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SEMIÓTICA Cláudia Renata Pereira de Campos André Corrêa da Silva de Araujo Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 C198s Campos, Cláudia Renata Pereira de. Semiótica / Cláudia Renata Pereira de Campos, André Corrêa da Silva de Araujo. – Porto Alegre : SAGAH, 2017. 134 p. : il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-074-0 1. Semiótica. I. Araujo, André Corrêa da Silva. II. Título. CDU 81’22 Semiotica_Iniciais_Impressa.indd 2 13/03/2017 14:52:04 Teoria semiótica do texto Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: n Reconhecer o modo como os textos se organizam em diferentes estruturas, no chamado percurso gerativo de sentido. n Identifi car a teoria da cooperação interpretativa e o papel que o leitor desempenha na construção de sentido de um texto. n Indicar as relações que os textos mantêm entre si como práticas sig- nifi cantes sob o conceito de intertextualidade. Introdução Vivemos em uma sociedade que é organizada por normas de conduta, leis e narrativas. Essas histórias que moldam o nosso estar no mundo estão registradas em textos, que frequentemente são fruto de interpretações conflitantes. Como conseguir entrar em acordo acerca de tantos textos que podem significar tantas coisas? A semiótica centrou sua atividade no estudo dos signos e dos processos de significação e sentido. Por isso, os textos acabam sendo objetos privilegiados para essa teoria, pois eles proporcionam um entendimento alargado do modo como dotamos o mundo de sentido. Neste texto, você vai conhecer as principais teorias semióticas acerca do estudo de textos. Partindo do mapeamento de suas estruturas internas, de acordo com Greimas, você vai descobrir como a semiótica trabalha com a figura do leitor e da interpretação, segundo Umberto Eco, e também como funcionam as relações que os textos mantêm entre si, conforme o conteito de intertextualidade estudado por Julia Kristeva e Roland Barthes. Texto e semiótica Os primeiros estudos semióticos eram voltados ao estudo do signo linguístico e aos processos de signifi cação. Desde a semiologia de Saussure e a semiótica Semiotica_U3_C03.indd 94 13/03/2017 14:57:04 de Peirce, o objeto priorizado era o signo e os sistemas mais amplos produção de sentido, como as línguas naturais. Há também estudos mais focados, como a estrutura frasal e como o sistema da língua se atualiza em sintagmas específi cos. Com o desenvolvimento da semiótica ao longo do século XX, vimos uma transformação desses objetos de análise. De um foco para o sistema e as grandes estruturas, os estudos semióticos se voltaram para o uso linguístico e concreto em sistemas mais limitados, como o texto. Essa transformação possibilitou que se entendesse de forma mais concreta o modo como os sistemas gerais de significação atuam em um todo delimitado, como as formas narrativas. Neste capítulo, iremos abordar diferentes formas pelas quais a semiótica tratou a análise textual e quais suas principais descobertas. É preciso destacar que o estudo dos textos possui uma longa tradição. José Luiz Fiorin (1995) destaca duas grandes correntes que estabeleceram o texto como seu objeto central. Haveria as correntes que tratam o texto como objeto de significação, ou seja, correntes dedicadas a entender o texto por ele mesmo, suas propriedades internas e as relações propostas dentro de seu universo semântico. Podemos destacar dentro dessa corrente os estudos hermenêuticos, que visam interpretar o sentido final de um determinado texto, à parte de questões contextuais exteriores a ele. Há também o método da Nova Crítica, que observa em uma leitura próxima do texto suas estruturas narrativas mais fundamentais, sem se preocupar com a posição que determinado texto ocupa no tempo e no espaço. Uma segunda concepção toma o texto como objeto histórico. Essa con- cepção dá destaque às condições sociais do contexto histórico-político de que o texto serve como representação. Nessa perspectiva, você encontra discus- sões acerca do sistema social que gerou não apenas a visão de mundo de um determinado autor, como também uma avaliação crítica de como o texto age em relação às condições que o geraram. Enquanto que tomar o texto como um objeto de significação significa atentar para os mecanismos internos ao texto, tratá-lo como objeto histórico significa mapear o contexto externo a ele. Nessa tradição, encontramos os trabalhos de crítica literária de vertente marxista e, mais contemporaneamente, os Estudos Culturais ingleses. Para saber mais sobre diferentes teorias do texto que deram origem a abordagem semiótica, leia Teoria da Literatura: Uma Introdução (EAGLETON, 1994). 95Teoria semiótica do texto Semiotica_U3_C03.indd 95 13/03/2017 14:57:04 A semiótica se propõe a apresentar um meio-termo entre essas duas pers- pectivas. Inicialmente focada nos aspectos internos ao texto, a perspectiva da Escola de Paris de semiótica, capitaneada por Algirdas Julien Greimas, também considera os aspectos que são a ele exteriores. Ou seja, trata do texto como um objeto de significação, como um “todo de sentido” (FIORIN, 1995), mas também o trata como objeto de comunicação. Isso quer dizer que também se preocupa com as condições contextuais no qual o texto está inserido, como as figuras de emissor e receptor. Ou seja, a semiótica está menos preocupada em descobrir um sentido último para um determinado texto ou a representação que ele faz de uma realidade exterior, e mais preocupada em saber o que um texto pode dizer e como o faz. Como afirma a autora Diana Luz Pessoa de Barros (2005, p. 12): “Para explicar ‘o que o texto diz’ e ‘como o diz’, a semiótica trata, assim, de examinar os procedimentos da organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produção e de recepção do texto.”. Percurso gerativo de sentido no texto. Um dos autores que mais se dedicou ao estudo dos textos sob o prisma da semiótica foi Greimas. Em sua teoria do percurso gerativo do sentido, Greimas (apud FIORIN, 1995) mapeou a partir de três grandes níveis estruturais como funcionaria todo e qualquer texto do seu ponto de vista narrativo. Para ele, a teoria semiótica do texto consegue abarcar tanto os processos internos de significação como a sua inserção em um contexto mais expandido da comunicação humana. José Luiz Fiorin (1995, p. 167) compreende a teoria semiótica de Greimas como um instrumento importante para a análise textual pois “[...] concebe o processo de produção do texto como um percurso gerativo, que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, num processo de enriquecimento semântico.”. Isso quer dizer que Greimas mapeia desde os níveis mais fundamentais da significação até o mais superficial (e complexo) nível do texto, numa progressão. Essa progressão ou passagem de níveis é o que chama de percurso gerativo de sentido. O percurso gerativo de sentido aplicado ao texto é organizado em três níveis, que vai do mais abstrato e simples, aos mais concretos e complexos: o nível fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo. No nível fundamental é onde operam as distinções mais básicas e funda- mentais do plano de conteúdo. É aqui onde se articulam as oposições binárias que organizam o modo como dotamos o mundo de sentido. Oposições como vida/morte, alto/baixo, bom/mau, forte/fraco. É a hipótese de Greimas que todo o texto possua um eixo que oponha dois conceitos em relação de con- trariedade. É também no nível fundamental que esses conceitos adquirem um valor semântico. Isso quer dizer que não apenas há uma oposição entre Semiótica96 Semiotica_U3_C03.indd 96 13/03/2017 14:57:05 termos contrários, mas esses termos recebem um valor hierárquico: aqueles que são positivos recebem um valor de euforia e os negativos de disforia. É importante destacar que essa valorização não diz respeito a universais:um texto por ter como valor eufórico a vida, enquanto outro texto pode trabalhar o mesmo conceito como valor disfórico. No segundo nível do percurso gerativo de sentido você encontramos o nível narrativo. Nesse nível é que se estabelece os princípios mais gerais e universais da narrativa. É importante você prestar atenção que para Greimas (apud NÖTH, 1996) todo e qualquer texto possui uma estrutura narrativa, não apenas os textos literários. Um texto reflexivo, um texto político, um texto artístico; todos obedecem a uma estruturalidade que é organizada nesse nível. Como afirma Fiorin (1995), uma narrativa mínima define-se como uma trans- formação de estado. Do ponto de vista sintagmático, isso pode ser exposto em quatro categorias: sujeito, objeto, conjunção e disjunção. Uma narrativa se estrutura a partir de um sujeito que está em estado de conjunção ou disjunção com um dado objeto. O percurso gerativo de sentido afirma que o decorrer da narrativa será aquele em que esse estado irá se transformar. O sujeito que está em conjunção com um objeto irá entrar em disjunção ou vice-versa. Há uma relação entre o nível fundamental e o nível narrativo. Em geral, os objetos com os quais o sujeito está em conjunção ou disjunção são os conceitos semânticos identificados no nível fundamental. Ou seja, um sujeito pode estar em conjunção ou disjunção com o objeto vida, ou o objeto riqueza, e a narrativa irá se desenvolver tendo em vista a mudança desse estado. Há narrativas em que a mudança de estado é eufórica, como as narrativas de superação, ou disfórica, como as tragédias. O modo como se desenvolve essa sintaxe narrativa é partir do que ficou conhecido como a sequência canônica. Essa sequência refere-se às ações que um dado sujeito deve atravessar para que ocorra uma transformação de estado. São quatro elementos: n Manipulação: fase do querer ou do dever. O sujeito aqui expressa uma dada condição e uma vontade de transformação. n Competência: fase onde se adquire um dado saber e capacidade para realizar uma ação. n Performance: fase onde a ação acontece e ocorre a transformação de estado. n Sanção: fase onde ocorre o “acerto de contas”, onde há prêmios ou castigos. O último nível do percurso narrativo de Greimas é o nível discursivo, o mais superficial ao mesmo tempo em que o mais complexo. É nesse nível 97Teoria semiótica do texto Semiotica_U3_C03.indd 97 13/03/2017 14:57:05 onde as sintaxes dos níveis anteriores se revestem em signos específicos. Não se trata mais de um conceito de vida/morte universal, mas um especí- fico: quem, quando, onde, como. Da mesma forma, não temos mais apenas um sujeito e um objeto abstratos. Há uma concretização das estruturas em signos, identificáveis no plano textual. É aqui que encontramos a ideia de gêneros textuais, como mistério ou terror, as estratégias de estilo e persuasão e também as intenções de um dado autor em comunicar algo. Se nos níveis anteriores encontrávamos estruturas gerais e abstratas, aqui estamos no plano do particular. Ainda que se possa argumentar que nesse nível todo o texto é diferente, Greimas ainda identifica estruturas de invariância, como por exemplo os dois polos possíveis de concretização. Por um lado temos uma concretização temática, ou uma tematização. A tematização se refere aos conceitos mais abstratos, como, por exemplo, falar sobre morte a partir da perspectiva da violência urbana em um artigo de jornal. A outra forma de concretização é a figurativa. A figurativização trata o texto de forma criativa, como contar uma história que se passa em uma favela e discutir a violência urbana a partir dos personagens. Tanto a figurativização quanto a tematização estão presentes em todos os textos, variando apenas o foco e o seu destaque. Greimas também elaborou um importante modelo para dar conta das ações dos personagens em narrativas. Fique atento ao seu Modelo Actancial (BARROS, 2005) para análises mais detidas sobre narrativas e personagens. Umberto Eco e a cooperação interpretativa O trabalho de Greimas no mapeamento das estruturas que organizam a produ- ção do sentido de um texto é fundamental para sua compreensão. Entretanto, outros autores dedicaram-se a estudar o texto como objeto semiótico. Um dos mais importantes semioticistas do século XX, Umberto Eco (1932 – 2016) dedicou grande parte de sua obra sobre essa questão. O aspecto que você conhecerá aqui é a teoria da cooperação interpretativa proposta por Eco, que trata das relações que se estabelecem entre autor-texto-leitor dentro de uma perspectiva semiótica. Semiótica98 Semiotica_U3_C03.indd 98 13/03/2017 14:57:05 Eco (1988) parte de uma inquietação acerca da dimensão interpretativa dos textos: se é que há uma estrutura bastante rígida que subjaz a elaboração dos textos, qual o motivo pelo qual eles produzem tantas interpretações distintas? Eco se coloca no centro de um paradoxo: por um lado, há uma espécie de liberdade interpretativa quanto a obras de arte. Você pode ler um romance de Machado de Assis, por exemplo, e chegar a conclusões sobre o que o autor quis dizer muito distintas que as de seu colega que leu o mesmo romance. Ao mesmo tempo, uma análise textual semiótica profunda vai encontrar estruturas invariantes que estimulam certas interpretações e limitam outras. Por exemplo, se alguém lhe diz: “Maria comeu um ……. no almoço hoje”, você dificilmente pensará que a palavra que falta é “computador” ou “jogar”. Há uma estrutura linguística que subjaz a comunicação verbal e o texto que diminui nossas possibilidades de interpretação. Entretanto, dentro da categoria de substantivos alimentícios, existe uma infinidade de opções possíveis de completar essa frase. Eco (1988) se coloca nesse meio de campo: como estudar os mecanismos de invariância de um texto e, ao mesmo tempo, preservar um grau de liberdade de interpretação? O próprio define sua empresa semiótica como uma tentativa de mapear e descrever as formas e estruturas da abertura dos textos. A compreensão de Eco (1988) é a de que o texto é uma estrutura funda- mentalmente incompleta. O autor italiano frequentemente usa a imagem de um tecido para descrever sua composição: são palavras, frases e parágrafos tecidos em um conjunto. Mas essa costura possui espaços em branco, lacunas que precisam ser preenchidas. Para um texto se completar, diz Eco (1988), é preciso que haja uma cooperação entre autor, texto e leitor. Existem duas razões para a necessidade dessa cooperação: a primeira é que Eco (1988) compreende o texto como um “mecanismo preguiçoso”, que não funciona sozinho, precisa do investimento interpretativo de algo que não ele próprio. A segunda é que todo texto possui uma dimensão estética para além da didática, cuja fruição necessita de uma margem interpretativa para surtir efeito. Assim, surge a figura do leitor, como esse complemento necessário para a produção de sentido de um determinado texto. Como afirma o próprio autor, [...] um texto postula seu destinatário como condição indispensável não apenas de sua própria capacidade comunicativa concreta, mas também da própria potencialidade significativa. Em outras palavras, um texto se emite para que alguém o atualize; incluso quando não se espera que esse alguém exista concreta e empiricamente. (ECO, 1988, p. 76). 99Teoria semiótica do texto Semiotica_U3_C03.indd 99 13/03/2017 14:57:05 É o leitor que, de certa forma, anima o texto. Mas Eco (1988) deixa claro que não está falando, necessariamente, de um leitor de carne e osso, uma pessoa concreta que estaria fora do texto com ele em mãos, o lendo. Para Eco (1988), o leitor é uma função do próprio texto, faz parte de seu dispositivo semiótico. É preciso que o texto construa um leitor, uma função semiótica capaz de decodificar o texto a partir de um conjunto de competências. O leitor “de carne e osso” é produzido mesmo antes de existir concretamente, previsto pelo próprio texto queprecisa completar – ainda que não precise efetivamente existir empiricamente. A linguagem não se desenvolve sozinha, mas sim em um processo de comunicação e transmissão. O leitor, para Eco (1988), é uma instância da linguagem, que não apenas decifra o texto, mas o completa, que já está presente nele como uma função própria da linguagem, podendo assim transformá-lo. E o leitor “de carne e osso”, para decifrar o texto precisa se produzir enquanto linguagem de acordo com as exigências semióticas do texto. Ou seja, na compreensão de Eco (1988), o texto modela e é modelado pelo leitor. Esse leitor implícito que existe no interior do próprio processo de sig- nificação da linguagem é o que Eco chama de leitor-modelo. A expressão leitor-modelo é interessante por duas questões: a primeira, pois pressupõe a existência de um leitor que cumpra uma dada competência sígnica capaz de decodificar as estratégias de linguagem empreendidas no texto em questão (língua, narrativa, cultura, etc.); a segunda, que esse leitor-modelo jamais irá existir plenamente, ele deve ser criado (ou modelado) pelo próprio texto. Ao mesmo tempo, aquilo que escapa ao texto, mas faz parte da competência sígnica do leitor, outros códigos adquiridos de outros textos, fazem parte de um conjunto de interpretações alternativas ao texto, que não estavam previstas por um autor. De certa forma, o leitor-modelo é a instância que resolve o paradoxo in- terpretativo de Eco, como bem expõe nessa passagem: “[...] o texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo.” (ECO, 1988, p. 39). Um texto tem sua própria estrutura invariante, que estimula um dado tipo de interpretação prevendo um leitor-modelo. Ao mesmo tempo, esse leitor-modelo jamais corresponde àquele produzido pelo texto, gerando assim distintas interpretações. A variância interpretativa também se relaciona ao modo como os textos são compostos e para qual propósito. Eco vai estabelecer uma tipologia que coloca os textos em duas categorias: textos abertos e textos fechados. Isso refere-se aos modos possíveis de cooperação textual passíveis de serem realizados por determinados leitores-modelo. Textos fechados seriam de dois tipos: aqueles Semiótica100 Semiotica_U3_C03.indd 100 13/03/2017 14:57:05 direcionados a um leitor-modelo muito específico, como livros infantis ou livros de receita gastronômica; e aqueles cujo propósito é justamente fechar-se para interpretação, como leis ou manuais de conduta. Mas Eco (1988) chama atenção que um texto fechado pode ser lido por leitores que não aqueles para o qual o texto foi direcionado. Assim, mesmo o mais fechado dos textos se abre para interpretações. Já os textos abertos são aqueles cujo sentido é abrir-se para múltiplas interpretações, textos nos quais o autor não queria estabelecer um guia de sentido único. Os principais exemplos de textos abertos são obras literárias e a poesia. A cooperação textual aqui assume o seu maior grau, pois é apenas com a participação ativa de um leitor-modelo em decifrar o texto é que se pode chegar a uma determinada interpretação. E, claro, por ser aberto, suas interpretações irão variar muito. Mas preste atenção: o fato de um texto aberto permitir interpretações não quer dizer que ele não possua um leitor-modelo estrito. Pelo contrário, obras poéticas muito densas, como a de T. S. Eliot, por exemplo, exigem um leitor erudito, conhecedor de várias línguas, versado em história e estética. O que torna o texto aberto é o fato de o autor não limitar as potencialidades significativas de um texto a um único sentido. Essa relação de cooperação entre texto e leitor-modelo também coloca em xeque as buscas por intencionalidade do autor. Pois, como Eco (1988) afirma, uma determinada bagagem gramatical de um leitor-modelo pode encontrar no texto algo que escapa às intenções do autor ao produzi-lo. Isso quer dizer que o leitor está errado? Eco afirma que não. A interpretação inesperada faz parte do funcionamento semiótico da linguagem, que muitas vezes acaba dizendo mais do que o autor jamais imaginou. Por isso que, assim como o leitor-modelo, o autor é também uma função semiótica. O autor é produzido pelo texto e pela cooperação interpretativa da mesma forma que o leitor. Os resultados interpretativos dizem pouco sobre o autor de carne e osso, empírico, que produziu o texto. É o próprio funcionamento textual e semiótico que produz as interpretações, na cooperação entre autor-modelo, leitor-modelo e texto. O pensador francês Michel Foucault também teceu considerações acerca do papel do autor como uma função semiótica. Confira sua teoria em O que é um autor? (FOUCAULT, 2011). 101Teoria semiótica do texto Semiotica_U3_C03.indd 101 13/03/2017 14:57:05 Um último elemento a ser destacado sobre a teoria semiótica do texto de Umberto Eco é o seu conceito de Superinterpretação. Dado o fato de que nas obras abertas não há um sentido último a ser alcançado e que as intenções de um autor contam pouco na leitura de um texto, o processo interpretativo é livre e ilimitado? Eco (1988) afirma que não, que há um risco em achar que a leitura crítica de um texto é um vale tudo. Na verdade, Eco está preocupado justamente em saber como que, mesmo em um espaço de liberdade, ainda existem interpretações textuais que seguem a mesma linha de raciocínio. A hipótese de Eco (1988) é a de que há uma ordem estrutural, tal como exposta por Greimas, que articula uma dada intenção do texto. Se não há intenção do autor e nem do leitor, pois são construtos de linguagem, o texto expressa um caminho interpretativo mais ou menos linear. O conceito de superinterpretação elaborado por Eco (1988) tem como pano de fundo uma disputa teórica com o filósofo francês Jacques Derrida. Para Derrida (2013), todo o texto possui uma gama infinita de interpretações, e aquelas que emergem são fruto de disputas políticas e ideológicas. Para ele, é preciso desconstruir os mecanismos que limitam nossa interpretação para desvelar seu funcionamento. Saiba mais em Gramatologia (DERRIDA, 2013). Intertextualidade Neste capítulo, você viu como a semiótica trata o conceito de texto em duas perspectivas: a partir de suas estruturas internas de produção de sentido, de acordo com Greimas, e do conceito de cooperação interpretativa, segundo Umberto Eco (1988). Agora, você verá um conceito importante para a se- miótica textual que é a noção de intertextualidade. A intertextualidade é um conceito que se refere ao modo como diferentes textos mantêm relações entre si. Por exemplo, em um texto acadêmico, é comum haver citações retiradas de outras obras ou textos. Essas citações são intertextos, pois se apropriam do trecho de alguma obra e o recolocam em outro contexto. A intertextualidade aponta para um tipo de significação textual que não se limita apenas a uma obra, mas sim se utiliza de uma teia de referências para produzir sentido. Na Semiótica102 Semiotica_U3_C03.indd 102 13/03/2017 14:57:06 literatura do século XX, isso se tornou uma prática comum. Talvez o exemplo mais representativo seja o romance Ulysses, do escritor irlandês James Joyce. No romance, James Joyce se apropria da estrutura narrativa da Odisseia de Homero e a atualiza para a Dublin de 1905. Não há citações diretas da obra original, mas para compreender o sentido do texto de Joyce é preciso ter noção do modo como transcorre a obra de Homero, criando um paralelo entre os dois textos. No campo da semiótica, dois autores importantes dedicaram-se a estudar o conceito de intertextualidade, Julia Kristeva e Roland Barthes. Para ambos a intertextualidade não é apenas uma prática específica de escrita ou traço estilístico: para eles, todo o texto é intertextual, pois a relação entre textos é condição fundamental para a produção de sentido semiótica. Julia Kristeva (1941 apud NÖTH, 1995) é uma pensadora búlgara cuja obra cobre áreas diversas das ciênciashumanas, da política à psicanálise. Sua contribuição mais importante para o campo da semiótica é a sua proposta da semanálise, que para ela seria uma “ciência do texto” . Kristeva compreende o texto como um “aparato translinguístico”, uma interseção de diversas fontes, vozes e códigos que se conjugam em um espaço delimitado. Esse aparato, para Kristeva, é um tipo de produtividade semiótica, que possui duas faces. A primeira face da produtividade do texto é a sua capacidade de inferir diretamente sobre o sistema da língua. Kristeva não compreende o texto como um jogo combinatório com as possibilidades da língua. Ela o vê como uma dimensão que força a língua a se transformar. Há uma relação dialética aí: a língua é um sistema semiótico com suas regras e possibilidades, e o texto é uma atualização dessas regras que visa a transformação das regras da língua. O texto como produtividade, para Kristeva, é então um tipo de mecanismo que transforma o sistema mais geral da linguagem a partir de suas experimentações. A segunda face da produtividade textual é a sua intertextualidade constitutiva. Kristeva compreende que o texto é composto inteiramente de citações provenientes dos mais diversos pontos, dos diálogos cotidianos até as grandes obras da literatura. O modo pelo qual o texto pode inferir sobre a língua é justamente a partir de uma combinação não prevista dessas citações. Ou seja, a produtividade do texto é a sua capacidade de produzir uma teia ou combinatória inesperada dessas citações. Para Kristeva não interessa exatamente o que um texto diz, pois seu conteúdo é uma elaboração do que já foi dito, mas sim como produz essa reorganização de textos prévios. A compreensão do texto para Kristeva não tem como destaque sua função comunicativa. Ela está mais interessada em entender como uma costura 103Teoria semiótica do texto Semiotica_U3_C03.indd 103 13/03/2017 14:57:06 de diferentes textos pode produzir um texto novo e sobre como a nossa interpretação também é mediada por uma infinidade de outros textos que já lemos. Para ela, não apenas o texto é fundamentalmente intertextual, mas também a nossa percepção e capacidades interpretativas. Lemos os textos com o apoio de todos os outros textos que já tivemos contato. Somos compostos de estruturas linguísticas que acabam por moldar a nossa interpretação do mundo. Por isso que para Kristeva o texto possui uma produtividade: a cada nova leitura, agregamos uma nova percepção acerca da realidade, o que acaba por transformá-la. O texto não serve para comunicar algo, mas sim para produzir uma transformação da realidade. Como diz Kristeva, é uma prática significante. Tendo isso em vista, Kristeva se preocupa menos com o produto final do texto, mas sim com as dinâmicas que o produzem. Ela está interessada no processo que permite essa teia de referências alcançar uma unidade final, uma espécie de todo de sentido. Assim como em uma sinfonia musical, o texto para Kristeva é um sistema polifônico, composto de diversas vozes. Semioticamente, é o diagrama de combinação dessas vozes que importa para Kristeva. Kristeva baseia seu conceito de intertextualidade na obra do crítico russo Mikhail Bakhtin, a partir das noções de polifonia e dialogia. Saiba mais em Fiorin (1989). Kristeva se utiliza de duas noções para investigar essa produtividade intertextual: fenotexto e genotexto. Os aspectos fenotextuais são aqueles que aparecem na superfície do texto, passíveis de análise por meio de uma linguística estrutural como a de Greimas. Já o genotexto seriam os aspectos mais profundos do texto, o caldeirão de fontes e citações das quais o texto se utiliza para produzir sentido. Mas a análise genotextual não visa apenas mapear as referências intertextuais de um texto. Mais do que isso, a semanálise de Kristeva visa estabelecer um diagrama do modo como tais referências se conjugam, transformando inclusive os textos de origem que foram apropriados e, no limite, a própria linguagem. Semiótica104 Semiotica_U3_C03.indd 104 13/03/2017 14:57:06 Roland Barthes se aproxima das ideias de Kristeva acerca do conceito de texto. O ponto de partida de sua reflexão é diferenciar a ideia de texto da ideia de obra (BARTHES, 2004). Para ele, a obra é a compreensão de um trabalho de linguagem que funciona de acordo com as intenções de um dado criador. Seu desencadeamento é linear e seu sentido é único. O que importa é encontrar as intenções do autor e o trabalho se abrirá. Barthes (2004) diz que, em geral, é assim que a crítica literária se posiciona ao analisar um trabalho de literatura: baseia-se na ideia de filiação ao autor e tenta descobrir o que ele quis dizer com seu livro. Mas Barthes (2004, p. 146) argumenta que, diferentemente da obra, “[...] um texto não é uma linha de palavras liberando um único significado teo- lógico [...]”, mas antes um espaço formado por diversas “citações” retiradas de diferentes centros de cultura. Estamos sempre reelaborando um contínuo de linguagem, que é organizado localmente numa tessitura específica, em um texto. Cada texto é sempre uma constante remissão a outros textos, que é a forma pela qual a linguagem se articula. Não há diferenciação entre os elementos que compõem um texto específico de outro. A significação, nessa perspectiva, é sempre elaborada na relação: seja na relação específica que há entre os signos presentes em um determinado texto, seja em uma perspectiva que leva em conta todos os textos já produzidos que acabam se introjetando nessa tessitura. Para Barthes (2004), não existe um sentido original; apenas jogo com linguagens existentes. O texto é, por conseguinte, fundamentalmente intertextual: O intertextual em que é tomado todo texto, pois ele próprio é o entretexto de outro texto, não pode confundir-se com alguma origem do texto: buscar as ‘fontes’, as ‘influências’ de uma obra é satisfazer ao mito da filiação: as citações de que é feito um texto são anônimas, irreconhecíveis e, no entanto, já lidas: são citações sem aspas. (BARTHES, 2004, p. 77). A partir desse percurso, você viu diferentes abordagens acerca do conceito semiótico de texto. Partindo de suas relações internas, passando pela figura do leitor-modelo e chegando ao conceito de intertextualidade, a perspectiva semiótica constitui-se não apenas como um ferramental teórico de análise, mas também como uma teoria capaz de estabelecer diferentes concepções para o texto e o trabalho da escritura de modo mais geral. 105Teoria semiótica do texto Semiotica_U3_C03.indd 105 13/03/2017 14:57:06 107Teoria semiótica do texto Semiotica_U3_C03.indd 107 13/03/2017 14:57:07 BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. 5. ed. São Paulo: Ática, 2005. BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2013. EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994. ECO, U. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1988. FIORIN, J. L. A noção de texto na semiótica. Organon, Porto Alegre, v. 9, n. 23, p. 165-175, 1995. FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1989. FOUCAULT, M. O que é um autor?. In: MOTTA, M. B. Michel Foucault: estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense, 2011. (Ditos & Escritos, III). NÖTH, W. Handbook of semiotics. Indianapolis: Indiana University, 1995. NÖTH, W. A semiótica no século XX. São Paulo: Annablume, 1996. Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: Semiotica_U3_C03
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