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HUGO DE SÃO VÍTOR DIDASCALICON A ARTE DE LER Tradução e notas de Tiago Tondinelli SUMÁRIO Capa Folha de Rosto Apresentação – Hugo de São Vitor e a arte de educar Introdução Livro I Capítulo 1: Sobre a origem das artes Capítulo 2: A filosofia como a busca da sabedoria Capítulo 3: A tríplice potência da alma e somente o homem possui a razão Capítulo 4: Quais são os objetos pertinentes à filosofia? Capítulo 5: Sobre a origem da teórica, da prática e da mecânica Capítulo 6: Sobre as três espécies de coisas Capítulo 7: Sobre o mundo supralunar e sublunar Capítulo 8: Em que o homem é similar a Deus? Capítulo 9: As três obras Capítulo 10: O que é a natureza Capítulo 11: Sobre a origem da lógica Livro II Capítulo 1: Sobre a distinção das artes Capítulo 2: Sobre a teologia Capítulo 3: Sobre a matemática Capítulo 4: Sobre o quaternário da alma Capítulo 5: Sobre o quaternário do corpo Capítulo 6: Sobre o quadrivium Capítulo 7: A aritmética Capítulo 8: A música Capítulo 9: A geometria Capítulo 10: A astronomia Capítulo 11: Sobre a aritmética Capítulo 12: Sobre a música Capítulo 13: Sobre a geometria Capítulo 14: Sobre astronomia Capítulo 15: Sobre a definição do quadrivium Capítulo 16: Sobre a física Capítulo 17: O que é próprio de cada uma das artes Capítulo 18: Comparação das divisões acima citadas Capítulo 19: Sobre o tema anterior Capítulo 20: A divisão da mecânica em sete ciências Capítulo 21: A ciência da lã Capítulo 22: A ciência das armas Capítulo 23: A ciência da navegação Capítulo 24: A agricultura Capítulo 25: A caça Capítulo 26: A medicina Capítulo 27: Sétima: o teatro Capítulo 28: Sobre a lógica, a quarta parte da filosofia Capítulo 29: Sobre a gramática Capítulo 30: Sobre a teoria da argumentação Livro III Capítulo 1: Sobre a ordem e o método que devemos seguir na leitura e na disciplina Capítulo 2: Sobre os autores das artes Capítulo 3: Quais as artes que devem ser lidas preferencialmente? Capítulo 4: Sobre os dois gêneros dos escritos Capítulo 5: A função que tem de ser atribuída a cada uma das artes Capítulo 6: O que é necessário ao estudo Capítulo 7: Do que se trata o engenho natural Capítulo 8: Sobre a ordem da leitura Capítulo 9: Sobre o modo de ler Capítulo 10: Sobre a meditação Capítulo 11: Sobre memória Capítulo 12: Sobre a disciplina Capítulo 13: Sobre a humildade Capítulo 14: Sobre o estudo da pesquisa Capítulo 15: Sobre os quatro preceitos restantes Capítulo 16: Sobre o silêncio Capítulo 17: Sobre a investigação Capítulo 18: Sobre a frugalidade Capítulo 19: Sobre o exílio Livro IV Capítulo 1: Sobre o estudo das Sagradas Escrituras Capítulo 2: Sobre a ordem e o número dos livros Capítulo 3: Sobre os autores os livros divinos Capítulo 4: O que é uma biblioteca? Capítulo 5: Sobre os intérpretes Capítulo 6: Sobre os autores do Novo Testamento Capítulo 7: Outros escritos são apócrifos, mas o que de fato significa “apócrifo”? Capítulo 8: O significado das palavras dos livros sagrados Capítulo 9: Sobre o Novo Testamento Capítulo 10: Sobre os cânones dos evangelhos Capítulo 11: Sobre os cânones dos concílios Capítulo 12: São quatro, os principais sínodos Capítulo 13: Os que fundaram as bibliotecas Capítulo 14: Quais escrituras são autênticas Capítulo 15: Quais são os escritos apócrifos Capítulo 16: Certas etimologias pertinentes aos leitores Livro V Capítulo 1: Sobre algumas propriedades da Sagrada Escritura e o modo correto de lê-la Capítulo 2: Sobre o entendimento tríplice Capítulo 3: As coisas também têm significado nas Sagradas Escrituras Capítulo 4: Sobre as sete regras Capítulo 5: O que impede o estudo Capítulo 6: Sobre o fruto da leitura divina Capítulo 7: Como as Sagradas Escrituras devem ser lidas para a correção dos costumes Capítulo 8: A leitura é dos principiantes, a obra, dos perfeitos Capítulo 9: Sobre os quatro graus Capítulo 10: Sobre os três gêneros de leitores Livro VI Capítulo 1: Como as Sagradas Escrituras devem ser lidas para os que desejam nela o conhecimento Capítulo 2: Sobre a ordem presente nas disciplinas Capítulo 3: Sobre a história Capítulo 4: Sobre a alegoria Capítulo 5: Sobre a tropologia, isto é, sobre a moralidade Capítulo 6: Sobre as ordens dos livros Capítulo 7: Sobre a ordem da narração Capítulo 8: Sobre a ordem da exposição Capítulo 9: Sobre a letra Capítulo 10: Sobre o sentido da letra Capítulo 11: Sobre a sentença Capítulo 12: Sobre o modo de ler Capítulo 13: Sobre a meditação omitida nesta obra Apêndices “A”: A divisão do conteúdo da filosofia “B”: Sobre a magia e suas partes “C”: Sobre as três substâncias das coisas Créditos Sobre o Autor APRESENTAÇÃO HUGO DE SÃO VÍTOR E A ARTE DE EDUCAR TIAGO TONDINELLI Doutor em filosofia medieval pela PUC-RS, é um estudioso da obra de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino. “[Diante desta vida em contemplação à verdade, e negando o convívio social e os bens materiais] alguém poderia se dirigir a um filósofo dizendo: ‘tu não vês como os homens zombam de ti?’ E, em resposta ele diria: ‘sim, eles zombam de mim, mas deles zombam os asnos’. Diante desta resposta, quero que tu penses o seguinte: quanto vale para um filósofo ser louvado por pessoas das quais ele nunca teve qualquer temor de ser insultado? Outro exemplo parecido foi o de um filósofo que, após [constante e duradouro] estudo de todas as disciplinas, alcançando o cume das artes, resolveu descer, dedicando- se a uma vida de oleiro. E, por fim, um último exemplo de um mestre cujos discípulos em efervescência o louvavam, dizendo que, entre suas inumeráveis perícias, também constava a de ser um exímio sapateiro”. Hugo de São Vitor, Didascalicon PÁLIDO, ANÊMICO, AINDA QUE UM TANTO esperançoso, ou por isso mesmo; pequeno, delgado; de longe, o hoje nos parece um tempo culturalmente cheio de hipóteses, de oportunidades (que seja!); mas, de perto, olhando bem de pronto, comprovamos nosso sideral cansaço diário: vivemos em uma época de trocas baixas, daí esta tórrida anemia. Nosso tempo vangloria-se pela ética do útil. Cada um é turvado por uma função social que trata o próximo como se amparado fosse, de fato, mero locatário de luxo: aquele oferece uma ajuda, enquanto o ajudado torna-se seu servo, instrumento para autoafirmação e vantagens de quem o ajuda. Neste maremoto cego, o epicentro tosco é coroado pela pedagogia abstrata. Preocupamo-nos mais em criar braços ideológicos de pantominas refratárias; o aluno, apto em se confrontar com seus pais, sua família, sua escola, mas muito menos, em alcançar o saber mínimo, e sobretudo se tornar articulado, capaz de não confundir posições abstratas com elementos reais, indiscutivelmente concretos. Por esse motivo, e outros que são óbvios, o texto posterior, escrito no Medievo por Hugo de São Vitor, não pode ser chamado apenas de extemporâneo. Pelo contrário, o autor explicitou um resumo flagrante da mediocridade do gnóstico que, antes de saber o abecedário, crê ser capaz de entender plenamente as metáforas do Apocalipse de João. Hugo fez um gesto como o de quem busca afastar a afoiteza; e conteve-se. Explicitou, passo a passo, uma educação da humildade, pondo de lado qualquer tentativa herética de criar leis, antes de conhecer o alfabeto. No texto, ele foi expositor das artes liberais e, pilhérico, talvez rústico – mas de uma rusticidade do necessário, do evitar de ornamentos mentirosos. E, em todo o caso, instiga uma pedagogia escalar, partindo do físico, rumando para o esplendor da metafísica. Chesterton nos fala que a leitura de um texto sincero é muito pior do que a de um outro mentiroso. Mas por quê? Porque o texto mentiroso conta a história de toda a humanidade vivente, no momento de sua confecção, enquanto o sincero petrifica-se na exposição individual de seu autor, e só. Portanto, é tão maior o mérito de Hugo quanto não lhe faltam olhares criminosos de leitores dizendo: “eis, aqui, um texto ultrapassado sobreeducação”. A arte de ler não diz uma nem duas verdades sobre como formar o homem temente a Deus e merecedor de prestígio científico. Vai muito além. E, se por conta do dogma, o educando desprezar o homem e sua alma imortal, nada importa de seu amplo conhecimento técnico. Ele permanece em uma escala noturna, cego aos lastros das intempéries. Doutro lado, seguindo o exposto por Hugo, retirado do status quaestionis de homens como Aristóteles, Boécio e Agostinho, o texto acrescenta limites relevantes ao educando, e caminhos necessários ao educador. Passar por cada um dos livros significa negar o corporativismo da educação do “para quê?”, ou seja, o saber desde o seu início coroado por um ceticismo traçado. Afinal, começou Hugo a se opor às heresias, atacando fielmente o leitor superficial, tentado explicar os trechos além de sua capacidade presente. Hugo reiterava a disciplina da música como um sequencial matemático divino, e não como anódino recife de diversão banal; a geometria, disciplina espelhada – paralelo das leis universais, no abstratismo das formas; a astronomia, a harmonia tranquila dos movimentos astrais, e seus reflexos em nosso íntimo; finalmente, a ética, prática do “bem viver”, e não do “viver bem” – cabal diferença, aliás: “bem” viver, privilegia o bem, em detrimento do “viver”, mas combinando-os, declarando que temos de temer apenas viver, desgastarmo-nos para a manutenção de nossa habilidade orgânica de promover mais um suspiro. Sem o bem, direcionamo-nos para um estado animalesco não crivado por almas imortais. Se não acreditarmos nisso, paciência; mas o certo é que é, na nossa simplicidade, adivinhamos tudo. Que mais? A prova de que é pela direção pedagógica do espírito que de fato somos homens tranquilos e satisfeitos. Esta é a importância do texto que segue. Há ampla construção da catedral da formação do espírito. Preceitos básicos, focando o conhecimento da lógica e, instrumentalizando-a, em seu íntimo, a gramática, a eloqüência e a dialética. É este o caminho a ser seguido pelo educador – o coroar da educação formal, pelo iluminar do farol espiritual. E tudo isto deve ser respeitado, relido, reafirmado nos nossos tempos. Devemos negar seguir as regras demoníacas de teorias contemporâneas, muitas, aliás, insuficientes, ineficazes, compêndios da derrota. O educador não pode crer em um empirismo cego, sob pena de se equivaler ao personagem descrito por Machado de Assis no conto A Cartomante: “e digo mal, porque negar é ainda afirmar, ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando”. Não, não podemos nos calar diante do abandono da educação do espírito; muito menos silenciarmo-nos sob o estigma da vergonha de aceitar nossa pequenez, nossa incredulidade, nossa insatisfação gnóstica – três nomes, um único projeto, e nenhuma escusa do necessário sacrifício que ora nos cabe. Não é novidade para mim que um mesmo cuidado deve ser dado pelos alunos, no evitar de gastar seu tempo em estudos inúteis, e na permanência desmotivada no desempenho de esforços [educacionais] úteis e bons: afastar-se do estudo inútil é tão importante quanto ser aguerrido na busca pelo fim bom e útil. É mau realizar com negligência o bem, mas, pior ainda, desgastar-se amplamente para desenvolver trabalhos inúteis e vãos. Contudo, como não são todas as pessoas possuidoras de um conhecimento suficiente para se autoeducarem, capazes de descobrir sozinhas o que lhes cabe para sua correta formação, indicarei brevemente aos estudantes os escritos que, para mim, mostram-se mais adequados [à formação deles], bem como farei um adendo rápido sobre a maneira de estudá-los. Hugo de São Vitor, Didascalicon SOBRE A TRADUÇÃO Até agora, os textos latinos que traduzi para a Editora Ecclesiae tiveram como ponto de partida o original em latim, e, em algumas situações, a felicidade de encontrar uma versão em francês, em italiano ou em inglês, para conferência posterior. O cotejamento evita que a versão criada, a partir de minha tradução do original, tenha alguma idiossincrasia. Neste texto, em especial, parti da versão latina em domínio público, disponível no site The Latin Library (http://www.thelatinlibrary.com/hugo.html), mas minha caminhada para a construção de uma versão moderna, pensando no leitor brasileiro comum, e não apenas nos ditos especialistas, foi acompanhada de uma tradução já feita em língua portuguesa, e com muito vigor, por Antônio Marchionni (Bragança Paulista, 2007). Longe de mim tentar superar esta versão. Pelo contrário, após a tradução latina, consultei esta magnífica obra em português, ajustando alguns equívocos de meu trabalho, bem como criando versões de alguns trechos, na vertente do pensamento conservador e escolástico. Unem- se a tudo isto as minhas notas de rodapé, gerando, por escólio, uma nova versão traduzida que possui um viés estribado no pensamento de Mário Ferreira dos Santos. De fato, traduzir um texto latino não é uma arte literal, mas significa dizer para outro o que “se vê” em um texto em língua antiga; e, é claro, ampará-lo por nossa própria formação. Eis o desafio do tradutor: ser ele mesmo, não negar os outros que o influenciam, sem alterar o real pensamento traduzido, tudo isto imiscuído em seu nevrálgico labor. Cornélio Procópio, novembro de 2014. Introdução EXISTEM VÁRIAS PESSOAS cuja própria natureza tornou destituídas de inteligência, de modo que, até para o conhecimento das coisas mais fáceis, possuem insuficiente força intelectual. Parece- me, aliás, haver duas espécies de pessoas que correspondem a esta descrição. Uma destas espécies é a das pessoas que, não ignorando sua limitação intelectual, valem-se de grandiosos esforços para o alcance do conhecimento e, insistindo com pujança nos estudos, menos obtêm o êxito ensejado por causa do efeito de suas ações, e muito mais, devido ao efeito merecido de suas [ardentes] vontades. Todavia, há a segunda espécie, correspondendo às pessoas que, como sentem nunca serem capazes de compreender as coisas sumas, isto é [os temas altíssimos de teologia e filosofia], acabam por negligenciar todo o conhecimento, inclusive o referente às coisas mínimas [ou seja, as coisas naturais e práticas]. Tais pessoas, quanto mais fogem de serem capazes de entender as mínimas, tornam-se ainda mais cativas, presas em uma espécie de torpor, pondo a perder, cada vez mais, a luz da verdade, presente nas coisas altíssimas[ 1 ]. É neste sentido que nos lembra o salmista: ”não quiseram conhecer, para não terem de agir corretamente”.[ 2 ] E o que isto significa? Significa que uma coisa é o “desconhecer”, e outra, muito diferente dela, é o “não querer conhecer”. Supomos a presença de uma fraqueza [intelectual], quando notamos o “desconhecimento”; mas se nos referimos ao ódio ao conhecimento, encaramos, de fato, uma vontade perversa. Mas há um outro gênero de homens, cuja natureza dotou de muita engenhosidade, fornecendo-lhes oportunidade de alcançarem com mais facilidade a verdade. Entretanto, nada obstante a presença de um gênio valioso neles, não há exatamente em todos a mesma virtude e vontade de, por exercícios e pelo respeito à doutrina, educar seus sentidos naturais. Digo-lhes mais: não são poucos os homens [com alta inteligência] que, preocupados com os afazeres diários e cuidando dos negócios necessários para a manutenção de suas vidas [terrenas], ou [pior ainda] mergulhados nos vícios e nos prazeres corporais, sepultam na terra o talento que lhes fora dado por Deus. Assim, com olhos desatentos para as coisas do alto, eles não anseiam pelo fruto da sabedoria, nem desejam a vantagem que a boa obra traz, tornando- se, de fato, extremamentedetestáveis. Por outra via, há aqueles cuja possibilidade de aprender é diminuída pela pobreza de bens familiares ou simplesmente por escassez de recursos monetários [para sua sobrevivência]. Cremos fielmente que, mesmo açoitados pela pobreza, não podemos, por este motivo, escusá- los, porque observamos várias pessoas que, sofrendo de fome, nudez e sede, conseguem adquirir o fruto da sabedoria: uma coisa é não poder, melhor dizendo, não poder aprender com facilidade; e outra coisa é poder, mas não querer aprender. Ora, como é mais glorioso aprender a virtude somente por meio da sabedoria, quando são nulas nossas faculdades [e riquezas para o investimento escolar], então é muito mais torpe efetivamente possuir engenhosidade, esbaldar-se em riquezas, e ficar entorpecido no ócio. É principalmente por dois instrumentos que alguém adquire o conhecimento: a leitura e a meditação. Observando ambos, notamos que é a leitura que vem em primeiro lugar na instrução, e justamente por isto este livro que segue trata dos preceitos e regras para a boa leitura. De pronto, afirmo o seguinte: são três, os preceitos mais necessários para a arte de ler: o primeiro preceito: “que saibamos previamente o que devemos ler”. O segundo: “a ordem a seguir durante a leitura, isto é, qual o primeiro texto a ser destrinchado, qual o segundo e assim por diante”. E o terceiro preceito: “como devemos ler”. Este livro trata separadamente destes três preceitos, de modo que ele instrui tanto para a leitura dos escritos profanos, quanto para a dos divinos. Logo, há uma divisão deste texto em duas partes, sendo que cada uma delas possui três distinções. Na primeira parte, ensina-se o leitor das artes; na segunda, o leitor dos livros divinos. E o texto deste livro continua a ensinar deste modo, ou seja, esboçando inicialmente o que devemos ler, e, em seguida, a ordem e o modo pelo qual deve se dar esta leitura. Mas, para que possamos saber o que devemos ler, e, pelo menos, o que principalmente devemos ler, na primeira parte deste texto há a enumeração da origem de todas as artes. Em seguida, expomos a descrição e a distribuição delas, isto é, de que modo uma arte contém a outra, ou como uma está contida em outra e assim por diante – sendo que é esta a característica que acaba por dividir a filosofia, de seu ápice até os seus temas mais baixos. Na seqüência, notamos a enumeração dos autores das artes, de modo a expor [a partir da opinião deles] o que devemos ler com prioridade, bem como a ordem de leitura e o modo de procedermos. Finalmente, o livro prescreve aos leitores a disciplina de sua vida, pondo fim à primeira parte. Na segunda parte, o texto mostra-nos quais escrituras devem ser chamadas de divinas, bem como o número e a ordem dos livros divinos, dos seus autores e de suas interpretações. Depois, traça-nos algumas peculiaridades [trechos e propriedades] da Divina Escritura que nos são mais necessárias [para serem estudadas e lidas]. Então, há ensinamento do modo como devemos ler a Sagrada Escritura, quando se trata de quem procura nela a correção de seus costumes e um modo justo de viver. Por fim, não abandona os que a lêem pelo amor ao conhecimento, chegando-se ao fim desta segunda parte da obra. Hugo refere-se aos homens negadores do conhecimento dos temas ontológicos (coisas altas), os preceitos metafísicos, e que assim procedem por se perceberem incapazes de entendê-los. Tomados pela preguiça, ao invés de dedicar-se ao aprimoramento intelectual, escolhem negar todo e qualquer conhecimento, inclusive o referente aos seres naturais (coisas mínimas) – NT. Sl 35, 4. LIVRO I CAPÍTULO 1 SOBRE A ORIGEM DAS ARTES DENTRE TODOS OS BENS QUE ASPIRAMOS, é certo que a sabedoria ocupa o primeiro lugar, posto ser nela que consiste a forma do Bem perfeito. É Bem perfeito porque, ao iluminar o homem, a sabedoria faz com que ele conheça a si mesmo, de modo que, conhecendo-se, deixe de pensar ser apenas algo semelhante a todas as outras coisas criadas, notando que de fato foi criado como ser superior. Na verdade, a alma imortal humana, iluminada pela sabedoria, considera o seu próprio princípio, e reconhece como indecorosa a situação em que um homem se procure, fora de si mesmo, ou seja, quando busca nas coisas externas o que propriamente considera como correspondendo a si, pondo de lado o adequado para a verdadeira busca íntima. Então, podemos ler o escrito no trípode de Apolo: ‘gnoti seauton’,[ 3 ] isto é, ‘conhece-te a ti mesmo’. E isto porque, de fato, um homem que conhecesse a si mesmo não esqueceria de sua própria origem, cujo contraponto é o de que todas as coisas mutáveis, por sua vez, são esquecidas, ou ainda, o Nada é justamente o esquecido. Entre os filósofos, há uma sentença provada e reconhecida, a alma é composta por todas as partes da natureza. E o Timeu de Platão sustenta que a enteléquia[ 4 ] forma-se com substância dividida, indivisa e mista, bem como da mesma substância e de diversas, todas elas, ademais, designando nosso universo.[ 5 ] A nossa alma, aliás, conhece os primeiros princípios, bem como as coisas que deles derivam, e compreende, por sua inteligência, as causas invisíveis das coisas, obtendo, pelas impressões dos sentidos, as formas visíveis das coisas corporais. Dividida, a alma reúne o movimento em dois orbes,[ 6 ] porque ou ela procede pelos sentidos – direcionando-se para as coisas sensíveis –, ou pela inteligência – ascendendo às invisíveis. Em suma, ela gira em torno de si, mostrando-se a nós justamente a partir da semelhança que alcança com as coisas compreendidas. Portanto, o espírito, capaz de captar todas as coisas, independente da substância e da natureza, representa, por sua própria imagem, a semelhança com todas as coisas [do universo]. Esta afirmação nos lembra do dogma dos pitagóricos, a saber, que os semelhantes são compreendidos por meio de outros semelhantes. Então, se a alma racional não fosse composta por todas as formas, de nenhum modo seríamos capazes de compreender todas as coisas, justo como antes nos foi dito: “compreendemos a terra pelas coisas terrenas; o fogo, pelas flamejantes; os humores corporais, pelos fluidos; as coisas, pelas que saem de nossos suspiros”.[ 7 ] Também não podemos pensar que grandes peritos, profundos conhecedores da natureza das coisas, tomassem uma simples essência como correspondendo a uma quantidade plúrima de partes. E, para que se demonstrasse sua imagem, expondo com mais clareza seu poder, os pitagóricos diziam que nela todas as coisas consistiriam. Consistiriam, aliás, não por composição [física], mas por composição racional.[ 8 ] Do mesmo modo, não podemos crer esta semelhança [formal] com todas as coisas do universo, como originada de outra fonte – diferente da própria alma –, ou nascida de qualquer fonte externa a si, posto a alma alcançar, por sua natureza própria, o poder máximo e a virtude que lhe é peculiar. Tudo isto, ademais, é confirmado no Perifiseos, de Varro: “nem todas as mudanças externas ocorrem às coisas, pelo mecanismo de que, para que elas se modificassem, seria indispensável a perda de alguma qualidade, que antes tinham, ou a aquisição de característica proveniente de fora, ou seja, algo diferente de si, e que antes não tinham”. Assim ocorre, por exemplo, com uma parede de pedra que, devidamente esculpida, recebe uma forma de uma fonte externa. Mas quando um ferreiro imprime uma figura determinada em um metal quente, não passa a representar algo inteiramente existentefora de si, mas representa algo que pertence à sua própria virtude natural [interior e íntima]. Não há dúvidas de que o nosso espírito, composto formalmente pela semelhança de todas as coisas, pode ser definido, sob certo ponto de vista, como a composição de todas elas. No entanto, é claro que, quando falamos em composição, não estamos nos referindo ao sentido de junção integral [de partes], mas visamos um conteúdo virtual ou potencial de todas as coisas em nós. Esta é a dignidade de nossa natureza: possuir igualmente todas as coisas, mas sem conhecê-las de um mesmo modo.[ 9 ] Nosso espírito se esquece do que foi, quando adormecido pelas paixões corpóreas, ou conduzido pelas formas sensíveis. Então, como não mais se lembra de ter sido outra coisa [a não ser a assunção de sua condição torpe atual], não acredita em nada mais, senão no que ele parece ser. Por isto, é pela doutrina que somos renovados, porque com ela conhecemos nossa natureza, aprendemos a não procurar fora de nós o que de fato podemos descobrir em nosso interior. A procura pela Sabedoria, portanto, nada mais é do que o grande conforto da nossa vida,[ 10 ] porque quem a encontra é feliz; e quem a possui, santo. Xenofonte. Memorabilia. 4, 2, 24. Além de ser frase fundamental para a filosofia socrática, a Idade Média foi tomada pela busca do divino, na égide da intimidade pessoal. Santo Agostinho faz referência a esta busca íntima nas Confissões; Boécio a repete na Consolação; e Pedro Abelardo escreve o famoso texto Scito te Ipsum (“Conhece-te a ti mesmo”), com árdua influência no pensamento dos séculos XII e XIII – NT. O conceito de enteléquia, no sentido platônico, aproxima-se do de Universo, mas envolve tanto a matéria quanto os elementos inteligíveis (ideais). Na enteléquia se concretiza a perspectiva de reflexo de perfeição, no mundo físico – NT. A alma humana como um microcosmo – NT. Boécio. Consolação da Filosofia. III, 9. Calcidius. Timeus a Calcidio translatus commentariorque instructus, 51. Idem. 228. No trecho, Hugo nos lembra que, para o pitagorismo, todo o universo se encontra em nossa alma. Mas nunca por composição natural – soma de coisas, em sentido material e natural –, mas por possibilidade formal de concretização. Assim, a alma, formalmente, possui a possibilidade de alcançar, por si, semelhança com todas as coisas, sejam físicas, sejam espirituais – NT. No excerto, a alma humana é tomada como elemento máximo criado por Deus, habitat de nossa dignidade e individualidade. Há nela a potência de toda criação, mas não o conhecimento atual de todas as coisas. Para haver a transposição da potencialidade para o conhecimento, é imprescindível a participação indelével da inteligência – NT. Boécio. De institutione musica. 2.2. CAPÍTULO 2 A FILOSOFIA COMO A BUSCA DA SABEDORIA ANTES DE TODOS, é justamente Pitágoras quem chama a busca por sabedoria de filosofia, de modo que preferiu ser denominado “filósofo”, em vez de apenas “sábio”. É belo, por este viés, chamar aos homens que buscam a verdade não de sábios, mas de amantes da sabedoria. Não há dúvidas de que a verdade total esconde-se de nós, porque quanto mais o nosso espírito arda de amor, e quanto mais profunda se torne a busca pela verdade, mais difícil sua compreensão plena. Por meio deste pensamento, ele definiu a filosofia como a disciplina “das coisas verdadeiramente existentes, ou seja, as que possuem substância imutável”.[ 11 ] “A filosofia, então, é o amor, a procura e a amizade para com a sabedoria. Ela não se refere a certas ‘ferramentas’, ou seja, uma ciência direcionada para a fabricação, mas a uma sabedoria [de conhecimento ‘completo’, isto é, que independe de tecnologia para sua concretização]. Uma sabedoria que de nada carece, de espírito vivaz, [confundindo-se com a] razão primeira e única de todas as coisas. A filosofia, portanto, é este amor pela sabedoria, referindo-se à iluminação do espírito inteligente pela pura sabedoria. A busca pela verdade, nestes termos, pode ser percebida como um retorno ou chamado que fazemos para nós mesmos, tal como percebemos [com clareza] no estudo da sabedoria: a amizade com a divindade e com seu espírito puro. Esta sabedoria divina estabelece para todas as espécies de alma a excelência de sua divindade, reconstituindo, em cada uma delas, sua força e pureza, por meio das suas próprias naturezas. A verdade, portanto, nasceria das especulações e dos pensamentos, bem como da mais pura e santa abstinência de atos.[ 12 ] “Como foi proporcionado às almas humanas este excelentíssimo bem da filosofia, nosso texto avança por um fio orientador, iniciando-se pelos poderes próprios da alma”.[ 13 ] Boécio. De institutione aritmética. I, 1. Boécio. In Isagoge Commenta pr. 1, 3. [Há a interação fundamental entre a iluminação divina do espírito humano e as escolhas arbitrárias, para o alcance da vida correta. Este ponto assemelha-se a uma perspectiva cisterciense, presente em São Bernardo de Claraval. Note-se que, sem a iluminação divina, não há atos bons, bem como, sem a educação – o adestramento consciente para o bem – não há falar em concretização da bondade. “Vós sois como deuses” significa que a iluminação está em nós, mas temos de corajosamente seguir seu chamado, sua indicação, ainda que por abstinência de atos prazerosos inoportunos – NT.] Idem. 1, 1. CAPÍTULO 3 A TRÍPLICE POTÊNCIA DA ALMA E SOMENTE O HOMEM POSSUI A RAZÃO PERCEBEMOS A PRESENÇA DE TRÊS POTÊNCIAS da alma, garantidoras da manutenção da vida nos corpos. Uma delas se refere especialmente à administração da vida corporal, porque desde que nascemos torna-se presente, no crescimento do corpo. Tal potência possibilita que cresçamos pela alimentação. Uma segunda potência é a que nos dá condições para captação das percepções sensíveis e julgamento [de nossa tomada de decisão, em face de possibilidades]. A terceira é congregada à força da mente e da razão. Vamo-nos à primeira potência. Ela possui a função de nos servir, no sentido de nos capacitar à criação, à nutrição e, em geral, ao crescimento do nosso corpo, sem se prestar a qualquer discernimento, próprio de nosso juízo e conduzido pela razão. Tal capacidade, lembremo-nos, encontra-se especialmente nos vegetais, nas árvores, enfim, em qualquer coisa que possua raízes afixadas na terra. A segunda potência é composta e conjunta, incluindo em si a primeira potência, constituindo, de acordo com a parte a que se refere, a assunção de um juízo variado e multiforme. Ora, todo animal [saudável], detentor de sentidos vigorosos, nasce, alimenta-se e cresce, bem como possui cinco diferentes sentidos. É inconcebível portanto pensarmos em um animal [saudável] que apenas se alimentasse, e não tivesse capacidade de sentir; [mas é plenamente normal] um outro com capacidade de sentir e, por isto, de alimentar-se. E isto significa que a primeira potência da alma – a capacidade de nascer e de se alimentar – fica sujeita à outra, a capacidade de usar dos sentidos. Os seres possuidores dos sentidos não captam somente a forma das coisas sensíveis, isto é, aquelas que os ferem em um momento presente. A natureza deles ultrapassa a sensibilidade [presente], porque elas guardam as imagens sensíveis das formas conhecidas, constituindo a nossa memória; e, conforme a qualidade de cada animal, preserva as lembranças, por tempo mais breve ou mais longo. Entretanto, tais animais obtêm e conservam estas lembranças apenas de modo confuso e pouco evidente; são incapazes de utilizá-las com engenho, conjugando-as e compondo-as; por fim, não se lembram de todas com a mesma clareza, nem conseguem retomar ou chamar de volta o que foi esquecido. Então, isentos desta potênciade manutenção da memória, não detêm conhecimento de seu próprio futuro! Já a terceira potência da alma traz consigo as duas anteriores: a potência de alimentar e a de sentir. Ela as detém utilizando de suas qualidades, como se fossem servas obedientes. Esta terceira potência se constitui totalmente na razão, chegando à conclusão firme sobre as coisas presentes e pesquisando com sagacidade as coisas desconhecidas. É uma potência dada somente ao gênero humano, que capta não somente as imaginações perfeitas e claras, mas também explica e confirma, por meio de um ato pleno da inteligência, o sugerido pela imaginação. Podemos dizer que a compreensão das coisas sujeitas aos sentidos não é objeto suficiente para esta terceira natureza – que é a divina –, bem como para o conhecimento dela, porque, concebida uma imagem mental, a partir de dados da sensibilidade, pode-se estabelecer nomes para coisas ausentes, somente compreendidas pela razão da inteligência. E esta é de fato característica da natureza desta terceira potência: investigar as coisas conhecidas por si, bem como as desconhecidas – e não somente inquirir se a coisa é – a possibilidade dela existir –, mas [principalmente] a sua qualidade e causa. Como já dissemos, só a natureza do homem detém esta tríplice potência da alma, cuja força não carece dos movimentos da inteligência, pois exerce a força da razão exatamente por meio de suas quatro funções. Em suma, ela investiga se a coisa existe e, percebendo sua existência, o que ela é. E, quando estes dois conhecimentos são alcançados pela razão, ela se dedica exatamente ao que cada coisa é em particular, perquirindo as várias influências que os acidentes lhes exercem. Respondidas todas estas indagações, e conhecidas as respostas [busca o motivo da existência da coisa], o porquê de ela ser de um jeito e não de outro, e investiga tudo isto de modo racional. Portanto, como o ato do espírito humano sempre se funda na compreensão das coisas presentes, na inteligência acerca das ausentes ou na busca incessante pelo esclarecimento e aquisição das coisas ignoradas, então há dois objetivos para os quais a força da alma racional despende todo o empenho: o primeiro referente ao conhecimento da natureza das coisas pela investigação racional; o segundo, iniciando-se pelo conhecimento, e que, em seguida, a dignidade da moral concretizará. CAPÍTULO 4 QUAIS SÃO OS OBJETOS PERTINENTES À FILOSOFIA? AGORA, OBSERVANDO TUDO QUE ACIMA DISSE, vejo que, agindo deste modo, incidimos em um labirinto inextricável,[ 14 ] em que se cria a dificuldade não pela obscuridade do discurso, mas pela dúvida quanto à própria coisa [tratada por ele]. Isto é, como começamos a falar da procura pela sabedoria, e atestamos tal condição como privilégio da natureza, pertencendo somente aos homens, então podemos compreender, por consequência, a partir de agora, a sabedoria como o limite ou a moderação [própria e necessária a] todos os atos humanos. Com efeito, se a natureza dos animais brutos, não regida por qualquer juízo racional, desenvolve os seus movimentos apenas em conformidade com as paixões (sensações) dos sentidos, e, ao desejar ou rejeitar alguma coisa, nunca o faz pelo uso da inteligência, mas impelido pelo desejo cego da carne, qual conclusão nos resta deste pensamento? Resta saber que o ato racional não deve ser consumido pela cupidez cega, mas sempre precedido pela moderada sabedoria. Sendo, portanto, verdadeiro este pensamento, concluímos que a filosofia não somente se dedica ao estudo destes assuntos, ou seja, a natureza das coisas e a disciplina dos costumes, mas que não é incongruência nossa afirmar que ela trata de fato das razões de todos os atos ou dos costumes dos homens. Por este viés, podemos definir a filosofia do seguinte modo: disciplina investigadora plena de todas as coisas humanas e das razões divinas. Mas isto não deve de nenhum modo modificar o que acima dissemos corresponder à filosofia, ou seja, tratar-se do amor e da dedicação à sabedoria. Uma sabedoria que não pode ser explicada concretizando-se pelos instrumentos – como se dá com a arquitetura, a agricultura e outras similares –, mas à espécie de sabedoria só preocupada com a razão primeira das coisas.[ 15 ] Um mesmo ato pode pertencer à filosofia, quando em conformidade com sua razão, e também ser excluído dela, no instante de sua concretização. Por exemplo, para mencionarmos uma única circunstância: a ciência da agricultura – os princípios para sua execução e alcance de sua finalidade última – é assunto da filosofia; enquanto a prática, sua execução propriamente dita, pertence ao homem rústico. Por sua vez, as obras dos artistas, mesmo não correspondendo à natureza, partem da imitação constante dela. Os artistas exprimem pela razão a forma de seu modelo [artístico], e isto significa o imitar propriamente a natureza.[ 16 ] E este é o motivo para pensarmos a filosofia – difundindo-a para todos os lados – como presente na razão de todos os atos humanos. E isto porque é necessária a existência de diversas partes da filosofia, em correspondência com as diversas coisas existentes, e para as quais ela se constituiria. Boécio. Consolação da Filosofia. 3, 12, 30. Idem. In Isagoge. 1, 3. Não se trata de uma interpretação restrita, no sentido de uma mera atitude do homem criando coisas no mundo pelo trabalho. Pelo contrário, Hugo, seguindo a tradição mística – própria da filosofia cristã – refere-se ao trabalho espiritual, a capacidade do homem “imitar a Deus” no mundo, moldando seu espírito, laborando para a iluminação de si, no outro. A filosofia é a percepção da razão divina, o mistério do destino e o porquê de todas as coisas, de todos os atos, intenções e escolhas humanas. Esta é imitação de Deus, no mundo, o labor místico – NT. CAPÍTULO 5 SOBRE A ORIGEM DA TEÓRICA, DA PRÁTICA E DA MECÂNICA A FINALIDADE E A INTENÇÃO DE TODAS AS AÇÕES ou esforços dos homens moderados pela sabedoria ocorre para conservar a moderação e a manutenção de nossas necessidades, às quais está sujeita nossa vida presente. E isto tudo para que a integridade ou a fraqueza da natureza humana seja reparada. Tratarei em seguida com mais amplitude do que acabo de explicar: dois são os elementos fundamentais do [caráter do] homem, a saber, o bem e o mal – correspondendo ambos a formadores da natureza e [dos] vícios. E isto é assim porque o bem corresponde à nossa natureza [original] e, como ela foi corrompida, ficou menor [em nós, do que era antes], devendo ter seu exercício reparado. O mal, por sua vez, é um vício, ou corrupção, não correspondendo à nossa natureza. Por isto, ele tem de ser extirpado [a todo custo] e, não sendo possível exterminá-lo complemente, devemos ao menos mitigá-lo, por meio de um remédio moderado. Esta afirmação que faço é justamente o que deve ser seguido pelas pessoas, na correção de suas vidas: o dever de reparar sua natureza e o de excluir os vícios. A integridade da natureza humana é aperfeiçoada por dois caminhos: o conhecimento e a virtude. E apenas por esta característica é que somos assemelhados à substância superior e divina. De fato, o homem, por possuir uma substância composta por dois pares germinados – alma e corpo –, não possui uma natureza simples. Neste ínterim, podemos dizer que o homem existe segundo uma destas partes – a saber, a superior e imortal – e que mais claramente podemos afirmar tratar-se da parte que corresponde a ele mesmo.[ 17 ] Agora, em relação à sua outra parte – o corpo –, ou seja,a parte humana perecível, considerada pelos insanos, crentes apenas nos dados dos sentidos, como única [existente] e conhecida, sabemos ser responsável por sujeitar o homem à mortalidade e à mutabilidade, sendo necessária a crença na repetição frequente da morte, em todas as situações em que a alma perde aquilo que de fato é: sua individualidade, parte última das coisas, e detentora em si do princípio e do fim.[ 18 ] Afirma Hugo a imortalidade da alma, não em um sentido abstrato e teórico, mas concreto e personalizado. A individualidade do homem e a eternidade de sua alma como construtos do que realmente somos, a categoria real-real de Mário Ferreira dos Santos – NT. A descrença na alma imortal condiciona o homem a um ser meramente corpóreo. Sua individualidade, portanto, tal qual seu corpo, teria de ser mutável. Sendo assim, como o corpo muda a todo momento, também a individualidade sofreria tal mudança contínua, sendo ela mero reflexo corpóreo. E isto, por fim, seria como se morrêssemos continuamente durante a vida – NT. CAPÍTULO 6 SOBRE AS TRÊS ESPÉCIES DE COISAS OBSERVANDO AS COISAS DO UNIVERSO, não podemos deixar de notar algumas não possuindo nem princípio nem fim, chamadas de “eternas”; outras com princípio, mas sem limitação qualquer (sem fim), ditas, portanto, “perpétuas”; e um terceiro grupo composto pelas “temporárias”, a saber, as com início e fim. Agrupamos, na primeira ordem, o ente que não possui diferença entre o “ser dele” – sua essência – e “o que é” – sua existência –, ou melhor, o que não se atém a uma diversidade, em si, de causa e efeito, não podendo subsistir por outra, mas tão somente dependendo da subsistência por si mesmo. Isto se dá porque Ele é o único gerador e artífice da natureza. Já na segunda ordem, encontramos o ente que possui diferença entre o seu próprio ser e o que de fato ele é. Diferente do anterior, acima mostrado, este, para existir, depende de outro, isto é, ele se torna ser em ato pelo fluir de uma causa que lhe precede. É justamente por esta causa diversa de si que sua existência tem início, sendo esta a sua natureza [própria], presente; ademais, em todas as coisas que pertencem ao mundo. O estudo desta segunda ordem nos faz perceber ser ela dividida em duas partes. Uma primeira parte é composta pelos entes, cuja existência diretamente deriva de suas causas primordiais (ou originárias), dependendo justamente delas para iniciar [sua existência no mundo]. São entes incapazes de serem movimentados ou mudados, a não ser por um ato arbitrário da vontade divina; de modo que, agindo esta última, os primeiros passam a “imutáveis”, no sentido de que se tornam livres de qualquer fim ou vicissitude mundana (para melhor compreendermos, explico que tais entes correspondem às substâncias das coisas, e que os gregos chamavam de “ousia”). A segunda parte desta ordem refere-se a todos os corpos do mundo supralunar, e que, por também não sofrerem mutação, também foram chamados de divinos.[ 19 ] A segunda ordem corresponde às coisas detentoras de princípio e de fim, e que não podem vir a existir por si mesmas, correspondendo simplesmente a obras da natureza. Elas são percebidas na terra, movendo-se no mundo, abaixo do globo lunar, e instigadas pelo fogo do artífice, o qual desce com uma força [vigorosa], atingindo o mundo e criando-as [continuamente][ 20 ]. Sobre esta segunda espécie de coisas foi dito o seguinte: “nada no mundo de fato morre”. Mas o que isto quer dizer? Quer dizer que a essência das coisas nunca perece, porque não é superada, mas tão somente variam suas formas. Então, quando dizemos que uma forma se desfaz, não se deve compreender com isto que estarmos a crer que uma coisa, então existente, pereça, perdendo inteiramente o seu ser. Pelo contrário, na verdade, o mais coerente seria dizer que ela mudou [de forma], por um dos seguintes motivos opostos: (1) alguns elementos, antes unidos, foram depois separados; ou os separados acabaram unidos, conjugando-se em uma única forma; (2) talvez, um elemento antes aqui, esteja agora lá, ou que um, antes lá, agora se encontre aqui; (3) por fim, um elemento existente passa a inexistir; ou o contrário, o inexistente passa a sê-lo! E uma coisa é certa: em todos estes casos, a “essência” – o “ser” das coisas – não sofre qualquer desgaste. Concluímos este tópico, com as seguintes ilações: Primeiro, devemos considerar que “todas as coisas do mundo que nascem, também envelhecem e morrem”[ 21 ] – ou seja, todas as obras da natureza possuem um primeiro momento, o nascimento, como seu princípio, e também não são diferentes quanto ao fim comum que lhes cabe – a morte. Segundo, que “do nada, nada vem; e, por conseguinte, também nada inteiramente terminará no nada”[ 22 ]. E assim, toda a natureza possui uma causa primordial e subsistência perpétua. Terceiro, que “o que antes foi nada retornou para o nada”. Toda coisa natural, que veio a existir temporariamente por impulso de uma causa oculta, também, por ato semelhante ao de sua criação, terá sua existência temporariamente removida, deverá voltar para sua origem, isto é, de onde viera. Eis a leitura aristotélica da imutabilidade dos corpos supralunares. Ainda que, na atualidade, haja conhecimento acerca da mutabilidade dos corpos celestes (e de sua não correspondência a deuses), é óbvio que a percepção de suas mudanças é muito menos vigorosa do que se tomarmos a dos corpos mais próximos à nossa sensibilidade. Hugo, mesmo sem esta informação, já afirmava que, apenas devido à aparente imutabilidade das estrelas, havia pessoas chamando-as de deuses; e que, por óbvio, desatavam em um erro crasso. Sem a informação da mera natureza física dos astros, Hugo acertou em seu julgamento sobre as estrelas – NT. Faz referência à força da natureza, instrumento gerado por Deus para o mundo físico, isto é, a regência do fogo, do ar e da água, todos vigentes na procriação e no nascimento da vida física contínua – NT. Sallustius. De bello iugurtino. 2, 3. Persius. Saturae. 3, 84. CAPÍTULO 7 SOBRE O MUNDO SUPRALUNAR E SUBLUNAR EM VISTA DO QUE EXPLIQUEI ATÉ AQUI, os matemáticos dividem o mundo em duas partes: uma delas, a que permanece sobre o círculo lunar; e a outra, abaixo dele. Chamam de mundo supralunar aquele em que todas as coisas se sujeitam à lei primordial. Eles chamam esta lei de natureza – e natureza das coisas. Já o mundo sublunar, chamado “obra da natureza”, é povoado pelas coisas geradas, isto é, pelos seres superiores, porque qualquer gênero de animais, presentes no mundo sublunar, ali vivem pela infusão neles do espírito vital, recebendo por meios invisíveis aos sentidos o alimento infuso pelas forças superiores, não apenas para que, nascendo, cresçam, mas também para que subsistam, alimentando-se. Estes mesmos estudiosos chamaram o mundo superior, já comentado acima, de “tempo”, por causa do curso e da movimentação dos astros nele presentes. E, por sua vez, nomeavam o mundo inferior de “temporal”, isto porque todas as coisas que achamos nele agiriam sob influência dos movimentos astrais, em conformidade com as coisas do superior. De mais a mais, outra nomenclatura também foi utilizada. Diziam “elísio”, referindo-se ao mundo supralunar, tendo em vista a perpetuidade da luz e a tranqüilidade da paz [nele presentes]; e “inferior”, ao sublunar, posto encontrarmos inconstância e confusão nas coisas nele presentes. Nós estamos prosseguindo um pouco nisto porque desejamos mostrar o homem, enquanto composto por duas partes, possuindo uma delas, partícipe da mutabilidade, e tornando-se ligado à necessidade; enquanto a outra,a imortal, o faz em conformidade com a divindade. A partir disto, pode-se compreender melhor o que acima foi dito, isto é, a intenção de todos os atos dos homens caminha para um dos seguintes fins: ou para que a semelhança da imagem divina seja restaurada, ou para que os homens se completem [corporalmente pela satisfação] das necessidades. A necessidade, aliás, quanto mais fácil for injuriada pelas adversidades, mais precisará ser conservada e nutrida.[ 23 ] A intenção consciente dos homens pode ser mais alta – direcionando o homem para sua ascensão espiritual –, ou mais baixa, simplesmente satisfazendo os anseios mundanos. Quantos homens, no mundo atual, não desperdiçam suas vidas, sacrificando-se por ascensão social e financeira, mas pouco se preocupam em empenhar suas forças para a veraz sabedoria? Quantos deixam de se preocupar com as coisas mais altas, preferindo a ladainha da honraria entre seus pares? – NT. CAPÍTULO 8 EM QUE O HOMEM É SIMILAR A DEUS? DOIS SÃO OS EXERCÍCIOS QUE REPARAM a semelhança divina nos homens: a investigação da verdade e a prática da virtude. O homem é semelhante a Deus, se comprazendo em ser sábio e justo [em suas escolhas], ainda que possua tais qualidades apenas de modo mutável, enquanto Deus as possui imutavelmente. Entretanto, acerca das ditas ações em sua vida hodierna, e que estão a serviço da necessidade, podemos compreendê-las segundo três gêneros: o primeiro, responsável pela administração de nossa alimentação, protegendo-nos das ameaças presentes; o segundo, munindo-nos na proteção conferida contra moléstias oriundas de eventos externos [e futuros]; e, por fim, o terceiro, fortalecendo-nos, prestando-nos remédio contra as moléstias do passado. Portanto [de modo analógico ao dito], entendemos que, para podermos reparar nossa natureza [perdida], é preciso um ato divino. Neste caminho, se providenciarmo-nos as coisas necessárias, conforme a nossa natureza mais baixa, estamos falando apenas de um ato humano, e não divino. Quando nos referimos a qualquer ato, esta ação é [necessariamente] humana ou divina. Não é incongruente chamarmos a ação superior de “inteligência”, e a inferior [e humana] de “ciência”, sendo que esta última tem necessidade, para sua concretude, de um conselho [de ideias].[ 24 ] Por outra banda, a inteligência, porque se dedica à investigação da verdade e [ao julgamento] e à consideração dos costumes, é dividida em duas espécies: a inteligência teórica – isto é, especulativa –, e a prática ou ativa, chamada de ética e atrelada à moral.[ 25 ] A ciência, por sua vez, perseguindo [com empenho] a constituição das obras humanas, é chamada convenientemente de mecânica, ou melhor, “adulterina”.[ 26 ] A palavra latina usada é simplesmente “consilio”. Evitamos a tradução literal – “conselho” – acrescentando “de idéias”, porque sugerimos que Hugo está a dizer da ciência humana como necessariamente dependendo de um estudo dialético, sob pena de se tornar mera retórica. A ciência tem de orientar-se por vários estudos de pessoas dispostas, ao longo do tempo (os sábios e cientistas), e, por este viés, alcançar uma espécie de síntese do pensamento, na busca pelo verossímil. A ciência humana, portanto, é “coletiva” por conceito; enquanto a inteligência pode ser imediata, resultado da iluminação divina no espírito humano, e, portanto, necessariamente “individual” – NT. Pela diferenciação orientada por Mário Ferreira dos Santos: a ética corresponde à lei universal e imutável, suficiente para nos levar ao aperfeiçoamento espiritual; a moral, aos costumes – legais ou ilegais – adotados por um grupo específico, e, portanto, conjunto de regras costumeiras, sujeitas à variação temporal e espacial – NT. O sentido latino de “adulterinus” é o de ilícito, falso ou acessório. A ciência humana é acessória à inteligência, mas também é falsa, se tomarmos a inteligência como oriunda de Deus, luz divina em nós. Não creio, por outra via, que haja um sentido pejorativo, assumindo a idéia de ilicitude, mas apenas observo um recurso semântico de convencimento e explicação dado por Hugo ao leitor – NT. CAPÍTULO 9 AS TRÊS OBRAS CONFORME PODEMOS FACILMENTE PERCEBER do explicado até aqui, há três espécies de obras: a obra de Deus, a obra da natureza e a obra dos artífices, imitando a natureza.[ 27 ] A obra de Deus consiste em criar o que antes não existia; e por isto é dito no Gênesis: “no início, Deus criou o céu e a terra”. A obra da natureza tratou de revelar o ato; e por isto também no mesmo livro: “que a terra produza a erva verde”.[ 28 ] Já a obra do artífice se reduz em unir elementos separados, ou em separar os unidos; sendo dito destes: “eles costuraram para si suas próprias cinturas”.[ 29 ] A terra não pode criar o céu; nem o homem, as ervas, e, mais ainda: o homem nem mesmo pode acrescentar um palmo à sua estatura! Dentre estas três espécies de obras, a humana não é propriamente uma natureza, mas apenas imita a natureza, e, por isto, chamada convenientemente de mecânica, ou adulterina, como se dá com uma chave, introduzida na porta do leito, e chamada de instrumento mecânico.[ 30 ] E o modo como a obra do artífice é o imitar da natureza, para ser exposto em minúcias, é caminho longo e oneroso. Entretanto, somos capazes de, com alguns poucos termos, expor este pensamento. O homem que esculpiu uma estátua teve o intuito de reproduzir o próprio homem como seu projeto. Outro que construiu uma casa observou um alto monte, porque, como nos disse o Profeta: “és tu que omites as fontes nos vales, e as águas transpor-se-ão entre os montes”[ 31 ], isto é, o cume dos montes [está livre das enchentes, porque eles] não retêm as águas [que passam por eles], de modo que a casa tem de ser construída no ponto mais alto, para que pudesse, ao menos assim, livrar-se de todas as moléstias oriundas das terríveis tempestades. Um terceiro homem, por sua vez, foi o primeiro de nós que [inventou e] instituiu o uso das vestimentas. Ele agiu assim notando que alguns seres nasciam com uma carapuça própria de sua natureza, servindo, ademais, para defendê-los dos perigos. Ora, a casca reveste a árvore, a pena cobre o pássaro, as escamas protegem o peixe, a lã agasalha o carneiro, e pêlos nascem nas feras e nos jumentos, a concha recolhe a tartaruga, o marfim – presente no elefante – faz com que ele não tema as flechas. E não foi à toa, aliás, que cada um dos animais da natureza nasceram com suas próprias armas e carapuça, enquanto apenas o homem vem ao mundo nu e desarmado. Logo, é necessário à natureza garantir a segurança dos seres que não sabem proteger a si mesmos – atribuindo-lhes defesas naturais – enquanto foi reservada ao homem uma capacidade superior de tomar para si experiências, assegurando-lhe o reconhecimento dos referidos dados e das informações naturalmente atribuídas a todos, mas que são descobertas por ele, por sua própria razão. Brilha muito mais a razão do homem ao descobrir objetos para suas vestes e instrumentos para sua defesa, do que brilharia, se simplesmente ele já os tivesse por sua própria natureza, de modo que não é destituído de fundamento o provérbio que nos ensina “a comum e natural fome do homem é que lhe causou todas as artes”. É por esta mesma razão que podemos ver, desde então, nos esforços dos homens, os excelentíssimos resultados de suas descobertas. E foram notados, ademais, infinitos modos de pintar, de tecer, de esculpir, de fundir, sendo que, observando a natureza, admiremos o próprio Artífice! Calcidius, op. cit. 23. Gn 1,11. Gn 3, 7. A aproximação do adjetivo “adulterino”, com a função mecânica da chave, é bela figura de linguagem. Oadúltero se utiliza do instrumento mecânico – chave – para abrir a porta do quarto da amante. O mecanismo que destranca a porta do aposento, possibilitando o início do pecado, funciona corretamente. E o que isto prova? Prova que a arte mecânica, por si só, é mero instrumento, podendo ser usado para o bem ou para o mal. O mecanismo não é causa nem efeito do mal: a chave ou a arma de fogo não são por si más, mas podem vir a ser usados para o mal – NT. Sb 104, 10. CAPÍTULO 10 O QUE É A NATUREZA COMO NORMALMENTE DENOMINAMOS a natureza por vários termos – uma conclusão alcançada e compartilhada por Cícero, é que este trabalho de nomeá-la é muito árduo. No entanto, mesmo existindo evidente dificuldade acerca do significado de “natureza”, isto não nos permite renegar totalmente o significado verdadeiro deste vocábulo, acabando por entrincheirarmo-nos inteiramente no silêncio.[ 32 ] Ainda que não sejamos capazes de dizer tudo o que queremos [sobre certa coisa], tal dificuldade não nos obriga a manter silêncio sobre outros sentidos e conhecimentos, ou seja, temas sobre os quais temos plenamente capacidade de falar. Podemos pesquisar muitos pensadores antigos investigadores da natureza, e que a conceituaram. No entanto, mesmo após estudos vários, não encontramos qualquer tratado suficientemente completo para eliminar todo resquício de dúvida. Ademais, quanto mais eu os estudo, mais posso entender seus escritos, isto é, que eles se habituaram a conceber o vocábulo “natureza” especificamente por três máximas, cada um deles, aliás, alcançando sua definição singular e própria. [Vamo-nos à exposição das três máximas ditas]. A primeira máxima trata de atribuir à natureza o significado de arquétipo, isto é, de exemplar [ou de referencial] de todas as coisas; e isto principalmente por se encontrar no interior da própria mente divina, sendo pela razão desta que tudo se formaria. Ora, para os seguidores desta primeira máxima, a natureza nada mais seria senão a causa primordial do ser de cada coisa [tomada particularmente], ou seja, as coisas não receberiam da natureza apenas sua existência, mas também sua essência. Por este viés, valeria o brocardo: “a natureza é quem atribui o ser de todas as coisas do mundo”.[ 33 ] A segunda máxima era defendida pelos pensadores que diziam ser a natureza o próprio ser das coisas, corroborando tal definição com o seguinte significado: “a natureza pode ser definida como a própria diferença que dá forma a cada coisa”. De acordo com esta definição, habituamo-nos a dizer que “a natureza é a inclinação própria de todas as coisas: as pesadas, pendem para a terra; as leves, dirigem-se para o alto; o fogo queima, e a água umedece.[ 34 ] A terceira máxima, definindo “natureza”, é a seguinte: “a natureza é o fogo artífice, pelo qual deve proceder a força [suficiente] para a procriação das coisas sensíveis”.[ 35 ] Veja que esta é a posição dos físicos, segundo os quais todas as coisas só procriam em virtude do calor e da umidade. Assim [tratam em versos:] Virgílio chama o oceano de “pai”;[ 36 ] e, no mesmo diapasão, Valério Sorano refere-se ao deus Júpiter com o significado de “fogo etéreo”: “Júpiter Onipotente, criador das coisas e dos reis Progenitor e genitor do único e do mesmo deus verdadeiro”. O silêncio citado refere-se ao esperar da iluminação para o conhecimento místico da verdade divina – NT. A primeira tese denota Deus como fonte única e máxima das coisas criadas, detentor absoluto das variações existenciais da criação, segundo um sentido de onisciência ontológica e concreta – NT. A segunda tese define a natureza não mais como arquétipo ideal – mens Dei –, mas como o núcleo qualitativo próprio e específico de cada ente. As características reunidas de cada ente criam uma individualidade para ele, de modo que suas movimentações no mundo natural e sua existência passam a ser especificamente oriundos deste conjunto orgânico intestino. Não há dúvidas da grande semelhança da segunda máxima com o conceito contemporâneo de natureza bioquímica das coisas – NT. Cícero, Sobre a Natureza dos Deuses. 2, 57. Virgílio, Geórgica. 4, 382. CAPÍTULO 11 SOBRE A ORIGEM DA LÓGICA APÓS DEMONSTRARMOS A ORIGEM DA TEÓRICA, da prática e da mecânica, trataremos neste capítulo de estudar a lógica, [preferencialmente] investigando a sua origem, buscando-a, aliás, bem após às outras, e isto porque ela foi enumerada por último. [Na educação correta e sábia] Várias outras ciências foram investigadas primeiro, mas foi necessário também que a lógica o fosse, porque ninguém é capaz de proferir qualquer palavra conveniente sobre as coisas se antes não conheceu a razão de falar com retitude e veracidade. Isto se concatena com o que nos disse Boécio: quando, no começo, os antigos pensadores passaram as investigar a natureza das coisas e dos costumes, era comum que interrompessem suas obras, já que se enganavam com frequência. Tais enganos se davam porque não possuíam real distinção entre palavras e conceitos. Neste caminho rumou Epicuro, caindo em muitos erros, ao pensar que o mundo era só constituído de átomos, tratando da volúpia como um sentimento honesto. Não tenho dúvidas de que ele caiu nestes enganos porque acreditava em tudo aquilo que, de pronto, ocorre aos outros, como antes meramente imaginado por eles. Em outros termos, julgavam o ocorrido na realidade, isto é, nas coisas existentes [como o que foi por eles pensado]. E tudo isto por um erro de argumentação. Erro verdadeiro e grande, pois as mesmas coisas, semelhantes em números, nada têm a ver com os conceitos, objetos dos raciocínios. Explico. Todos os números que podemos corretamente contar com os dedos sem dúvida também se encontram nas próprias coisas contadas, devendo nelas ser percebidos. Como, por exemplo, se contamos [com os dedos um monte de coisas dispostas à nossa frente, partindo do zero e chegando] até cem. Neste caso, é necessário que exista [na realidade] o mesmo número de coisas contadas [pelos dedos]. Entretanto, esta regra não pode ser observada na “disputa” isto é, na argumentação, pois nem tudo que encontramos na conclusão da continuidade dos argumentos é exatamente igual a algo presente na natureza. Por tal motivo, os homens que rejeitam a ciência da disputa [argumentativa] necessariamente são falhos, perseguindo [respostas pela] natureza das coisas. Ora, se antes não se sabe, por conhecimento de uma ciência argumentativa, qual raciocínio dá suporte a um caminho verdadeiro para a argumentação fluir, isto é, o conceber do verossímil, desconhecem-se portanto argumentos nos quais possamos de fato confiar. Por isto, acabamos por nos conduzir por linhas suspeitas, sendo que a verdade incorrupta das coisas acaba não sendo possível de ser alcançada por tal raciocínio [duvidoso e incerto].[ 37 ] Portanto, como os pensadores antigos caíam frequentemente em muitos erros, eles obtinham várias questões, durante as disputas, algumas delas falsas e outras contrárias a si, parecendo- lhes impossível de acontecer que, diante de duas conclusões contrárias referentes à mesma coisa, ambas fossem verdadeiras. Parecia-lhes ambíguo concluir qual o raciocínio deveria discordar e em qual seria possível crer. Diante desta dúvida, consideravam ser necessário, antes de qualquer disputa, levar em conta a natureza verdadeira e íntegra [de cada coisa em particular]. E, uma vez conhecida a natureza delas, é que se poderia realmente entender o que foi compreendido das disputas e, portanto, verdadeiramente obtido a partir delas. Aqui neste ponto é que se dá a perícia oriunda da disciplina lógica. Disciplina a ser disputada, por meio de diversos modos [de argumentação],deparando-se com várias vias de pensamento, a ser distinguidas pelos raciocínios, sendo possível de reconhecer alguns como verdadeiros; outros como falsos; bem como terceiros que nunca serão falsos, e outros que sempre o serão.[ 38 ] A lógica portanto é a última no tempo, mas a primeira na fila. No sentido de que ela deve ser a primeira estudada pelos iniciantes de Filosofia, porque é por meio dela que se ensina a natureza das palavras e dos conceitos, sem os quais nenhum tratado de filosofia pode ser racionalmente explicado. A lógica provém da palavra grega “logos”, possuindo uma interpretação dúplice, a saber, pode significar “discurso” ou “razão”. E justamente por isto é denominada de ciência racional ou de ciência do discurso. A lógica racional é chamada de dissertativa, contendo a dialética e a retórica. A lógica do discurso é gênero cujas espécies são a gramática, a dialética e a retórica, contendo sob si a dissertativa [ou seja, a técnica argumentativa]. É justamente esta lógica do discurso enumerada por nós como a quarta disciplina da filosofia, tendo seu aparecimento se dado após a teórica, a prática e a mecânica. Não devemos também pensar na lógica chamada “discursiva” como ponto de partida dos argumentos, ou seja, como se, antes dela, não existissem discursos, e os homens previamente não se dedicassem a conversas mútuas. Antes do conhecimento da lógica discursiva são comuns os discursos e os escritos, mas nenhuma ciência, seja a dos discursos falados, seja a dos escritos, fora organizada em uma única arte. Inexistia princípio ou regra direcionando corretamente o ato de falar e o de disputar, posto que todos os conhecimentos eram adquiridos, antes pelo uso do que pela arte. Entretanto, os homens começaram a considerar que a repetição contínua dos discursos poderia ser convertida em arte, e principalmente, os discursos e os escritos antes qualificados como vagos e desregrados, organizados por certas leis e preceitos. Então, como já dissemos, passaram a ordenar, tanto os costumes adquiridos por acaso, quanto os oriundos de sua própria natureza, ajustando os que estivessem sendo mal usados; suplementando os [bons], mas pouco usados; reduzindo os supérfluos; e prescrevendo regras coerentes para outras situações. Foi assim a origem de todas as artes, de modo que descobrimos esta verdade, estudando cada caso em particular. Antes de a gramática existir, os homens escreviam e falavam. Antes da dialética, discerniam o verdadeiro do falso. Antes da retórica, tratavam dos direitos civis. Antes da aritmética, possuíam o conhecimento da enumeração. Antes da música, cantavam. Antes da geometria, mensuravam os campos [para a agricultura]. Antes da astronomia, já captavam as mudanças dos tempos pelo curso das estrelas. Mas logo vieram as artes, que, mesmo tendo seu princípio presente no próprio uso, são contudo melhores do que o uso. Neste ponto, há de expormos quais foram os inventores de cada arte em particular, quando e em que lugar apareceram, e como, por meio deles, as disciplinas tiveram seu início. Todavia, quero, antes de apresentar uma certa divisão da filosofia, distinguir uma da outra. Portanto, é preciso recapitular brevemente tudo que acima já foi dito sobre o tema, de modo que se torne mais fácil a trânsito sequencial, isto é, de um argumento para o seguinte. Afirmamos existir somente quatro espécies de ciências, as quais detêm em si todas as outras [menores].[ 39 ] Estas quatro são as seguintes: teórica – tratando a especulação da verdade; a prática – considerando a disciplina dos costumes; a mecânica – ordenando as ações de sua vida; e a lógica – prestando-se ao discurso feito com retidão. Portanto, não é absurdo levar a sério o número “quatro”, que há de ser atribuído à alma, e que os antigos, em reverência a ele, o defendiam com o seguinte acolhimento: “por aquele que atribuiu o número quatro à nossa alma”.[ 40 ] Repetida brevemente a definição de filosofia, terminamos tratando, por um lado, de como tais ciências estão contidas sob a filosofia; e, de outro, de quais ciências estão subjugadas a estas últimas. Na Teoria dos Quatro Discursos, concebida por Olavo de Carvalho, a partir de suas leituras de Aristóteles, fica patente a relação ontológica e inseparável entre o verossímil e a necessidade de um conjunto de argumentos corretos, tratados de maneira coerente, na labuta do pensamento humano. Assim, se o caminho do conhecimento, partindo de argumentos falaciosos, alcançar uma conclusão duvidosa, seu resultado será incapaz de se enquadrar como verossímil. A busca pela natureza das coisas não pode ser empreendida por argumentos incertos. Pelo contrário, argumentos certos alcançam a expressão da natureza das coisas, mas esta só é de fato obtida por meio do “conhecimento por presença”, o qual supre a necessidade argumentativa – NT. Boécio. Isagoge. Sec. 2. Adicionamos o adjetivo “menores” para as ciências que, nada obstante importantes, estão incluídas nas mais complexas e propedêuticas. Não há o ventilar pejorativo no termo. Pelo contrário, as “ciências menores” são as especificidades científicas no correr prático, ou ainda, o que modernamente chamaríamos de “especialidades”. A ciência da nutrição – especialidade científica – está implícita na ciência da saúde (medicina), bem como na ciência dos esportes (educação física), de modo que estas seriam “superiores” àquela. Todavia, esta superioridade é apenas de princípios (posto os princípios da nutrição estarem presentes nos da medicina e nos da educação física); não se tratando de uma superioridade de importância ontológica, porque há ineficácia da medicina e da educação física sem a boa execução da nutrição: não há homem curado ou bom atleta mal alimentado. Portanto, em sentido amplo, os princípios de qualquer ciência estão necessariamente presentes na teórica, na prática, na mecânica e na lógica – NT. Macróbio. Comentários aos Sonhos de Cipião. 1, 6, 41. LIVRO II CAPÍTULO 1 SOBRE A DISTINÇÃO DAS ARTES “A filosofia é o amor à Sabedoria e que, de nada necessitando, significa mente viva e razão primeira e única das coisas”.[ 41 ] Devemos tomar esta definição especialmente em conformidade com o seu sentido etimológico, isto é, o sentido formal do termo. A palavra grega “philos” significa em latim amor; e “sophia”, sabedoria; de maneira que “filosofia”, tomada literalmente, significaria “amor à sabedoria”. [Vamo-nos à continuidade da definição apresentada] PRIMEIRO: “que de nada necessitando, significa mente viva e razão primeira e única das coisas”. Aqui, há nítida referência à sabedoria divina, porque justamente por ela ser divina não possui necessidade de nada – sendo completa e suficiente. Ela não contém em si nenhum conhecimento em menor escala ou qualidade, posto intuir todas as coisas semelhante e simultaneamente. Ora, na mente divina, o presente, o passado e o futuro existem simultaneamente. Segundo: “viva mente” porque, uma vez existindo na mente divina, de nenhum modo algo será esquecido. E, terceiro: “razão primeira das coisas”, tratando de tudo que existe no mundo e que foi formado à sua semelhança. Dizem que sempre permanece o objeto pelo qual as artes se ocupam. Todas as artes fazem isto, direcionam-se para isto, e tudo para que a semelhança divina, formada em nós, seja finalmente reparada. Assim se dá a natureza de Deus [em nós]: quanto mais nos conformamos a ela, mais a reconhecemos. Deste pensamento começa a reluzir a natureza divina, de modo que, não podemos nos esquecer, este reluzir sempre esteve presente na razão Dele. [Em outras palavras, enquanto, em nós, o reluzir divino – a sua natureza– é transitório, em Deus ele permanece imutável. Mas além da definição etimológica, há uma outra: “a filosofia é a arte das artes, e a disciplina das disciplinas”,[ 42 ] isto é, o conhecimento pelo qual todas as artes e disciplinas se espelham. Quanto ao termo “arte”, vale o seguinte: a arte pode ser chamada de ciência, consistindo “nas regras e nos preceitos da própria arte”,[ 43 ] e isto se dá, por exemplo, quando nos referirmos ao ato de escrever.[ 44 ] Mas a arte é denominada também de “disciplina completa”. Deparamo-nos com esta segunda definição, ao tratarmos da filosofia como doutrina.[ 45 ] Podemos também dizer da arte como referida a alguma coisa “verossímil ou opinável”. Neste caso, a disciplina, por meio de disputas verdadeiras, trataria do que “não pode existir de outro modo.” É justamente este o aspecto de diferença entre Platão e Aristóteles, acerca da arte e da disciplina.[ 46 ] Uma outra possibilidade é nos referirmos à arte como aquilo que é executado na matéria passiva, e concretizado [por sua própria execução], isto é, quando se dá a sua operação, como, por exemplo, a arquitetura [a arte realizada com a obra construída]. De modo diverso ocorre com a disciplina, referindo-se principalmente à especulação, e sendo totalmente explicada apenas pela razão, como se dá com a lógica. Mas não podemos deixar de nos referir a uma outra definição: “a filosofia é a meditação sobre a morte, pensamento especialmente conveniente aos cristãos que, desprezando a ambição das coisas mundanas e terrenas, passam sua vida no respeito à disciplina, e vivem em busca da semelhança com a pátria futura”.[ 47 ] E mais: “a filosofia é a disciplina que tem de investigar, com respeito à probabilidade, as razões de todas as coisas divinas e humanas”.[ 48 ] E, por este viés, a razão de todos os estudos [que fazemos durante nossa vida] espelha-se na filosofia. Todavia, não é toda ação que concretizamos possível de ser chamada de filosófica, e, por isto, afirmamos que, segundo um ponto de vista, todas as coisas são pertinentes à filosofia.[ 49 ] Por fim, sabemos que a filosofia possui [célebre] divisão em teórica, prática, mecânica e lógica, sendo que estas quatro disciplinas inserem em si todo o conhecimento. A teórica pode ser conhecida como especulativa, e a prática, como ativa. Esta última também pode ser chamada por outro nome, a saber, “ética”, isto é, dita também moral e consistindo no conjunto dos costumes direcionados para a boa ação. A mecânica é reconhecida como “adulterina”, porque apenas versa sobre as coisas humanas [ou ainda, as executadas pela força e pelo empenho humano]. Já lógica trata das palavras, daí também chamada de “argumentativa”. Voltando à primeira delas, devemos saber que a teórica divide-se em outras três: na teologia, na matemática e na física. Boécio, aliás, também utilizou esta divisão, mas o fez com outras denominações, dividindo a teórica em intelectível, inteligível e natural. A intelectível era de fato a teologia; a inteligível, a matemática; e, por fim, a natural, a física. Vamos, então, ao estudo do que Boécio chamou de intelectível, a saber, a teologia. Boécio. Isagoge. 1, 3. Isidoro. Etimologias, 2, 24, 9; e Cassiodoro, Instituições. 2, 3, 5. Isidoro. Etimologias. 1, 1, 2. O ato de escrever depende de regras gramaticais e preceitos semânticos e gráficos. Daí a ciência de escrita, modo de exposição da sabedoria filosófica – NT. A doutrina pressupõe o alcance de um resultado esperado, conforme regras certas e definidas. Daí o aspecto geométrico e matemático da arte neste segundo sentido – NT. Isidoro. Etimologias. 1, 1, 3. Idem. 2, 24, 9. Idem. 1, 13, 5-7. Trata do uso impróprio do vocábulo “filosofia” para situações totalmente alheias ao sentido socrático do termo, o “conhece-te a ti mesmo”. As manifestações culturais, mesmo as mais débeis, quando concretizadas por ato de vontade humana e segundo certas regras sociais, possuem alguma nódoa da filosofia, da capacidade crítica do ser humano em face dos outros. Mas isto não significa que sejam propriamente atividades filosóficas. Pelo contrário, é um grande imbróglio atribuir, por exemplo, ao modo de vida de uma comunidade tal brocardo, caindo na sandice de dizer que “a filosofia de tal comunidade é (...)”. A impropriedade pode assumir um status perigoso em sociedades em decadência, em que muitos supostos “filósofos” envernizam suas atividades historiográficas oficiais e assalariadas pelo Estado com o título de “filosofia” – NT. CAPÍTULO 2 SOBRE A TEOLOGIA O INTELECTÍVEL É O QUE CONSISTE, uno e em si mesmo, em sua própria divindade, nunca captado pelos sentidos, mas somente pela mente e pelo intelecto. O estudo da teologia compõe-se da especulação sobre Deus, da consideração sobre a imortalidade da alma e da indagação sobre a verdadeira filosofia. Afirma-se ainda ser exatamente esta a definição que os gregos deram à teologia.[ 50 ] Tomada a teologia como discurso referente a Deus, estamos na verdade seguindo o sentido etimológico: a palavra grega theos significa “deus”; e logos – referente ao final “logia” – traduz-se ainda como “palavra” ou “razão”. A aglutinação de ambas, a saber, a palavra “teologia” nos leva ao seguinte significado: ela se dá “quando dissertamos, por um modo profundíssimo, sobre a inefável natureza de Deus ou a das criaturas espirituais”. Boécio. Isagoge. 1, 3. CAPÍTULO 3 SOBRE A MATEMÁTICA A MATEMÁTICA É CHAMADA DE CIÊNCIA DOUTRINÁRIA. [E vamo-nos à sua etimologia] Mathesis – tomando esta palavra com a letra “t” sem aspiração – assume o significado de “vaidade”. Ademais, aproxima-se da superstição daqueles que atribuem os destinos dos homens [simplesmente] às estrelas. Por isto, tais tipos de pessoas são chamadas de matemáticos. No entanto, quando a letra “t” é aspirada, o significado é “doutrina”. Esta disciplina, aliás, é a que se ocupa da quantidade abstrata, ou melhor, o que é conhecido somente pelo raciocínio, pela separação do intelecto da matéria, e por outros acidentes, como se dá com o conceito de par, ímpar e outros abstratos. Esta abstração é produto da doutrina, e não da natureza. Como disse acima, a esta disciplina Boécio dá o nome de “inteligível”, compreendendo o pensamento e a inteligência. Aproximando a disciplina inteligível da primeira apresentada aqui – a intelectível –, pertencendo-lhes, aliás, todas as obras celestes da suprema divindade, cabe-lhe qualquer coisa presente sob o globo lunar, e que possua valor, no sentido de corresponder a uma alma mais feliz e a um espírito de substância pura. Ora, quanto às almas humanas, todas elas de início foram [somente] substâncias intelectíveis; no entanto, diante do contato com seus corpos [físicos], degeneraram, passando do estado intelectível para o meramente inteligível. E, assim, mais do que conhecidas, elas passam a conhecer; e, por sua pureza, tornam-se cada vez mais felizes, quanto mais apliquem- se às coisas intelectíveis.[ 51 ] A natureza das almas e dos espíritos, posto ser simples e incorpórea, é partícipe da substância intelectível. Entretanto, sabemos que as almas, pelo constante uso dos sentidos, é reduzida de modo heterogêneo, isto é, unida ao corpo passa a marcar em si mesma a imagem de objetos pensados, utilizando-se da imaginação. Assim, por um certo modo, ela abandona a sua simplicidade, na medida em que perde a razão de sua composição. Então, não podemos dizer que algo como ela – em clara similaridade com um ente composto – seja totalmente simples.[ 52 ] Veja que esta constatação nos mostra o seguinte: uma mesma coisa, diante de considerações diferentes, pode ser simultaneamente tomada
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