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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ ESCOLA DE DIREITO CURSO DE DIREITO MARINA FAVRETTO LUERSEN A CULPABILIZAÇÃO DE ALGUMAS VÍTIMAS NO CRIME DE ESTUPRO: O ESTEREÓTIPO DE GÊNERO CURITIBA 2016 MARINA FAVRETTO LUERSEN A CULPABILIZAÇÃO DE ALGUMAS VÍTIMAS NO CRIME DE ESTUPRO: O ESTEREÓTIPO DE GÊNERO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Direito. Orientadora: Professora Mestre Renata Ceschin Melfi de Macedo. CURITIBA 2016 Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central Luersen, Marina Favretto L948d Da culpabilização das (de algumas) vítimas no crime de estupro : a evolução 2016 dos estereótipos de gênero e como eles ainda ecoam na jurisprudência local / Mariana Favretto Luersen ; orientador, Renata Ceschin Melfi de Macedo. – 2016. [78] f. ; 30 cm TCC (Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2016 Bibliografia: f. 73-[78] 1. Estupro. 2. Culpa. 3. Violência contra as mulheres. 4. Violência contra a pessoa. 5. Direito. I. Macedo, Renata Ceschin Melfi de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Escola de Direito. III. Título. Doris 4. ed. – 340 MARINA FAVRETTO LUERSEN A CULPABILIZAÇÃO DE ALGUMAS VÍTIMAS NO CRIME DE ESTUPRO: O ESTEREÓTIPO DE GÊNERO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Direito. COMISSÃO EXAMINADORA _____________________________________ Professora Mestre Renata Ceschin Melfi de Macedo Pontifícia Universidade Católica do Paraná _____________________________________ Professora Doutora Priscilla Placha Sà Pontifícia Universidade Católica do Paraná _____________________________________ Professor Doutor Daniel Laufer Pontifícia Universidade Católica do Paraná Curitiba, de novembro de 2016. Aos meus pais, que me ensinaram que é melhor ser uma metamorfose ambulante, “do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. E ao meu irmão, que segue comigo “orgulhosamente sonhando”. AGRADECIMENTOS Como não poderia ser diferente, meus mais sinceros agradecimentos aos meus pais, Nelson e Anete, que foram os responsáveis por toda minha formação, pessoal e acadêmica, expoentes da minha estada em Curitiba e decisivos na definição de cada um dos meus passos. Obrigada por serem sempre pacientes com meus devaneios e por respeitarem o que sou em minha integralidade, me incentivando, incessantemente, a ser sempre mais. Ao agradecer aos meus pais, agradeço também toda minha família que foi, ao longo desses 5 anos, extremamente compreensiva quanto às minhas ausências e encorajadora de minhas conquistas. Meu amor e gratidão a vocês. Agradeço aos meus amigos, família que escolhi de coração. Em especial às minhas melhores amigas “da vida”, como costumo chamar, Vanessa, Nathalia e Maria Paula, por estarem sempre ali por mim, apesar da distância que nos separa; e, claro, agradeço também a Thaynara, a melhor amiga que Curitiba poderia ter me dado, por ter me mostrado, por seu próprio exemplo, que posso ser forte e corajosa, a encarar as situações vitais com determinação e empoderamento. Agradeço a todos os meus colegas de graduação do período diurno por terem sido companheiros nas horas ruins e bons amigos nos momentos de alegria, por terem me ensinado o significado de resiliência e por terem crescido junto comigo, a cada novo obstáculo. O esforço e dedicação de vocês é admirável e sei que a vida reserva à turma “A” do primeiro semestre de 2012 um futuro brilhante. Nesse passo, agradeço ainda aos colegas de graduação adquiridos nesse último semestre, da turma “A” do segundo semestre de 2012 do período noturno, que quando cheguei, no início de Agosto, me estenderam a mão, e depois o braço, e por fim o abraço – obrigada por darem sentido a esse último semestre conturbado. Agradeço a todos os Mestres que me acompanharam nessa trajetória e me estimularam a buscar, mesmo em tempos de crise, a efetivação da função do direito: a justiça, em toda sua complexidade, e a despeito das dificuldades de efetivação. Por fim, e em especial, agradeço às Professoras Renata Ceschin Melfi de Macedo, que ainda no início do curso de direito despertou em mim o interesse pelo direito penal e que, neste semestre me acolheu sem ressalvas, e Priscilla Placha Sà, que com todo o seu conhecimento me direcionou à elaboração do trabalho monográfico e, depois, pacientemente me instruiu como finalizá-la. Muito obrigada. São as roupas. É a atitude. É o lugar onde está inserida. São seus modos de moleca. É seu jeito de prostituta. É a forma como mexe os cabelos. É o comprimento da saia que usa. É o decote, que mostra o que não deve. É a blusa fina, que evidencia os mamilos. É a maquiagem forte. É o gingado, o rebolado. É o bronzeado exagerado. São as unhas vermelhas e os sapatos altos. Se não fosse assim era desleixo. Se é, é estupro. É culpa da Geni, aquela vadia, aquela sem família, aquela promíscua deteriorada. Quem mandou sair por aí dando para qualquer um? Pior: para todos! Quem mandou abrir as penas? Mulher não pode mesmo beber... Pede! Sair à noite, na rua, sozinha? Que ousadia, que loucura! De carro naquele bairro perigoso? O resultado não poderia ter sido diferente! Mas será que ela não queria? Mas será que ela não pediu? Foi até lá porque então? Estava procurando! Mas ela era feia, foi uma cortesia. Ufa, fez um bem por uma horrorosa! Era namorado? Duvido que não quis. Foi o tio? Aposto que provocou. Foi o amigo? Não acredito que ele a drogou. Ela fez algo para merecer... Nasceu mulher, só pode! Mulher merece! São essas feministas, “nazistas”, que exageram. O mundo mudou e só as depravadas são estupradas. Sempre as depravadas, as loucas, as prostitutas, as lascivas exageradas. Ah, essas mulheres... o que fazemos com elas?! Culpadas! Marina Favretto Luersen, 2016. RESUMO O presente trabalho monográfico se propõe a estudar a influência dos estereótipos de gênero no processo penal, em especial no que toca a culpabilização da vítima no delito de estupro, previsto no Artigo 213 do Código Penal. Para chegar a conclusão de que a vítima ainda hoje é criminalizada pelos próprios infortúnios, foram analisados os conceitos de gênero e sua repercussão na definição de estereótipos discriminantes da vítima mulher, bem como a evolução histórica do conceito de “mulher honesta” no que toca a legislação pátria e, ainda, uma jurisprudência local que expressa a presença de tais resquícios e, comprova, desta forma, que ainda no século XXI presenciamos valorações estigmatizadas da conduta de ofendida e ofensor. Palavras-chave: estupro; culpabilização; vítima; mulher; violência; gênero. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CF CP Constituição Federal Brasileira Código Penal Brasileiro de 1940CPP ed. Ed. Código de Processo Penal Brasileiro Edição Editor IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPEA Instituto de Pesquisa Economica Aplicada p. Página PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná SIBI Sistema Integrado de Bibliotecas trad. Tradutor SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................12 2 O GÊNERO COMO DEFINIDOR DE PARÂMETROS E ESTERIÓTIPOS .................................. 14 2.1 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONCEITO DE “GÊNERO”: O FEMININO, A MULHER A E FEMINILIDADE ...................................................................................................................... 14 2.2 A CONDIÇÃO DA MULHER DIANTE DA CRIMINOLOGIA: UM BREVE RECORTE HISTÓRICO .............................................................................................................................................. 18 2.3 A MULHER ENQUANTO OBJETO (E NÃO SUJEITO) DE DIREITO: A CRIMINOLOGIA FEMINISTA E A QUEBRA DE PARADIGMA ............................................................................. 25 2.4 A SELEÇÃO DA VÍTIMA NOS CRIMES SEXUAIS ................................................................ 28 3 CRIME DE ESTUPRO NO BRASIL ..................................................................................... 32 3.1 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO TIPO DE ESTUPRO NO BRASIL .......................................... 35 3.2 LEI 12.015/2009 E A ANÁLISE DO TIPO PENAL DO ARTIGO 213 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO ........................................................................................................................... 43 3.3 A CONDUTA DA VÍTIMA NO CRIME DE ESTUPRO: ANÁLISE DO PARADIGMA DA “HONESTIDADE” ................................................................................................................... 47 4 A MULHER ENQUANTO VÍTIMA: ANÁLISE DO DISCURSO JURÍDICO DE CULPABILIZAÇÃO 52 4.1 ESTUPRO ENQUANTO VIOLÊNCIA DE GÊNERO .............................................................. 52 4.2 OS RESQUÍCIOS DA CULPABILIZAÇÃO DA MULHER PELOS PRÓPRIOS INFORTÚNIOS ... 53 4.2.1 Breve relato da análise dos julgados compenentes do Grupo IV: a absolvição em razão da falta de elementos probatórios (palavra da vítima versus palavra do acusado......................................................................56 4.2.2 Análise da Apelação Criminal 1107158-2..............................................................69 4.3 O SILÊNCIA DA VÍTIMA: A CULPABILIZAÇÃO E A IMPUNIDADE QUE DECORREM DO MEDO E DA VERGONHA ....................................................................................................... 80 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 86 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 89 12 1 INTRODUÇÃO A sociedade brasileira é, historicamente, desde a colonização, uma sociedade patriarcal, conservadora e machista. A história dos abusos sexuais sofridos pelas mulheres, ao longo dos anos, é a história de suas próprias lutas – é a história de como, ao longo dos anos, os estereótipos foram instrumentos de dominação, que levaram a subjugação do feminino e exaltação do masculino, o primeiro enquanto frágil, vitimizado e dependente, e o segundo, de forma oposta, como forte, decisivo e provedor. Sob essa perspectiva também o direito, como ciência, foi construído. O direito patriarcal, conservador e, também, machista. O direito que tratou a mulher, durante a maior parte de sua história, como dependente, como ser não pensante, de forma inanimada, como se pensava que lhe era própria. O sistema discriminatório, que dividia as mulheres em honestas e desonestas e, assim, auferia a tutela que lhe conferia. O direito, assim, funcionou, e ainda funciona, como espécie de controle da sociedade e expressa concepções desta que visam o uso do poder de um, sobre o outro. E essas concepções, históricas, ainda vigem nesse sistema jurídico, que se é resultado de um saber construído por homens e para homens, não considera as experiências femininas e, assim, trata da mulher como mero objeto de sua ciência, e não como sujeito de direitos e concepções próprias. É a respeito dessa relação de poder e dominação que desenvolve-se o presente trabalho que, na medida em que estuda o tipo penal do estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, analisa também as expressões que lhe são próprias, desde a construção legal até a análise jurisprudencial que se faz e a leitura interpretativa que se da para a comprovação do delito. Analisa-se, desta forma, o estupro como expressão de uma discriminação/dominação de gênero que perpetua-se, há anos, em nossa sociedade, e que continua sendo reproduzida de forma expressa, mediante a prática do delito, em si, e implícita, por discursos que reproduzem estereótipos construídos ao longo dos anos que pautam-se, sempre, na relação de dominador-dominado. E, mediante tal análise, busca-se demonstrar, basicamente, como, ainda hoje, os conceitos de gênero são reproduzidos de forma a culpabilizar a vítima do crime de estupro pelos próprios infortúnios, impondo a ela o dever de comprovar que, de 13 alguma forma, “não concorreu” para o delito, mediante a análise de sua vida pregressa e desconfiança da sua palavra. Para chegar a tal ponto foram utilizadas diversas bibliografias que sustentam, mediante a análise sociológica e jurisprudencial, a existência, e persistência, do discurso discriminatório do feminino na sociedade e nos tribunais, e que demonstram, por pesquisas de campo e exame de julgados, que o estupro opera como violência de gênero e que, ainda, culpabiliza-se a vítima pela violação que ela mesma sofre. O estudo, desta forma, primeiramente abordou a construção social do conceito de gênero e analisou, em seguida, a condição da mulher diante da criminologia e a forma como esta vem sendo tratada, ao longo dos anos e da evolução da ciência penal como um objeto do direito, e não como um sujeito de direitos propriamente, o que leva a ausência da experiência feminina na definição da política criminal como um todo. Em seguida, foi analisado o tipo de estupro em si e a evolução histórica do delito no Brasil, com a consequente análise da Lei 12.015/2009, a mais recente legislação a modificar substancialmente o delito. Analisou-se, ainda, como a conduta da vítima é valorada ao longo do histórico nacional e como o paradigma da “honestidade” ainda nos acompanha. Para demonstrar a existência, ainda que implícita, de valorações que tangem a honestidade da vítima e, assim, lhe conferem confiabilidade, foi analisada uma jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, de 2014, que demonstra, claramente, como o discurso jurídico e dos atores processuais ainda é impregnado dos referidos estereótipos de gênero, tratados no primeiro item, e que apesar da legislação ter evoluído, como foi pontuado no segundo item, o discurso jurídico e social ainda tem resquícios medievos. Por fim, observou-se como a culpabilização da vítima leva ao seu silêncio e a forma como o estupro representa a forma mais clara da violência de gênero, apesar de não ser, por óbvio, a única, e causa, por sua normalização, a impunidade do violentador, tratado como culpado somente na medida em que adeque-se ao imaginário “do estuprador” – o doente, o depravado, o desconhecido, que não é o que acontece. 14 2 O GÊNERO COMO DEFINIDOR DE PARÂMETROS E ESTERIÓTIPOS 2.1 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO CONCEITO DE “GÊNERO”: O FEMININO, A MULHER A E FEMINILIDADE Ninguém nasce mulher, disse Simone de Beavouir1,“torna-se”. A famosa frase insere-se no contexto da obra “Segundo Sexo” em que a autora esclarece que não existe nada inerente, nenhum “destino psíquico, biológico ou econômico” que defina o que a fêmea da espécie humana pode assumir, e assume, no seio da sociedade – isto é, na verdade, produto da construção cultural que atribui um papel a essa fêmea e, assim, dá-lhe um gênero, chamando-a de mulher. Quando nascem, tanto as fêmeas quanto os machos da espécie humana agem e reagem da mesma forma aos estímulos externos, têm as mesmas fases, enfrentam os mesmos dramas e alegrais. Observa a autora, assim, que o gênero não passa de mera construção cultural, figurando como uma forma definidora de poder. A dicotomia entre homem e mulher, estabelecida ao longo dos séculos, é uma construção masculina, cultural, histórica, retirada, inclusive, de renomadas ciências que sob o prisma do “gênero” tentam classificar o “ser mulher” e definir quais os comportamentos adequados e esperados. É de elementos retirados da filosofia, da psicanálise e, inclusive, da biologia, que pauta-se a misoginia, que levou as mulheres ao confinamento. As definições de mulher, ainda em existindo, não são as definições que lhe são próprias: mas são aquelas que não se aplicam aos homens, em caráter residual, de acordo com Simone de Beavouir. Nesse sentido Anthony Giddens2 diferencia gênero de sexo, e explica que enquanto o sexo é um definidor de características meramente anatômicas e fisiológicas, decorrentes das diferenças corporais do feminino e do masculino, o gênero representa, na verdade, as diferenças sociais que estes enfrentam, na medida em que refere-se as diferenças sociais, psicológicas e cultuais entre homens e mulheres, estando ligado, aduz o autor, a uma noção não biológica, como o sexo, 1 BEAVOUIR, Simone. O Segundo Sexo. Vol. 2. 2ª Edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, pg. 9-10. 2 GIDDENS, Anthony. Sociologia - Capítulo 5: Gênero e sexualidade. 6ª Edição. São Paulo: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 107. 15 mas a uma noção socialmente construída do que seria feminilidade e masculinidade – podendo ou não relacionar-se, inclusive, com o sexo. Sob o prisma de que gênero e sexo não se confundem, uma vez que a conceção de que o gênero é um estudo de socialização, o autor observa que a criança apesar de nascer com um sexo, ao longo do seu contato com os diversos agentes de socialização, sejam eles primários ou secundário, com o tempo “interiorizam progressivamente as normas e expectativas sociais que correspondem ao seu sexo”, de forma que, a despeito das diferenças de gênero serem determinadas socialmente, observa o autor, tende-se a concluir que ela se confunde com a noção de sexo, o que pode não ocorrer, na medida em que muitas vezes é a correspondência de expectativas de gênero que levaria a essa compreensão, e não ao contrário. Desta forma, quanto as diferenças de gênero, assinala Anthony Giddens, não seriam determinadas biologicamente, mas produto de uma cultura que socializa homens e mulheres em papéis distintos e os levaria a acreditar, progressivamente, que é assim que devem sê-lo. Assim, se uma vez a criança nasce com um sexo, poderá ela ou não, observa Giddens, desenvolver-se de acordo com esse “gênero” que socialmente é aceito como correspondente ao sexo, uma vez que o feminino e o masculino não se confundiriam, necessariamente, com as noções de homem e mulher. Isto é, o gênero, sob essa perspectiva, seria formado a partir de símbolos que são culturalmente disponíveis, e, conforme aduz Joan Scottt3, no contexto de representações sociais historicamente específicas, que permite, por sua definição de papéis sociais, a articulação da relação de poder entre os gêneros ali construídos. Enquanto conceito das ciências sociais, desta forma, o gênero, de acordo com Maria Luiza Eilborn, não passaria da construção social do sexo, de forma que esta se referiria a “caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos, e, no máximo, a atividade sexual propriamente dita”, enquanto o conceito de gênero trataria da 3 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Disponível em: < moodle.stoa.usp.br /mod/resource/view.php?id=39565>. Acesso em 19 set. 2016. 16 caracterização do másculo e do feminino e dos seus elementos enquanto sociedade.4 Nessa construção histórica e social de gênero5, como fruto de uma teoria eminentemente masculina, o que era considerado “feminino” teria acabado, com o passar dos anos, sendo relegado a papéis passivos, inexpressivos e, em geral, guardados ao âmbitos particulares, reclusos, como a casa, o convento, a igreja. O gênero, para tanto, na medida em que seria construção masculina, torna-se politicamente relevante com as noções iniciais de feminismo, que demonstram a sua “utilidade” para fins de dominação de homens para as mulheres, pela inferiorização destas.6 Considerando-se então os gêneros, os estudos a respeito da interação progenitor-criança revelam como que inclusive os pais que visam o desapego ao “conceito de gênero” acabam, muitas vezes, encontrando dificuldades em seu caminho. Isto porque os meninos e as meninas são, de alguma forma ou outra, em um contexto ou outro, tratados diferente, somente pela noção de “isso não é coisa de menino” ou “meninas não brincam com isso”. Expressão disso é, de acordo com 4 EILBORN, Maria Luiza. De que gênero estamos falando? Disponível em: < http://www.clam.org.br /bibliotecadigital/uploads/publicacoes/de%20que%20genero%20estamos%20falando.pdf >. Acesso em: 19 set. 2016. 5 A respeito do desenvolvimento histórico do conceito de gênero, explica-nos Alessandra de Andrade Rinaldi: “Com a introdução do termo gênero nesse campo de investigações (cf. Heilborn 1997:51), na década de 1970, foi se consolidando uma perspectiva cujo propósito era o de apontar os aspectos históricos e culturais das diferenças entre homens e mulheres e refutar o determinismo biológico presente no termo “sexo” (Izumino, 1998:84). (...) Para a Antropologia brasileira dessa época, gênero passou a ser compreendido como socialmente construído, conforme circunstâncias históricas e culturais específicas. O que em outros termos significa que a existência de dois universos, o masculino e o feminino, não seria produto das diferenças naturais existentes nos corpos de homens e mulheres. As determinantes de seus comportamentos, as causas das distribuições diferenciais de tarefas ou de poder na sociedade resultariam da cultura e não da natureza. Sendo assim, a existência de uma hierarquia do gênero em favor do masculino e, em consequência, uma inferiorização do feminino, seria algo passível de mudança, por ser produto da sociedade”. (RINALDI, Alessanda de Andrade. Violência e gênero – A construção da mulher como vítima e seus reflexos no Poder Judiciário: a lei Maria da Penha como um caso exemplar. Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual _26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT% 2012/alessandra%20de%20andrade%20rinaldi.pdf. Acesso em: 16/09/2016, 00:16 hrs.) 6 “Gênero é um signo que se tornou teórica e politicamente relevante desde a década de 1970, quando, sob o influxo do movimento feminista e de expressiva revolução de paradigmas nas ciências, estendeu seu significado original de uma classe de algo (música, literatura) ou de seres (animais, vegetais), para designar uma classe de seres humanos (pessoas), configurando-se doravante como um conceito de grande valor para a compreensão da identidade, dos papeis e das relações entre homens e mulheres na modernidade.” (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sexo e gênero: a mulher e o feminino na criminologia e no sistema de Justiça Criminal.. SãoPaulo IBCRIM: v. 11, n. 137, abr. 2004, p. 01) http://www.clam.org.br/ 17 Anthony Giddens7, os brinquedos das crianças: enquanto às meninas ficam, em geral, com os livros ilustrados de conto de fadas e as brincadeiras em que simulam serem as próprias mães, aos meninos cabem brincadeiras externas, de montagem de peças, de esportes, que lhes incentiva a liderança e independência, que lhes exige estratégia (jogos de vídeo game). Os livros ilustrados e os programas de televisão para crianças, nesse sentido, tendem a destacar, observa o autor, as diferenças entre os “atributos masculinos e femininos”, dando aos personagens masculinos papéis que, em regra, são mais ativos e aventureiros e relegando aos papeis femininos as figuras “passivas, expetantes e orientadas para as atividades domésticas”. E desta forma, a mulher passa a assumir, tendencialmente, um papel de gênero que lhe confere os deveres de mãe, de cuidadora, de zeladora da família e do lar. Atribuem-lhe papeis como se lhes fossem próprios, inerentes. E, assim, criou- se o que Betty Friedan8 denominou da “mística feminina”, que imporia as meninas, desde cedo, mediante a formatação de uma “forma feminina perfeita”, deveres que seriam atributos quase que “naturais”, transformando o que é considerado cultural em ciência, na medida em que corroborada por importantes psicólogos, educadores e estudiosos da ciência do homem, que corroboram estereótipos à serem seguidos. Tal construção de papeis, que traz o gênero enquanto “sexo socialmente construído”, segundo Vera Regina Pereira de Andrade9, culminaria na dicotomia que leva a dominação do homem sobre a mulher, na medida em que enquanto ele seria do público, ela seria do privado, ele seria do trabalho, ela deveria zelar pelo lar, enquanto ele teria força, ela seria frágil e na medida em que ele seria viril, ativo e racional, ela, opostamente (e essa é aqui a palavra chave, observa a autora), seria recatada, passiva e emocional. Tais polos são adotados, então, como se fossem “biológicos” em razão dessa construção de gênero, quando, em verdade, apresentam-se muito mais como meramente sociais, culturais, e, mostram-se como decorrência da própria construção dicotômica, levando a mulher, muitas vezes, a um patamar abaixo do homem (este enquanto masculinizado). 7 GIDDENS, Anthony. Sociologia... op. cit. p. 108. 8 FRIEDAN, Betty. The Feminine Mystique. Disponível em: < https://nationalhumanitiescenter.org /ows/seminars/tcentury/FeminineMystique.pdf>. Acesso em: 19 set. 2016. 9 ANDRADE, Vera Regina Pereira. Sexo e gênero: a mulher e.... op. cit. p. 2. https://nationalhumanitiescenter.org/ows/seminars/tcentury/FeminineMystique.pdf https://nationalhumanitiescenter.org/ows/seminars/tcentury/FeminineMystique.pdf 18 Alessandro Baratta10, nesse sentido, nos explica que, por ser objeto de discussões dominatórias, não é a suposta diferença biológica do sexo o ponto de partida para a análise da divisão de trabalho entre homens e mulheres na sociedade moderna, mas sim a construção social de gênero, que atribui aos homens, e as mulheres, diferentes papéis, onde os destas estriam subordinados aos daqueles. É importante observar, assim, que as noções de gênero, de feminino e de feminilidade não se confundem necessariamente, de forma que “a mulher” não “intrinsecamente” o é, como já pontuado, mas decide sê-lo, uma vez que ser mulher representa, em geral, escolher o gênero feminino; ser fêmea, por outro lado, não relaciona-se também necessariamente a ter feminilidade, mas a condição biológica- corporal que lhe é imposta ao nascer. A naturalização de papeis e a classificação disso como gênero tem o escopo, muitas vezes, de fazer as mulheres crerem que o que se impõe é natural, biológico, como que decorrente de uma “essência feminina”, com a qual já nasceriam. Isto, entretanto, como observado por Nalu Faria e Miriam Nobre11, não seria propriamente aplicável, já que ser homem, e ser mulher, não decorre de simples “natureza” , mas da criação e das influências do meio em que se vive, de forma que explicitar a inexistência de um gênero enquanto biológico é demonstrar que não existem desígnios indiscutíveis e imutáveis nem aos homens, nem as mulheres. 2.2 A CONDIÇÃO DA MULHER DIANTE DA CRIMINOLOGIA: UM BREVE RECORTE HISTÓRICO Sob a perspectiva de que o gênero seria uma condição imposta socialmente e que esse conceito teria contribuído para relegar às mulheres papeis privados, constituintes do eixo da dominação patriarcal, como aduz Soraia da Rosa Mendes12, as experiências e sensos a respeito do mundo das mulheres, então, acabaram sendo ignorados, e a sua contribuição para a criminologia restou relegada ao papel de vítima, de autora, de partícipe – as suas concepções mundanas, suas noções 10 BARATA, Alessandro. O paradigma de gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de. (coord.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 21. 11 FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. . São Paulo: Cardernos sempreviva. 1997, p. 03. 12 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 78. 19 sociais, acabaram, em geral, não sendo levadas em conta para a construção de um conceito criminológico. A criminologia, desta forma, seria uma ciência produto de concepções masculinas, discursada e ensinada pelos homens e para os homens, mas que tem como objeto, muitas vezes, as mulheres. Esta criminologia, como se conhece, não consideraria, observa Soraia da Rosa Mendes13, a contribuição feminina, atendo-se apenas a criminalização ou vitimização do feminino – e não a sua construção histórica, moral e social. Desta forma, as experiências das mulheres acabaram não sendo vistas como relevantes ao estudo pela ciência da criminologia, independente do papel que que suas noções mundanas poderiam ter para a ciência, de forma que, na medida em que se reconheceu ao longo dos anos que o crime não era uma realidade ontológica, pré-constituída e alheia a intersubjetividade humana, faltou reconhecer que a intersubjetividade vai além do masculino. A ciência da criminologia, assim, que surge para entender os conceitos de crime, punição e sujeito a ser punido, divide-se em diversas correntes criminológicas e, até muito recente, praticamente todas elas tratavam a mulher como mera atriz de seu destino, e nunca como autora. A criminologia medieval é, de acordo com Eugenio Raul Zaffaroni14, o início da noção de criminologia. O Malles Maleficarum, ou Martelo das Feiticeiras, seria o primeiro discurso criminológico a ser organizado pela humanidade. Foi por intermédio de tal obra que, pela primeira vez, exprime-se um discurso sistemático de criminologia, que envolve o direito material e o processual penal, bem como a criminalística, as formas de punição, investigação e persecução de consequente punição. Soraia da Rosa Mendes15, no mesmo sentido, aduz que embora tenham havido outros livros que tratassem da criminalização da bruxaria, anteriores, foi o Martelo das Feiticeiras o marco para o início dos estudos criminológicos e, nesse 13 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 79. 14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El discurso feminista y el poder punitivo. In: SANTAMARÍA, Ramiro Ávila, VALLADARES, Lola (Orgs.) El género en el derecho. Ensayos críticos. Quito: V&M, 2009. 15 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 21. 20 passo, observa como ironia: tratava ele de criminalizar condutas femininas, que fossem consideradas “deturpadoras”. Desde os tempos bíblicos as mulheressão tratadas como estereótipos de fraqueza, tentação, pouca racionalidade e sentimentos ruins. As mulheres foram, em diversas passagens bíblicas, vistas como seres “do mal”16, com fé reduzida e mente fraca17 e relegadas a funções domésticas18. Nesse sentido, a própria etimologia da palavra “fêmea” esta ligada a palavra “femina”, que, do latim, significa “menos fé” e que relegava a mulher um papel de fraca, inconsistente, e com dificuldade de preservação de sua fé. Foi sob o manto de tal justificativa que, na idade medieval, as mulheres que não fossem submissas ao poder patriarcal ou que exercessem, de alguma forma, papel que não lhes cabia ou que não “poderia lhes caber”, foram postas como bruxas, e estas como ameaça à sociedade, seja por razões de justificativa de tempos de crise, para “arrumar um culpado”, seja para evitar que os segredos da medicina empírica, praticada normalmente por mulheres, se difundissem, o certo é que as mulheres foram, durante décadas, caçadas, mortas, queimadas e acusadas pela simples condição de serem mulheres. E diz-se que foram as mulheres as perseguidas pois, apesar do manto da “feitiçaria”, o que se praticava era a demonização da mulher, a misoginia decorrente da cultura medieva. Tanto assim o era que no Malles Maleficarum entendia-se que a heresia seria aplicável às feiticeiras e não aos feiticeiros, já que estes teriam “pouca importância”, pois “para um feiticeiro há dez mil feiticeiras”. Assim, pontua Soraia da Rosa Mendes, a indiscutível relação entre a mulher e a feitiçaria levava a mulher a posição privilegiada de repressão cultural e social determinadas – ultrapassando, inclusive, os tribunais do Santo Ofício. E, a mulher, que sempre fora, desde os tempos bíblicos, afastada da esfera pública, passa, com o desenvolvimento de tal criminologia, ainda mais a esfera particular, em razão da 16 LIA. Português. íblia sagrada. Sêneca, Tragédias. Tradução de Padre Ant nio Pereira de Figueredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. 17 LIA. Português. íblia sagrada. Matheus, 19. Tradução de Padre Ant nio Pereira de igueredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. 18 Os deuses criaram a mulher para as funções domésticas, o homem para todas as outras. Os Deuses a puseram nos serviços caseiros, porque elas suportam menos bem o frio, o calor e a guerra. As mulheres que ficam em casa são honestas e as que vagueiam pelas ruas são desonestas. ( LIA. Português. íblia sagrada. Xenofonte: 427 –355.. Tradução de Padre Ant nio Pereira de Figueredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980) 21 caça as bruxas, “elemento histórico marcante enquanto prática misógina de perseguição”19. Tão bem amarrada foi a condição da mulher enquanto bruxa, feiticeira, e a repressão foi tão grande que, durante décadas silenciou-se a criminologia a respeito do papel da mulher, salvo referências eventuais e tangenciais, na medida em que a criminologia não mais “precisou se ocupar das mulheres dada a eficácia do poder instituído a partir da idade média”, observou a autora. A próxima teorização criminológica posterior a idade média seria publicada, então, somente 3 séculos depois do fim das caças às bruxas, produto do período clássico da criminologia, que tem como obra inaugural Dei delitti e delle Pene, de Cesare Beccaria (1764). Também contribuíram a tais noções Francesco Carrara, Jeremias Bentham e Giovanni Carmignani, dentre outros autores, todos homens. Tal escola, entretanto, não se preocupou em tratar do papel das mulheres na criminologia – que, mais uma vez ficaram relegadas ao secundário papel de objeto, de acordo com Eliane Pimentel20. Foi com a Declaração de Direitos de 1789 na França que começa-se a pensar, mesmo que timidamente, de forma criminológica sobre a condição feminina, uma vez que um dos ideais iluministas era a “igualdade”. A “igualdade”, entretanto, observar-se, entre homens, de forma que às mulheres restou a igualdade relativa, apenas na medida em que eram filhas, esposas ou mães, ou seja, na medida em que relacionavam-se com um homem, verdadeiro sujeito de direito. E, por isso John Stuart Mill publicou a obra “A sujeição das Mulheres”, destacando o discurso opressor em que se justificava a opressão no “bem” do oprimido – e que aí observa a discriminação em relação as mulheres21. Esse discurso iluminista, inclusive, de igualdade de direitos apenas entre homens, perdurou mesmo depois da Revolução Francesa e da luta das mulheres 19 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 28. 20 Nesse sentido, Elaine Pimentel ainda ressalta: “Isso demonstra porque, apesar de ganhar certa visibilidade através dos escritos lombrosianos no início do século , estudos sobre a presença da mulher no crime, seja como vítima ou como autora, ficaram fadados ao isolamento no contexto mais amplo da criminologia, empobrecendo-a, em certa medida (Heidensohn, 2002: 493). Estabeleceu-se, de fato, uma cultura de estudos do crime numa perspectiva preponderantemente masculina, deixando em segundo plano os aspectos típicos dos sujeitos femininos, bem como as dimensões relacionais das questões de gênero.” (PIMENTEL, Elaine. Criminologia e feminismo: um casamento necessário. Disponível em: < www.aps.pt/vicongresso/pdfs/429.pdf> Acesso em 20 set. 2016.) 21 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 30. 22 que participaram da Revolução, já que assim que passado o fervor, as mulheres foram recolhidas novamente “ao espaço doméstico”, restringindo-lhes educação e sufrágio, ambos obtidos em razão de árduas e sangrentas luta posteriores. A nova criminologia, chamada de Criminologia Moderna que, como já pontuado, tem Cesare Lombroso e sua obra “O Homem Delinquente” como principais expoentes. Nesta obra, observa Bartira Macedo de Miranda Santos22, Lombroso descreve quem seria “o criminoso”, negando o livre arbítrio e exaltando o determinismo, e, assim, define que o criminoso seria um ser que estava adstrito de sua herança patológica, já que doente, e, por isso, incidiria no crime – como uma reação natural do próprio ser. Lombroso passaria, então, juntamente com Enrico Ferri, a cientificar o controle social, relacionando a estrutura corporal o que viria a chamar de “criminalidade nata”. A função de tal criminologia era não só encontrar uma justificativa diferente da social para o cometimento do crime, mas, sobretudo, justificar a punição: ora, se doentes eram os criminosos, poderiam eles serem tratados a fim de se distanciarem dessas características e, assim, serem ressocializados pela penalização. Sob o paradigma etiológico, então, foi escrito por Lombroso também um livro destinado as mulheres, intitulado de “La Donna Delinquente: la prostituta e la donna normale”, que, sob o manto a cientificidade, abarca discursos patriarcais e sexistas difundidos ao longo dos séculos. E, desta forma, o autor dizia que a mulher seria mais adaptável e obediente a lei, em geral, que o homem, já que mais inerte e passiva. Seriam as mulheres amorais, ou seja, seres “maléficos” que agiriam de forma fria em ralação as situações cotidianas e aquilo que não as impulsionassem ao delito, por isso mesmo, as levaria a prostituição. O autor, então, classifica as mulheres em “criminosas natas, criminosas ocasionais, ofensoras histéricas, criminosas de paixão, suicidas, mulheres criminosas lunáticas, epiléticas e moralmente insanas”23. Ainda, Lombroso reconheceu “cientificamente” a inferioridade das mulheres, inclusive para cometer delitos, que, mesmo que ocorressem, estariam vinculados, 22 SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=ea6b2efbdd4255a9. Acesso em 19 set. 2016. 23 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 43. http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=ea6b2efbdd4255a9 23 em geral, ao seu alto caráter vingativo, sexualidade excacerbada e lasciva aumentada. E, desta forma, o autor torna a prostituta o que seria o maior exemplo da delinquência feminina, alegando que somente se prostituía aquela que tivesse predisposição para tal. E assim que o autor deu fundamento ao higienismo para evitar contágios que viria a ser praticado no século XIX contra as mulheres24 - pois considerava-se as mulheres, as prostitutas, as difusoras de todas as doenças sexualmente transmissíveis e, por isso, viria a incidir somente sobre elas o controle, e nunca sobre o homem. Lombroso, então, acabaria reafirmando, com seu discurso, a ideia medieva de mulher criminosa e edificando, sob a égide cientificista, os estereótipos criados para elas até então, dando uma nova roupagem, como assinalou Soraia da Rosa Mendes25, ao que desde os tempos bíblicos já se vinha pregando sobre a mulher, trazendo a beleza e a capacidade de sedução, bem como a fraqueza e a “maldade” como elementos natos do feminino. O conceito de crime natural, entretanto, cairia por terra com o novo paradigma que surgiria na década de 60 do século passado: erra o início do labelling, que recuperaria a ideia de que o delito nada mais é que um produto social, criado pelo direito e não decorria de uma natureza que “pré determina” o sujeito. E, assim, rompe-se com o paradigma etiológico até então construído e o delito passa, de acordo com Sérgio Shecaria, a ser analisado de forma dinâmica e contínua26. Em concluindo-se que a criminalidade não tem natureza ontológica, mas social, chega-se então a conclusão de que a nem criminalidade, e nem o desvio seriam “qualidades intrínsecas da conduta”, mas mera definição social e jurídica pré constituída por sujeitos mediante complexo processo de interação social27. Tal teoria, apesar de explicar que existe uma criminalização e que esta é de construção 24 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro. Editora Revan, 2008, p. 307. 25 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 24. 26 SHECARIA, Sério Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. P. 287. 27 ANDRADE, Vera Regina Pereira. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Disponível em: <www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/10713-10713-1-PB.pdf> Acesso em: 19 set. 2016. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/10713-10713-1-PB.pdf 24 socio-cultural, não explica o motivo da punição, e nem o motivo que leva alguém a delinquir. Visando suprir essas falhas, surge então a criminologia crítica, que visava, mediante análises empíricas da teoria social, entender melhor o papel do direito penal na vida cotidiana. A obra exponencial desse movimento foi a “Punição e Estrutura Social”, de Goerge Rusche e Otto Kiercheimer, que lecionaram que os diferentes sistemas penais estariam relacionados ao desenvolvimento social de determinado local, de forma que, em considerando o capitalismo do Século XX, o encarceramento e a punição, serviria ao sistema. Tal teoria, de acordo com Soraia da Rosa Mendes28, determina que existe uma criminalização primária, onde estipula-se o delito em abstrato, em que o sujeito é desconhecido ainda, e, consequentemente, a criminalização secundária, que incide quando alguém de fato pratica a conduta primária criminalizada. Desta forma, é seria criminologia responsável por selecionar as condutas e os potenciais ofensores, e, ao mesmo tempo, as eventuais vítimas – e, quanto as vítimas, ocorrerá uma “vitimização primária”, mediante a qual subjuga-se determinada classe a fim de vitimiza-la diante de um preceito abstrato penalmente relevante e, por isso, punível. Os últimos três momentos da criminologia, entretanto, não farão da mulher um ser participante ou autor – a mulher será considerada uma autora dos crimes que lhe são inerentes ao gênero, ou uma vítima, em decorrência de sua condição atribuída de fragilidade. A mulher não age, nas teorias até então apresentadas, como definidora de condutas, mas apenas como participante, seja como autora, seja como vítima. Isto é, os sistemas até então desenvolvidos, serão, segundo Vera Regina Pereira de Andrade29, ineficazes para a proteção das mulheres, já que não tratam de prevenção, não lhes escuta enquanto vítima e, se quer, tratam da compreensão das relações de gênero. O sistema penal não protege a mulher da opressão que sofre, e, sob a promessa de cuidado de bens jurídicos que sejam a todos relevantes, se esquece de que o “todos” não se resume aos homens, mas também as mulheres, e, assim, restringe-se ao que Alessandro Baratta, citado pela autora, chamou de “o mito do direito Penal igualitário”. 28 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 30. 29 ANDRADE, Vera Regina Pereira. Do paradigma etiológico... op. cit. 25 2.3 A MULHER ENQUANTO OBJETO (E NÃO SUJEITO) DE DIREITO: A CRIMINOLOGIA FEMINISTA E A QUEBRA DE PARADIGMA Considerando uma criminologia que seria não igualitári,a chega-se a conclusão de Soraia da Rosa Mendes30: o direito penal seria feito pelos homens e para os homens, mas sobre as mulheres, estas que teriam a si relegado o papel de coadjuvantes do próprio destino, de forma que na medida que não influiriam na construção criminológica-dogmática, também não passariam de meras expectadoras. A problemática, aduz Marilena Chauí, iria além do discurso masculino, que fala “de fora” sobre as mulheres, mas concentra-se na questão de que esse discurso seria uma fala que culmina no silenciamento das mulheres. Isto é, o problema do discurso criminológico, sociológico ou como ciência em si, ser, em geral, masculino, não é que ele exista enquanto masculino, mas que ele não se contraponha a um discurso das mulheres, mas sim a um silêncio por parte destas31. Isto ocorre porque, historicamente, as pessoa do sexo feminino são tratadas, de acordo com Vera Regina Pereira de Andrade32, como membros de um genêro que é “subordinado, na medida em que determinadas qualidades, bem como acesso a certos papéis e esferas (da política, da económica e da justiça, por exemplo), são percebidos como naturalmente ligados a um sexo biológico”, o masculino, de tal maneira que, como aduz a autora, a mulher acaba construída como “um não sujeito”. Tanto a ciência criminal, em geral, trata dos homens e é feita por eles, sem considerar as concepções femininas, a mulher como sujeito, que pode ser considerada, como pontua Priscila Placha Sà33, “quiçá” como o ramo do direito mais masculinizado, que, em derivando do poder e da inserção no espaço público, formula as normas e, assim, contribui para estipular o domínio do masculino sobre o mundo. Tanto o masculino, o patriarcado, o heteronormativismo e androcenstrismo 30 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 30. 31 CHAUÍ, Marilena. . In: SANTOS, Cecília MacDowell. IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. Disponível em: < http://www.nevusp.org/downloads/down083.pdf Acesso em: 17 set. 2016. 32 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Florianópolis: Instituto Carioca de Criminologia, 2012. P. 141-142. 33 PLACHA SÁ, Priscila.As ciências penais têm sexo? Têm, sim senhor!. Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5726-As-ciencias-penais-tem-sexo-Tem-sim-senhor. Acesso em: 20 set. 2016. http://www.nevusp.org/downloads/down083.pdf http://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5726-As-ciencias-penais-tem-sexo-Tem-sim-senhor 26 incidem em nosso ordenamento jurídico que observa a autora que, ne lei, são expressos valores como a “legitima defesa” e a “honra”, estes como expressão do desenvolvimento de experiências masculina34. A pouca influência feminina, dita, decorreria da subjugação histórica da mulher, do patriarcado35 e do machismo, que, ao longo dos anos, teriam se encarregado de manter a mulher no espaço privado, mediante a construção de gênero. Isto é, a construção de gênero, além de servir para fixar estereótipos, se prestou, também, a relegar a mulher ao espaço privado, que deveria ser devidamente fiscalizado, a fim de controle da sexualidade e da reprodução, naturalizando-se, além do controle informal já realizado pela família, o controle estatal, penal, que trataria de incriminar todas as condutas das mulheres que fossem opostas aos modelos sociais patriarcais. Os processos de conhecimento, que pouco ou nada dizem sobre as mulheres como “sujeitos de realidades históricas, sociais, econ micas e culturais, marcadas por diferenças decorrentes de sua condição”36, demonstram a necessidade de construção de um novo paradigma criminológico: uma perspectiva que se baseie na mulher, no feminismo. O feminismo, independente de sua corrente37, é em geral convergente no que diz respeito a defesa do conhecimento situado, em que o sujeito a ser analisado pela ciência não é um “sujeito ideal/das ideias”, mas um sujeito inserido em um contexto 34 Nesse sentido, Mariena Chauí, citada por Maria Filomena Gregori, aduzia que as mulheres foram constituídas heteronomamente como sujeitos, de forma que foram tomadas em uma subjetividade em que falta algo que é imprescindível para a categoria de sujeito: a autonomia do falar, do pensar e do agir. Isto é: a mulher tem, para a autora, seu detino preso a ser para o outro em função da sua “condição feminina” (GREGORI, Maria ilomena. As Desventuras do Vitimismo. In: Estudos Feministas. P. 143-149. Nº 1/93.) 35 Esse entendido por Soraia da Rosa Mendes como a “manifestação e institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres e crianças da família, e o domínio que se estende à sociedade em geral. (…) O Patriarcado se mantém e reproduz, em suas distintas manifestações históricas através de múltiplas e variadas instituições cuja prática, relação ou organização, a par de outras instituições, operam como pilares estritamente ligados entre si para a transmissão da desigualdade entre os sexos e a convalidação da discriminação entre as mulheres. Estas instituições têm em comum o fato de contribuírem para a manutenção do sistema de gênero, e para a reprodução dos mecanismos de dominação masculina que oprimem todas as mulheres”. (MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 88) 36 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 73. 37 E aqui é importante observarmos que o movimento feminista não é uno, centrado em uma única pauta, apesar de muitas vezes os movimentos quererem fazer parecer. Apesar de convergirem em diversos pontos, também divergem em outros vários, que vão desde a crítica à definição de uma “mulher mediana” e vitimizada, até a crítica da falta de atenção de certas partes do movimento as mulheres em sua dimensão ampla, marginalizadas, negras, pobres, dependentes ainda. 27 social, que integra o conhecimento. Acredita-se que o conhecimento é socialmente situado, de forma que se a mulher, e esta em sua realidade social (não no termo “mulher ideal” ou “mulher universal”), deixaria de ser somente objeto na criminologia na medida em que influencie em seu processo de conhecimento, trazendo, para a ciência, suas lutas históricas e diárias, tratando da criminologia enquanto feminina, em sua essência. Desta forma, as concepções contemporâneas da criminologia, baseadas no feminismo, sugerem a criação e adoção de uma criminologia feminista, que parte da realidade vivida pelas mulheres, sejam estas vítimas, rés ou condenadas, dentro e fora da justiça criminal, afastando-se o discurso androcentrista e sexista38. A implementação de tal criminologia visa, segundo Soraia da Rosa Mendes39, tentar persuadir os estudantes da criminologia de que “o conhecimento sobre o tema de seu interesse será mais objetivo se pautado em uma epistemologia feminista” a fim de se abarcar a realidade vivida pelas mulheres quanto o que lhe toca da ciência criminal. O feminismo seria, desta forma, fundamental para fazer o que Vera Regina Pereira de Andrade40 chamou de “mediação entre a história de um saber masculino onipresente e a história de um sujeito ausente – o feminino e sua dor”. Tem, assim, o papel de dar um novo significado a relação entre duas histórias, aduz a autora, a fim de, assim, influenciar a criminologia, tirando-a de um universo geral antropocêntrico. Cabe observarmos, por fim, que a proposição de uma criminologia feminista não deve se limitar, como muito bem observou Priscila Placha Sá, a intervenção da 38 O androceintrismo existe na medida em que uma produção de conhecimento se baseia exclusivamente na perspectiva masculina, utilizando dela como o “modelo” de experiência humana e que determina, inclusive, o estudo das experiências femininas, estas, em verdade, não consideradas – o feminino, sob uma perspectiva androcêntrica, não é avaliado por seus próprios olhos, mas pelos olhos do masculino. O androcentrismo leva a ginoptia, que consiste na impossibilidade de ver o feminismo ou de considerar suas experiências, e na misoginia, que é o repúdio ao feminino. O sexismo, ao seu turno, crê na superioridade do masculino, e implica em privilégios aos homens, sendo observado em diversos desdobramentos, como observa Margrit Eichler, dentre eles o próprio andocentrismo, o familismo (mulher como família), a insensibilidade de gênero (pesquisa que ignora o sexo como relevante na experiência social, o duplo parâmetro (avaliações distintas para sexos opostos diante da mesma situação), o dever de ser de cada sexo (que impõe “condutas mais adequadas” a cada sexo) e, ainda, no dicotomismo sexual (que trata os sexos como totais opostos, sem características comuns). (EICHLER, Margrit. Nonexist research methods: a practical guide. Disponível em: goo.gl/mMQZRf. Acesso em: 20/09/2016, 13:00 hrs). 39 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista... op. cit. p. 88 40 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Editora: Instito Carioca de Criminologia. Florianópolis: 2012. P. 127-128. 28 mulher nas questões que tratam de gênero, já que isso, por si só “implicaria a um só tempo privar os homens e o masculino e limitar às mulheres a escreverem apenas sobre ele” 41. Isto é: a experiência feminina deve ter papel participativo não apenas no que toca aos delitos que, em tese, envolveriam sua participação, seja como vítima, seja como ré, mas, sobretudo, no desenvolvimento da ciência como um todo, rompendo com eventuais “paradigmas dominantes” e promovendo, desta forma, o que a autora chamou de convergências. 2.4 A SELEÇÃO DA VÍTIMA NOS CRIMES SEXUAIS Vera Regina Pereira de Andrade42 teoriza que o sistema penal é composto por duas dimensões, que dão e ele uma concepção ideológico-simbólica: a dimensão oficial, composta pela ciência criminal em si, e, ainda, a dimensão da ideologia penal dominante, que faz de cada um dos sujeitos, desde criança, o “nós”, um microssistema de controle e um microssistema penal simbólicoque reproduz, diariamente, o macrossistema penal formal. O sistema formal agiria, então, “como se” visasse a proteção de “bens jurídicos gerais”, aplicando a pena, “como se” a sociedade fosse conduzida, por ele, “da barbárie ao paraíso” e se legitima na medida em que o controle externo, o social, nele acredita, e com ele converge. Esse duplo controle, como não poderia ser diferente, incide também sobre a conduta da mulher. A mulher seria, então, tratada pelo sistema penal, em geral, como vítima, na medida em que se encarrega o sistema capitalista e patriarcal de conferir ao sujeito que não se insere, dele divergente, e integrante de alguma minoria de cor ou classe social, o papel de réu. A vítima, por outro lado, sereia a mulher, pela sua suposta fragilidade e quase “predisposição” a sofrer o crime. Somente não seria vítima, a mulher, quando trata-se de seus desvaneios: do seu estado puerperal, de sua lasciva ou de seu período menstrual e, aí, cuidaria delas o sistema médico-legal: loucas, que irão para manicômios, aduz Vera Andrade. Os dados confirmam o que diz a autora: apenas 6,7% de toda a população carcerária é composta por mulheres43. Não porque não cometem crimes, cometem, como todos, 41 PLACHA SÁ, Priscila. As ciências penais têm sexo?... op. cit. 42 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia... op. cit. p. 132. 43 Dados do Sistema Integrado de Informação Penitenciária (Infopen). Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80853-populacao-carceraria-feminina-aumentou-567-em-15-anos-no- http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80853-populacao-carceraria-feminina-aumentou-567-em-15-anos-no-brasil 29 mas o direito penal, em geral, como primeiramente observado, não se destina a todos – tem um perfil de réu, aduz a autora, que implica em homens, de classes mais baixas, negros, jovens e, geralmente, desempregados. Tanto os réus, quanto as vítimas, desta forma, são “pré definidas” pelo direito penal, que vitimiza aqueles que considera mais frágeis, seja física ou moralmente, dentre eles as mulheres, e culpabilizaria aqueles que estão em desacordo com a organização social que se espera, e, apesar de tanto a criminalidade quanto a vitimização serem majoritárias e ubíquas, pontua Vera Regina Pereira de Andrade44, somente uma parte a presenciaria. A mulher, nessa concepção, assumiria o papel de vítima essencialmente no que diz respeito a violência sexual, na medida em que esta seria um dos maiores eixos da dominação patriarcal, de acordo com Maria Lúcia Karam45. E, assim, o sistema acabaria penalizando as condutas que envolvam abuso sexual, de forma rígida. Mas, também nesse campo, ressalva-se o perfil de agressor e vítima: o agressor seria o desconhecido, e a vítima, “a mulher honesta”. Isto é, como assevera Vera Regina Pereira de Andrade, as vítimas dos crimes sexuais, e mais especificamente o crime de estupro, somente o seriam na medida em que se encaixarem aos “padrões de moralidade sexual impostos pelo patriarcado à figura feminina”, de forma que será, por outro lado, culpabilizada, a vítima que ali não se adeque. E, assim, seleciona-se a vítima: somente a “mulher honesta” - e aí observamos que a própria lei, até 2005, assim tratava e que os resquícios ainda vigem – seria vítima do crime de estupro, de acordo com Danielle Ardaillon e Guita Grin Debert46. O resquício é secular e considera a “reputação sexual da vítima” para aferimento do crime. A “dignidade sexual” é parte do Título VI do nosso Código Penal, e a “liberdade sexual” um de seus aspectos, mas a proteção continua sendo, em geral, “dos costumes”, como o era em 1940, e não da dignidade sexual, como se brasil. Acesso em: 20 set. 2016. 44 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia... op. cit. p. 133. 45 KARAM, Maria Lúcia. Sistema penal e direitos da mulher. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Instituto Brasileiro de ciências criminais. Nº 9, p. 147-163, jan-mar de 1995. São Paulo. 46 ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Grin. Quanto a vítima é mulher. Análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Disponível em: < www.lexml.gov.br/urn/urn:lex :br:rede.virtual.bibliotecas:livro:1987;000106855>. Acesso em: 18 set. 2016. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80853-populacao-carceraria-feminina-aumentou-567-em-15-anos-no-brasil http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:1987;000106855 http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:1987;000106855 30 esperaria que fosse em 2016. Tanto assim o é que os tribunais decidem, conforme assevera Vera Regina Pereira de Andrade, que “a palavra da vítima é do maios valor probante, especialmente quando se trata de mulher recatada, sem aparente interesse em prejudicar o indigitado autor do delito”47 e, ainda, que “tratando-se de mulher leviana, cumpre apreciar com redobrados cuidados a prova da violência moral [enquanto] tratando-se de vítima honesta, e de bons costumes, suas declarações têm relevante valor”48. Esses são apenas dois pequenos exemplos de como ainda existe jurisprudência que culpabiliza a vítima em razão de sua condição de mulher, esta enquanto em desacordo com “o que se esperaria” da fêmea. Ademais, além de dúvida da palavra da mulher em razão da sua suposta não adequação social, os tribunais ainda consideram sua “vida pregressa” como se fosse fator determinante do crime. E, assim, a palavra da vítima, consensualmente importante à jurisprudência pátria, segundo Vera Regina de Andrade Pereira49, “perde a credibilidade se não for ela considerada ‘mulher honesta’, de acordo com a moral sexual pratriarcal ainda vigente no sistema penal”. Claro que, cada vez mais, os tribunais “abafam” o discurso e lhe dão eufemismos diversos e que aparentam menos conservadores, mas, conforme será a seguir comentado, a vítima do crime de estupro, em não sendo “a menina indefesa” seria, muitas vezes, culpabilizada. A culpabilização se da, ademais, desde o relato feito à autoridade policial, em boletim de ocorrência (B.O), que muitas vezes questiona a vítima sobre a sua “certeza” a respeito do fato (observável em diversos relatos50), até o momento do depoimento da vítima, que teria valor probante diverso conforme seu histórico (como exemplificado anteriormente) e exigiria que à vítima provasse que é real o fato, e não simulado. A “lógica da honestidade” que muitas vezes se estabelece entre a justiça penal e as vítima de violência sexual, acaba por inibir as mulheres a denunciar o 47 Grifo nosso. São Paulo, RT 327/100, 2002. 48 Grifo nosso. São Paulo, RT 419/88, 2004. 49 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia... op. cit. p. 149-150. 50 LEITORA, Relato da Leitora. Disponível em: fuiestuprada.wordpress.com/2013/08/03/relato-de- leitora-1. Acesso: 20 set. 2016. 31 estupro, já que, como apontam Danielle Ardaillon e Guita Grin,51, os delegados ou investigadores em várias situações consideram a denúncia feita pela vítima de estupro como algo “de menor importância, ou mesmo a duvidar da própria existência do fato”, já que, em um primeiro momento, ele é baseado apenas na palavra da mulher. Desta forma, desde o início, a palavra da mulher acaba sendo, muitas vezes, tratada com desconfiança, sendo feita dela uma ré, invés de vítima, pois exige-se que prove a “sua inocência” mediante a comprovação, cabal, da culpa do suposto estuprador52. O que ocorre quando da denúncia, entretanto, não finda nela, e estende-se aos processos judiciais. Istoporque, como já se observou, a conduta sexual da vida da vítima é, em muitas casos, analisada durante o processo, como se fosse objeto hábil à influenciar o fato, ou a decisão do Juiz, de forma que, em sendo a “mulher desoneste”, de alguma forma, a agressão poderia se “jusitificar”. Isto é, muito embora a palavra da vítima, no crime de estupro, tenha, unissonamente na jurisprudência, um papel ímpar, somente seria ouvido sem contestação na medida em que essa vítima tenha uma qualidade que dela vários julgados esperam: a honestidade. No fim, então, apesar de dizer a jurisprudência e doutrina que a palavra da vítima é de relevância extrema, sua credibilidade é, na verdade, auferida conforme a vítima e a situação, e conforme a visão do julgador. Nesse sentido, Danielle Martins da Silva, observa que não seria exagero afirmar que “nos crimes sexuais a palavra da vítima vale menos do que qualquer outra prova, pois sua credibilidade dependerá do significado próprio que lhe atribui o julgador”, e, desta forma, se perfaz o sofismo no binômio muito utilizado pela jurisprudência tanto para justificar a condenação, como para justificar a absolvição: a palavra da vítima é fundamental nos delitos de estupro, mas somente o será na medida em que for convincente. Pelas conclusões de Danielle Ardaillon e Guita Debert, que analisaram em sua obra crimes de estupros ocorridos nos anos 80, o que se avalia quanto ao crime 51 ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Grin. Quando a vítima é mulher. Análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Disponível em: http://www.lexml.gov.br /urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:1987;000106855. Acesso em: 18 set. 2016. 52 PIMENTEL, Silvia. SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore. PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime “ ” j . Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 27. http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:1987;000106855 http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:1987;000106855 32 de estupro, diversas vezes, não é o direito a liberdade sexual, como preconiza o código, mas sim “o ajustamento das famílias a uma moral sexual e uma concepção dos bons costumes baseada em padrões estereotipados de comportamento”53. As autoras, ainda, destacam que são levados em conta, em diversos julgados, para fins de condenação, a fim de “conferir credibilidade” à palavra da vítima, o seu estado civil, o relacionamento que tem com a família, e como a família se relaciona entre si. Segundo as pesquisadoras, a “família exemplar” se contraporia a “familiar desestruturada” na mesma medida em que “a que reside sozinha” se contraporia a que reside com “a família de bem”. Sob essa “moral sexual”, observa-se nos tribunais, nas defesas e acusações de vítimas e réus de estupro, a tentativa de traçar um perfil do acusado e da vítima, de forma que principalmente a defesa tenta, de alguma forma, culpabilizar a vítima, trazendo elementos atinentes ao seu passado, enquanto a acusação traça um perfil de “anormalidade” para o acusado. Isso revela crenças “estereotipadas e preconceituosas ou falsas a respeito do estupro e de suas vítimas, bem como sobre os agressores”, o que cria uma hostilidade quanto as vítimas de tal tipo de violências. A vítima, nesse sentido, somente o seria, para tais entendimentos, na medida em que a interpretação judicial lhe confere tal estado, de forma que não é qualquer mulher que o seria por concepções jurisdicionais, a não ser que prove, cabalmente, que o é. A palavra seria, assim, em julgados diversos, relativizada, conforme o “tipo de vítima”, o “tipo de família” que ela compõe e, ainda, e de acordo com “a situação a que ela teria se sujeitado [grifo nosso]. 3 CRIME DE ESTUPRO NO BRASIL O direito, e consequentemente as noções de crime e os tipos penais formais, consistem em inventos humanos, que sofrem variações no tempo e no espaço, de forma que, na medida em que as sociedades evoluem, também o direito evoluirá, seguindo a mobilidade social54. A evolução do direito, este enquanto “experiência 53 ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Grin. Quando a vítima é mulher.... p. 17. 54 NADER, Paulo . 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 19. 33 jurídica”, como chamou Miguel Reale55, que serve para garantir uma convivência social ordenada, será, desta forma, também a evolução da sociedade –tardio, infelizmente, mas ainda assim vindo ao encontro com os anseios daquela época e exprimindo as ideologias da sociedade em que insere-se. Apesar de ser reflexo das concepções sociais da época, o direito, ao mesmo tempo, serve às classes dominantes, que utilizaram-se, e continuam utilizando-se dele para manter o próprio domínio. Neste sentido, Juarez Cirino dos Santos, observa que o direito penal, em si, possui dois objetivos: os objetivos declarados, ou manifestos; e os reais, ou latantes56. Os objetivos declarados seriam aqueles consubstanciados no discurso jurídico oficial, e se revelariam como a proteção dos bens jurídicos, de forma subsdiária e fragmentária, o que demonstra o significado político desse ramo do direito, já que consubstancia as estratégias de controle social das sociedades contemporâneas – e tais objetivos estão consubstanciados, entende-se, no ordenamento jurídico. Os objetivos manifestos, declarados, nos dão a impressão, pontua o autor, de que o direito penal é neutro, de forma que a lei penal seria sua fonte formal e basearia seu conteúdo em uma sociedade igual materialmente, o que não acontece, de acordo com o próprio autor. Não acontece porque por trás dos objetivos declarados estão os objetivos reais, que implicam na análise das fontes materiais do ordenamento jurídico, que são “enraizadas no modo de produção da vida material” e, assim, fundamentariam os interesses, necessidades e valores das “classes sociais dominantes das relações de produção e hegemônicas do poder político do Estado, como indicam as teorias conflituais da Sociologia do Direito”, pontua o Professor Juarez Cirino dos Santos. Isto é, na medida em que o direito tem como objetivo formal precípuo a suposta proteção aos bens jurídicos, teria, ao mesmo tempo, o objetivo real de continuar disseminando concepções dominadoras, de forma que se é, como assinalaram Paulo Nader e Miguel Reale, expressão da evolução social, é enquanto um instrumento político, que seia objeto de realização de controle social, exprimindo 55 REALE, Miguel. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 2. 56 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: Parte geral. 5ª edição. Florianópolis: Conceito, 2012. p. 4-6. 34 a evolução social não da sociedade considerada como um todo, mas de alguns grupos dominantes sob alguns grupos dominados. Michel Foucault57, nesse sentido, observa que os métodos punitivos não são simples consequências de regras de direito e nem necessários indicadores de estruturas sociais, mas, em verdade, “técnicas que têm sua especificidade no campo mais geral dos outros processos de poder”, e, aduz, onde existe uma tática política que o justifica, em verdade. Alessandro Baratta, também no sentido do exposto por Foucault e estudado por Juarez Cirino dos Santos, explica que o direito não pode ser visto isoladamente, mas com viés sociológico, sob uma ideia macrossociológica, e, assim, deve ser analisado criticamente, para que entenda-se que, além do discurso penal existe, sobretudo, um discurso político criminológico, que expressaria a vontade de determinados setores sociais58. A presente introdução a análise histórica do que convencionou-se chamar de“estupro” se da para que se entenda que, apesar da análise histórica refletir paradigmas sociais, políticos e econômicos da época em que se insere e da sociedade da qual tratam, tais paradigmas são formulados não necessariamente pela sociedade como um todo, mas por determinados grupos que teriam, basicamente, o poder de dominação sobre outros. Isto é: na medida em que analisa- se a evolução histórica da legislação a respeito do delito de estupro, será feita uma análise, em verdade, da política criminal em relação a tal tipo penal, compreendendo-se, como aduz Vera Regina Pereira de Andrade, que o sistema penal consiste em um “subsistema dentro de um sistema de controle e seleção de 57 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 39ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1975. P. 26-27. 58 “A situação da sociologia juridico-penal, considerada em sua tendência de desenvolvimento comum com a sociologia criminal, é, pois, em certo sentido, exemplar para toda a sociologia jurídica. A sociologia jurídico-penal mostra como o progresso de todo setor especifico da sociologia está ligado ao desenvolvimento de instrumentos de indagação particulares e a uma oportuna delimitação dos objetos especificos de indagação, mas também, ao mesmo tempo, ao desenvolvimento de um modelo crítico de interpretação macrossociolósica de toda a estrutura sócio-econ mica. A situação da sociolosiajurídico-penal mostra, mesmo, que os impulsos de renovação e de aprofundamento crítico de nossa disciplina não devam ser buscados só no seio da mesma, mas também e sobretudo na sociologia geral e nos outros setores especificos da sociologia com os quais nossa disciplina se relaciona, na teoria do Estado, na economia política, na história social, assim como, enfim, nas tendências e nos aportes específicos das outras disciplinas jurídicas com as quais tem estreitas relações”. (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1999. P. 28-29.) 35 maior amplitude”59, de forma que a análise aqui descrita é a análise de uma política criminal que desenvolveu-se ao longo dos anos e reflete a visão formal do assunto, perante o ordenamento jurídico. 3.1 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO TIPO DE ESTUPRO NO BRASIL O direito brasileiro, enquanto autonômo60, consiste em uma construção recente. Isto porque, como sabe-se, o Brasil foi colônia de Portugal durante aproximadamente 300 anos, de forma que, até então (1822, data do que convencionou-se chamar “independência do rasil”), o direito aqui adotado era, em verdade, decorrente das normas jurídicas de Portugal - aí consubstanciadas nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas61. As Ordenações do Reino de Portugal não eram propriamente códigos, como nos ensina Eneida Orbage de Britto Taquary, mas coletâneas de leis “que eram distribuídas em livros e cujo conteúdo versava sobre os vários ramos do direito”62. Apesar de normas penais serem encontradas nos livros das três Ordenações, ganhou maior destaque o Livro V das Ordenações Filipinas63, uma vez que este 59 Andrade, desta forma, nos ensina que: “A eficácia invertida significa, então, que a função latente e real do sistema penal não é combater (reduzir e eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao invés, contruí-la seletiva e estigmatizantemente, e neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de classe, de gênero, de raça). Neste sentido, o sistema não reage contra uma criminalidade que existe ontologicamente na sociedade, independentemente da sua intervenção. É a própria intervenção do sistema (autêntico exercício de poder, controle e domínio que, ao reagir, constrói e constitui o universo da criminalidade (daí o processo de criminalização), mediante: (a) definição legal de crimes pelo legislativo, que atribui à conduta o caráter criminal, definindo-a (e, com ela, o bem jurídico a ser protegido) e apenando-a qualitativa e quantitativamente (criminalização primária); (b) seleção das pessoas que serão etiquetadas, num continuum pela Polícia, Ministério Público e Justiça (criminalização secundária); e (c) estigmatização, especialmente na prisão, como criminosos, entre todos aqueles que praticam tais condutas (criminalização terciária). (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia... op. cit. p. 136.) 60 A tratativa do histórico do crime de estupro aqui se dará a partir da colonização, na medida em que antes disso, no período pré-colonial, não havia uma sistematização institucional, e as tribos indígenas, populações nativas, tratavam do tema a partir da noção de vingança privada, e cada grupo aplicava a sua sanção conforme o caso concreto, e apesar de saberem-se que tais sanções eram extremamente severas, não havia uma uniforme aplicação e os estudos a respeito são escassos. (SANTOS, Gabriela Gatti dos; PRADO, Florestan Rodrigo do. Do estupro: Reflexões em face das alterações da Lei 12.015/2009. Disponível em: < intertemas.unitoledo.br/revista/índex.php/ETIC/ar ticle/view/4213/3971 > Acesso em: 09 set. 2016. 61 PIERANGELI, José Henrique. . São Paulo: Javoli, 1980. p. 27-60. 62 TAQUARY, Eneida Orbage de Britto. . Disponível em: http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/viewFile/635/551. Acesso em: 06 set. 2016. 63 Ressalta-se que apesar de entenderem-se as Ordenações Filipinas como legislação de Portugal, http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/viewFile/635/551 36 representava a sistematização das demais normas penais a ele anteriores, com algumas poucas inovações. Foi, ademais, em verdade, o Livro V de tais ordenações a norma penal que mais durou no Brasil, vigente por mais de 220 anos – da sua promulgação em 1603 até a publicação do Código Criminal do Império, já em 1830. Era no Livro V que exigia o preceito primário para aplicação da pena, e no Título XVIII, deste mesmo Livro V, que cominava-se pena capital para aquele que “dorme per força com qualquer mulher, ou trava della, ou a leva per sua vontade”64. A pena capital, entretanto, somente aplicava-se se a mulher não “ganhe dinheiro per seu corpo, ou com scrava”65, pois, aí, não se fará execução até que se prove que estas não queriam. A pena capital, entretanto, somente aplicava-se em caso de haver “violência” e subsistia mesmo que o autor se casasse com a ofendida após o crime. A despeito do Título XVIII tratar do estupro dito “violento”, o Título XXIII também tratava do estupro, este dito “voluntário de mulher virgem”, que acarretava ao autor a obrigação de se casar com a “donzela” e, na impossibilidade do casamento, perfazia-se a obrigação de constituição e dote à ofendida – em não havendo bens, aduz Luiz Régis Prado, era o sujeito então açoitado e degredado, “salvo se fosse fidalgo ou pessoa de posição social, quando então recebia somente o degredo”66. A legislação que vigorou até 1830 no Brasil, das Ordenações Reais, consubstanciavam-se em uma legislação arcaica, editada pelos ditames dos “bons costumes” e da sacralização do direito, de forma que, ainda no século I , observavam-se resquícios medievos de confusão entre pecado e delito. Sob essa perspectiva, Georges Vigarello ressalta que o acusado o era não por suas qualidades próprias e pelo ato, mas, sobretudo, pela “qualidade da vítima”, uma vez que o estupro não era consubstanciado em uma ofensa a mulher, em si, a vítima,
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