir o gênero da criança. O exame atestou que, geneticamente, a composição cromossômica do bebê é XY – normalmente associada ao sexo masculino. Além disso, por quase quatro meses, a criança foi acompanhada por médicos e psicólogos da cidade, que elaboraram laudos confirmando que ela realmente se manifestava como alguém do sexo masculino. Diante dos resultados e com apoio da OAB, Silvia decidiu entrar na Justiça para alterar o nome no registro da criança e assim poder levar uma vida normal. Brasil entrou com o processo em fevereiro e a decisão favorável ao caso foi publicada ontem. “O Tribunal de Justiça do Acre reconheceu a identidade de gênero da criança e deu a ela o direito de trocar seus documentos. Para nós, trata-se de uma vitória sem precedentes. Nunca antes a Justiça havia decidido uma alteração de nome e gênero em uma criança tão nova”, afirmou o advogado Charles Brasil, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB-AC e responsável pela ação. Segundo Brasil, apesar de ser de uma família bastante humilde, Silvia demonstrou segurança e inteligência emocional ao respeitar autonomia da criança. “Ela proibiu que seja feita qualquer intervenção médica na criança até que ela tenha condições de decidir o que é melhor.” Para Alícia, da Abrasitti, o comportamento de Silvia é justamente o que a associação defende. “Essa mãe tomou uma decisão muito sábia e progressista. Percebeu a manifestação masculina da criança e foi logo atrás dos seus direitos. Nós também somos contra qualquer cirurgia corretiva que seja feita antes do amadurecimento da criança.” Silvia diz que agradece a Deus pela decisão judicial e pede que outras mães na mesma situação não desistam de lutar pelos direitos de seus filhos. “Nem eu nem meu filho passaremos mais constrangimentos na rua. Quando contei a ele que o tio Charles tinha conseguido mudar o nome dele, ele não parava de pular de tanta alegria. Estou muito, muito feliz.” INCLUSÃO Legislação brasileira impede registro de bebês intersexuais Chile avança nos direitos humanos e proíbe que crianças passem por cirurgia de ‘normalização’ Atleta. Investigação determinou que Caster Semenya tem um tipo de intersexualidade PUBLICADO EM 01/03/16 - 03h00 Raquel Sodré Em janeiro deste ano, o Chile deu um grande passo na direção da ampliação dos direitos das pessoas intersexuais (nascidos sem uma definição clara se são do sexo masculino ou do feminino). Por iniciativa de seu ministro da Saúde, Jaime Burrows, o país proibiu que cirurgias de “normalização” sejam realizadas em crianças. A ação do Chile representa nova vitória para ativistas em todo o mundo, pois somente o arquipélago de Malta, no Mediterrâneo, já havia proibido as cirurgias corretivas em crianças. “Essa ordem do Executivo, que veio antes de qualquer legislação existente no país sobre o assunto, mostra um profundo comprometimento do governo chileno com os direitos humanos dos intersexuais”, comentou María Mercedez Gómez, coordenadora regional para a América Latina e para o Caribe da ONG OutRight, que luta pelos direitos dos LGBTI (sendo o “I” da sigla justamente os intersexuais). Por outro lado, no Brasil, ainda não há uma legislação específica para o assunto. Mas o Conselho Federal de Medicina tem uma resolução que orienta sobre o tema. “A resolução 1.664 do CFM trata do intersexo e propõe, entre outras medidas, que a criança com intersexo seja considerada caso de urgência médica e social, cujo tratamento deve ser buscado em tempo hábil, de forma a garantir a dignidade da pessoa humana, princípio basilar dos Direitos Humanos”, explica a advogada especialista em direito civil Andréa Santana Leone de Souza, membro do grupo de pesquisa Direitos Humanos, Direito à Saúde e Família, da Universidade Federal da Bahia.
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