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Deficiência Intelectual Prof. Carlos Eduardo Steiner Dep. Genética Médica e Medicina Genômica FCM – Unicamp steiner@unicamp.br Conforme dados da Organização Mundial da Saúde, mais de um bilhão de pessoas em todo mundo convivem com alguma forma de deficiência, das quais 200 milhões apresentam dificuldades funcionais consideráveis, sendo que 80% residem em países em desenvolvimento. Essas pessoas apresentam piores perspectivas de saúde, níveis mais baixos de escolaridade, participação econômica menor e taxas de pobreza mais elevadas em comparação às pessoas sem deficiências. Em parte, isso se deve às barreiras no acesso a serviços de saúde, educação, emprego, transporte e informação (OMS, 2012). Na população brasileira, o último grande censo demográfico mostrou que 6,2% da população possui ao menos algum tipo de deficiência (IBGE, 2010). As situações mais frequentes estão indicadas na tabela 1. Tabela 1: Tipos de deficiência e sua frequência na população brasileira, declaradas no censo populacional de 2010 (IBGE, 2010). Tipo de deficiência Congênita Adquirida Somatória Visual 0,4% 3,3% 3,6% Física 0,3% 1,0% 1,3% Auditiva 0,3% 1,0% 1,1% Intelectual 0,5% 0,3% 0,8% Total 6,8% * * o valor total difere de 6,2% porque são incluídos os casos de deficiências múltiplas. Embora a deficiência intelectual (DI) seja a menos frequente das deficiências isoladas, é a que apresenta a maior prevalência das formas congênitas e a maior proporção em relação às formas adquiriras. Além disso, dentre os diversos tipos de deficiência, a DI é a mais impactante na vida das pessoas acometidas e de seus cuidadores. Essas informações têm reflexos importantes no que se refere à etiologia e às medidas de prevenção, considerando cuidados pré e periconcepcionais, bem como de genética comunitária e de aconselhamento genético das famílias sob risco. O presente texto tem como objetivo detalhar a DI do ponto de vista da genética clínica em seus aspectos etiológicos, de investigação complementar e de aconselhamento genético. 1 Histórico Durante boa parte da história, a DI esteve ao lado dos mais diversos distúrbios mentais como esquizofrenia, histeria e demência. Com o desenvolvimento da medicina moderna, a partir do século XIX começa a ser vista de maneira mais distinta e recebeu a denominação técnica de oligofrenia (gr. oligo = pouco + frenos = mente), porém muitas vezes ainda sendo confundida com a chamada “demência moral” (sociopatia). No século XIX, especialmente na Inglaterra, a DI passou a receber interesse científico baseado nos estudos de eugenia como os de Francis Galton1(1822 – 1911), que era patrocinado pela nobreza inglesa, interessada em manter a superioridade racial através de casamentos apropriados. Nessa mesma época, em 1866, ocorreu a primeira descrição científica da síndrome de Down pelo Dr. John Langdon Haydon Down, sob o nome de “idiotia mongólica”. Durante a I Guerra Mundial, o exército norte-americano passou a se preocupar com a realização de testes objetivos que pudessem ser usados na escolha e recrutamento de soldados. Com a evolução desses testes psicométricos, popularmente conhecidos como “testes de quociente de inteligência (QI)”, o governo dos EUA lançou em 1960 a classificação de DI para sua comunidade médica, a qual serviu de base para a classificação da OMS estabelecida em 1978 e válida até os dias atuais (tabela 2). Tabela 2: Evolução da classificação da DI nos últimos dois séculos e critérios utilizados para definir os diferentes graus de comprometimento. Séc. XIX Tríade oligofrênica Idiota completo sem fala, higiene pessoa ou pudor “nível de recém-nascido; inferior aos animais” Idiota incompleto Algumas palavras, relações afetivas simples “nível de uma criança de dois anos” Imbecil “idade mental de criança de 2 a 7 anos” Débil “sem grandes prejuízos” 1960 EUA Idiota completo (Idiot) QI entre 0 e 25 Imbecil (Imbecile) QI entre 26 e 50 Débil (Moron) QI entre 51 e 75 1978 OMS DI profunda QI < 20 DI grave QI entre 20 e 34 DI moderada QI entre 35 e 49 DI leve QI entre 50 e 70 - - Inteligência limítrofe QI entre 70 e 85 Foi também depois da descoberta em 1959 da trissomia 21, base citogenética da síndrome de Down, que várias outras condições cromossômicas e gênicas passaram a ser mais bem caracterizadas. Isso levou a um crescimento significativo do interesse e da participação da genética médica no estudo da DI. 1 Primo e contemporâneo de Charles Darwin. 2 Definição e conceitos fundamentais Segundo a OMS, DI é definida desde 1978 como um fenótipo complexo caracterizado por funcionamento do Sistema Nervoso Central (SNC) abaixo do esperado, resultando em limitação significativa tanto no desempenho intelectual quanto no comportamento adaptativo expresso nas habilidades de práticas de conceito, sociais e de adaptação, originando antes dos 18 anos. Essa definição traz dois conceitos muito importantes. O primeiro, é o que DI não se refere apenas ao desempenho acadêmico em atividades escolares, mas também no comportamento adaptativo. Este se caracteriza por comprometimento: • Da comunicação, tanto verbal quanto não verbal, expressa por atraso ou mesmo ausência da fala, distúrbios da linguagem verbal e dificuldade em expressar de forma inteligível seus pensamentos e necessidades, entre outros; • Da autonomia, fazendo com que muitas vezes seja necessária a ação de um cuidador; • Das atividades da vida diária (AVD) incluindo as de higiene pessoal e de vestimenta como tomar banho, escovar os dentes, limpar-se, vestir-se, abotoar botões, dar nó em cadarços, e do uso de talheres para alimentação, entre outros; • Da socialização, repercutindo em limitação do círculo pessoal e desenvolvimento de amizades em nível inferior ou inadequado à sua idade cronológica; • Da responsabilização, tornando-se inadequados para os atos de vida civil como prestação de serviço militar e habilitação para condução de veículos, entre outros, bem como no discernimento em não cometer atos ilícitos; • Da saúde e segurança, não apenas nos cuidados pessoais, mas também no que se refere a maior ocorrência de comorbidades como epilepsia, obesidade, comportamento de automutilação e transtornos psiquiátricos como depressão e ansiedade. • Do trabalho, especialmente em ocupações que necessitam maior atenção ou discernimento, sendo, entretanto, assegurado o acesso a vagas especiais no mercado de trabalho. • Do lazer. O segundo conceito importante é o que limita a idade de origem desses déficits antes dos 18 anos, ou seja, durante o período de maturação do SNC. Deste modo, os comprometimentos neurológicos resultantes de traumas, infecções ou AVEs em indivíduos acima dos 18 anos recebem denominações distintas do déficit intelectual, assim como os quadros de declínio cognitivo relacionados à idade, chamados demenciais. A rigor, o termo déficit intelectual só pode ser utilizado em indivíduos acima de 18 anos de idade e que completaram seu período de desenvolvimento neurológico. Contudo, durante a fase escolar, os sinais dos comprometimentos acima já se tornam estabelecidos e evidentes. A prática clínica para profissionais das diversas áreas da saúde mostra que, na maioria dos casos, indivíduos com déficit intelectual demonstram sinais de comprometimento cognitivo antes de atingirem a idade escolar. Esses sinais podem vir de uma informação subjetiva dos pais quanto ao desenvolvimento de seu filho em relação a outros filhos prévios ou a outras crianças na mesma idade, ou a dados objetivos de idade de aquisição de marcos do desenvolvimento neurológico segundo a escala de Denver (fig. 1). 3 Fig. 1: Exemplo de uma tabela simplificada de desenvolvimento de Denver em um paciente com 4 anos de idade, exibindo atraso motor e ausência de linguagem verbal. Ao se constatar que uma criança está demorando mais para adquirir os marcos do desenvolvimento neurológico, fala-se em retardo no desenvolvimento neuropsicomotor (RDNPM) ou atraso no desenvolvimento neuropsicomotor (ADNPM). Esses termos são frequentementeusados como sinônimos de DI, mas na realidade descrevem uma outra situação. Em geral, DI é o resultado de um processo de RDNPM, ou seja, uma criança que está mostrando sinais de atraso no desenvolvimento neurológico provavelmente será um adulto com deficiência intelectual. Por outro lado, uma criança evidenciando demora no desenvolvimento pode recuperar esse atraso, especialmente se estimulada de forma adequada, e não desenvolver DI na idade adulta. Além disso, nem todos os casos de DI exibem atraso evidente nos marcos do desenvolvimento neurológico, especialmente os de grau leve ou limítrofe. Por essa razão, RDNPM/ADNPM, DI e dificuldade de aprendizagem devem ser usados como termos distintos, cada qual com suas especificações.2,3 Por fim, o grau de funcionamento/comprometimento intelectual só pode ser aferido por instrumentos objetivos previamente mencionados, os testes psicométricos. Existem vários instrumentos, todos sujeitos a críticas metodológicas. O mais conhecido é a escala Wechsler de Inteligência para Crianças (WISC), padronizada para uso entre os seis e os 16 anos de idade e de aplicação exclusiva por profissionais com formação em psicologia. Classificação A inteligência se segue uma curva de normalidade na nossa espécie. As informações são dadas em pontos de QI, sendo que a média é 100 pontos e cada desvio padrão corresponde a 15 pontos (fig. 2). A normalidade, portanto, corresponde a valores entre 70 e 130 pontos, sendo que acima de 130 corresponde aos superdotados e abaixo de 70 pontos à DI propriamente dita. 2 Na literatura em inglês, RDNPM/ADNPM é referido como developmental delay, ou developmental disability, DI como intellectual disability, e dificuldade de aprendizagem como learning disability, learning disorder ou learning difficulty. 3 Existem, ainda, os distúrbios específicos de aprendizagem, como dislexia (dificuldade na leitura), discalculia (dificuldade em aritmética) e disgrafia (dificuldade na escrita). 4 Figura 2: Distribuição da inteligência em pontos de QI. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Quociente_de_intelig%C3%AAncia Outra constatação inerente à curva de normalidade é o fato de a quantidade de casos diminuir progressivamente à medida em que se distancia da média. Portanto a maioria dos casos de DI estará no primeiro intervalo (-2 a -3 DP), caindo em frequência até a extremidade da curva (tabela 2). Seguindo a classificação da OMS, a gravidade da DI não guarda uma relação exata com a distribuição da normalidade (tabela 2), tendo sido arredondados os valores de 55 para 50 e assim por diante. Curiosamente, a OMS reconhece ainda a situação entre 70 e 85 pontos (portanto entre -1 a -2 desvios padrões) como inteligência limítrofe. Tabela 2: Classificação e frequência dos graus de DI conforme pontuação de QI. DP QI Classificação Frequência -1 a -2 70 a 85 Inteligência limítrofe -2 a -3 50 a 69 DI leve ~ 80% -3 a -4 35 a 49 DI moderada ~ 12% -4 a -5 20 a 34 DI grave 3 a 4% > -5 < 20 DI profunda 1 a 2% Fonte: CID 10 (OMS, 2007); DMS V (APA, 2014). 5 Características clínicas A idade de início e as manifestações clínicas da DI dependem de sua etiologia e gravidade. Uma descrição do perfil de cada grau é fornecida a seguir (APA, 2014). DI leve (QI 50 a 69): Situação muitas vezes de reconhecimento não evidente por haver atraso mínimo nas habilidades motoras, podendo manter certo grau de função social, comunicativa e adaptativa. Apresentam limitações nas habilidades acadêmicas, imaturidade nas relações sociais e limitações no controle das emoções e do comportamento percebido por seus pares. O julgamento é limitado em relação aos riscos sociais, de modo que a pessoa corre o risco de ser manipulada por outros. Em relação aos cuidados sociais, não costumam apresentar dificuldade para as tarefas cotidianas simples, necessitando apenas de apoio nas tarefas mais complexas. DI moderada (QI 35 a 49): Normalmente percebe-se a diferença em comparação aos pares já na fase de desenvolvimento. O indivíduo apresenta dificuldades nas habilidades acadêmicas, com progresso lento na leitura, escrita, matemática e no entendimento do tempo e do valor e uso do dinheiro. Necessita assistência contínua para atividades conceituais. A linguagem verbal frequentemente apresenta menor complexidade em comparação aos pares. É capaz de relacionar-se afetivamente com a família e amigos, podendo manter relacionamentos românticos na vida adulta. O pensamento crítico e a capacidade de tomar decisões são comprometidos, necessitando do auxílio de familiares ou cuidadores. No trabalho, o indivíduo demanda apoio social e de comunicação. Apresentam desenvolvimento motor aceitável, embora habitualmente apresentem atraso evidente na aquisição dos marcos motores. DI grave (QI 20 a 34): O indivíduo apresenta baixa percepção da linguagem escrita e de conceitos relacionados à quantidade, tempo e dinheiro. Apresenta limitação expressiva na comunicação (que pode ser realizada através de palavras simples), podendo entender discursos e linguagem gestual simples. Sentem-se confortáveis com familiares e pessoas conhecidas. Apresenta atraso acentuado no desenvolvimento psicomotor e alterações importantes no padrão de marcha. Demanda apoio para as atividades de vida diária e tomada de decisões quanto ao seu bem-estar. Necessita apoio e assistência contínua em todas as fases da vida em atividades básicas, tarefas domésticas, recreativas e profissionais. O desenvolvimento de habilidades envolve ensino prolongado e contínuo. A autolesão pode estar presente. DI profunda (QI < 20): O indivíduo apresenta fala eventual estereotipada e rudimentar, bem como atraso psicomotor com grave restrição de mobilidade. Pode interagir com outras pessoas por meio de pistas gestuais e emocionais. Dependente de um cuidador para as atividades básicas diárias, de saúde e segurança, podendo participar de algumas dessas atividades. A coexistência de prejuízos motores e sensoriais pode impossibilitar a maioria das atividades. Frequentemente, o indivíduo apresenta comportamento de automutilação. Também é importante destacar que a DI pode ser diagnosticada em qualquer faixa etária, incluindo adultos. 6 Etiologia da DI O diagnóstico etiológico da DI é importante para fins de prevenção e aconselhamento genético de casais sob risco, mas também representa um desafio por ser altamente heterogêneo e, muitas vezes, resultar da soma de fatores simultâneos. Dependendo do grau de conhecimento clínico e dos recursos disponíveis, é possível definir um diagnóstico em até 50 a 60% dos casos, ou seja, praticamente metade dos investigados permanecem com etiologia idiopática ou desconhecida. Os fatores etiológicos podem ser classificados em (a) ambientais, (b) genéticas e (c) mistos. Além disso, de acordo com a época em que esses fatores atuaram, podem ser classificados em pré, peri e pós-natais (Melo, 2018). O tipo de etiologia e o período de estabelecimento não necessariamente se relacionam com a gravidade da DI. O período pré-natal compreende da concepção até a 22ª semana completa de gestação. Nessa fase há predomínio de fatores genéticos incluindo as anomalias cromossômicas e as doenças gênicas. Também nessa fase existe mais risco de danos a teratógenos de diversas naturezas, como os biológicos (rubéola congênita, Zika vírus), químicos (álcool, drogas lícitas e ilícitas) ou físicos (altas temperaturas, altas doses de radiação ionizante). O período perinatal abrange a segunda metade da gestação, da 22ª semana completa, até o 7º dia após nascimento. Nessa fase o concepto está exposto às condições maternas que podem levar ao sofrimento fetal intraútero, como a eclampsia, às complicações de parto que podem causar hipóxia, e às condições adversas nos primeiros dias de vida, como icterícia grave, hipoglicemia e septicemia. No período pós natal, que se inicia a partir do 8º dia de vida, predominam as causas ambientais de natureza infecciosas como encefalites e meningites, as traumáticas e a privação sociocultural decorrentede desnutrição grave e prolongada, bem como da falta de estimulação adequada. (a) Causas ambientais Entre as causas não genéticas encontram-se as encefalopatias hipóxico-isquêmicas relacionadas a problemas durante a gestação decorrente de doenças maternas, durante o parto (como trabalho de parto prolongado ou circular de cordão umbilical) e pós natais (como traumas e acidentes, a exemplo dos afogamentos em banheiras ou piscinas). Ainda entre as causas pré-natais, a exposição a agentes teratogênicos é outro grupo frequente de causa de DI. São particularmente conhecidas as infecções pré-natais por STORCH (Sífilis, Toxoplasmose, Rubéola, Citomegalovírus e Herpes), além do exemplo mais recente da epidemia de Zika vírus associado à microcefalia. Dentre as causas teratogênicas decorrentes de substâncias químicas, são várias as drogas lícitas (medicamentos) que podem causar DI, como a fenitoína (anticonvulsivante), a warfarina (anticoagulante), o misoprostol (Citotec®, inibidor da prostaglandina E1 para tratamento de doenças gástricas) e o ácido retinóico (para tratamento de acne). 7 Mas entre todas as drogas lícitas, uma delas chama a atenção pela quantidade de usuários e pela extensão dos danos ao SNC: o álcool etílico. Álcool é a droga lícita mais consumida no mundo. Estudos realizados com gestantes nos EUA indicam que 10% das mulheres consumiram álcool durante a gestação e que 2% relataram episódios de franca embriaguez. O grande problema em relação ao álcool é que não existe uma relação definida de dose efeito quanto aos danos que pode causar no SNC. Deste modo, mesmo o consumo de pequenas quantidades pode resultar em danos consideráveis no feto. Esses danos abrangem um espectro que varia de problemas neurológicos brandos até uma forma mais ampla de distúrbios generalizados chamada síndrome fetal alcoólica (SFA). A SFA se caracteriza por uma tríade de retardo de crescimento pré e pós natal, sinais dismórficos e anomalias estruturais e funcionais do sistema nervoso central. Entre os sinais dismórficos podem ser identificados a blefarofimose (estreitamento da abertura das pálpebras), a ptose palpebral, a presença de pregas epicânticas internas, o filtro nasolabial longo e apagado, o lábio superior fino, o nariz pequeno e com ponta antevertida (fig. 3 e 4) e as orelhas com hélice e antihélice paralelas (“sinal do trilho do trem”). Nas mãos é possível identificar clinodactilia (encurvamento e encurtamento dos 5os dedos), captodactilia (impossibilidade de estender os dedos) e prega palmar alterada com formato de taco de hockey (fig. 5). É comum também a presença de hirsutimo e de problemas estruturais no coração, além de microcefalia e outras alterações estruturais no cérebro. Do ponto de vista funcional, pode ocorrer DI em graus variáveis e déficits de linguagem, memória e raciocínio lógico. Há vários problemas comportamentais, especialmente a hiperatividade. Essas alterações perduram por toda vida, de modo que pacientes com SFA frequentemente se tornam adultos com desajuste social e dificuldade no cumprimento das leis, comportamento sexual inadequado, depressão e ideação suicida, além de exibirem adição ao álcool e às drogas ilícitas. Estima-se que 10% da população mundial sofra do espectro da exposição fetal ao álcool e 1% possa ter a SFA, sua forma mais grave e completa. Figura 3: Aspecto facial de crianças com SFA. Nota-se a prega epicântica, a blefarofimose, a ptose palpebral e o filtro nasolabial longo e apagado, além do lábio superior fino. 8 Figura 4: Exemplos de graus de apagamento do filtro nasolabial e do afilamento do lábio superior, indo da variação normal (em 1) até o extremo da SFA (em 5) e em diferentes populações étnicas (A caucasóides; B asiáticos; C afrodescendentes). Fonte: Wattendorf & Muenke, 2005. Fig. 5: Alterações de mãos descritas em paciente com SFA, com destaque para a clinodactilia do 5º dedo e para o formato “em taco de hockey” da prega palmar superior decorrente da angulação da extremidade em direção ao espaço entre o 2º e o 3º dedo. Fonte: Wattendorf & Muenke, 2005. 9 A relevância das causas ambientais de DI recai no fato de que são situações preveníveis. As medidas de prevenção incluem: • Vacinação contra rubéola em idade pré-reprodutiva. • Prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis. • Realização de pré-natal adequado, com cuidados redobrados para as mães acometidas por doenças crônicas. • Uso do ácido fólico no período pré-concepcional, como prevenção dos defeitos de fechamento do tubo neural. • Evitar a automedicação, considerando que vários medicamentos possuem potencial teratogênico (ou seja, utilizar apenas as medicações prescritas pelo obstetra e comunicar a intenção de engravidar aos demais especialistas para que possam fazer substituição de medicamentos usados no tratamento de doenças crônicas). • Evitar o uso de álcool durante a gravidez, em qualquer quantidade e em qualquer fase da gestação. • Assistência adequada ao parto e ao recém-nascido. (b) Causas genéticas As causas genéticas podem ser decorrentes de anomalias cromossômicas, doenças monogênicas ou de outros mecanismos genéticos menos convencionais. As anomalias cromossômicas são aquelas decorrentes de alterações de cromossomos inteiros ou de segmentos cromossômicos menores, causando excesso ou falta de material genético. Essas anomalias estão presentes em até 1% dos natividos (ou 2% dos filhos de mulheres com mais de 35 anos de idade) e em 50% dos abortos espontâneos. As alterações numéricas de cromossomos inteiros (aneuploidias) e as grandes alterações estruturais podem ser identificadas pela citogenética convencional em microscópio óptico como no exame de cariótipo. Já as alterações em nível submicroscópico necessitam de técnicas de citogenética molecular como hibridização fluorescente in situ (FISH) ou hibridização genômica comparativa em array (arrayCGH, chromosome microarray – CMA). O cariótipo convencional é capaz de detectar alterações em até 3% dos casos de DI, porém o uso das técnicas moleculares tem aumentado a capacidade de resolutividade para acima de 20%, tornando-se atualmente a técnica recomendada como exame de primeira escolha na investigação da DI. Entre as alterações cromossômicas numéricas, a síndrome de Down é a mais conhecida e a mais frequente, sendo também a causa mais comum de DI de etiologia genética em humanos. Outras alterações numéricas clássicas incluem a trissomia 13 (síndrome de Patau) e a trissomia 18 (síndrome de Edwards), geralmente associadas a óbito precoce no primeiro ano de vida. Dentre as alterações estruturais mais conhecidas estão a monossomia 4p (síndrome de Wolf-Hirschhorn) e monossomia 5p (síndrome do cri du chat, miado do gato), essas com menor letalidade precoce e podendo ser identificadas em crianças em idade escolar. 10 As alterações dos cromossomos sexuais como a monossomia X (síndrome de Turner), XXY (síndrome de Klinefelter) e XYY (duplo Y) não costumam se associar a DI na maioria dos casos. As síndromes de microdeleção, também chamadas de síndromes de genes contíguos, são menos frequentes, porém apresentam quadro clínico característico e reconhecido pelos profissionais com maior experiência em dismorfologia. Essas incluem a síndrome de Williams (cromossomo 7), síndromes de Prader-Willi e de Angelman (cromossomo 15), síndrome de Smith-Magenis (cromossomo 17) e síndrome da deleção 22q11.2 (velocardiofacial, DiGeorge, Shprintzen; cromossomo 22). As condições monogênicas formam o maior grupo de causas genéticas de DI, sendo bastante heterogêneo em relação a mecanismo de herança, gravidade e associação ou não a outros sintomas (formas sindrômicas), a exemplo da síndrome de Cornelia de Lange e da fenilcetonúria não tratada. Quanto ao mecanismo de herança, as formas autossômicas recessivas parecem representar a maioria dos casos, seguidas pela herança ligada ao X. Entretanto as formas autossômicas dominantes, anteriormente consideradas incomuns, têm sido cada vez mais descritase tonando-se mais representativas. Os genes que causam DI ligado ao X são de interesse especial em genética clínica porque são os responsáveis pelo excesso de homens com DI em relação às mulheres e pela peculiaridade na transmissão nas famílias, acometendo irmãos, tios e primos através de uma série de mulheres assintomáticas ou com pouco comprometimento intelectual. Dentre todas as condições ligadas ao X, a mais importante é a síndrome do X frágil, que acomete um a cada 4.000 meninos nascidos vivos, sendo a segunda causa mais frequente de DI na nossa espécie (atrás apenas da síndrome de Down), mas sendo a primeira causa hereditária. A síndrome do X frágil (SXF) recebe esse nome por causa de uma característica citogenética, um sítio frágil localizado no final do braço longo do cromossomo X (Xq27.3) onde se localiza o gene FMR1. A mutação que determina a perda da função desse gene é do tipo mutação dinâmica por expansão do tripleto CGG. Essa trinca se repete em um número variável na população geral (entre 6 e 50 vezes) sem interferir na produção da proteína FMRP. A partir de 50 repetições começa a deixar a transcrição instável, numa situação chamada pré-mutação. Acima de 200 repetições a proteína deixa de ser transcrita e surgem os sintomas decorrentes de sua deficiência, portanto a síndrome propriamente dita (fig. 6). Em condições especiais de cultura é possível identificar um ponto de fragilidade Na SXF ocorrem manifestações tanto físicas quanto comportamentais. Entre as características físicas é possível notar macrocefalia, face alongada, prognatismo, macroorquidia (aumento do volume testicular), peito escavado, pés planos e hiperextensibilidade articular distal. As alterações de face e genitália tornam-se mais pronunciadas ou são vistas apenas após a puberdade. O fenótipo comportamental inclui DI em graus variados, sintomas autísticos (especialmente a aversão ao contato visual), TDAH, agressividade e outros. Assim como na maioria dos distúrbios ligados ao X, as mulheres com SXF geralmente apresentam um fenótipo mais brando e caracterizado por timidez excessiva, introspecção e dificuldade leve a moderada de aprendizado. 11 Fig. 6: mutação FRAXA no gene FMR1, conforme número de repetições da trinca CGG, e manifestação citogenética do sítio frágil no cromossomo X (seta). Arquivo do Serviço de Genética Clínica, DGMMG/FCM/Unicamp. De modo geral, as causas genéticas predominam nas formas moderada a profunda de DI. As medidas de prevenção das doenças genéticas incluem o diagnóstico e o aconselhamento genético de pessoas e casais sob risco, que compreendem as situações com: • Histórico de doenças genéticas na família. • Consanguinidade • Idade materna avançada (risco aumentado para aneuploidias, como a síndrome de Down). (c) Causas mistas A inteligência, assim como várias outras características como peso, estatura, cor de pele etc., é determinada por uma combinação de fatores genéticos múltiplos e aditivos (poligênicos) associados a fatores ambientais. Esse modelo genético é chamado de multifatorial. O modelo multifatorial de DI prevê que (i) o grau deverá ser leve; (ii) o exame físico deverá ser essencialmente normal, não sugerindo uma doença genética específica; (iii) deverá haver um parente em 1º grau acometido, sendo o seu diagnóstico de exclusão, ou seja, devem ser descartadas outras causas de DI. No modelo multifatorial, além do efeito poligênico decorrente de alterações em diversos genes relacionados à inteligência (entre 60 e 80% de todo genoma), as causas ambientais como desnutrição proteico-calórica e privação sócio-cultural predominam entre as formas limítrofe e leve de DI. 12 Investigação clínica da DI Por ser uma situação altamente heterogênea, a investigação da DI é complexa e muitas vezes infrutífera, pois mesmo nos países com maior disponibilidade de recursos tecnológicos em aproximadamente 50 a 60% dos casos não se consegue determinar suas causas. Mas essa estatística não deve desanimar as famílias e os profissionais de saúde, pois a identificação da causa de DI em um paciente em particular, além de trazer respostas à família, pode direcionar o tratamento e orientar o aconselhamento genético, visando a prevenção de novos casos nessa família. A fig. 7 apresenta o fluxograma de investigação genético-clínica de um paciente com DI ou atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, conforme preconizado pelo CFM (2017).4 Fig. 7: Fluxograma de investigação da DI ou do atraso do desenvolvimento neuropsicomotor. Fonte: CFM (2017) 4 Embora o fluxograma indique que na ausência de um fenótipo reconhecível deva-se iniciar a investigação por microarray cromossômico e depois exoma, estudos mais recentes publicados na literatura internacional sugerem que essa sequência seja invertida, considerando o aumento da resolutividade do exame de exoma com os avanços tecnológicos dos últimos anos. 13 Referências APA – AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5. Porto Alegre: Editora Artmed, 2014. BORILLI MC. Qualidade de vida de famílias que têm filhos com deficiência intelectual leve associada ao transtorno do espectro do autismo leve. [dissertação] UFSCAR, São Carlos, 2020. BRASIL, IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010: características gerais da população, religião e das pessoas com deficiência. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/>. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Cartilha para educação continuada em Genética Médica. Módulo 1. Deficiência intelectual: investigação do diagnóstico etiológico. Brasília, 2017. MELO, D.G. et al. Investigação etiológica nas situações de deficiência intelectual ou atraso global do desenvolvimento. Canoas, v. 6, n. 3, 2018. OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-10 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. Tradução Centro Colaborador da OMS para Classificação de Doenças em Português. 10a rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2007. OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório mundial sobre deficiência (WHO & The World Bank, 2011). Reproduzido pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Governo do Estado de São Paulo, 2012. Disponível em http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/RELATORIO_MUNDIAL_COMPLETO.pdf WATTENDORF DJ, MUENKE M. Fetal Alcohol Spectrum Disorders. Am Fam Physician 2005;72:279-82, 285. 14