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Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA: A hemorragia digestiva alta (HDA), pode ser caracterizada como o sangramento intraluminal no TGI, limitado às estruturas proximais ao ligamento de Treitz (junção entre duodeno e jejuno). Localização do ligamento de Treitz, que fixa a região duodeno-jejunal ao diafragma Esse quadro corresponde à emergência mais comum associada ao sistema digestório, tendo prevalência maior entre homens e idosos, principalmente em áreas com desenvolvimento socioeconômico precário. Sua mortalidade global pode atingir 10%, ainda que a maior parte dos casos tenha evolução autolimitada. Principais fatores de risco associados à maior mortalidade na HDA A apresentação clínica é bastante diversa, porém os sintomas mais comuns são: Hematêmese: vômitos sanguinolentos de aspecto vivo e em grande volume, causando impacto hemodinâmico considerável; Melena: fezes negras, de consistência pastosa e odor fétido, refletindo sangramentos majoritariamente altos; Enterorragia: corresponde à eliminação de sangue vermelho-vivo pelo ânus, podendo ser o escape de hemorragias superiores. Caso a perda sanguínea seja bastante volumosa, podem surgir repercussões sistêmicas para a hipovolemia, como: Taquicardia; Hipotensão; Palidez de pele e mucosas; Síncope ou lipotimia. Quanto à etiologia, os quadros de hemorragia digestiva alta podem ser divididos em dois grupos, HDA não varicosa e HDA varicosa, descritos a seguir. HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA NÃO VARICOSA: A HDA não varicosa é fruto de lesões da mucosa do TGI (esôfago ao duodeno), podendo ser causada pela doença ulcerosa péptica (DUP), por lesões agudas, ou pela síndrome de Mallory-Weiss, dentre outras. Os dois últimos sintomas são mais associados à hemorragia digestiva baixa, porém estão presentes em até 15% dos casos de HDA. Classificações dos sangramentos Pequeno: perda volêmica < 20% com PA normal; Moderado: 20 a 40% de perda, com PA entre 90 e 100 mmHg e FC de 100 bpm; Maciço: > 40% de perda volêmica, com PA < 90 mmHg e FC > 100 bpm. Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE Doenças mais associadas a quadros de HDA não varicosa A DUP se destaca como a principal causa de HDA não varicosa, estando frequentemente associada a infecções por H. pylori ou ao uso de AINES. Nesses quadros, o sangramento surge a partir de lesões vasculares (principalmente arteriais) provocadas pelo contato com secreções gástricas. Tal interação promove arterite, resposta inflamatória que pode evoluir para a necrose e a perda de continuidade da parede do vaso. Pequeno sangramento em úlcera (esbranquiçada) de duodeno A síndrome de Mallory-Weiss é marcada pela presença de lacerações longitudinais na mucosa do esôfago distal ou do estômago proximal, sucedendo vômitos vigorosos ou outras ações que elevem a pressão intra- abdominal de forma abrupta. Nesses casos, o sangramento é provocado pelo rompimento de artérias submucosas, resultando em pequena perda volêmica, normalmente autolimitada. Exemplo de laceração de Mallory-Weiss Outra importante causa de HDA não varicosa é a esofagite erosiva, condição que também se relaciona à elevada prevalência da DRGE. Esse quadro, no entanto, tende a provocar sangramentos de menor repercussão hemodinâmica, com risco baixo de recorrência. No contexto de pacientes com histórico de abuso de álcool, doenças cardiovasculares, DM ou HAS, tais hemorragias podem ser causadas pela lesão de Dieulafoy, na qual uma artéria submucosa com dilatação anormal se rompe no estômago. Esse quadro gera sangramentos importantes, porém intermitentes, e acompanha endoscopias digestivas altas de resultado normal, pois as alterações anatômicas são subepiteliais. DIAGNÓSTICO: Nos casos de HDA associada à DUP, o método de escolha para diagnóstico é a endoscopia digestiva alta (EDA), apresentando elevada acurácia, principalmente quando realizada de forma precoce (12 a 24 horas do episódio). Para estratificar o risco geral de novos sangramentos e direcionar adequadamente as medidas terapêuticas, é utilizado o escore de Rockall, com pontuações de 0 a 11. Os pontos de corte são 2, para bom Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE prognóstico, e 8, para maiores chances de hemorragias secundárias. Estratificação de Rockall para a HDA Em pacientes com DUP, a avaliação de possíveis ressangramentos, assim como a indicação de terapia endoscópica, é feita a partir da classificação de Forest, que identifica hemorragias ativas e indícios de coagulação. Classificação de Forest Lesões hemorrágicas em endoscopia, e sua estratificação conforme a classificação de Forest A arteriografia também pode ser utilizada para diagnóstico, principalmente em portadores de hemorragia volumosa com dificuldade de acesso via EDA, tratamento endoscópico ineficaz ou em locais sem interface para realização de cirurgias. Esse exame não só detecta o foco de sangramento, como também pode servir como veículo terapêutico com a injeção de fármacos. A cintilografia de hemácias marcadas também é uma possibilidade secundária à EDA, porém apresenta positividade de 25 a 64%, com precisão também variável. TRATAMENTO: A abordagem inicial para a HDA não varicosa é a realização de medidas para reposição volêmica e manutenção de cias aéreas. Pode ser necessário o fornecimento de oxigênio suplementar ou intubação (risco de aspiração). A classificação do grau de choque hipovolêmico é importante para a implementação da reposição volêmica, sempre iniciada com acessos venosos calibrosos, com infusão de cristaloides ou hemotransfusão. Quanto mais rápida essa recuperação, melhor o prognóstico individual. Os critérios para transfusão em indivíduos estáveis hemodinamicamente é Hb < 7 mg/dL (estratégia restritiva, implica em menor risco de complicações e mortalidade). Os IBP, como o Omeprazol, podem ser utilizados em indivíduos com suspeita de HDA de origem ulcerosa, antes da realização da endoscopia (80 mg em bolus + infusão de 8 mg/h). Essa prática reduz a necessidade de terapia endoscópica. Se a etiologia for confirmada, a prescrição deve ser mantida por 72 horas, progredindo para dose de 40 mg VO. Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE Como a infecção pelo H. pylori é a principal causadora de DUP, sua erradicação é muito importante para evitar episódios recorrentes (tratamento à base de Claritromicina, Amoxicilina e IBP por 14 dias). TRATAMENTO ENDOSCÓPICO: A terapia endoscópica correlaciona-se à diminuição da mortalidade e a uma menor necessidade de hemotransfusão e internamento em UTI, porém somente deve ser realizado após estabilização hemodinâmica (PAS > 100 mmHg e FC < 100 bpm). Como descrito anteriormente, os melhores prognósticos são alcançados com a realização da EDA em 12 a 24 horas. Em pacientes de alto risco, essa probabilidade ainda é amparada pelo escore de Blatchford (ponto de corte > 12). Escore de Blatchford para mortalidade e novas intervenções em pacientes de risco A já mencionada classificação de Forest auxilia a aplicar adequadamente a terapia endoscópica, pois pacientes com úlceras Ia, Ib e IIa apresentam maior chance de novo sangramento nos primeiros dias após o episódio, sendo forte candidatos a esse tipo de tratamento. Os principais métodos realizados a partir da EDA são: Injeção de fármacos: popular em virtude do baixo custo e praticidade. O principal agente é a adrenalina, que estimula a vasoconstrição e a agregação de plaquetas. Devido ao risco de efeitos colaterais cardiovasculares e à curta duração da ação terapêutica, é indicada a associação com outrastécnicas. Também podem ser injetados agentes esclerosantes, como álcool, porém podem provocar novas perfurações. Métodos térmicos: tem como objetivo desnaturar proteínas e contrair colágeno a partir da geração de calor Procinéticos (eritromicina) podem ajudar a eliminar coágulos gástricos que dificultam a visibilidade na EDA. A dose é de 250 mg (OU 3 mg/kg) de 20 a 120 minutos antes do exame As metas hemodinâmicas em hepatopatas são mais “cuidadosas”: PAM > 65 mmHg PVC 8-12 mmHg Débito urinário > 0,5 ml/kg/h Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE nos tecidos, culminando em vasoconstrição. Essas técnicas podem ser divididas como por contato (eletrocoagulação e heater probe) ou de não contato (plasma ou laser de argônio). Métodos mecânicos: são bastante seguros e eficazes, tendo se tornado cada vez mais disponíveis. Consistem na colocação de hemoclipes, balões ou suturas, que tamponam vasos de forma direta. Terapia tópica: é uma nova abordagem para a HDA não varicosa, baseada na aplicação de “colas biológicas” que estimulam a reaproximação tecidual e a coagulação. Em quadros mais complexos, com ressangramento, sucesso terapêutico parcial, ou na incapacidade de detecção do foco hemorrágico, é realizada uma endoscopia de revisão em 24 horas, de forma a complementar o tratamento. Se mesmo após esse procedimento houver novo episódio de hemorragia, o paciente deve ser encaminhado para a radiologia intervencionista. Algoritmo para o tratamento da HDA não varicosa HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA VARICOSA: A HDA varicosa é causada pelo rompimento de varizes, que podem ser esofágicas ou gástricas. Tal condição se desenvolve em casos de hipertensão portal (HP), representando, portanto, uma das principais, e mais graves, complicações da cirrose. As HDA de origem varicosa são emergências médicas, visto que normalmente não possuem resolução espontânea e apresentam grande risco de recorrência. São clinicamente relevantes os episódios que necessitem da transfusão de ao menos duas unidades de sangue em 24 horas, junto ao menos um dos seguintes fatores: PAS <100 mmHg, ou alteração postural da PA >20 mmHg; FC > 100 bpm no momento de chegada ao hospital. Em pacientes com hepatopatias, os fatores que predizem a ocorrência de hemorragias são a gravidade da doença (classificação de Child-Pugh), o calibre aumentado e a presença de red spots endoscópicos nas varizes. Itens avaliados na classificação de Child-Pugh, usada para estadiar casos de cirrose hepática Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE Varizes esofágicas com a presença de red spots em análise endoscópica A HP é definida como a elevação no gradiente de pressão venosa hepática (GPVH) >6 mmHg, sendo que a presença de varizes é notada quando esse valor ultrapassa 10 mmHg, e seu rompimento ocorre após os 12 mmHg. Esse quadro pode ser dividido quanto à localização do segmento vascular obstruído, a saber: Pré-hepática: trombose das veias porta ou esplênica; Intra-hepática: o Pré-sinusoidal: no Brasil, esquistossomose é mais prevalente; o Sinusoidal: hepatites B/C e esquistossomose são mais comuns no Brasil; o Pós-sinusoidal: doença veno- oclusiva e síndrome de Budd-Chiari. Pós-hepática: insuficiência cardíaca direita e outras doenças cardiovasculares. A formação de circulação colateral, rotas que permitem o desvio do fluxo sanguíneo da veia porta para o restante do corpo, tem como principais alvos: Cárdia; Canal anal; Ligamento falciforme do fígado (recanalização de veias paraumbilicais); Parede abdominal e retroperitônio; Vasos que drenam para a veia renal esquerda. As varizes de maior relevância são as gastresofágicas, pois podem se romper com mais facilidade, representando assim a complicação com maior letalidade relacionada à cirrose. Dessa forma, todo paciente com cirrose deve realizar rastreamento endoscópico para varizes esofágicas desde o momento do diagnóstico, mesmo nas fases iniciais da doença. Esse processo permite o enquadramento das alterações na classificação de Palmer e Brick: Grau I: varizes com calibre fino (< 3 mm); Grau II: formações de médio calibre (3 a 5 mm); Grau III: varizes de grosso calibre (> 6 mm) e tortuosas; Grau IV: mesmas características do grau anterior, com presença de red spots, descritos anteriormente. As varizes gástricas, por sua vez, têm sua classificação baseada na localização e em suas relações com lesões do esôfago, estabelecidas pela classificação de Sarin: Varizes gastresofágicas (GOV): se estendem por 2 a 5 cm após a junção esofagogástrica. Subdividem-se em: o GOV1: direcionam-se para a curvatura menor, com maior prevalência e risco de sangramento; o GOV2: estendem-se para o fundo gástrico, sendo responsáveis por menos sangramentos. Varizes gástricas isoladas (IGV): são observadas mesmo na ausência de comprometimento esofágico, também apresentando duas categorias: Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE o IGV1: localizadas no fundo gástrico, presentes em apenas 7% dos portadores de HP; o IGV2: raras, encontram-se na região do corpo ou antro do estômago, além do duodeno. Tipos das varizes gástricas conforme a classificação de Sarin DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO: A HDA varicosa se manifesta frequentemente como um sangramento importante, normalmente com instabilidade hemodinâmica acentuada e necessidade de transfusão. Dado o risco elevado desse quadro, o tratamento deve ocorrer, idealmente, em UTI, com presença de equipe multidisciplinar. Os pacientes com esse quadro devem ser submetidos à coleta de exames laboratoriais, como tipagem sanguínea, hemograma completo, contagem de plaquetas, tempo de protrombina, e função renal. Além da avaliação clínica e estabilização iniciais, esses indivíduos devem ser submetidos a uma EDA precoce, bem como ter acessos venosos calibrosos garantidos para a reposição volêmica. As orientações para transfusão e intubação são as mesmas da HDA não varicosa. A antibioticoterapia deve ser implementada como forma de profilaxia contra encefalopatia hepática em indivíduos cirróticos, utilizando-se a cefitriaxona intravenosa em dose de 1 g/dia por 7 dias (fase avançada), ou quinolona VO ou intravenosa (400 mg 12/12h por 7 dias). Nos casos de ruptura de varizes esofágicas, o uso de vasoconstrictores esplâncnicos (terlipressina, somatostatina e octreotide) deve ser associado à terapia endoscópica, e mantido por cinco dias. TRATAMENTO ENDOSCÓPICO: Como visto anteriormente, a endoscopia tem grande poder diagnóstico e terapêutico na HDA, apresentando benefício para pacientes varicosos principalmente quando realizada nas primeiras 12 horas de sangramento. Como principais modalidades empregadas em caso de ruptura de varizes esofágicas estão a escleroterapia e a ligadura elástica, tratamento de escolha por apresentar rápido controle hemostático com poucas recidivas. Agentes esclerosantes passíveis de aplicação no manejo da HDA Variz esofágica com ligadura (anel elástico) Júlia Figueirêdo – PERDA DE SANGUE Algumas outras possíveis formas de terapia endoscópica empregadas na HDA varicosa são: Adesivo tecidual; Prótese autoexpansível (temporário, deve ser seguido de intervenção cirúrgica em até 24 dias); Balão de Segstaken Blakemore (temporário, mantido por até 24 horas); Anastomose portossistêmica intra- hepática transjugular – Tips; Pó hemostático. Para evitar um sangramento primário, pacientes com varizes de pequeno calibre são candidatos ao uso de betabloqueadores (ex.: propranolol) para retardar o rompimento varicoso. Esse mesmo medicamento pode ser utilizado na profilaxia de ressangramento, juntoao controle endoscópico a cada 15 dias, até a resolução das lesões. Algoritmo de tratamento para a HDA varicosa
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