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Didascalicon: A Arte de Ler por Hugo de São Vitor

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Prévia do material em texto

HUGO	DE	SÃO	VÍTOR
DIDASCALICON
A	ARTE	DE	LER
Tradução	e	notas	de	Tiago	Tondinelli
SUMÁRIO
Capa
Folha	de	Rosto
Apresentação	–	Hugo	de	São	Vitor	e	a	arte	de	educar
Introdução
Livro	I
Capítulo	1:	Sobre	a	origem	das	artes
Capítulo	2:	A	filosofia	como	a	busca	da	sabedoria
Capítulo	3:	A	tríplice	potência	da	alma	e	somente	o	homem	possui	a	razão
Capítulo	4:	Quais	são	os	objetos	pertinentes	à	filosofia?
Capítulo	5:	Sobre	a	origem	da	teórica,	da	prática	e	da	mecânica
Capítulo	6:	Sobre	as	três	espécies	de	coisas
Capítulo	7:	Sobre	o	mundo	supralunar	e	sublunar
Capítulo	8:	Em	que	o	homem	é	similar	a	Deus?
Capítulo	9:	As	três	obras
Capítulo	10:	O	que	é	a	natureza
Capítulo	11:	Sobre	a	origem	da	lógica
Livro	II
Capítulo	1:	Sobre	a	distinção	das	artes
Capítulo	2:	Sobre	a	teologia
Capítulo	3:	Sobre	a	matemática
Capítulo	4:	Sobre	o	quaternário	da	alma
Capítulo	5:	Sobre	o	quaternário	do	corpo
Capítulo	6:	Sobre	o	quadrivium
Capítulo	7:	A	aritmética
Capítulo	8:	A	música
Capítulo	9:	A	geometria
Capítulo	10:	A	astronomia
Capítulo	11:	Sobre	a	aritmética
Capítulo	12:	Sobre	a	música
Capítulo	13:	Sobre	a	geometria
Capítulo	14:	Sobre	astronomia
Capítulo	15:	Sobre	a	definição	do	quadrivium
Capítulo	16:	Sobre	a	física
Capítulo	17:	O	que	é	próprio	de	cada	uma	das	artes
Capítulo	18:	Comparação	das	divisões	acima	citadas
Capítulo	19:	Sobre	o	tema	anterior
Capítulo	20:	A	divisão	da	mecânica	em	sete	ciências
Capítulo	21:	A	ciência	da	lã
Capítulo	22:	A	ciência	das	armas
Capítulo	23:	A	ciência	da	navegação
Capítulo	24:	A	agricultura
Capítulo	25:	A	caça
Capítulo	26:	A	medicina
Capítulo	27:	Sétima:	o	teatro
Capítulo	28:	Sobre	a	lógica,	a	quarta	parte	da	filosofia
Capítulo	29:	Sobre	a	gramática
Capítulo	30:	Sobre	a	teoria	da	argumentação
Livro	III
Capítulo	1:	Sobre	a	ordem	e	o	método	que	devemos	seguir	na	leitura	e	na	disciplina
Capítulo	2:	Sobre	os	autores	das	artes
Capítulo	3:	Quais	as	artes	que	devem	ser	lidas	preferencialmente?
Capítulo	4:	Sobre	os	dois	gêneros	dos	escritos
Capítulo	5:	A	função	que	tem	de	ser	atribuída	a	cada	uma	das	artes
Capítulo	6:	O	que	é	necessário	ao	estudo
Capítulo	7:	Do	que	se	trata	o	engenho	natural
Capítulo	8:	Sobre	a	ordem	da	leitura
Capítulo	9:	Sobre	o	modo	de	ler
Capítulo	10:	Sobre	a	meditação
Capítulo	11:	Sobre	memória
Capítulo	12:	Sobre	a	disciplina
Capítulo	13:	Sobre	a	humildade
Capítulo	14:	Sobre	o	estudo	da	pesquisa
Capítulo	15:	Sobre	os	quatro	preceitos	restantes
Capítulo	16:	Sobre	o	silêncio
Capítulo	17:	Sobre	a	investigação
Capítulo	18:	Sobre	a	frugalidade
Capítulo	19:	Sobre	o	exílio
Livro	IV
Capítulo	1:	Sobre	o	estudo	das	Sagradas	Escrituras
Capítulo	2:	Sobre	a	ordem	e	o	número	dos	livros
Capítulo	3:	Sobre	os	autores	os	livros	divinos
Capítulo	4:	O	que	é	uma	biblioteca?
Capítulo	5:	Sobre	os	intérpretes
Capítulo	6:	Sobre	os	autores	do	Novo	Testamento
Capítulo	7:	Outros	escritos	são	apócrifos,	mas	o	que	de	fato	significa	“apócrifo”?
Capítulo	8:	O	significado	das	palavras	dos	livros	sagrados
Capítulo	9:	Sobre	o	Novo	Testamento
Capítulo	10:	Sobre	os	cânones	dos	evangelhos
Capítulo	11:	Sobre	os	cânones	dos	concílios
Capítulo	12:	São	quatro,	os	principais	sínodos
Capítulo	13:	Os	que	fundaram	as	bibliotecas
Capítulo	14:	Quais	escrituras	são	autênticas
Capítulo	15:	Quais	são	os	escritos	apócrifos
Capítulo	16:	Certas	etimologias	pertinentes	aos	leitores
Livro	V
Capítulo	1:	Sobre	algumas	propriedades	da	Sagrada	Escritura	e	o	modo	correto	de	lê-la
Capítulo	2:	Sobre	o	entendimento	tríplice
Capítulo	3:	As	coisas	também	têm	significado	nas	Sagradas	Escrituras
Capítulo	4:	Sobre	as	sete	regras
Capítulo	5:	O	que	impede	o	estudo
Capítulo	6:	Sobre	o	fruto	da	leitura	divina
Capítulo	7:	Como	as	Sagradas	Escrituras	devem	ser	lidas	para	a	correção	dos	costumes
Capítulo	8:	A	leitura	é	dos	principiantes,	a	obra,	dos	perfeitos
Capítulo	9:	Sobre	os	quatro	graus
Capítulo	10:	Sobre	os	três	gêneros	de	leitores
Livro	VI
Capítulo	 1:	 Como	 as	 Sagradas	 Escrituras	 devem	 ser	 lidas	 para	 os	 que	 desejam	 nela	 o
conhecimento
Capítulo	2:	Sobre	a	ordem	presente	nas	disciplinas
Capítulo	3:	Sobre	a	história
Capítulo	4:	Sobre	a	alegoria
Capítulo	5:	Sobre	a	tropologia,	isto	é,	sobre	a	moralidade
Capítulo	6:	Sobre	as	ordens	dos	livros
Capítulo	7:	Sobre	a	ordem	da	narração
Capítulo	8:	Sobre	a	ordem	da	exposição
Capítulo	9:	Sobre	a	letra
Capítulo	10:	Sobre	o	sentido	da	letra
Capítulo	11:	Sobre	a	sentença
Capítulo	12:	Sobre	o	modo	de	ler
Capítulo	13:	Sobre	a	meditação	omitida	nesta	obra
Apêndices
“A”:	A	divisão	do	conteúdo	da	filosofia
“B”:	Sobre	a	magia	e	suas	partes
“C”:	Sobre	as	três	substâncias	das	coisas
Créditos
Sobre	o	Autor
APRESENTAÇÃO
HUGO	DE	SÃO	VÍTOR	E	A	ARTE	DE	EDUCAR
TIAGO	TONDINELLI
Doutor	em	filosofia	medieval	pela	PUC-RS,	é	um	estudioso	da	obra	de	Aristóteles	e	Santo	Tomás	de	Aquino.
“[Diante	desta	vida	em	contemplação	à	verdade,	 e	negando	o	convívio	 social	 e	os	bens	materiais]	alguém	poderia	 se
dirigir	a	um	filósofo	dizendo:	‘tu	não	vês	como	os	homens	zombam	de	ti?’	E,	em	resposta	ele	diria:	‘sim,	eles	zombam	de
mim,	mas	deles	zombam	os	asnos’.	Diante	desta	resposta,	quero	que	tu	penses	o	seguinte:	quanto	vale	para	um	filósofo	ser
louvado	por	pessoas	das	quais	ele	nunca	teve	qualquer	temor	de	ser	insultado?	Outro	exemplo	parecido	foi	o	de	um	filósofo
que,	após	[constante	e	duradouro]	estudo	de	todas	as	disciplinas,	alcançando	o	cume	das	artes,	resolveu	descer,	dedicando-
se	a	uma	vida	de	oleiro.	E,	por	fim,	um	último	exemplo	de	um	mestre	cujos	discípulos	em	efervescência	o	louvavam,	dizendo
que,	entre	suas	inumeráveis	perícias,	também	constava	a	de	ser	um	exímio	sapateiro”.
Hugo	de	São	Vitor,	Didascalicon
PÁLIDO,	ANÊMICO,	AINDA	QUE	UM	TANTO	esperançoso,	ou	por	 isso	mesmo;	pequeno,	delgado;	de
longe,	 o	 hoje	 nos	 parece	 um	 tempo	 culturalmente	 cheio	 de	 hipóteses,	 de	 oportunidades	 (que
seja!);	 mas,	 de	 perto,	 olhando	 bem	 de	 pronto,	 comprovamos	 nosso	 sideral	 cansaço	 diário:
vivemos	 em	uma	 época	 de	 trocas	 baixas,	 daí	 esta	 tórrida	 anemia.	Nosso	 tempo	 vangloria-se
pela	 ética	 do	 útil.	 Cada	 um	 é	 turvado	 por	 uma	 função	 social	 que	 trata	 o	 próximo	 como	 se
amparado	 fosse,	 de	 fato,	 mero	 locatário	 de	 luxo:	 aquele	 oferece	 uma	 ajuda,	 enquanto	 o
ajudado	torna-se	seu	servo,	instrumento	para	autoafirmação	e	vantagens	de	quem	o	ajuda.
Neste	maremoto	cego,	o	epicentro	tosco	é	coroado	pela	pedagogia	abstrata.	Preocupamo-nos
mais	 em	 criar	 braços	 ideológicos	 de	 pantominas	 refratárias;	 o	 aluno,	 apto	 em	 se	 confrontar
com	 seus	 pais,	 sua	 família,	 sua	 escola,	 mas	 muito	 menos,	 em	 alcançar	 o	 saber	 mínimo,	 e
sobretudo	se	tornar	articulado,	capaz	de	não	confundir	posições	abstratas	com	elementos	reais,
indiscutivelmente	concretos.
Por	esse	motivo,	e	outros	que	são	óbvios,	o	texto	posterior,	escrito	no	Medievo	por	Hugo	de
São	Vitor,	não	pode	ser	chamado	apenas	de	extemporâneo.	Pelo	contrário,	o	autor	explicitou
um	 resumo	 flagrante	 da	mediocridade	 do	 gnóstico	 que,	 antes	 de	 saber	 o	 abecedário,	 crê	 ser
capaz	de	entender	plenamente	as	metáforas	do	Apocalipse	de	João.
Hugo	fez	um	gesto	como	o	de	quem	busca	afastar	a	afoiteza;	e	conteve-se.	Explicitou,	passo
a	passo,	uma	educação	da	humildade,	pondo	de	lado	qualquer	tentativa	herética	de	criar	leis,
antes	de	conhecer	o	alfabeto.	No	texto,	ele	foi	expositor	das	artes	 liberais	e,	pilhérico,	talvez
rústico	 –	mas	 de	 uma	 rusticidade	 do	 necessário,	 do	 evitar	 de	 ornamentos	mentirosos.	 E,	 em
todo	o	caso,	 instiga	uma	pedagogia	escalar,	partindo	do	físico,	rumando	para	o	esplendor	da
metafísica.
Chesterton	 nos	 fala	 que	 a	 leitura	 de	 um	 texto	 sincero	 é	muito	 pior	 do	 que	 a	 de	 um	outro
mentiroso.	Mas	 por	 quê?	 Porque	 o	 texto	mentiroso	 conta	 a	 história	 de	 toda	 a	 humanidade
vivente,	no	momento	de	sua	confecção,	enquanto	o	sincero	petrifica-se	na	exposição	individual
de	 seu	 autor,	 e	 só.	 Portanto,	 é	 tão	maior	 o	mérito	 de	Hugo	 quanto	 não	 lhe	 faltam	 olhares
criminosos	de	leitores	dizendo:	“eis,	aqui,	um	texto	ultrapassado	sobreeducação”.
A	arte	de	ler	não	diz	uma	nem	duas	verdades	sobre	como	formar	o	homem	temente	a	Deus	e
merecedor	 de	 prestígio	 científico.	 Vai	 muito	 além.	 E,	 se	 por	 conta	 do	 dogma,	 o	 educando
desprezar	o	homem	e	sua	alma	imortal,	nada	importa	de	seu	amplo	conhecimento	técnico.	Ele
permanece	em	uma	escala	noturna,	cego	aos	lastros	das	intempéries.	Doutro	lado,	seguindo	o
exposto	 por	 Hugo,	 retirado	 do	 status	 quaestionis	 de	 homens	 como	 Aristóteles,	 Boécio	 e
Agostinho,	 o	 texto	 acrescenta	 limites	 relevantes	 ao	 educando,	 e	 caminhos	 necessários	 ao
educador.
Passar	por	cada	um	dos	livros	significa	negar	o	corporativismo	da	educação	do	“para	quê?”,
ou	seja,	o	saber	desde	o	seu	início	coroado	por	um	ceticismo	traçado.	Afinal,	começou	Hugo	a
se	opor	às	heresias,	atacando	fielmente	o	leitor	superficial,	tentado	explicar	os	trechos	além	de
sua	capacidade	presente.
Hugo	reiterava	a	disciplina	da	música	como	um	sequencial	matemático	divino,	e	não	como
anódino	 recife	 de	 diversão	 banal;	 a	 geometria,	 disciplina	 espelhada	 –	 paralelo	 das	 leis
universais,	 no	 abstratismo	 das	 formas;	 a	 astronomia,	 a	 harmonia	 tranquila	 dos	movimentos
astrais,	e	seus	reflexos	em	nosso	íntimo;	finalmente,	a	ética,	prática	do	“bem	viver”,	e	não	do
“viver	bem”	–	cabal	diferença,	aliás:	“bem”	viver,	privilegia	o	bem,	em	detrimento	do	“viver”,
mas	 combinando-os,	 declarando	 que	 temos	 de	 temer	 apenas	 viver,	 desgastarmo-nos	 para	 a
manutenção	 de	 nossa	 habilidade	 orgânica	 de	 promover	 mais	 um	 suspiro.	 Sem	 o	 bem,
direcionamo-nos	 para	 um	 estado	 animalesco	 não	 crivado	 por	 almas	 imortais.	 Se	 não
acreditarmos	nisso,	paciência;	mas	o	certo	é	que	é,	na	nossa	simplicidade,	adivinhamos	tudo.
Que	mais?	A	prova	de	que	 é	pela	direção	pedagógica	do	 espírito	que	de	 fato	 somos	homens
tranquilos	e	satisfeitos.
Esta	é	a	 importância	do	texto	que	segue.	Há	ampla	construção	da	catedral	da	formação	do
espírito.	Preceitos	básicos,	focando	o	conhecimento	da	lógica	e,	 instrumentalizando-a,	em	seu
íntimo,	a	gramática,	a	eloqüência	e	a	dialética.
É	este	o	caminho	a	ser	seguido	pelo	educador	–	o	coroar	da	educação	formal,	pelo	iluminar
do	 farol	 espiritual.	 E	 tudo	 isto	 deve	 ser	 respeitado,	 relido,	 reafirmado	 nos	 nossos	 tempos.
Devemos	 negar	 seguir	 as	 regras	 demoníacas	 de	 teorias	 contemporâneas,	 muitas,	 aliás,
insuficientes,	ineficazes,	compêndios	da	derrota.	O	educador	não	pode	crer	em	um	empirismo
cego,	 sob	 pena	 de	 se	 equivaler	 ao	 personagem	 descrito	 por	 Machado	 de	 Assis	 no	 conto	A
Cartomante:	 “e	 digo	mal,	 porque	 negar	 é	 ainda	 afirmar,	 ele	 não	 formulava	 a	 incredulidade;
diante	do	mistério,	contentou-se	em	levantar	os	ombros,	e	foi	andando”.
Não,	 não	 podemos	 nos	 calar	 diante	 do	 abandono	 da	 educação	 do	 espírito;	 muito	 menos
silenciarmo-nos	 sob	 o	 estigma	 da	 vergonha	 de	 aceitar	 nossa	 pequenez,	 nossa	 incredulidade,
nossa	 insatisfação	 gnóstica	 –	 três	 nomes,	 um	único	projeto,	 e	 nenhuma	 escusa	 do	necessário
sacrifício	que	ora	nos	cabe.
Não	é	novidade	para	mim	que	um	mesmo	cuidado	deve	ser	dado	pelos	alunos,	no	evitar	de	gastar	seu	tempo	em	estudos
inúteis,	e	na	permanência	desmotivada	no	desempenho	de	esforços	[educacionais]	úteis	e	bons:	afastar-se	do	estudo	inútil	é
tão	importante	quanto	ser	aguerrido	na	busca	pelo	fim	bom	e	útil.	É	mau	realizar	com	negligência	o	bem,	mas,	pior	ainda,
desgastar-se	amplamente	para	desenvolver	trabalhos	inúteis	e	vãos.	Contudo,	como	não	são	todas	as	pessoas	possuidoras
de	 um	 conhecimento	 suficiente	 para	 se	 autoeducarem,	 capazes	 de	 descobrir	 sozinhas	 o	 que	 lhes	 cabe	 para	 sua	 correta
formação,	indicarei	brevemente	aos	estudantes	os	escritos	que,	para	mim,	mostram-se	mais	adequados	[à	formação	deles],
bem	como	farei	um	adendo	rápido	sobre	a	maneira	de	estudá-los.
Hugo	de	São	Vitor,	Didascalicon
SOBRE	A	TRADUÇÃO
Até	 agora,	 os	 textos	 latinos	 que	 traduzi	 para	 a	 Editora	 Ecclesiae	 tiveram	 como	 ponto	 de
partida	o	original	em	latim,	e,	em	algumas	situações,	a	felicidade	de	encontrar	uma	versão	em
francês,	em	italiano	ou	em	inglês,	para	conferência	posterior.	O	cotejamento	evita	que	a	versão
criada,	 a	partir	de	minha	 tradução	do	original,	 tenha	alguma	 idiossincrasia.	Neste	 texto,	 em
especial,	 parti	 da	 versão	 latina	 em	 domínio	 público,	 disponível	 no	 site	 The	 Latin	 Library
(http://www.thelatinlibrary.com/hugo.html),	mas	minha	caminhada	para	a	construção	de	uma
versão	moderna,	pensando	no	leitor	brasileiro	comum,	e	não	apenas	nos	ditos	especialistas,	foi
acompanhada	de	uma	tradução	já	feita	em	língua	portuguesa,	e	com	muito	vigor,	por	Antônio
Marchionni	(Bragança	Paulista,	2007).
Longe	de	mim	 tentar	 superar	 esta	 versão.	 Pelo	 contrário,	 após	 a	 tradução	 latina,	 consultei
esta	magnífica	 obra	 em	 português,	 ajustando	 alguns	 equívocos	 de	meu	 trabalho,	 bem	 como
criando	versões	de	alguns	trechos,	na	vertente	do	pensamento	conservador	e	escolástico.	Unem-
se	a	tudo	isto	as	minhas	notas	de	rodapé,	gerando,	por	escólio,	uma	nova	versão	traduzida	que
possui	um	viés	 estribado	no	pensamento	de	Mário	Ferreira	dos	Santos.	De	 fato,	 traduzir	um
texto	latino	não	é	uma	arte	literal,	mas	significa	dizer	para	outro	o	que	“se	vê”	em	um	texto
em	língua	antiga;	e,	é	claro,	ampará-lo	por	nossa	própria	formação.	Eis	o	desafio	do	tradutor:
ser	 ele	 mesmo,	 não	 negar	 os	 outros	 que	 o	 influenciam,	 sem	 alterar	 o	 real	 pensamento
traduzido,	tudo	isto	imiscuído	em	seu	nevrálgico	labor.
Cornélio	Procópio,	novembro	de	2014.
Introdução
EXISTEM	VÁRIAS	PESSOAS	cuja	própria	natureza	tornou	destituídas	de	inteligência,	de	modo	que,
até	para	o	conhecimento	das	coisas	mais	fáceis,	possuem	insuficiente	força	intelectual.	Parece-
me,	aliás,	haver	duas	espécies	de	pessoas	que	correspondem	a	esta	descrição.
Uma	destas	espécies	é	a	das	pessoas	que,	não	 ignorando	sua	 limitação	 intelectual,	valem-se
de	grandiosos	esforços	para	o	alcance	do	conhecimento	e,	insistindo	com	pujança	nos	estudos,
menos	 obtêm	 o	 êxito	 ensejado	 por	 causa	 do	 efeito	 de	 suas	 ações,	 e	 muito	 mais,	 devido	 ao
efeito	merecido	de	suas	[ardentes]	vontades.
Todavia,	 há	 a	 segunda	 espécie,	 correspondendo	 às	 pessoas	 que,	 como	 sentem	nunca	 serem
capazes	 de	 compreender	 as	 coisas	 sumas,	 isto	 é	 [os	 temas	 altíssimos	 de	 teologia	 e	 filosofia],
acabam	por	negligenciar	todo	o	conhecimento,	inclusive	o	referente	às	coisas	mínimas	[ou	seja,
as	coisas	naturais	e	práticas].	Tais	pessoas,	quanto	mais	fogem	de	serem	capazes	de	entender	as
mínimas,	tornam-se	ainda	mais	cativas,	presas	em	uma	espécie	de	torpor,	pondo	a	perder,	cada
vez	mais,	a	luz	da	verdade,	presente	nas	coisas	altíssimas[	1	].	É	neste	sentido	que	nos	lembra	o
salmista:	”não	quiseram	conhecer,	para	não	terem	de	agir	corretamente”.[	2	]
E	o	que	 isto	 significa?	Significa	que	uma	coisa	é	o	“desconhecer”,	 e	outra,	muito	diferente
dela,	 é	 o	 “não	querer	 conhecer”.	 Supomos	 a	presença	de	uma	 fraqueza	 [intelectual],	 quando
notamos	o	“desconhecimento”;	mas	se	nos	referimos	ao	ódio	ao	conhecimento,	encaramos,	de
fato,	uma	vontade	perversa.
Mas	 há	 um	 outro	 gênero	 de	 homens,	 cuja	 natureza	 dotou	 de	 muita	 engenhosidade,
fornecendo-lhes	oportunidade	de	alcançarem	com	mais	facilidade	a	verdade.	Entretanto,	nada
obstante	a	presença	de	um	gênio	valioso	neles,	não	há	exatamente	em	todos	a	mesma	virtude	e
vontade	de,	por	exercícios	e	pelo	respeito	à	doutrina,	educar	seus	sentidos	naturais.
Digo-lhes	mais:	não	são	poucos	os	homens	[com	alta	inteligência]	que,	preocupados	com	os
afazeres	 diários	 e	 cuidando	 dos	 negócios	 necessários	 para	 a	 manutenção	 de	 suas	 vidas
[terrenas],	ou	[pior	ainda]	mergulhados	nos	vícios	e	nos	prazeres	corporais,	sepultam	na	terra
o	talento	que	lhes	fora	dado	por	Deus.	Assim,	com	olhos	desatentos	para	as	coisas	do	alto,	eles
não	anseiam	pelo	fruto	da	sabedoria,	nem	desejam	a	vantagem	que	a	boa	obra	traz,	tornando-
se,	de	fato,	extremamentedetestáveis.
Por	outra	 via,	 há	 aqueles	 cuja	possibilidade	de	 aprender	 é	 diminuída	pela	pobreza	de	bens
familiares	 ou	 simplesmente	 por	 escassez	 de	 recursos	 monetários	 [para	 sua	 sobrevivência].
Cremos	fielmente	que,	mesmo	açoitados	pela	pobreza,	não	podemos,	por	este	motivo,	escusá-
los,	 porque	 observamos	 várias	 pessoas	 que,	 sofrendo	 de	 fome,	 nudez	 e	 sede,	 conseguem
adquirir	 o	 fruto	 da	 sabedoria:	 uma	 coisa	 é	 não	 poder,	melhor	 dizendo,	 não	 poder	 aprender
com	 facilidade;	 e	 outra	 coisa	 é	 poder,	mas	 não	 querer	 aprender.	Ora,	 como	 é	mais	 glorioso
aprender	 a	 virtude	 somente	 por	 meio	 da	 sabedoria,	 quando	 são	 nulas	 nossas	 faculdades	 [e
riquezas	 para	 o	 investimento	 escolar],	 então	 é	 muito	 mais	 torpe	 efetivamente	 possuir
engenhosidade,	esbaldar-se	em	riquezas,	e	ficar	entorpecido	no	ócio.
É	 principalmente	 por	 dois	 instrumentos	 que	 alguém	 adquire	 o	 conhecimento:	 a	 leitura	 e	 a
meditação.	 Observando	 ambos,	 notamos	 que	 é	 a	 leitura	 que	 vem	 em	 primeiro	 lugar	 na
instrução,	 e	 justamente	 por	 isto	 este	 livro	 que	 segue	 trata	 dos	 preceitos	 e	 regras	 para	 a	 boa
leitura.
De	 pronto,	 afirmo	 o	 seguinte:	 são	 três,	 os	 preceitos	mais	 necessários	 para	 a	 arte	 de	 ler:	 o
primeiro	 preceito:	 “que	 saibamos	 previamente	 o	 que	 devemos	 ler”.	O	 segundo:	 “a	 ordem	 a
seguir	 durante	 a	 leitura,	 isto	 é,	 qual	 o	 primeiro	 texto	 a	 ser	 destrinchado,	 qual	 o	 segundo	 e
assim	por	diante”.	E	o	terceiro	preceito:	“como	devemos	ler”.
Este	 livro	 trata	 separadamente	 destes	 três	 preceitos,	 de	modo	 que	 ele	 instrui	 tanto	 para	 a
leitura	dos	escritos	profanos,	quanto	para	a	dos	divinos.	Logo,	há	uma	divisão	deste	texto	em
duas	partes,	 sendo	que	cada	uma	delas	possui	 três	distinções.	Na	primeira	parte,	 ensina-se	o
leitor	das	artes;	na	segunda,	o	leitor	dos	livros	divinos.	E	o	texto	deste	livro	continua	a	ensinar
deste	modo,	 ou	 seja,	 esboçando	 inicialmente	 o	que	devemos	 ler,	 e,	 em	 seguida,	 a	 ordem	 e	o
modo	pelo	qual	deve	se	dar	esta	leitura.
Mas,	 para	 que	 possamos	 saber	 o	 que	 devemos	 ler,	 e,	 pelo	 menos,	 o	 que	 principalmente
devemos	 ler,	na	primeira	parte	deste	 texto	há	a	enumeração	da	origem	de	todas	as	artes.	Em
seguida,	 expomos	a	descrição	 e	a	distribuição	delas,	 isto	 é,	de	que	modo	uma	arte	 contém	a
outra,	 ou	 como	 uma	 está	 contida	 em	 outra	 e	 assim	 por	 diante	 –	 sendo	 que	 é	 esta	 a
característica	que	acaba	por	dividir	a	filosofia,	de	seu	ápice	até	os	seus	temas	mais	baixos.	Na
seqüência,	notamos	a	enumeração	dos	autores	das	artes,	de	modo	a	expor	[a	partir	da	opinião
deles]	 o	 que	 devemos	 ler	 com	 prioridade,	 bem	 como	 a	 ordem	 de	 leitura	 e	 o	 modo	 de
procedermos.	Finalmente,	o	 livro	prescreve	aos	 leitores	a	disciplina	de	sua	vida,	pondo	fim	à
primeira	parte.
Na	segunda	parte,	o	texto	mostra-nos	quais	escrituras	devem	ser	chamadas	de	divinas,	bem
como	 o	 número	 e	 a	 ordem	 dos	 livros	 divinos,	 dos	 seus	 autores	 e	 de	 suas	 interpretações.
Depois,	traça-nos	algumas	peculiaridades	[trechos	e	propriedades]	da	Divina	Escritura	que	nos
são	mais	 necessárias	 [para	 serem	 estudadas	 e	 lidas].	 Então,	 há	 ensinamento	 do	modo	 como
devemos	 ler	 a	 Sagrada	 Escritura,	 quando	 se	 trata	 de	 quem	 procura	 nela	 a	 correção	 de	 seus
costumes	 e	 um	 modo	 justo	 de	 viver.	 Por	 fim,	 não	 abandona	 os	 que	 a	 lêem	 pelo	 amor	 ao
conhecimento,	chegando-se	ao	fim	desta	segunda	parte	da	obra.
Hugo	refere-se	aos	homens	negadores	do	conhecimento	dos	temas	ontológicos	(coisas	altas),	os	preceitos	metafísicos,	e	que	assim
procedem	 por	 se	 perceberem	 incapazes	 de	 entendê-los.	 Tomados	 pela	 preguiça,	 ao	 invés	 de	 dedicar-se	 ao	 aprimoramento
intelectual,	escolhem	negar	todo	e	qualquer	conhecimento,	inclusive	o	referente	aos	seres	naturais	(coisas	mínimas)	–	NT.
Sl	35,	4.
LIVRO	I
CAPÍTULO	1
SOBRE	A	ORIGEM	DAS	ARTES
DENTRE	TODOS	OS	BENS	QUE	ASPIRAMOS,	é	certo	que	a	sabedoria	ocupa	o	primeiro	lugar,	posto	ser
nela	que	 consiste	 a	 forma	do	Bem	perfeito.	É	Bem	perfeito	porque,	 ao	 iluminar	o	homem,	a
sabedoria	faz	com	que	ele	conheça	a	si	mesmo,	de	modo	que,	conhecendo-se,	deixe	de	pensar
ser	 apenas	 algo	 semelhante	 a	 todas	 as	 outras	 coisas	 criadas,	 notando	 que	 de	 fato	 foi	 criado
como	ser	superior.
Na	 verdade,	 a	 alma	 imortal	 humana,	 iluminada	 pela	 sabedoria,	 considera	 o	 seu	 próprio
princípio,	 e	 reconhece	 como	 indecorosa	a	 situação	 em	que	um	homem	se	procure,	 fora	de	 si
mesmo,	 ou	 seja,	 quando	 busca	 nas	 coisas	 externas	 o	 que	 propriamente	 considera	 como
correspondendo	a	si,	pondo	de	lado	o	adequado	para	a	verdadeira	busca	íntima.
Então,	podemos	ler	o	escrito	no	trípode	de	Apolo:	‘gnoti	seauton’,[	3	]	isto	é,	‘conhece-te	a	ti
mesmo’.	E	isto	porque,	de	fato,	um	homem	que	conhecesse	a	si	mesmo	não	esqueceria	de	sua
própria	 origem,	 cujo	 contraponto	 é	 o	 de	 que	 todas	 as	 coisas	 mutáveis,	 por	 sua	 vez,	 são
esquecidas,	ou	ainda,	o	Nada	é	justamente	o	esquecido.
Entre	os	filósofos,	há	uma	sentença	provada	e	reconhecida,	a	alma	é	composta	por	todas	as
partes	da	natureza.	E	o	Timeu	de	Platão	sustenta	que	a	enteléquia[	4	]	forma-se	com	substância
dividida,	indivisa	e	mista,	bem	como	da	mesma	substância	e	de	diversas,	todas	elas,	ademais,
designando	nosso	universo.[	5	]
A	nossa	alma,	aliás,	conhece	os	primeiros	princípios,	bem	como	as	coisas	que	deles	derivam,
e	compreende,	por	 sua	 inteligência,	as	causas	 invisíveis	das	coisas,	obtendo,	pelas	 impressões
dos	sentidos,	as	formas	visíveis	das	coisas	corporais.	Dividida,	a	alma	reúne	o	movimento	em
dois	orbes,[	6	]	porque	ou	ela	procede	pelos	sentidos	–	direcionando-se	para	as	coisas	sensíveis
–,	 ou	 pela	 inteligência	 –	 ascendendo	 às	 invisíveis.	 Em	 suma,	 ela	 gira	 em	 torno	 de	 si,
mostrando-se	 a	 nós	 justamente	 a	 partir	 da	 semelhança	 que	 alcança	 com	 as	 coisas
compreendidas.
Portanto,	 o	 espírito,	 capaz	 de	 captar	 todas	 as	 coisas,	 independente	 da	 substância	 e	 da
natureza,	representa,	por	sua	própria	imagem,	a	semelhança	com	todas	as	coisas	[do	universo].
Esta	 afirmação	 nos	 lembra	 do	 dogma	 dos	 pitagóricos,	 a	 saber,	 que	 os	 semelhantes	 são
compreendidos	por	meio	de	outros	semelhantes.	Então,	se	a	alma	racional	não	fosse	composta
por	todas	as	formas,	de	nenhum	modo	seríamos	capazes	de	compreender	todas	as	coisas,	justo
como	 antes	 nos	 foi	 dito:	 “compreendemos	 a	 terra	 pelas	 coisas	 terrenas;	 o	 fogo,	 pelas
flamejantes;	 os	 humores	 corporais,	 pelos	 fluidos;	 as	 coisas,	 pelas	 que	 saem	 de	 nossos
suspiros”.[	7	]
Também	não	podemos	pensar	que	grandes	peritos,	profundos	conhecedores	da	natureza	das
coisas,	 tomassem	 uma	 simples	 essência	 como	 correspondendo	 a	 uma	 quantidade	 plúrima	 de
partes.	 E,	 para	 que	 se	 demonstrasse	 sua	 imagem,	 expondo	 com	 mais	 clareza	 seu	 poder,	 os
pitagóricos	 diziam	 que	 nela	 todas	 as	 coisas	 consistiriam.	 Consistiriam,	 aliás,	 não	 por
composição	[física],	mas	por	composição	racional.[	8	]
Do	 mesmo	 modo,	 não	 podemos	 crer	 esta	 semelhança	 [formal]	 com	 todas	 as	 coisas	 do
universo,	como	originada	de	outra	fonte	–	diferente	da	própria	alma	–,	ou	nascida	de	qualquer
fonte	 externa	 a	 si,	 posto	 a	 alma	 alcançar,	 por	 sua	 natureza	 própria,	 o	 poder	 máximo	 e	 a
virtude	que	lhe	é	peculiar.
Tudo	isto,	ademais,	é	confirmado	no	Perifiseos,	de	Varro:	“nem	todas	as	mudanças	externas
ocorrem	às	coisas,	pelo	mecanismo	de	que,	para	que	elas	se	modificassem,	seria	indispensável
a	perda	de	alguma	qualidade,	que	antes	tinham,	ou	a	aquisição	de	característica	proveniente	de
fora,	ou	seja,	algo	diferente	de	si,	e	que	antes	não	tinham”.
Assim	 ocorre,	 por	 exemplo,	 com	uma	 parede	 de	 pedra	 que,	 devidamente	 esculpida,	 recebe
uma	forma	de	uma	fonte	externa.	Mas	quando	um	ferreiro	 imprime	uma	figura	determinada
em	 um	 metal	 quente,	 não	 passa	 a	 representar	 algo	 inteiramente	 existentefora	 de	 si,	 mas
representa	algo	que	pertence	à	sua	própria	virtude	natural	[interior	e	íntima].
Não	há	dúvidas	de	que	o	nosso	espírito,	composto	formalmente	pela	semelhança	de	todas	as
coisas,	 pode	 ser	 definido,	 sob	 certo	 ponto	 de	 vista,	 como	 a	 composição	 de	 todas	 elas.	 No
entanto,	é	claro	que,	quando	falamos	em	composição,	não	estamos	nos	referindo	ao	sentido	de
junção	 integral	 [de	partes],	mas	visamos	um	conteúdo	virtual	ou	potencial	de	 todas	as	coisas
em	 nós.	 Esta	 é	 a	 dignidade	 de	 nossa	 natureza:	 possuir	 igualmente	 todas	 as	 coisas,	mas	 sem
conhecê-las	de	um	mesmo	modo.[	9	]
Nosso	 espírito	 se	 esquece	 do	 que	 foi,	 quando	 adormecido	 pelas	 paixões	 corpóreas,	 ou
conduzido	pelas	 formas	sensíveis.	Então,	como	não	mais	se	 lembra	de	 ter	 sido	outra	coisa	 [a
não	ser	a	assunção	de	sua	condição	torpe	atual],	não	acredita	em	nada	mais,	senão	no	que	ele
parece	ser.	Por	isto,	é	pela	doutrina	que	somos	renovados,	porque	com	ela	conhecemos	nossa
natureza,	aprendemos	a	não	procurar	 fora	de	nós	o	que	de	 fato	podemos	descobrir	em	nosso
interior.
A	procura	pela	Sabedoria,	portanto,	nada	mais	é	do	que	o	grande	conforto	da	nossa	vida,[	10
]	porque	quem	a	encontra	é	feliz;	e	quem	a	possui,	santo.
Xenofonte.	Memorabilia.	4,	2,	24.	Além	de	ser	frase	fundamental	para	a	filosofia	socrática,	a	Idade	Média	foi	tomada	pela	busca
do	divino,	na	égide	da	intimidade	pessoal.	Santo	Agostinho	faz	referência	a	esta	busca	íntima	nas	Confissões;	Boécio	a	repete	na
Consolação;	 e	 Pedro	 Abelardo	 escreve	 o	 famoso	 texto	 Scito	 te	 Ipsum	 (“Conhece-te	 a	 ti	 mesmo”),	 com	 árdua	 influência	 no
pensamento	dos	séculos	XII	e	XIII	–	NT.
O	conceito	de	enteléquia,	no	sentido	platônico,	aproxima-se	do	de	Universo,	mas	envolve	tanto	a	matéria	quanto	os	elementos
inteligíveis	(ideais).	Na	enteléquia	se	concretiza	a	perspectiva	de	reflexo	de	perfeição,	no	mundo	físico	–	NT.
A	alma	humana	como	um	microcosmo	–	NT.
Boécio.	Consolação	da	Filosofia.	III,	9.
Calcidius.	Timeus	a	Calcidio	translatus	commentariorque	instructus,	51.
Idem.	228.	No	trecho,	Hugo	nos	lembra	que,	para	o	pitagorismo,	todo	o	universo	se	encontra	em	nossa	alma.	Mas	nunca	por
composição	natural	–	soma	de	coisas,	em	sentido	material	e	natural	–,	mas	por	possibilidade	formal	de	concretização.	Assim,	a
alma,	formalmente,	possui	a	possibilidade	de	alcançar,	por	si,	semelhança	com	todas	as	coisas,	sejam	físicas,	sejam	espirituais	–
NT.
No	excerto,	a	alma	humana	é	tomada	como	elemento	máximo	criado	por	Deus,	habitat	de	nossa	dignidade	e	individualidade.	Há
nela	a	potência	de	toda	criação,	mas	não	o	conhecimento	atual	de	todas	as	coisas.	Para	haver	a	transposição	da	potencialidade
para	o	conhecimento,	é	imprescindível	a	participação	indelével	da	inteligência	–	NT.
Boécio.	De	institutione	musica.	2.2.
CAPÍTULO	2
A	FILOSOFIA	COMO	A	BUSCA	DA	SABEDORIA
ANTES	DE	TODOS,	 é	 justamente	 Pitágoras	 quem	 chama	 a	 busca	 por	 sabedoria	 de	 filosofia,	 de
modo	que	preferiu	ser	denominado	“filósofo”,	em	vez	de	apenas	“sábio”.	É	belo,	por	este	viés,
chamar	aos	homens	que	buscam	a	verdade	não	de	sábios,	mas	de	amantes	da	sabedoria.	Não
há	dúvidas	de	que	a	verdade	total	esconde-se	de	nós,	porque	quanto	mais	o	nosso	espírito	arda
de	amor,	e	quanto	mais	profunda	se	torne	a	busca	pela	verdade,	mais	difícil	sua	compreensão
plena.	 Por	 meio	 deste	 pensamento,	 ele	 definiu	 a	 filosofia	 como	 a	 disciplina	 “das	 coisas
verdadeiramente	existentes,	ou	seja,	as	que	possuem	substância	imutável”.[	11	]
“A	filosofia,	então,	é	o	amor,	a	procura	e	a	amizade	para	com	a	sabedoria.	Ela	não	se	refere
a	 certas	 ‘ferramentas’,	 ou	 seja,	 uma	 ciência	 direcionada	 para	 a	 fabricação,	 mas	 a	 uma
sabedoria	 [de	 conhecimento	 ‘completo’,	 isto	 é,	 que	 independe	 de	 tecnologia	 para	 sua
concretização].	Uma	sabedoria	que	de	nada	carece,	de	espírito	vivaz,	 [confundindo-se	com	a]
razão	primeira	 e	 única	 de	 todas	 as	 coisas.	A	 filosofia,	 portanto,	 é	 este	 amor	 pela	 sabedoria,
referindo-se	à	iluminação	do	espírito	inteligente	pela	pura	sabedoria.
A	busca	pela	verdade,	nestes	termos,	pode	ser	percebida	como	um	retorno	ou	chamado	que
fazemos	 para	 nós	 mesmos,	 tal	 como	 percebemos	 [com	 clareza]	 no	 estudo	 da	 sabedoria:	 a
amizade	com	a	divindade	e	com	seu	espírito	puro.
Esta	 sabedoria	 divina	 estabelece	 para	 todas	 as	 espécies	 de	 alma	 a	 excelência	 de	 sua
divindade,	reconstituindo,	em	cada	uma	delas,	sua	força	e	pureza,	por	meio	das	suas	próprias
naturezas.	A	 verdade,	 portanto,	 nasceria	 das	 especulações	 e	 dos	 pensamentos,	 bem	 como	 da
mais	pura	e	santa	abstinência	de	atos.[	12	]
“Como	 foi	 proporcionado	 às	 almas	 humanas	 este	 excelentíssimo	 bem	 da	 filosofia,	 nosso
texto	avança	por	um	fio	orientador,	iniciando-se	pelos	poderes	próprios	da	alma”.[	13	]
Boécio.	De	institutione	aritmética.	I,	1.
Boécio.	In	Isagoge	Commenta	pr.	1,	3.	[Há	a	interação	fundamental	entre	a	iluminação	divina	do	espírito	humano	e	as	escolhas
arbitrárias,	para	o	alcance	da	vida	correta.	Este	ponto	assemelha-se	a	uma	perspectiva	cisterciense,	presente	em	São	Bernardo	de
Claraval.	Note-se	que,	sem	a	iluminação	divina,	não	há	atos	bons,	bem	como,	sem	a	educação	–	o	adestramento	consciente	para
o	bem	–	não	há	falar	em	concretização	da	bondade.	“Vós	sois	como	deuses”	significa	que	a	iluminação	está	em	nós,	mas	temos
de	corajosamente	seguir	seu	chamado,	sua	indicação,	ainda	que	por	abstinência	de	atos	prazerosos	inoportunos	–	NT.]
Idem.	1,	1.
CAPÍTULO	3
A	TRÍPLICE	POTÊNCIA	DA	ALMA	E
SOMENTE	O	HOMEM	POSSUI	A	RAZÃO
PERCEBEMOS	A	 PRESENÇA	DE	TRÊS	 POTÊNCIAS	 da	 alma,	 garantidoras	 da	manutenção	 da	 vida	 nos
corpos.
Uma	 delas	 se	 refere	 especialmente	 à	 administração	 da	 vida	 corporal,	 porque	 desde	 que
nascemos	 torna-se	presente,	no	crescimento	do	corpo.	Tal	potência	possibilita	que	cresçamos
pela	 alimentação.	 Uma	 segunda	 potência	 é	 a	 que	 nos	 dá	 condições	 para	 captação	 das
percepções	sensíveis	e	 julgamento	[de	nossa	tomada	de	decisão,	em	face	de	possibilidades].	A
terceira	é	congregada	à	força	da	mente	e	da	razão.
Vamo-nos	à	primeira	potência.	Ela	possui	a	função	de	nos	servir,	no	sentido	de	nos	capacitar
à	 criação,	 à	 nutrição	 e,	 em	geral,	 ao	 crescimento	do	nosso	 corpo,	 sem	 se	 prestar	 a	 qualquer
discernimento,	próprio	de	nosso	juízo	e	conduzido	pela	razão.	Tal	capacidade,	lembremo-nos,
encontra-se	 especialmente	 nos	 vegetais,	 nas	 árvores,	 enfim,	 em	 qualquer	 coisa	 que	 possua
raízes	afixadas	na	terra.
A	 segunda	 potência	 é	 composta	 e	 conjunta,	 incluindo	 em	 si	 a	 primeira	 potência,
constituindo,	 de	 acordo	 com	 a	 parte	 a	 que	 se	 refere,	 a	 assunção	 de	 um	 juízo	 variado	 e
multiforme.	Ora,	todo	animal	[saudável],	detentor	de	sentidos	vigorosos,	nasce,	alimenta-se	e
cresce,	bem	como	possui	cinco	diferentes	sentidos.	É	inconcebível	portanto	pensarmos	em	um
animal	 [saudável]	 que	 apenas	 se	 alimentasse,	 e	 não	 tivesse	 capacidade	 de	 sentir;	 [mas	 é
plenamente	 normal]	 um	 outro	 com	 capacidade	 de	 sentir	 e,	 por	 isto,	 de	 alimentar-se.	 E	 isto
significa	 que	 a	 primeira	 potência	 da	 alma	 –	 a	 capacidade	 de	 nascer	 e	 de	 se	 alimentar	 –	 fica
sujeita	à	outra,	a	capacidade	de	usar	dos	sentidos.
Os	seres	possuidores	dos	sentidos	não	captam	somente	a	 forma	das	coisas	 sensíveis,	 isto	é,
aquelas	 que	 os	 ferem	 em	 um	momento	 presente.	 A	 natureza	 deles	 ultrapassa	 a	 sensibilidade
[presente],	 porque	 elas	 guardam	 as	 imagens	 sensíveis	 das	 formas	 conhecidas,	 constituindo	 a
nossa	memória;	 e,	 conforme	a	qualidade	de	 cada	animal,	preserva	as	 lembranças,	por	 tempo
mais	breve	ou	mais	longo.
Entretanto,	 tais	 animais	 obtêm	 e	 conservam	 estas	 lembranças	 apenas	 de	 modo	 confuso	 e
pouco	evidente;	são	 incapazes	de	utilizá-las	com	engenho,	conjugando-as	e	compondo-as;	por
fim,	não	 se	 lembram	de	 todas	 com	a	mesma	clareza,	nem	conseguem	 retomar	ou	 chamar	de
volta	 o	 que	 foi	 esquecido.	 Então,	 isentos	 desta	 potênciade	 manutenção	 da	 memória,	 não
detêm	conhecimento	de	seu	próprio	futuro!
Já	a	terceira	potência	da	alma	traz	consigo	as	duas	anteriores:	a	potência	de	alimentar	e	a	de
sentir.	 Ela	 as	 detém	 utilizando	 de	 suas	 qualidades,	 como	 se	 fossem	 servas	 obedientes.	 Esta
terceira	potência	se	constitui	totalmente	na	razão,	chegando	à	conclusão	firme	sobre	as	coisas
presentes	e	pesquisando	com	sagacidade	as	coisas	desconhecidas.
É	 uma	 potência	 dada	 somente	 ao	 gênero	 humano,	 que	 capta	 não	 somente	 as	 imaginações
perfeitas	e	claras,	mas	também	explica	e	confirma,	por	meio	de	um	ato	pleno	da	inteligência,	o
sugerido	pela	imaginação.
Podemos	 dizer	 que	 a	 compreensão	 das	 coisas	 sujeitas	 aos	 sentidos	 não	 é	 objeto	 suficiente
para	esta	 terceira	natureza	–	que	é	a	divina	–,	bem	como	para	o	conhecimento	dela,	porque,
concebida	uma	imagem	mental,	a	partir	de	dados	da	sensibilidade,	pode-se	estabelecer	nomes
para	 coisas	 ausentes,	 somente	 compreendidas	 pela	 razão	 da	 inteligência.	 E	 esta	 é	 de	 fato
característica	da	natureza	desta	 terceira	potência:	 investigar	as	 coisas	 conhecidas	por	 si,	bem
como	as	desconhecidas	–	 e	não	 somente	 inquirir	 se	a	 coisa	 é	–	a	possibilidade	dela	 existir	–,
mas	[principalmente]	a	sua	qualidade	e	causa.
Como	já	dissemos,	só	a	natureza	do	homem	detém	esta	tríplice	potência	da	alma,	cuja	força
não	carece	dos	movimentos	da	inteligência,	pois	exerce	a	força	da	razão	exatamente	por	meio
de	suas	quatro	funções.
Em	suma,	ela	investiga	se	a	coisa	existe	e,	percebendo	sua	existência,	o	que	ela	é.	E,	quando
estes	 dois	 conhecimentos	 são	 alcançados	 pela	 razão,	 ela	 se	 dedica	 exatamente	 ao	 que	 cada
coisa	 é	 em	 particular,	 perquirindo	 as	 várias	 influências	 que	 os	 acidentes	 lhes	 exercem.
Respondidas	 todas	 estas	 indagações,	 e	 conhecidas	 as	 respostas	 [busca	o	motivo	da	 existência
da	 coisa],	 o	 porquê	 de	 ela	 ser	 de	 um	 jeito	 e	 não	 de	 outro,	 e	 investiga	 tudo	 isto	 de	 modo
racional.
Portanto,	 como	 o	 ato	 do	 espírito	 humano	 sempre	 se	 funda	 na	 compreensão	 das	 coisas
presentes,	 na	 inteligência	 acerca	 das	 ausentes	 ou	 na	 busca	 incessante	 pelo	 esclarecimento	 e
aquisição	das	coisas	ignoradas,	então	há	dois	objetivos	para	os	quais	a	força	da	alma	racional
despende	 todo	o	empenho:	o	primeiro	referente	ao	conhecimento	da	natureza	das	coisas	pela
investigação	 racional;	 o	 segundo,	 iniciando-se	 pelo	 conhecimento,	 e	 que,	 em	 seguida,	 a
dignidade	da	moral	concretizará.
CAPÍTULO	4
QUAIS	SÃO	OS	OBJETOS	PERTINENTES	À	FILOSOFIA?
AGORA,	 OBSERVANDO	 TUDO	 QUE	 ACIMA	 DISSE,	 vejo	 que,	 agindo	 deste	 modo,	 incidimos	 em	 um
labirinto	inextricável,[	14	]	em	que	se	cria	a	dificuldade	não	pela	obscuridade	do	discurso,	mas
pela	dúvida	quanto	à	própria	coisa	[tratada	por	ele].
Isto	é,	 como	começamos	a	 falar	da	procura	pela	 sabedoria,	 e	atestamos	 tal	 condição	como
privilégio	 da	 natureza,	 pertencendo	 somente	 aos	 homens,	 então	 podemos	 compreender,	 por
consequência,	 a	 partir	 de	 agora,	 a	 sabedoria	 como	 o	 limite	 ou	 a	 moderação	 [própria	 e
necessária	a]	todos	os	atos	humanos.
Com	 efeito,	 se	 a	 natureza	 dos	 animais	 brutos,	 não	 regida	 por	 qualquer	 juízo	 racional,
desenvolve	 os	 seus	 movimentos	 apenas	 em	 conformidade	 com	 as	 paixões	 (sensações)	 dos
sentidos,	 e,	 ao	 desejar	 ou	 rejeitar	 alguma	 coisa,	 nunca	 o	 faz	 pelo	 uso	 da	 inteligência,	 mas
impelido	pelo	desejo	 cego	da	 carne,	 qual	 conclusão	nos	 resta	 deste	 pensamento?	Resta	 saber
que	 o	 ato	 racional	 não	 deve	 ser	 consumido	 pela	 cupidez	 cega,	 mas	 sempre	 precedido	 pela
moderada	sabedoria.
Sendo,	 portanto,	 verdadeiro	 este	 pensamento,	 concluímos	 que	 a	 filosofia	 não	 somente	 se
dedica	 ao	 estudo	destes	 assuntos,	 ou	 seja,	 a	 natureza	das	 coisas	 e	 a	disciplina	dos	 costumes,
mas	que	não	é	incongruência	nossa	afirmar	que	ela	trata	de	fato	das	razões	de	todos	os	atos	ou
dos	costumes	dos	homens.
Por	este	viés,	podemos	definir	a	filosofia	do	seguinte	modo:	disciplina	investigadora	plena	de
todas	as	coisas	humanas	e	das	razões	divinas.	Mas	isto	não	deve	de	nenhum	modo	modificar	o
que	 acima	 dissemos	 corresponder	 à	 filosofia,	 ou	 seja,	 tratar-se	 do	 amor	 e	 da	 dedicação	 à
sabedoria.	Uma	 sabedoria	 que	 não	 pode	 ser	 explicada	 concretizando-se	 pelos	 instrumentos	 –
como	se	dá	com	a	arquitetura,	a	agricultura	e	outras	similares	–,	mas	à	espécie	de	sabedoria	só
preocupada	com	a	razão	primeira	das	coisas.[	15	]
Um	 mesmo	 ato	 pode	 pertencer	 à	 filosofia,	 quando	 em	 conformidade	 com	 sua	 razão,	 e
também	ser	excluído	dela,	no	instante	de	sua	concretização.	Por	exemplo,	para	mencionarmos
uma	única	circunstância:	a	ciência	da	agricultura	–	os	princípios	para	sua	execução	e	alcance
de	 sua	 finalidade	 última	 –	 é	 assunto	 da	 filosofia;	 enquanto	 a	 prática,	 sua	 execução
propriamente	dita,	pertence	ao	homem	rústico.
Por	 sua	 vez,	 as	 obras	 dos	 artistas,	 mesmo	 não	 correspondendo	 à	 natureza,	 partem	 da
imitação	constante	dela.	Os	artistas	exprimem	pela	razão	a	forma	de	seu	modelo	[artístico],	e
isto	significa	o	imitar	propriamente	a	natureza.[	16	]
E	 este	 é	 o	motivo	 para	 pensarmos	 a	 filosofia	 –	 difundindo-a	 para	 todos	 os	 lados	 –	 como
presente	na	razão	de	todos	os	atos	humanos.	E	isto	porque	é	necessária	a	existência	de	diversas
partes	da	filosofia,	em	correspondência	com	as	diversas	coisas	existentes,	e	para	as	quais	ela	se
constituiria.
Boécio.	Consolação	da	Filosofia.	3,	12,	30.
Idem.	In	Isagoge.	1,	3.
Não	se	trata	de	uma	interpretação	restrita,	no	sentido	de	uma	mera	atitude	do	homem	criando	coisas	no	mundo	pelo	trabalho.
Pelo	contrário,	Hugo,	seguindo	a	tradição	mística	–	própria	da	filosofia	cristã	–	refere-se	ao	trabalho	espiritual,	a	capacidade	do
homem	“imitar	a	Deus”	no	mundo,	moldando	seu	espírito,	laborando	para	a	iluminação	de	si,	no	outro.	A	filosofia	é	a	percepção
da	 razão	divina,	o	mistério	do	destino	e	o	porquê	de	 todas	as	 coisas,	de	 todos	os	atos,	 intenções	e	 escolhas	humanas.	Esta	é
imitação	de	Deus,	no	mundo,	o	labor	místico	–	NT.
CAPÍTULO	5
SOBRE	A	ORIGEM	DA	TEÓRICA,
DA	PRÁTICA	E	DA	MECÂNICA
A	 FINALIDADE	 E	 A	 INTENÇÃO	 DE	 TODAS	 AS	 AÇÕES	 ou	 esforços	 dos	 homens	 moderados	 pela
sabedoria	ocorre	para	conservar	a	moderação	e	a	manutenção	de	nossas	necessidades,	às	quais
está	sujeita	nossa	vida	presente.	E	isto	tudo	para	que	a	integridade	ou	a	fraqueza	da	natureza
humana	seja	reparada.
Tratarei	 em	 seguida	 com	mais	 amplitude	 do	 que	 acabo	 de	 explicar:	 dois	 são	 os	 elementos
fundamentais	 do	 [caráter	 do]	 homem,	 a	 saber,	 o	 bem	 e	 o	 mal	 –	 correspondendo	 ambos	 a
formadores	 da	 natureza	 e	 [dos]	 vícios.	 E	 isto	 é	 assim	 porque	 o	 bem	 corresponde	 à	 nossa
natureza	 [original]	 e,	 como	 ela	 foi	 corrompida,	 ficou	 menor	 [em	 nós,	 do	 que	 era	 antes],
devendo	 ter	 seu	 exercício	 reparado.	 O	 mal,	 por	 sua	 vez,	 é	 um	 vício,	 ou	 corrupção,	 não
correspondendo	à	nossa	natureza.	Por	isto,	ele	tem	de	ser	extirpado	[a	todo	custo]	e,	não	sendo
possível	 exterminá-lo	 complemente,	 devemos	 ao	 menos	 mitigá-lo,	 por	 meio	 de	 um	 remédio
moderado.	 Esta	 afirmação	 que	 faço	 é	 justamente	 o	 que	 deve	 ser	 seguido	 pelas	 pessoas,	 na
correção	de	suas	vidas:	o	dever	de	reparar	sua	natureza	e	o	de	excluir	os	vícios.
A	 integridade	 da	 natureza	 humana	 é	 aperfeiçoada	 por	 dois	 caminhos:	 o	 conhecimento	 e	 a
virtude.	 E	 apenas	 por	 esta	 característica	 é	 que	 somos	 assemelhados	 à	 substância	 superior	 e
divina.	De	fato,	o	homem,	por	possuir	uma	substância	composta	por	dois	pares	germinados	–
alma	e	corpo	–,	não	possui	uma	natureza	simples.	Neste	ínterim,	podemos	dizer	que	o	homem
existe	 segundo	 uma	 destas	 partes	 –	 a	 saber,	 a	 superior	 e	 imortal	 –	 e	 que	 mais	 claramente
podemos	afirmar	tratar-se	da	parte	que	corresponde	a	ele	mesmo.[	17	]
Agora,	 em	 relação	 à	 sua	 outra	 parte	 –	 o	 corpo	 –,	 ou	 seja,a	 parte	 humana	 perecível,
considerada	 pelos	 insanos,	 crentes	 apenas	 nos	 dados	 dos	 sentidos,	 como	 única	 [existente]	 e
conhecida,	 sabemos	 ser	 responsável	 por	 sujeitar	 o	 homem	 à	 mortalidade	 e	 à	 mutabilidade,
sendo	 necessária	 a	 crença	 na	 repetição	 frequente	 da	morte,	 em	 todas	 as	 situações	 em	 que	 a
alma	perde	aquilo	que	de	fato	é:	sua	individualidade,	parte	última	das	coisas,	e	detentora	em	si
do	princípio	e	do	fim.[	18	]
Afirma	Hugo	a	imortalidade	da	alma,	não	em	um	sentido	abstrato	e	teórico,	mas	concreto	e	personalizado.	A	individualidade	do
homem	e	a	eternidade	de	sua	alma	como	construtos	do	que	realmente	somos,	a	categoria	real-real	de	Mário	Ferreira	dos	Santos
–	NT.
A	descrença	na	alma	 imortal	 condiciona	o	homem	a	um	ser	meramente	corpóreo.	Sua	 individualidade,	portanto,	 tal	qual	 seu
corpo,	teria	de	ser	mutável.	Sendo	assim,	como	o	corpo	muda	a	todo	momento,	também	a	individualidade	sofreria	tal	mudança
contínua,	sendo	ela	mero	reflexo	corpóreo.	E	isto,	por	fim,	seria	como	se	morrêssemos	continuamente	durante	a	vida	–	NT.
CAPÍTULO	6
SOBRE	AS	TRÊS	ESPÉCIES	DE	COISAS
OBSERVANDO	AS	COISAS	DO	UNIVERSO,	não	podemos	deixar	de	notar	algumas	não	possuindo	nem
princípio	nem	fim,	chamadas	de	“eternas”;	outras	com	princípio,	mas	sem	limitação	qualquer
(sem	fim),	ditas,	portanto,	“perpétuas”;	e	um	terceiro	grupo	composto	pelas	“temporárias”,	a
saber,	as	com	início	e	fim.
Agrupamos,	 na	 primeira	 ordem,	 o	 ente	 que	 não	 possui	 diferença	 entre	 o	 “ser	 dele”	 –	 sua
essência	–	e	“o	que	é”	–	sua	existência	–,	ou	melhor,	o	que	não	se	atém	a	uma	diversidade,	em
si,	 de	 causa	 e	 efeito,	 não	 podendo	 subsistir	 por	 outra,	 mas	 tão	 somente	 dependendo	 da
subsistência	por	si	mesmo.	Isto	se	dá	porque	Ele	é	o	único	gerador	e	artífice	da	natureza.
Já	na	 segunda	ordem,	 encontramos	o	 ente	que	possui	diferença	 entre	o	 seu	próprio	 ser	 e	o
que	de	fato	ele	é.	Diferente	do	anterior,	acima	mostrado,	este,	para	existir,	depende	de	outro,
isto	é,	ele	se	torna	ser	em	ato	pelo	fluir	de	uma	causa	que	lhe	precede.	É	justamente	por	esta
causa	diversa	de	si	que	sua	existência	tem	início,	sendo	esta	a	sua	natureza	[própria],	presente;
ademais,	em	todas	as	coisas	que	pertencem	ao	mundo.
O	 estudo	 desta	 segunda	 ordem	 nos	 faz	 perceber	 ser	 ela	 dividida	 em	 duas	 partes.	 Uma
primeira	 parte	 é	 composta	 pelos	 entes,	 cuja	 existência	 diretamente	 deriva	 de	 suas	 causas
primordiais	 (ou	 originárias),	 dependendo	 justamente	 delas	 para	 iniciar	 [sua	 existência	 no
mundo].	 São	 entes	 incapazes	 de	 serem	 movimentados	 ou	 mudados,	 a	 não	 ser	 por	 um	 ato
arbitrário	 da	 vontade	 divina;	 de	 modo	 que,	 agindo	 esta	 última,	 os	 primeiros	 passam	 a
“imutáveis”,	no	sentido	de	que	se	tornam	livres	de	qualquer	fim	ou	vicissitude	mundana	(para
melhor	compreendermos,	explico	que	tais	entes	correspondem	às	substâncias	das	coisas,	e	que
os	gregos	chamavam	de	“ousia”).	A	segunda	parte	desta	ordem	refere-se	a	todos	os	corpos	do
mundo	 supralunar,	 e	 que,	 por	 também	 não	 sofrerem	mutação,	 também	 foram	 chamados	 de
divinos.[	19	]
A	segunda	ordem	corresponde	às	coisas	detentoras	de	princípio	e	de	 fim,	e	que	não	podem
vir	 a	 existir	 por	 si	 mesmas,	 correspondendo	 simplesmente	 a	 obras	 da	 natureza.	 Elas	 são
percebidas	na	terra,	movendo-se	no	mundo,	abaixo	do	globo	lunar,	e	 instigadas	pelo	fogo	do
artífice,	 o	 qual	 desce	 com	 uma	 força	 [vigorosa],	 atingindo	 o	 mundo	 e	 criando-as
[continuamente][	20	].
Sobre	 esta	 segunda	 espécie	 de	 coisas	 foi	 dito	 o	 seguinte:	 “nada	no	mundo	de	 fato	morre”.
Mas	o	que	 isto	quer	dizer?	Quer	dizer	que	a	 essência	das	 coisas	nunca	perece,	porque	não	 é
superada,	 mas	 tão	 somente	 variam	 suas	 formas.	 Então,	 quando	 dizemos	 que	 uma	 forma	 se
desfaz,	não	se	deve	compreender	com	isto	que	estarmos	a	crer	que	uma	coisa,	então	existente,
pereça,	perdendo	inteiramente	o	seu	ser.	Pelo	contrário,	na	verdade,	o	mais	coerente	seria	dizer
que	ela	mudou	[de	forma],	por	um	dos	seguintes	motivos	opostos:	(1)	alguns	elementos,	antes
unidos,	 foram	 depois	 separados;	 ou	 os	 separados	 acabaram	 unidos,	 conjugando-se	 em	 uma
única	forma;	(2)	talvez,	um	elemento	antes	aqui,	esteja	agora	lá,	ou	que	um,	antes	lá,	agora	se
encontre	 aqui;	 (3)	 por	 fim,	 um	 elemento	 existente	 passa	 a	 inexistir;	 ou	 o	 contrário,	 o
inexistente	passa	a	sê-lo!	E	uma	coisa	é	certa:	em	todos	estes	casos,	a	“essência”	–	o	“ser”	das
coisas	–	não	sofre	qualquer	desgaste.
Concluímos	este	 tópico,	com	as	seguintes	 ilações:	Primeiro,	devemos	considerar	que	“todas
as	 coisas	 do	mundo	 que	 nascem,	 também	 envelhecem	 e	 morrem”[	 21	 ]	 –	 ou	 seja,	 todas	 as
obras	 da	 natureza	 possuem	 um	 primeiro	 momento,	 o	 nascimento,	 como	 seu	 princípio,	 e
também	não	são	diferentes	quanto	ao	fim	comum	que	lhes	cabe	–	a	morte.	Segundo,	que	“do
nada,	nada	vem;	 e,	por	 conseguinte,	 também	nada	 inteiramente	 terminará	no	nada”[	22	 ].	 E
assim,	toda	a	natureza	possui	uma	causa	primordial	e	subsistência	perpétua.	Terceiro,	que	“o
que	 antes	 foi	 nada	 retornou	 para	 o	 nada”.	 Toda	 coisa	 natural,	 que	 veio	 a	 existir
temporariamente	 por	 impulso	 de	 uma	 causa	 oculta,	 também,	 por	 ato	 semelhante	 ao	 de	 sua
criação,	terá	sua	existência	temporariamente	removida,	deverá	voltar	para	sua	origem,	isto	é,
de	onde	viera.
Eis	 a	 leitura	 aristotélica	 da	 imutabilidade	 dos	 corpos	 supralunares.	 Ainda	 que,	 na	 atualidade,	 haja	 conhecimento	 acerca	 da
mutabilidade	dos	corpos	celestes	(e	de	sua	não	correspondência	a	deuses),	é	óbvio	que	a	percepção	de	suas	mudanças	é	muito
menos	vigorosa	do	que	se	tomarmos	a	dos	corpos	mais	próximos	à	nossa	sensibilidade.	Hugo,	mesmo	sem	esta	informação,	já
afirmava	que,	 apenas	devido	 à	 aparente	 imutabilidade	das	 estrelas,	 havia	 pessoas	 chamando-as	 de	deuses;	 e	 que,	 por	 óbvio,
desatavam	em	um	erro	crasso.	Sem	a	informação	da	mera	natureza	física	dos	astros,	Hugo	acertou	em	seu	julgamento	sobre	as
estrelas	–	NT.
Faz	referência	à	força	da	natureza,	instrumento	gerado	por	Deus	para	o	mundo	físico,	isto	é,	a	regência	do	fogo,	do	ar	e	da	água,
todos	vigentes	na	procriação	e	no	nascimento	da	vida	física	contínua	–	NT.
Sallustius.	De	bello	iugurtino.	2,	3.
Persius.	Saturae.	3,	84.
CAPÍTULO	7
SOBRE	O	MUNDO	SUPRALUNAR	E	SUBLUNAR
EM	VISTA	DO	QUE	EXPLIQUEI	ATÉ	AQUI,	 os	matemáticos	 dividem	 o	mundo	 em	 duas	 partes:	 uma
delas,	 a	 que	 permanece	 sobre	 o	 círculo	 lunar;	 e	 a	 outra,	 abaixo	 dele.	 Chamam	 de	 mundo
supralunar	aquele	em	que	todas	as	coisas	se	sujeitam	à	lei	primordial.	Eles	chamam	esta	lei	de
natureza	 –	 e	 natureza	 das	 coisas.	 Já	 o	 mundo	 sublunar,	 chamado	 “obra	 da	 natureza”,	 é
povoado	 pelas	 coisas	 geradas,	 isto	 é,	 pelos	 seres	 superiores,	 porque	 qualquer	 gênero	 de
animais,	presentes	no	mundo	sublunar,	ali	vivem	pela	infusão	neles	do	espírito	vital,	recebendo
por	meios	 invisíveis	 aos	 sentidos	 o	 alimento	 infuso	 pelas	 forças	 superiores,	 não	 apenas	 para
que,	nascendo,	cresçam,	mas	também	para	que	subsistam,	alimentando-se.
Estes	 mesmos	 estudiosos	 chamaram	 o	mundo	 superior,	 já	 comentado	 acima,	 de	 “tempo”,
por	causa	do	curso	e	da	movimentação	dos	astros	nele	presentes.	E,	por	sua	vez,	nomeavam	o
mundo	 inferior	 de	 “temporal”,	 isto	 porque	 todas	 as	 coisas	 que	 achamos	 nele	 agiriam	 sob
influência	dos	movimentos	astrais,	em	conformidade	com	as	coisas	do	superior.
De	mais	a	mais,	outra	nomenclatura	também	foi	utilizada.	Diziam	“elísio”,	referindo-se	ao
mundo	 supralunar,	 tendo	 em	 vista	 a	 perpetuidade	 da	 luz	 e	 a	 tranqüilidade	 da	 paz	 [nele
presentes];	 e	 “inferior”,	 ao	 sublunar,	 posto	 encontrarmos	 inconstância	 e	 confusão	nas	 coisas
nele	presentes.
Nós	 estamos	prosseguindo	um	pouco	nisto	 porque	desejamos	mostrar	 o	 homem,	 enquanto
composto	 por	 duas	 partes,	 possuindo	 uma	 delas,	 partícipe	 da	 mutabilidade,	 e	 tornando-se
ligado	à	necessidade;	enquanto	a	outra,a	imortal,	o	faz	em	conformidade	com	a	divindade.
A	partir	disto,	pode-se	compreender	melhor	o	que	acima	foi	dito,	isto	é,	a	intenção	de	todos
os	atos	dos	homens	caminha	para	um	dos	seguintes	fins:	ou	para	que	a	semelhança	da	imagem
divina	 seja	 restaurada,	ou	para	que	os	homens	 se	 completem	 [corporalmente	pela	 satisfação]
das	necessidades.	A	necessidade,	aliás,	quanto	mais	fácil	for	injuriada	pelas	adversidades,	mais
precisará	ser	conservada	e	nutrida.[	23	]
A	intenção	consciente	dos	homens	pode	ser	mais	alta	–	direcionando	o	homem	para	sua	ascensão	espiritual	–,	ou	mais	baixa,
simplesmente	satisfazendo	os	anseios	mundanos.	Quantos	homens,	no	mundo	atual,	não	desperdiçam	suas	vidas,	sacrificando-se
por	ascensão	social	e	financeira,	mas	pouco	se	preocupam	em	empenhar	suas	forças	para	a	veraz	sabedoria?	Quantos	deixam	de
se	preocupar	com	as	coisas	mais	altas,	preferindo	a	ladainha	da	honraria	entre	seus	pares?	–	NT.
CAPÍTULO	8
EM	QUE	O	HOMEM	É	SIMILAR	A	DEUS?
DOIS	 SÃO	 OS	 EXERCÍCIOS	 QUE	 REPARAM	 a	 semelhança	 divina	 nos	 homens:	 a	 investigação	 da
verdade	e	a	prática	da	virtude.	O	homem	é	semelhante	a	Deus,	se	comprazendo	em	ser	sábio	e
justo	[em	suas	escolhas],	ainda	que	possua	tais	qualidades	apenas	de	modo	mutável,	enquanto
Deus	as	possui	imutavelmente.
Entretanto,	 acerca	 das	 ditas	 ações	 em	 sua	 vida	 hodierna,	 e	 que	 estão	 a	 serviço	 da
necessidade,	 podemos	 compreendê-las	 segundo	 três	 gêneros:	 o	 primeiro,	 responsável	 pela
administração	 de	 nossa	 alimentação,	 protegendo-nos	 das	 ameaças	 presentes;	 o	 segundo,
munindo-nos	na	proteção	conferida	contra	moléstias	oriundas	de	eventos	externos	[e	futuros];
e,	por	fim,	o	terceiro,	fortalecendo-nos,	prestando-nos	remédio	contra	as	moléstias	do	passado.
Portanto	 [de	 modo	 analógico	 ao	 dito],	 entendemos	 que,	 para	 podermos	 reparar	 nossa
natureza	 [perdida],	 é	preciso	um	ato	divino.	Neste	caminho,	 se	providenciarmo-nos	as	coisas
necessárias,	 conforme	 a	 nossa	 natureza	 mais	 baixa,	 estamos	 falando	 apenas	 de	 um	 ato
humano,	 e	 não	 divino.	Quando	 nos	 referimos	 a	 qualquer	 ato,	 esta	 ação	 é	 [necessariamente]
humana	 ou	 divina.	 Não	 é	 incongruente	 chamarmos	 a	 ação	 superior	 de	 “inteligência”,	 e	 a
inferior	[e	humana]	de	“ciência”,	sendo	que	esta	última	tem	necessidade,	para	sua	concretude,
de	um	conselho	[de	ideias].[	24	]
Por	outra	banda,	a	inteligência,	porque	se	dedica	à	investigação	da	verdade	e	[ao	julgamento]
e	 à	 consideração	 dos	 costumes,	 é	 dividida	 em	 duas	 espécies:	 a	 inteligência	 teórica	 –	 isto	 é,
especulativa	–,	e	a	prática	ou	ativa,	chamada	de	ética	e	atrelada	à	moral.[	25	]
A	 ciência,	 por	 sua	 vez,	 perseguindo	 [com	 empenho]	 a	 constituição	 das	 obras	 humanas,	 é
chamada	convenientemente	de	mecânica,	ou	melhor,	“adulterina”.[	26	]
A	palavra	latina	usada	é	simplesmente	“consilio”.	Evitamos	a	tradução	literal	–	“conselho”	–	acrescentando	“de	idéias”,	porque
sugerimos	que	Hugo	está	a	dizer	da	ciência	humana	como	necessariamente	dependendo	de	um	estudo	dialético,	sob	pena	de	se
tornar	mera	 retórica.	 A	 ciência	 tem	 de	 orientar-se	 por	 vários	 estudos	 de	 pessoas	 dispostas,	 ao	 longo	 do	 tempo	 (os	 sábios	 e
cientistas),	 e,	 por	 este	 viés,	 alcançar	 uma	 espécie	 de	 síntese	 do	 pensamento,	 na	 busca	 pelo	 verossímil.	 A	 ciência	 humana,
portanto,	 é	 “coletiva”	 por	 conceito;	 enquanto	 a	 inteligência	 pode	 ser	 imediata,	 resultado	 da	 iluminação	 divina	 no	 espírito
humano,	e,	portanto,	necessariamente	“individual”	–	NT.
Pela	diferenciação	orientada	por	Mário	Ferreira	dos	Santos:	a	ética	corresponde	à	lei	universal	e	imutável,	suficiente	para	nos
levar	ao	aperfeiçoamento	espiritual;	a	moral,	aos	costumes	–	legais	ou	ilegais	–	adotados	por	um	grupo	específico,	e,	portanto,
conjunto	de	regras	costumeiras,	sujeitas	à	variação	temporal	e	espacial	–	NT.
O	sentido	latino	de	“adulterinus”	é	o	de	ilícito,	falso	ou	acessório.	A	ciência	humana	é	acessória	à	inteligência,	mas	também	é
falsa,	 se	 tomarmos	 a	 inteligência	 como	 oriunda	 de	Deus,	 luz	 divina	 em	 nós.	Não	 creio,	 por	 outra	 via,	 que	 haja	 um	 sentido
pejorativo,	assumindo	a	idéia	de	ilicitude,	mas	apenas	observo	um	recurso	semântico	de	convencimento	e	explicação	dado	por
Hugo	ao	leitor	–	NT.
CAPÍTULO	9
AS	TRÊS	OBRAS
CONFORME	PODEMOS	FACILMENTE	PERCEBER	 do	 explicado	 até	 aqui,	 há	 três	 espécies	 de	 obras:	 a
obra	de	Deus,	a	obra	da	natureza	e	a	obra	dos	artífices,	imitando	a	natureza.[	27	]
A	obra	de	Deus	consiste	em	criar	o	que	antes	não	existia;	e	por	isto	é	dito	no	Gênesis:	“no
início,	 Deus	 criou	 o	 céu	 e	 a	 terra”.	 A	 obra	 da	 natureza	 tratou	 de	 revelar	 o	 ato;	 e	 por	 isto
também	no	mesmo	 livro:	 “que	 a	 terra	 produza	 a	 erva	 verde”.[	 28	 ]	 Já	 a	 obra	 do	 artífice	 se
reduz	 em	 unir	 elementos	 separados,	 ou	 em	 separar	 os	 unidos;	 sendo	 dito	 destes:	 “eles
costuraram	para	si	suas	próprias	cinturas”.[	29	]	A	terra	não	pode	criar	o	céu;	nem	o	homem,
as	ervas,	e,	mais	ainda:	o	homem	nem	mesmo	pode	acrescentar	um	palmo	à	sua	estatura!
Dentre	estas	três	espécies	de	obras,	a	humana	não	é	propriamente	uma	natureza,	mas	apenas
imita	a	natureza,	e,	por	isto,	chamada	convenientemente	de	mecânica,	ou	adulterina,	como	se
dá	com	uma	chave,	introduzida	na	porta	do	leito,	e	chamada	de	instrumento	mecânico.[	30	]	E
o	 modo	 como	 a	 obra	 do	 artífice	 é	 o	 imitar	 da	 natureza,	 para	 ser	 exposto	 em	 minúcias,	 é
caminho	longo	e	oneroso.	Entretanto,	somos	capazes	de,	com	alguns	poucos	termos,	expor	este
pensamento.	 O	 homem	 que	 esculpiu	 uma	 estátua	 teve	 o	 intuito	 de	 reproduzir	 o	 próprio
homem	 como	 seu	 projeto.	Outro	 que	 construiu	 uma	 casa	 observou	 um	 alto	monte,	 porque,
como	nos	disse	o	Profeta:	“és	tu	que	omites	as	fontes	nos	vales,	e	as	águas	transpor-se-ão	entre
os	montes”[	31	],	isto	é,	o	cume	dos	montes	[está	livre	das	enchentes,	porque	eles]	não	retêm
as	águas	[que	passam	por	eles],	de	modo	que	a	casa	tem	de	ser	construída	no	ponto	mais	alto,
para	 que	 pudesse,	 ao	 menos	 assim,	 livrar-se	 de	 todas	 as	 moléstias	 oriundas	 das	 terríveis
tempestades.	Um	terceiro	homem,	por	sua	vez,	foi	o	primeiro	de	nós	que	[inventou	e]	instituiu
o	 uso	 das	 vestimentas.	 Ele	 agiu	 assim	 notando	 que	 alguns	 seres	 nasciam	 com	uma	 carapuça
própria	de	sua	natureza,	servindo,	ademais,	para	defendê-los	dos	perigos.	Ora,	a	casca	reveste
a	 árvore,	 a	 pena	 cobre	 o	 pássaro,	 as	 escamas	 protegem	 o	 peixe,	 a	 lã	 agasalha	 o	 carneiro,	 e
pêlos	nascem	nas	feras	e	nos	 jumentos,	a	concha	recolhe	a	tartaruga,	o	marfim	–	presente	no
elefante	–	faz	com	que	ele	não	tema	as	flechas.	E	não	foi	à	toa,	aliás,	que	cada	um	dos	animais
da	natureza	nasceram	com	suas	próprias	armas	e	carapuça,	enquanto	apenas	o	homem	vem	ao
mundo	nu	e	desarmado.
Logo,	 é	 necessário	 à	 natureza	 garantir	 a	 segurança	 dos	 seres	 que	 não	 sabem	 proteger	 a	 si
mesmos	–	atribuindo-lhes	defesas	naturais	–	enquanto	foi	reservada	ao	homem	uma	capacidade
superior	de	tomar	para	si	experiências,	assegurando-lhe	o	reconhecimento	dos	referidos	dados
e	das	 informações	naturalmente	atribuídas	a	 todos,	mas	que	são	descobertas	por	ele,	por	sua
própria	razão.
Brilha	muito	mais	a	 razão	do	homem	ao	descobrir	objetos	para	 suas	vestes	 e	 instrumentos
para	sua	defesa,	do	que	brilharia,	se	simplesmente	ele	já	os	tivesse	por	sua	própria	natureza,	de
modo	 que	 não	 é	 destituído	 de	 fundamento	 o	 provérbio	 que	 nos	 ensina	 “a	 comum	 e	 natural
fome	do	homem	é	que	lhe	causou	todas	as	artes”.
É	 por	 esta	 mesma	 razão	 que	 podemos	 ver,	 desde	 então,	 nos	 esforços	 dos	 homens,	 os
excelentíssimos	resultados	de	suas	descobertas.	E	foram	notados,	ademais,	infinitos	modos	de
pintar,	 de	 tecer,	 de	 esculpir,	 de	 fundir,	 sendo	 que,	 observando	 a	 natureza,	 admiremos	 o
próprio	Artífice!
Calcidius,	op.	cit.	23.
Gn	1,11.
Gn	3,	7.
A	aproximação	do	adjetivo	“adulterino”,	com	a	função	mecânica	da	chave,	é	bela	figura	de	linguagem.	Oadúltero	se	utiliza	do
instrumento	mecânico	–	 chave	–	para	abrir	a	porta	do	quarto	da	amante.	O	mecanismo	que	destranca	a	porta	do	aposento,
possibilitando	 o	 início	 do	 pecado,	 funciona	 corretamente.	 E	 o	 que	 isto	 prova?	 Prova	 que	 a	 arte	mecânica,	 por	 si	 só,	 é	mero
instrumento,	podendo	ser	usado	para	o	bem	ou	para	o	mal.	O	mecanismo	não	é	causa	nem	efeito	do	mal:	a	chave	ou	a	arma	de
fogo	não	são	por	si	más,	mas	podem	vir	a	ser	usados	para	o	mal	–	NT.
Sb	104,	10.
CAPÍTULO	10
O	QUE	É	A	NATUREZA
COMO	NORMALMENTE	DENOMINAMOS	a	natureza	por	vários	termos	–	uma	conclusão	alcançada	e
compartilhada	por	Cícero,	é	que	este	trabalho	de	nomeá-la	é	muito	árduo.
No	entanto,	mesmo	existindo	evidente	dificuldade	acerca	do	significado	de	“natureza”,	isto
não	 nos	 permite	 renegar	 totalmente	 o	 significado	 verdadeiro	 deste	 vocábulo,	 acabando	 por
entrincheirarmo-nos	inteiramente	no	silêncio.[	32	]
Ainda	 que	 não	 sejamos	 capazes	 de	 dizer	 tudo	 o	 que	 queremos	 [sobre	 certa	 coisa],	 tal
dificuldade	não	nos	obriga	a	manter	 silêncio	 sobre	outros	 sentidos	 e	 conhecimentos,	ou	 seja,
temas	sobre	os	quais	temos	plenamente	capacidade	de	falar.
Podemos	 pesquisar	 muitos	 pensadores	 antigos	 investigadores	 da	 natureza,	 e	 que	 a
conceituaram.	 No	 entanto,	 mesmo	 após	 estudos	 vários,	 não	 encontramos	 qualquer	 tratado
suficientemente	completo	para	eliminar	todo	resquício	de	dúvida.	Ademais,	quanto	mais	eu	os
estudo,	mais	posso	entender	seus	escritos,	isto	é,	que	eles	se	habituaram	a	conceber	o	vocábulo
“natureza”	especificamente	por	 três	máximas,	cada	um	deles,	aliás,	alcançando	sua	definição
singular	e	própria.
[Vamo-nos	à	exposição	das	três	máximas	ditas].
A	 primeira	 máxima	 trata	 de	 atribuir	 à	 natureza	 o	 significado	 de	 arquétipo,	 isto	 é,	 de
exemplar	 [ou	 de	 referencial]	 de	 todas	 as	 coisas;	 e	 isto	 principalmente	 por	 se	 encontrar	 no
interior	da	própria	mente	divina,	 sendo	pela	 razão	desta	que	 tudo	 se	 formaria.	Ora,	para	os
seguidores	desta	primeira	máxima,	a	natureza	nada	mais	seria	senão	a	causa	primordial	do	ser
de	cada	coisa	[tomada	particularmente],	ou	seja,	as	coisas	não	receberiam	da	natureza	apenas
sua	existência,	mas	também	sua	essência.	Por	este	viés,	valeria	o	brocardo:	“a	natureza	é	quem
atribui	o	ser	de	todas	as	coisas	do	mundo”.[	33	]
A	segunda	máxima	era	defendida	pelos	pensadores	que	diziam	ser	a	natureza	o	próprio	ser
das	 coisas,	 corroborando	 tal	 definição	 com	 o	 seguinte	 significado:	 “a	 natureza	 pode	 ser
definida	como	a	própria	diferença	que	dá	forma	a	cada	coisa”.	De	acordo	com	esta	definição,
habituamo-nos	a	dizer	que	“a	natureza	é	a	 inclinação	própria	de	 todas	as	coisas:	as	pesadas,
pendem	para	a	terra;	as	leves,	dirigem-se	para	o	alto;	o	fogo	queima,	e	a	água	umedece.[	34	]
A	 terceira	máxima,	 definindo	 “natureza”,	 é	 a	 seguinte:	 “a	 natureza	 é	 o	 fogo	 artífice,	 pelo
qual	deve	proceder	a	força	[suficiente]	para	a	procriação	das	coisas	sensíveis”.[	35	]	Veja	que
esta	é	a	posição	dos	físicos,	segundo	os	quais	todas	as	coisas	só	procriam	em	virtude	do	calor	e
da	umidade.	Assim	[tratam	em	versos:]	Virgílio	chama	o	oceano	de	“pai”;[	36	]	e,	no	mesmo
diapasão,	Valério	Sorano	refere-se	ao	deus	Júpiter	com	o	significado	de	“fogo	etéreo”:
“Júpiter	Onipotente,	criador	das	coisas	e	dos	reis
Progenitor	e	genitor	do	único	e	do	mesmo	deus	verdadeiro”.
O	silêncio	citado	refere-se	ao	esperar	da	iluminação	para	o	conhecimento	místico	da	verdade	divina	–	NT.
A	primeira	 tese	denota	Deus	 como	 fonte	única	 e	máxima	das	 coisas	 criadas,	 detentor	 absoluto	das	 variações	 existenciais	 da
criação,	segundo	um	sentido	de	onisciência	ontológica	e	concreta	–	NT.
A	 segunda	 tese	 define	 a	 natureza	 não	 mais	 como	 arquétipo	 ideal	 –	mens	 Dei	 –,	 mas	 como	 o	 núcleo	 qualitativo	 próprio	 e
específico	 de	 cada	 ente.	 As	 características	 reunidas	 de	 cada	 ente	 criam	 uma	 individualidade	 para	 ele,	 de	 modo	 que	 suas
movimentações	no	mundo	natural	e	sua	existência	passam	a	ser	especificamente	oriundos	deste	conjunto	orgânico	intestino.	Não
há	dúvidas	da	grande	semelhança	da	segunda	máxima	com	o	conceito	contemporâneo	de	natureza	bioquímica	das	coisas	–	NT.
Cícero,	Sobre	a	Natureza	dos	Deuses.	2,	57.
Virgílio,	Geórgica.	4,	382.
CAPÍTULO	11
SOBRE	A	ORIGEM	DA	LÓGICA
APÓS	 DEMONSTRARMOS	 A	 ORIGEM	 DA	 TEÓRICA,	 da	 prática	 e	 da	 mecânica,	 trataremos	 neste
capítulo	de	estudar	a	lógica,	[preferencialmente]	investigando	a	sua	origem,	buscando-a,	aliás,
bem	após	às	outras,	e	isto	porque	ela	foi	enumerada	por	último.
[Na	 educação	 correta	 e	 sábia]	Várias	 outras	 ciências	 foram	 investigadas	 primeiro,	mas	 foi
necessário	também	que	a	lógica	o	fosse,	porque	ninguém	é	capaz	de	proferir	qualquer	palavra
conveniente	sobre	as	coisas	se	antes	não	conheceu	a	razão	de	falar	com	retitude	e	veracidade.
Isto	 se	 concatena	 com	 o	 que	 nos	 disse	 Boécio:	 quando,	 no	 começo,	 os	 antigos	 pensadores
passaram	as	 investigar	a	natureza	das	coisas	e	dos	costumes,	era	comum	que	interrompessem
suas	obras,	já	que	se	enganavam	com	frequência.	Tais	enganos	se	davam	porque	não	possuíam
real	distinção	entre	palavras	e	conceitos.
Neste	 caminho	 rumou	 Epicuro,	 caindo	 em	 muitos	 erros,	 ao	 pensar	 que	 o	 mundo	 era	 só
constituído	de	átomos,	tratando	da	volúpia	como	um	sentimento	honesto.	Não	tenho	dúvidas
de	que	 ele	 caiu	nestes	 enganos	porque	 acreditava	 em	 tudo	aquilo	que,	 de	pronto,	 ocorre	 aos
outros,	como	antes	meramente	imaginado	por	eles.	Em	outros	termos,	julgavam	o	ocorrido	na
realidade,	 isto	é,	nas	coisas	existentes	[como	o	que	foi	por	eles	pensado].	E	tudo	isto	por	um
erro	 de	 argumentação.	 Erro	 verdadeiro	 e	 grande,	 pois	 as	 mesmas	 coisas,	 semelhantes	 em
números,	nada	têm	a	ver	com	os	conceitos,	objetos	dos	raciocínios.
Explico.	 Todos	 os	 números	 que	 podemos	 corretamente	 contar	 com	 os	 dedos	 sem	 dúvida
também	se	encontram	nas	próprias	coisas	contadas,	devendo	nelas	ser	percebidos.	Como,	por
exemplo,	se	contamos	[com	os	dedos	um	monte	de	coisas	dispostas	à	nossa	frente,	partindo	do
zero	e	chegando]	até	cem.	Neste	caso,	é	necessário	que	exista	[na	realidade]	o	mesmo	número
de	coisas	contadas	[pelos	dedos].
Entretanto,	 esta	 regra	 não	 pode	 ser	 observada	 na	 “disputa”	 isto	 é,	 na	 argumentação,	 pois
nem	tudo	que	encontramos	na	conclusão	da	continuidade	dos	argumentos	é	exatamente	igual	a
algo	presente	na	natureza.
Por	tal	motivo,	os	homens	que	rejeitam	a	ciência	da	disputa	[argumentativa]	necessariamente
são	 falhos,	 perseguindo	 [respostas	 pela]	 natureza	 das	 coisas.	Ora,	 se	 antes	 não	 se	 sabe,	 por
conhecimento	 de	 uma	 ciência	 argumentativa,	 qual	 raciocínio	 dá	 suporte	 a	 um	 caminho
verdadeiro	 para	 a	 argumentação	 fluir,	 isto	 é,	 o	 conceber	 do	 verossímil,	 desconhecem-se
portanto	argumentos	nos	quais	possamos	de	fato	confiar.	Por	isto,	acabamos	por	nos	conduzir
por	linhas	suspeitas,	sendo	que	a	verdade	incorrupta	das	coisas	acaba	não	sendo	possível	de	ser
alcançada	por	tal	raciocínio	[duvidoso	e	incerto].[	37	]
Portanto,	como	os	pensadores	antigos	caíam	frequentemente	em	muitos	erros,	eles	obtinham
várias	questões,	durante	as	disputas,	algumas	delas	falsas	e	outras	contrárias	a	si,	parecendo-
lhes	 impossível	 de	 acontecer	 que,	 diante	 de	 duas	 conclusões	 contrárias	 referentes	 à	 mesma
coisa,	 ambas	 fossem	 verdadeiras.	 Parecia-lhes	 ambíguo	 concluir	 qual	 o	 raciocínio	 deveria
discordar	 e	 em	 qual	 seria	 possível	 crer.	 Diante	 desta	 dúvida,	 consideravam	 ser	 necessário,
antes	de	qualquer	disputa,	 levar	 em	conta	 a	natureza	 verdadeira	 e	 íntegra	 [de	 cada	 coisa	 em
particular].	E,	uma	vez	conhecida	a	natureza	delas,	é	que	se	poderia	realmente	entender	o	que
foi	compreendido	das	disputas	e,	portanto,	verdadeiramente	obtido	a	partir	delas.
Aqui	 neste	 ponto	 é	 que	 se	 dá	 a	 perícia	 oriunda	 da	 disciplina	 lógica.	 Disciplina	 a	 ser
disputada,	 por	meio	 de	 diversos	modos	 [de	 argumentação],deparando-se	 com	várias	 vias	 de
pensamento,	 a	 ser	 distinguidas	 pelos	 raciocínios,	 sendo	 possível	 de	 reconhecer	 alguns	 como
verdadeiros;	 outros	 como	 falsos;	 bem	 como	 terceiros	 que	 nunca	 serão	 falsos,	 e	 outros	 que
sempre	o	serão.[	38	]
A	lógica	portanto	é	a	última	no	tempo,	mas	a	primeira	na	fila.	No	sentido	de	que	ela	deve
ser	a	primeira	estudada	pelos	 iniciantes	de	Filosofia,	porque	é	por	meio	dela	que	 se	 ensina	a
natureza	 das	 palavras	 e	 dos	 conceitos,	 sem	 os	 quais	 nenhum	 tratado	 de	 filosofia	 pode	 ser
racionalmente	explicado.
A	 lógica	 provém	 da	 palavra	 grega	 “logos”,	 possuindo	 uma	 interpretação	 dúplice,	 a	 saber,
pode	significar	“discurso”	ou	“razão”.	E	justamente	por	isto	é	denominada	de	ciência	racional
ou	de	ciência	do	discurso.	A	lógica	racional	é	chamada	de	dissertativa,	contendo	a	dialética	e	a
retórica.	A	lógica	do	discurso	é	gênero	cujas	espécies	são	a	gramática,	a	dialética	e	a	retórica,
contendo	sob	si	a	dissertativa	 [ou	seja,	a	 técnica	argumentativa].	É	 justamente	esta	 lógica	do
discurso	enumerada	por	nós	como	a	quarta	disciplina	da	filosofia,	 tendo	seu	aparecimento	se
dado	após	a	teórica,	a	prática	e	a	mecânica.
Não	 devemos	 também	 pensar	 na	 lógica	 chamada	 “discursiva”	 como	 ponto	 de	 partida	 dos
argumentos,	ou	seja,	como	se,	antes	dela,	não	existissem	discursos,	e	os	homens	previamente
não	 se	 dedicassem	 a	 conversas	 mútuas.	 Antes	 do	 conhecimento	 da	 lógica	 discursiva	 são
comuns	os	discursos	 e	 os	 escritos,	mas	nenhuma	 ciência,	 seja	 a	dos	discursos	 falados,	 seja	 a
dos	 escritos,	 fora	 organizada	 em	 uma	 única	 arte.	 Inexistia	 princípio	 ou	 regra	 direcionando
corretamente	 o	 ato	 de	 falar	 e	 o	 de	 disputar,	 posto	 que	 todos	 os	 conhecimentos	 eram
adquiridos,	antes	pelo	uso	do	que	pela	arte.
Entretanto,	 os	 homens	 começaram	 a	 considerar	 que	 a	 repetição	 contínua	 dos	 discursos
poderia	ser	convertida	em	arte,	e	principalmente,	os	discursos	e	os	escritos	antes	qualificados
como	vagos	 e	 desregrados,	 organizados	por	 certas	 leis	 e	 preceitos.	Então,	 como	 já	 dissemos,
passaram	 a	 ordenar,	 tanto	 os	 costumes	 adquiridos	 por	 acaso,	 quanto	 os	 oriundos	 de	 sua
própria	 natureza,	 ajustando	 os	 que	 estivessem	 sendo	 mal	 usados;	 suplementando	 os	 [bons],
mas	 pouco	 usados;	 reduzindo	 os	 supérfluos;	 e	 prescrevendo	 regras	 coerentes	 para	 outras
situações.
Foi	assim	a	origem	de	todas	as	artes,	de	modo	que	descobrimos	esta	verdade,	estudando	cada
caso	 em	 particular.	 Antes	 de	 a	 gramática	 existir,	 os	 homens	 escreviam	 e	 falavam.	 Antes	 da
dialética,	 discerniam	 o	 verdadeiro	 do	 falso.	 Antes	 da	 retórica,	 tratavam	 dos	 direitos	 civis.
Antes	 da	 aritmética,	 possuíam	 o	 conhecimento	 da	 enumeração.	 Antes	 da	música,	 cantavam.
Antes	 da	 geometria,	 mensuravam	 os	 campos	 [para	 a	 agricultura].	 Antes	 da	 astronomia,	 já
captavam	 as	 mudanças	 dos	 tempos	 pelo	 curso	 das	 estrelas.	Mas	 logo	 vieram	 as	 artes,	 que,
mesmo	tendo	seu	princípio	presente	no	próprio	uso,	são	contudo	melhores	do	que	o	uso.
Neste	ponto,	há	de	expormos	quais	foram	os	inventores	de	cada	arte	em	particular,	quando	e
em	que	lugar	apareceram,	e	como,	por	meio	deles,	as	disciplinas	tiveram	seu	início.	Todavia,
quero,	antes	de	apresentar	uma	certa	divisão	da	filosofia,	distinguir	uma	da	outra.	Portanto,	é
preciso	recapitular	brevemente	tudo	que	acima	já	foi	dito	sobre	o	tema,	de	modo	que	se	torne
mais	fácil	a	trânsito	sequencial,	isto	é,	de	um	argumento	para	o	seguinte.
Afirmamos	existir	somente	quatro	espécies	de	ciências,	as	quais	detêm	em	si	todas	as	outras
[menores].[	39	]	Estas	quatro	são	as	seguintes:	teórica	–	tratando	a	especulação	da	verdade;	a
prática	 –	 considerando	 a	 disciplina	 dos	 costumes;	 a	 mecânica	 –	 ordenando	 as	 ações	 de	 sua
vida;	e	a	lógica	–	prestando-se	ao	discurso	feito	com	retidão.	Portanto,	não	é	absurdo	levar	a
sério	o	número	“quatro”,	que	há	de	ser	atribuído	à	alma,	e	que	os	antigos,	em	reverência	a	ele,
o	defendiam	com	o	seguinte	acolhimento:	“por	aquele	que	atribuiu	o	número	quatro	à	nossa
alma”.[	40	]
Repetida	brevemente	 a	definição	de	 filosofia,	 terminamos	 tratando,	por	um	 lado,	 de	 como
tais	 ciências	 estão	 contidas	 sob	 a	 filosofia;	 e,	 de	 outro,	 de	 quais	 ciências	 estão	 subjugadas	 a
estas	últimas.
Na	Teoria	 dos	Quatro	Discursos,	 concebida	 por	Olavo	 de	Carvalho,	 a	 partir	 de	 suas	 leituras	 de	Aristóteles,	 fica	 patente	 a
relação	ontológica	e	inseparável	entre	o	verossímil	e	a	necessidade	de	um	conjunto	de	argumentos	corretos,	tratados	de	maneira
coerente,	na	labuta	do	pensamento	humano.	Assim,	se	o	caminho	do	conhecimento,	partindo	de	argumentos	falaciosos,	alcançar
uma	conclusão	duvidosa,	seu	resultado	será	incapaz	de	se	enquadrar	como	verossímil.	A	busca	pela	natureza	das	coisas	não	pode
ser	empreendida	por	argumentos	incertos.	Pelo	contrário,	argumentos	certos	alcançam	a	expressão	da	natureza	das	coisas,	mas
esta	só	é	de	fato	obtida	por	meio	do	“conhecimento	por	presença”,	o	qual	supre	a	necessidade	argumentativa	–	NT.
Boécio.	Isagoge.	Sec.	2.
Adicionamos	 o	 adjetivo	 “menores”	 para	 as	 ciências	 que,	 nada	 obstante	 importantes,	 estão	 incluídas	 nas	 mais	 complexas	 e
propedêuticas.	Não	há	o	ventilar	pejorativo	no	termo.	Pelo	contrário,	as	“ciências	menores”	são	as	especificidades	científicas	no
correr	prático,	ou	ainda,	o	que	modernamente	chamaríamos	de	“especialidades”.	A	ciência	da	nutrição	–	especialidade	científica
–	está	implícita	na	ciência	da	saúde	(medicina),	bem	como	na	ciência	dos	esportes	(educação	física),	de	modo	que	estas	seriam
“superiores”	àquela.	Todavia,	esta	superioridade	é	apenas	de	princípios	(posto	os	princípios	da	nutrição	estarem	presentes	nos	da
medicina	e	nos	da	educação	física);	não	se	tratando	de	uma	superioridade	de	importância	ontológica,	porque	há	ineficácia	da
medicina	e	da	educação	física	sem	a	boa	execução	da	nutrição:	não	há	homem	curado	ou	bom	atleta	mal	alimentado.	Portanto,
em	sentido	amplo,	os	princípios	de	qualquer	ciência	estão	necessariamente	presentes	na	teórica,	na	prática,	na	mecânica	e	na
lógica	–	NT.
Macróbio.	Comentários	aos	Sonhos	de	Cipião.	1,	6,	41.
LIVRO	II
CAPÍTULO	1
SOBRE	A	DISTINÇÃO	DAS	ARTES
“A	filosofia	é	o	amor	à	Sabedoria	e	que,	de	nada	necessitando,	significa	mente	viva	e	razão
primeira	 e	 única	 das	 coisas”.[	 41	 ]	 Devemos	 tomar	 esta	 definição	 especialmente	 em
conformidade	 com	 o	 seu	 sentido	 etimológico,	 isto	 é,	 o	 sentido	 formal	 do	 termo.	 A	 palavra
grega	 “philos”	 significa	 em	 latim	 amor;	 e	 “sophia”,	 sabedoria;	 de	 maneira	 que	 “filosofia”,
tomada	literalmente,	significaria	“amor	à	sabedoria”.
[Vamo-nos	à	continuidade	da	definição	apresentada]
PRIMEIRO:	“que	de	nada	necessitando,	significa	mente	viva	e	razão	primeira	e	única	das	coisas”.
Aqui,	há	nítida	referência	à	sabedoria	divina,	porque	justamente	por	ela	ser	divina	não	possui
necessidade	 de	 nada	 –	 sendo	 completa	 e	 suficiente.	 Ela	 não	 contém	 em	 si	 nenhum
conhecimento	 em	 menor	 escala	 ou	 qualidade,	 posto	 intuir	 todas	 as	 coisas	 semelhante	 e
simultaneamente.	 Ora,	 na	 mente	 divina,	 o	 presente,	 o	 passado	 e	 o	 futuro	 existem
simultaneamente.	 Segundo:	 “viva	 mente”	 porque,	 uma	 vez	 existindo	 na	 mente	 divina,	 de
nenhum	modo	algo	será	esquecido.	E,	terceiro:	“razão	primeira	das	coisas”,	tratando	de	tudo
que	existe	no	mundo	e	que	foi	formado	à	sua	semelhança.
Dizem	que	sempre	permanece	o	objeto	pelo	qual	as	artes	 se	ocupam.	Todas	as	artes	 fazem
isto,	 direcionam-se	 para	 isto,	 e	 tudo	 para	 que	 a	 semelhança	 divina,	 formada	 em	 nós,	 seja
finalmente	reparada.	Assim	se	dá	a	natureza	de	Deus	[em	nós]:	quanto	mais	nos	conformamos
a	ela,	mais	a	reconhecemos.
Deste	 pensamento	 começa	 a	 reluzir	 a	 natureza	 divina,	 de	 modo	 que,	 não	 podemos	 nos
esquecer,	este	reluzir	sempre	esteve	presente	na	razão	Dele.	[Em	outras	palavras,	enquanto,	em
nós,	o	reluzir	divino	–	a	sua	natureza–	é	transitório,	em	Deus	ele	permanece	imutável.
Mas	 além	 da	 definição	 etimológica,	 há	 uma	 outra:	 “a	 filosofia	 é	 a	 arte	 das	 artes,	 e	 a
disciplina	das	disciplinas”,[	42	]	isto	é,	o	conhecimento	pelo	qual	todas	as	artes	e	disciplinas	se
espelham.	 Quanto	 ao	 termo	 “arte”,	 vale	 o	 seguinte:	 a	 arte	 pode	 ser	 chamada	 de	 ciência,
consistindo	 “nas	 regras	 e	 nos	 preceitos	 da	 própria	 arte”,[	 43	 ]	 e	 isto	 se	 dá,	 por	 exemplo,
quando	 nos	 referirmos	 ao	 ato	 de	 escrever.[	 44	 ]	 Mas	 a	 arte	 é	 denominada	 também	 de
“disciplina	 completa”.	Deparamo-nos	 com	 esta	 segunda	 definição,	 ao	 tratarmos	 da	 filosofia
como	doutrina.[	45	]	Podemos	também	dizer	da	arte	como	referida	a	alguma	coisa	“verossímil
ou	opinável”.	Neste	caso,	a	disciplina,	por	meio	de	disputas	verdadeiras,	trataria	do	que	“não
pode	 existir	 de	 outro	 modo.”	 É	 justamente	 este	 o	 aspecto	 de	 diferença	 entre	 Platão	 e
Aristóteles,	acerca	da	arte	e	da	disciplina.[	46	]
Uma	 outra	 possibilidade	 é	 nos	 referirmos	 à	 arte	 como	 aquilo	 que	 é	 executado	 na	matéria
passiva,	e	concretizado	[por	sua	própria	execução],	isto	é,	quando	se	dá	a	sua	operação,	como,
por	exemplo,	a	arquitetura	[a	arte	realizada	com	a	obra	construída].
De	modo	diverso	ocorre	com	a	disciplina,	referindo-se	principalmente	à	especulação,	e	sendo
totalmente	explicada	apenas	pela	razão,	como	se	dá	com	a	lógica.
Mas	 não	 podemos	 deixar	 de	 nos	 referir	 a	 uma	 outra	 definição:	 “a	 filosofia	 é	 a	meditação
sobre	a	morte,	pensamento	especialmente	conveniente	aos	cristãos	que,	desprezando	a	ambição
das	coisas	mundanas	e	terrenas,	passam	sua	vida	no	respeito	à	disciplina,	e	vivem	em	busca	da
semelhança	com	a	pátria	futura”.[	47	]
E	mais:	 “a	 filosofia	 é	 a	 disciplina	 que	 tem	de	 investigar,	 com	 respeito	 à	 probabilidade,	 as
razões	 de	 todas	 as	 coisas	 divinas	 e	 humanas”.[	 48	 ]	 E,	 por	 este	 viés,	 a	 razão	 de	 todos	 os
estudos	[que	fazemos	durante	nossa	vida]	espelha-se	na	filosofia.	Todavia,	não	é	toda	ação	que
concretizamos	possível	de	ser	chamada	de	filosófica,	e,	por	 isto,	afirmamos	que,	segundo	um
ponto	de	vista,	todas	as	coisas	são	pertinentes	à	filosofia.[	49	]
Por	 fim,	 sabemos	 que	 a	 filosofia	 possui	 [célebre]	 divisão	 em	 teórica,	 prática,	 mecânica	 e
lógica,	sendo	que	estas	quatro	disciplinas	inserem	em	si	todo	o	conhecimento.
A	 teórica	 pode	 ser	 conhecida	 como	 especulativa,	 e	 a	 prática,	 como	 ativa.	 Esta	 última
também	 pode	 ser	 chamada	 por	 outro	 nome,	 a	 saber,	 “ética”,	 isto	 é,	 dita	 também	 moral	 e
consistindo	no	conjunto	dos	costumes	direcionados	para	a	boa	ação.
A	mecânica	é	reconhecida	como	“adulterina”,	porque	apenas	versa	sobre	as	coisas	humanas
[ou	ainda,	as	executadas	pela	força	e	pelo	empenho	humano].	Já	lógica	trata	das	palavras,	daí
também	chamada	de	“argumentativa”.
Voltando	à	primeira	delas,	devemos	saber	que	a	teórica	divide-se	em	outras	três:	na	teologia,
na	matemática	e	na	 física.	Boécio,	aliás,	 também	utilizou	esta	divisão,	mas	o	 fez	com	outras
denominações,	 dividindo	 a	 teórica	 em	 intelectível,	 inteligível	 e	 natural.	 A	 intelectível	 era	 de
fato	a	teologia;	a	inteligível,	a	matemática;	e,	por	fim,	a	natural,	a	física.
Vamos,	então,	ao	estudo	do	que	Boécio	chamou	de	intelectível,	a	saber,	a	teologia.
Boécio.	Isagoge.	1,	3.
Isidoro.	Etimologias,	2,	24,	9;	e	Cassiodoro,	Instituições.	2,	3,	5.
Isidoro.	Etimologias.	1,	1,	2.
O	ato	de	escrever	depende	de	regras	gramaticais	e	preceitos	semânticos	e	gráficos.	Daí	a	ciência	de	escrita,	modo	de	exposição
da	sabedoria	filosófica	–	NT.
A	 doutrina	 pressupõe	 o	 alcance	 de	 um	 resultado	 esperado,	 conforme	 regras	 certas	 e	 definidas.	 Daí	 o	 aspecto	 geométrico	 e
matemático	da	arte	neste	segundo	sentido	–	NT.
Isidoro.	Etimologias.	1,	1,	3.
Idem.	2,	24,	9.
Idem.	1,	13,	5-7.
Trata	do	uso	impróprio	do	vocábulo	“filosofia”	para	situações	totalmente	alheias	ao	sentido	socrático	do	termo,	o	“conhece-te	a
ti	mesmo”.	As	manifestações	 culturais,	mesmo	 as	mais	 débeis,	 quando	 concretizadas	 por	 ato	 de	 vontade	 humana	 e	 segundo
certas	regras	sociais,	possuem	alguma	nódoa	da	filosofia,	da	capacidade	crítica	do	ser	humano	em	face	dos	outros.	Mas	isto	não
significa	que	sejam	propriamente	atividades	filosóficas.	Pelo	contrário,	é	um	grande	imbróglio	atribuir,	por	exemplo,	ao	modo	de
vida	de	uma	comunidade	tal	brocardo,	caindo	na	sandice	de	dizer	que	“a	filosofia	de	tal	comunidade	é	(...)”.	A	impropriedade
pode	assumir	um	status	perigoso	em	sociedades	em	decadência,	em	que	muitos	supostos	“filósofos”	envernizam	suas	atividades
historiográficas	oficiais	e	assalariadas	pelo	Estado	com	o	título	de	“filosofia”	–	NT.
CAPÍTULO	2
SOBRE	A	TEOLOGIA
O	INTELECTÍVEL	É	O	QUE	CONSISTE,	uno	e	em	si	mesmo,	em	sua	própria	divindade,	nunca	captado
pelos	 sentidos,	mas	 somente	pela	mente	 e	pelo	 intelecto.	O	estudo	da	 teologia	 compõe-se	da
especulação	sobre	Deus,	da	consideração	sobre	a	imortalidade	da	alma	e	da	indagação	sobre	a
verdadeira	 filosofia.	Afirma-se	 ainda	 ser	 exatamente	 esta	 a	 definição	 que	 os	 gregos	 deram	 à
teologia.[	50	]
Tomada	a	 teologia	como	discurso	referente	a	Deus,	estamos	na	verdade	seguindo	o	sentido
etimológico:	 a	 palavra	 grega	 theos	 significa	 “deus”;	 e	 logos	 –	 referente	 ao	 final	 “logia”	 –
traduz-se	 ainda	 como	 “palavra”	 ou	 “razão”.	 A	 aglutinação	 de	 ambas,	 a	 saber,	 a	 palavra
“teologia”	 nos	 leva	 ao	 seguinte	 significado:	 ela	 se	 dá	 “quando	 dissertamos,	 por	 um	 modo
profundíssimo,	sobre	a	inefável	natureza	de	Deus	ou	a	das	criaturas	espirituais”.
Boécio.	Isagoge.	1,	3.
CAPÍTULO	3
SOBRE	A	MATEMÁTICA
A	MATEMÁTICA	É	CHAMADA	DE	CIÊNCIA	DOUTRINÁRIA.	[E	vamo-nos	à	sua	etimologia]
Mathesis	–	 tomando	esta	palavra	 com	a	 letra	“t”	 sem	aspiração	–	assume	o	 significado	de
“vaidade”.	 Ademais,	 aproxima-se	 da	 superstição	 daqueles	 que	 atribuem	 os	 destinos	 dos
homens	 [simplesmente]	 às	 estrelas.	 Por	 isto,	 tais	 tipos	 de	 pessoas	 são	 chamadas	 de
matemáticos.	No	entanto,	quando	a	letra	“t”	é	aspirada,	o	significado	é	“doutrina”.
Esta	disciplina,	aliás,	é	a	que	se	ocupa	da	quantidade	abstrata,	ou	melhor,	o	que	é	conhecido
somente	pelo	raciocínio,	pela	separação	do	intelecto	da	matéria,	e	por	outros	acidentes,	como
se	dá	com	o	conceito	de	par,	ímpar	e	outros	abstratos.	Esta	abstração	é	produto	da	doutrina,	e
não	da	natureza.
Como	 disse	 acima,	 a	 esta	 disciplina	 Boécio	 dá	 o	 nome	 de	 “inteligível”,	 compreendendo	 o
pensamento	e	a	inteligência.
Aproximando	 a	 disciplina	 inteligível	 da	 primeira	 apresentada	 aqui	 –	 a	 intelectível	 –,
pertencendo-lhes,	aliás,	todas	as	obras	celestes	da	suprema	divindade,	cabe-lhe	qualquer	coisa
presente	sob	o	globo	lunar,	e	que	possua	valor,	no	sentido	de	corresponder	a	uma	alma	mais
feliz	e	a	um	espírito	de	substância	pura.
Ora,	 quanto	 às	 almas	 humanas,	 todas	 elas	 de	 início	 foram	 [somente]	 substâncias
intelectíveis;	no	entanto,	diante	do	contato	com	seus	corpos	 [físicos],	degeneraram,	passando
do	 estado	 intelectível	 para	 o	 meramente	 inteligível.	 E,	 assim,	 mais	 do	 que	 conhecidas,	 elas
passam	a	conhecer;	e,	por	sua	pureza,	tornam-se	cada	vez	mais	felizes,	quanto	mais	apliquem-
se	às	coisas	intelectíveis.[	51	]
A	 natureza	 das	 almas	 e	 dos	 espíritos,	 posto	 ser	 simples	 e	 incorpórea,	 é	 partícipe	 da
substância	 intelectível.	Entretanto,	 sabemos	que	 as	 almas,	 pelo	 constante	uso	dos	 sentidos,	 é
reduzida	de	modo	heterogêneo,	isto	é,	unida	ao	corpo	passa	a	marcar	em	si	mesma	a	imagem
de	objetos	pensados,	utilizando-se	da	imaginação.	Assim,	por	um	certo	modo,	ela	abandona	a
sua	 simplicidade,	 na	medida	 em	que	 perde	 a	 razão	 de	 sua	 composição.	 Então,	 não	 podemos
dizer	 que	 algo	 como	 ela	 –	 em	 clara	 similaridade	 com	 um	 ente	 composto	 –	 seja	 totalmente
simples.[	52	 ]	Veja	que	esta	 constatação	nos	mostra	o	 seguinte:	uma	mesma	coisa,	diante	de
considerações	 diferentes,	 pode	 ser	 simultaneamente	 tomada

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