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27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 1/24 TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 1 Profª Natali Hoff 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 2/24 CONVERSA INICIAL Nesta aula, serão abordadas as contribuições conceituais e metodológicas de autores vinculados ao que se convencionou rotular como pós-estruturalismo nas Relações Internacionais. Tais contribuições inspiraram-se sobretudo em discussões oriundas de disciplinas vizinhas, como a Sociologia, a Linguística e a Filosofia, em particular autores franceses cuja produção intelectual passou a ganhar destaque a partir dos anos 1960, como é o caso de Michel Foucault (1926-1984) e Jacques Derrida (1930-2004). Ao final da década de 1980, a influência dessas discussões passou a se fazer mais presente na disciplina de Relações Internacionais, em um momento crítico de maior abertura da área a novos conceitos e metodologias, momento esse caracterizado como uma “virada reflexiva”, em que muitos dos pilares teórico-metodológicos tradicionais – sobretudo aqueles assentados nas correntes realistas e liberais – passaram a ser criticamente revistos. É o caso, por exemplo, do privilégio teórico dado ao Estado como ator central das relações internacionais ou à visão de ciência oriunda das premissas do positivismo epistemológico (Pereira; Blanco, 2021). Saiba mais Por Epistemologia, entenda-se a discussão filosófica acerca de como o conhecimento humano a respeito da realidade ocorre, quais suas potencialidades e seus limites. Inicialmente, serão apresentadas algumas das fontes teóricas do pós-estruturalismo, em especial no campo da Filosofia e das Ciências Humanas, dando destaque ao diálogo crítico que essa abordagem manteve com o estruturalismo que a precedeu. Também serão apresentadas as marcantes diferenças em relação à visão de ciência e de pesquisa oriundas da epistemologia positivista que até aquele momento ocupava posição francamente hegemônica nas teorias de Relações Internacionais. No Tema 2, será abordado o contexto em que o pensamento pós-estruturalista se inseriu na disciplina, assim como seus primeiros impactos em matéria de renovação conceitual e metodológica, 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 3/24 terminando com a identificação de seus principais autores e autoras. Os Temas 3 e 4 serão dedicados às principais contribuições que o pós-estruturalismo trouxe às Relações Internacionais, como é o caso de uma nova maneira de analisar a relação entre poder e produção de conhecimento; ou de se problematizar a noção tradicional, cartesiana, de “sujeito”; ou, ainda, a natureza e o papel da “linguagem” para as relações sociais e políticas. Aqui, serão destacadas sobretudo as contribuições teórico-metodológicas de Foucault e de Derrida à disciplina. Por fim, no Tema 5, o foco recairá sobre metodologias de pesquisa inspiradas pelas problematizações pós-estruturalistas, tendo como exemplo as estratégias textuais de Derrida, como a “desconstrução” e a “leitura dupla”; a “genealogia” de Foucault; e ainda a crítica da realidade internacional a partir da noção de “estética”, tal como proposta pelo também francês Jacques Rancière. TEMA 1 – FONTES TEÓRICAS DO PÓS-ESTRUTURALISMO Como já dito, o pós-estruturalismo em Relações Internacionais inspirou-se fortemente em discussões oriundas de disciplinas vizinhas, como a Sociologia, a Linguística e a Filosofia. Tem destaque aqui, como fonte teórica dessa abordagem, sobretudo o pensamento filosófico francês que emergiu a partir dos anos 1960, com jovens filósofos como Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard, Jean-Luc Nancy, Paul Virilio, entre outros – eles próprios rotulados sob o título de “pós-estruturalistas” (Çalkivik, 2017; Gregory, 1989). Tais autores, ainda que muito diferentes entre si, exibiam em comum um grande ceticismo em relação às chamadas grandes narrativas, quer dizer, aos discursos que se pretendem explicativos do mundo (natural ou social), como é o caso do discurso científico (Edkins, 2007). Tal ceticismo estendia- se também a alguns dos pilares do pensamento ocidental, como as noções de “verdade”, “fato” e “evidência” ou mesmo ao argumento de que seria possível chegar a uma descrição “objetiva” (quer dizer, não influenciada por interpretações parciais e vieses) a respeito do funcionamento da realidade. Em resumo, o que tais autores e autoras questionavam eram os pressupostos positivistas então hegemônicos na Filosofia e nas ciências humanas em geral. Antes, contudo, de se abordar de maneira mais sistemática tais pressupostos e as correspondentes críticas pós-estruturalistas a eles, é 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 4/24 preciso entender por que esse pensamento – extremamente diverso internamente e que não se deixa aprisionar na ideia de teoria ou paradigma unificado – recebeu a denominação que possui. Dito de outra forma: que estruturalismo é esse ao qual o pós-estruturalismo sucede? O estruturalismo é uma abordagem teórica e metodológica presente em diversas disciplinas das ciências humanas, tendo destaque sobretudo na Antropologia e na Linguística. Seu argumento fundamental é o de que a maneira como os seres humanos pensam e agem organiza-se a partir de uma lógica subjacente, baseada especialmente na relação entre pares de opostos (também chamados de oposições binárias), como masculino/feminino, céu/terra, cru/cozido, seco/úmido, interior/exterior etc. Por consequência, o objetivo básico do estruturalismo é o de analisar os artefatos da cultura humana para além da diversidade de aparência e de conteúdo, buscando, em vez disso, as estruturas profundas (ou seja: as diversas combinações entre pares de opostos) comuns a todos eles. Os precursores do estruturalismo, como o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) e o linguista Ferdinand de Saussure (1857-1913), já defendiam a importância de se tratar a sociedade – no caso do primeiro – e a língua – no caso do segundo – como sistemas de relações entre um conjunto de elementos determinados. Durkheim procurava compreender a sociedade como uma espécie de “organismo”, em que cada parte (a escola, por exemplo) só poderia ser compreendida a partir da função que cumpriria “em relação” às demais partes (a de socializar as crianças, preparando-as para os papéis da vida adulta) (Durkheim, 2003). Saussure, por sua vez, em seu seminal Curso de Linguística Geral, publicado em 1916, defendia que se estudasse a língua como um sistema de relações, em que palavras e letras só adquiririam significado pelas relações (de proximidade, de oposição etc.) mantidas umas com as outras: assim, uma determinada palavra (alto, por exemplo) só se tornaria inteligível – quer dizer: passível de ter seu significado compreendido – a partir da sua relação de oposição a outras palavras (baixo, seguindo o mesmo exemplo) (Saussure, 2011). Foi, entretanto, por meio da obra do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) que tais contribuições precursoras do pensamento estruturalista encontraram seu momento de maior popularidade intelectual. Partindo da noção de que as sociedades e as culturas humanas poderiam ser compreendidas como uma estrutura, quer dizer, como um conjunto de relações (de oposição e de complementaridade), Lévi-Strauss analisou diferentes aspectos da existência humana (regras de 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 5/24 parentesco, preparo de alimentos, mitos) a fim de encontrar, por debaixo da imensa diversidade aparente, os padrões comuns que organizariam cada um deles, e cujofundamento estaria na própria maneira como a mente humana funcionaria: a partir dessa combinação de pares de opostos (Lévi- Strauss, 2012). Foi com esse cenário intelectual, em que o estruturalismo se apresentava como a abordagem dominante nas ciências humanas, que os jovens filósofos franceses se defrontaram a partir dos anos 1960. Continuando algumas das linhas de raciocínio do estruturalismo e revisando outras, autores como Foucault e Derrida foram responsáveis por minar a hegemonia estruturalista na academia francesa e europeia. Fundamental para o surgimento do rótulo “pós-estruturalismo” foi a apresentação do texto Structure, Sign, and Play in the Discourse of the Human Sciences, de Jacques Derrida, na Universidade John Hopkins, em 1966. O diálogo crítico que o autor estabelecia com os mestres do estruturalismo, criticando alguns de seus principais argumentos, foi o pontapé inicial para que o establishment acadêmico percebesse o surgimento de novas abordagens que procuravam superar algumas das teses então hegemônicas. Ainda que tais críticas variassem de acordo com cada autor, alguns pontos comuns podiam ser identificados: (I) o questionamento da rigidez do modelo analítico estruturalista, centrado em oposições binárias ou pares de opostos, que simplificaria a análise dos sistemas culturais a fim de obter uma imagem coerente e estável de tais sistemas; (II) ao explicar um elemento a partir de sua relação com os demais elementos do sistema, o estruturalismo privilegiaria a análise sincrônica (quer dizer: do momento presente), em detrimento da história – análise diacrônica da estrutura ao longo do tempo – que teria produzido tais elementos e as relações entre eles; (III) o estruturalismo ainda estaria assentado em uma concepção de conhecimento e de ciência amplamente positivistas, pretendendo assim obter a “interpretação verdadeira” a respeito das culturas e das sociedades humanas; (IV) como consequência dessa visão positivista, o analista estruturalista enxergaria a si próprio como estando imune aos vieses interpretativos produzidos pelas estruturas que analisa (Masaro, 2018). Tais críticas, contudo, não significavam que o pós-estruturalismo representasse uma rejeição completa às abordagens anteriores: em comum com o estruturalismo, autores como Derrida, Foucault e Deleuze também concordavam com o argumento de que a interpretação da realidade 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 6/24 (natural ou cultural) é mediada por sistemas de signos (tal como a linguagem) e que o mais importante em tais sistemas seriam as relações estabelecidas entre suas partes (seus signos), e não cada uma delas isoladamente. Essas relações, entretanto, não seriam o produto da maneira universal como a mente humana funciona (como em Lévi-Strauss), mas sim o efeito de contingências e de lutas históricas, em que o poder, a estratégia e a política teriam grande participação. Saiba mais Signos podem ser entendidos como “qualquer objeto, forma ou fenômeno que representa algo diferente de si mesmo e que é usado no lugar deste numa série de situações (a balança em lugar de 'justiça'; a suástica, de 'nazismo' etc.)” (Houaiss, 2009). A linguagem pode ser definida, portanto, como um tipo de “sistema de signos”. A rejeição, por parte dos autores e autoras pós-estruturalistas, de parte importante das teses estruturalistas e, de maneira mais geral, das teorias assentadas em pressupostos positivistas de objetividade e de busca pela “verdade”, levou muitos intérpretes a identificarem o pós-estruturalismo ao pós-modernismo ou a tratarem o primeiro como uma mera manifestação ou sintoma do segundo (Çalkivik, 2017). É preciso, no entanto, aclarar e precisar a distinção entre ambos. De acordo com David Campbell, o “’pós-modernismo’ surgiu durante o período após a Segunda Guerra Mundial, representando e interpretando a cultura indeterminada, pluralista e cada vez mais globalizada do mundo da Guerra Fria” (Campbell, 2010, p. 230). Nesse sentido, ele “refere-se a formas culturais inspiradas pelas condições de tempo e espaço aceleradas e pelo hiper-consumismo que experimentamos na era globalizada que alguns chamam de ‘pós-modernidade’” (Campbell, 2010, p. 231), em que muitos dos pressupostos e crenças nascidas ainda na esteira do Iluminismo e da Revolução Industrial (berços da “modernidade” ou do “projeto moderno”) passaram a ser criticadas ou revisadas: a crença na ciência e na razão como motores do progresso humano; a ideia de que a história seguiria algum tipo de lógica evolutiva ou seria dotada de uma finalidade específica; ou de que a realidade humana poderia ser explicada a partir de grandes narrativas totalizantes, fossem elas artísticas, religiosas, políticas ou filosóficas. Ainda que as abordagens pós-estruturalistas na Filosofia e nas ciências humanas expressem alguns dos traços e humores da atitude cultural iconoclasta do pós-modernismo, elas não se 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 7/24 esgotam em uma simples crítica ao “projeto moderno” e à modernidade (Campbell, 2010, p. 230), lidando, ao contrário, com temas e problemas seculares da tradição filosófica ocidental. TEMA 2 – O PÓS-ESTRUTURALISMO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS As abordagens pós-estruturalistas – oriundas, como já dito, sobretudo da filosofia francesa contemporânea – passaram a se fazer presentes nas Relações Internacionais a partir do final da década de 1980, momento em que a disciplina assistia a uma problematização de seus pressupostos fundacionais e a uma pluralização de perspectivas, conceitos, metodologias e objetos de estudo. Esse momento é denominado por alguns como uma virada reflexiva na disciplina (Hamati-Ataya, 2012), dando início ao que se convencionou chamar de quarto debate das Relações Internacionais (Nogueira; Messari, 2005), em que a base epistemológica e teórico-metodológica até então hegemônica na área – aquela assentada no positivismo – passou a ser severamente questionada, juntamente com as principais teorias que nela se baseavam, como o realismo, o idealismo, o neoliberalismo e o neorealismo. A fim de compreender o escopo dessa “virada” – também chamada de sociológica, discursiva ou pós-positivista – é preciso antes delinear de maneira mais sistemática as características da epistemologia positivista que havia estruturado a área até aquele momento. Segundo Steve Smith, o positivismo nas Relações Internacionais alicerça-se em quatro “suposições subjacentes e muitas vezes profundamente implícitas” (Smith,1996, p. 15-16) que moldam as pesquisas na área, ainda que não sejam necessariamente perseguidas de maneira consciente pelos pesquisadores e pesquisadoras. Primeiramente, o naturalismo, quer dizer, a crença no caráter unitário da ciência e de seu método, pouco importando as especificidades de cada objeto ou área a ser estudada. Nesse sentido, tanto as ciências naturais quanto as ciências humanas ou sociais compartilhariam um mesmo conjunto de pressupostos metodológicos. Em segundo lugar, o objetivismo, que postula uma separação clara e estanque entre fatos e objetos, de um lado, e valores e interpretações, de outro; haveria, nesse caso, uma separação absoluta entre o sujeito do conhecimento – o observador – e o objeto desse conhecimento – o observado –, bastando para isso o esforço do analista em colocar “em suspenso” suas crenças e [1] 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 8/24 valores no ato da pesquisa. Aqui, o processo de conhecimento é visto como uma “descoberta”, e não como um processo interpretativo e ativo de “construção”. Em terceiro, o positivismo parte do pressuposto de que a realidade é inteligível e passível de ser explicada em sua causalidade (o encadeamento de causas e efeitos), pois está fundamentada emrepetições, ciclos, padrões e até mesmo em leis que norteariam seu funcionamento, sendo isso verdadeiro tanto para o mundo natural quanto para o mundo social. Por último, mas não menos importante, o positivismo postula, como critério exclusivo de cientificidade de uma pesquisa, a validação ou o falseamento da hipótese de trabalho por meio de teste empírico, o que, em termos filosóficos, é chamado de empiricismo (Smith, 1996, p. 15-16). Foram justamente tais pontos, característicos da epistemologia positivista que fundamentou a disciplina de Relações Internacionais até aquele momento, que passaram a ser problematizados pelas abordagens pós-estruturalistas (Gregory, 1989), responsáveis por colocar “uma série de questões meta-teóricas – perguntas sobre a teoria da teoria – de modo a compreender como formas particulares de conhecimento, o que conta como conhecimento e quem pode saber, foram estabelecidas ao longo do tempo” (Campbell, 2010, p. 225). Em primeiro lugar, o pós-estruturalismo recusa o objetivismo inerente à epistemologia positivista, argumentando que o ato de conhecimento é um processo ativo, do qual a interpretação – e, portanto, a linguagem e a política – é parte inescapavelmente constituinte. Não há, sob essa perspectiva filosófica, um mundo a ser “descoberto” ou “desvendado” pelo olhar científico, mas sim uma realidade a ser interpretada de acordo com os constrangimentos de um dado contexto linguístico e político que torna certas coisas visíveis, enunciáveis, ao mesmo tempo que invisibiliza outras. Tal perspectiva possui também uma história na tradição filosófica, remontando, por exemplo, a Friedrich Nietzsche, para quem “existe apenas perspectiva de visão, apenas perspectiva ‘do conhecer’” (Nietzsche, 2006, p. 87; grifo do original), e não uma visão triunfante capaz de dizer a “verdade” a respeito do mundo. Ainda contra o objetivismo positivista, os pós-estruturalistas negam a existência de uma distinção entre fatos e interpretações ou entre juízos de conhecimento e juízos de valor, já que ambos estariam integrados em uma dada linguagem (ou discurso, no sentido de Foucault), que condiciona aquilo que se pode ver e julgar. Tal linguagem possui também uma estrutura (as relações 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 9/24 internas entre palavras, ideias e argumentos), que é sempre o efeito de um determinado contexto sócio-político e das relações de poder que operam nele. Como nos chama a atenção Roland Bleiker (2007), o objetivo principal da problematização pós- estruturalista não é “chegar à uma verdade objetiva sobre eventos ou fenômenos políticos. Tal empreendimento seria tão problemático quanto inútil. O ponto, ao contrário, é aumentar a compreensão de como poder e conhecimento estão interligados em todas as representações da política” (Bleiker, 2007, p. 91). Daí a necessidade de se interrogar, criticamente, as teorias que, ao dizer a “verdade” sobre o mundo, tendem a naturalizá-lo, desistoricizá-lo, fazendo esquecer os processos, passados e presentes, que o levaram a ser como é, ou mesmo impedindo a possibilidade de imaginá-lo de outra forma: “trata-se de desvelar as suposições e os limites que fizeram as coisas como são, de modo que o que parece natural e sem alternativa possa ser repensado e retrabalhado” (Campbell, 2010, p. 233). Mas não é apenas a maneira como se concebe o processo de conhecimento – a epistemologia, portanto – que afasta o pós-estruturalismo do positivismo, é também a maneira como se compreende a realidade a ser conhecida – a ontologia – que afasta ambos. Se, para o positivismo, a realidade é inteligível e possuidora de padrões, ciclos e leis que podem ser “descobertas” por meio do escrutínio do teste empírico, para o pós-estruturalismo, a realidade apresenta-se como dotada de uma complexidade inesgotável de significados que escapa a qualquer tentativa de redução analítica. Daí o recurso, por parte de tal abordagem, a noções como a de “texto” (no sentido de Derrida), a qual, como se verá mais adiante, pretende sublinhar justamente a inesgotabilidade de interpretações ou representações a que a realidade, inclusive a política, dá margem (Derrida, 1988). Saiba mais Por Ontologia, entenda-se o estudo filosófico das propriedades mais gerais do ser ou do real. Por meio de tais críticas ao positivismo, vê-se que as abordagens pós-estruturalistas trazem questionamentos bastante distintos àqueles presentes na disciplina de Relações Internacionais até pelo menos o final dos anos 1980, quando a hegemonia, de uma maneira única e exclusivista de se conceber a pesquisa e a produção na área, começou a ser colocada em xeque. Pode se dizer, 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 10/24 portanto, que o pós-estruturalismo ampliou as possibilidades de reflexão acerca da realidade internacional presentes nas Relações Internacionais (Pereira; Blanco, 2021). Como já dito, a partir do final dos anos 1980 e começo da década seguinte, as contribuições dessa nova filosofia, sobretudo francesa, começou a encontrar eco nas produções de autores e autoras da área, por meio de trabalhos como os de Richard Ashley (1981; 1984), James Der Derian (1987), Michael Shapiro (1988) e R. B. J. Walker (1987; 1995) (Campbell, 2010, p. 226). Inicialmente, tais trabalhos baseavam-se em problematizações de cunho majoritariamente meta- teórico, quer dizer, questionando o próprio processo de construção de conhecimento na área, seus pressupostos e fundamentos implícitos. Um exemplo de tais problematizações é aquela em relação ao caráter “estadocêntrico” das teorias tradicionais, como a realista: “[o pós-estruturalismo começou] questionando como o Estado passou a ser considerado o ator mais importante na política mundial, e como o Estado passou a ser entendido como um ator unitário e racional” (Campbell, 2010). Tratava- se, assim, de desnaturalizar a centralidade teórica do Estado, indagando inclusive por meio de quais práticas estatais o Estado colaborava para manter a visão a respeito de sua importância (Campbell, 2010). Após esse primeiro momento, em que a atenção das abordagens pós-estruturalistas esteve centrada nos pressupostos e fundamentos meta-teóricos da disciplina, outros fenômenos e aspectos da realidade internacional passaram a ser problematizados. Ainda que muito variada, a produção desse novo momento pode ser descrita como possuindo os seguintes elementos: 1) uma preocupação fundamental com a relação entre poder e conhecimento; 2) o emprego de metodologias pós-positivistas, como a desconstrução e a genealogia; 3) um engajamento crítico com o papel do Estado e com questões relacionadas a fronteiras, violência e identidade; e 4) a necessidade resultante de repensar fundamentalmente a relação entre política e ética. (Bleiker, 2007, p. 91) A respeito dos objetos ou aspectos da realidade internacional mais pesquisados nesse segundo momento, há, como exemplos: soberania; segurança; operações de paz e de manutenção da paz; processos de reconstrução pós-bélica; guerra; contra-insurgência; refugiados; política externa e identidade estatal; diplomacia; cidadania; desenvolvimento; fome; relações Norte-Sul globais; economia política e finanças internacionais; fronteiras (Pereira; Blanco, 2021). 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 11/24 TEMA 3 – CONTRIBUIÇÕES DO PÓS-ESTRUTURALISMO ÀS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: A RELAÇÃO ENTRE PODER E CONHECIMENTO E A CRÍTICA AO SUJEITO CARTESIANO Como já se pode notar, as abordagens pós-estruturalistas representaram um vetor importante de pluralização epistemológica e teórico-metodológica para as Relações Internacionais, ao questionar as bases positivistas sobre as quais as escolas hegemônicas da área, como realismo e idealismo, se assentam. Entre asprincipais inovações trazidas por essas novas abordagens, pode se destacar: (I) uma redefinição do papel da teorização, a quem caberia menos a produção de um modelo preditivo do comportamento dos atores internacionais, e mais uma problematização da própria relação entre tal teorização e as relações de poder da qual ela inevitavelmente faz parte; (II) a crítica à maneira tradicional, de matriz cartesiana, de se conceber o sujeito (jargão filosófico para designar a experiência mental do indivíduo ao tentar compreender o mundo que o cerca) e a subjetividade; (III) o papel da linguagem na vida social e política, incluindo aí a política internacional; (IV) o conceito foucaultiano de “discurso”; (V) os conceitos de “texto” e “textualidade”, oriundos da obra de Derrida; (VI) as inovações metodológicas representadas pelas estratégias textuais, pela genealogia e pela análise estética (Pereira; Blanco, 2021). Relativamente à primeira dessas contribuições, a da redefinição do papel da teoria e do ato de teorizar, é preciso antes abordar a noção de “problematização”, expressão utilizada por Michel Foucault para destacar qual seria o objetivo primordial de uma pesquisa que fuja aos moldes positivistas. Enquanto as pesquisas tradicionais – como as que partem de uma base teórico- metodológica realista – concebem a teoria como um modelo ou uma representação que “espelhe” o mais fielmente possível o funcionamento da realidade internacional, procurando inclusive prever o comportamento futuro dos atores internacionais, as pesquisas guiadas pela noção de “problematização” procuram, antes de mais nada, colocar sob análise as próprias perguntas, objetos e pressupostos metodológicos que tradicionalmente embasam os trabalhos em Relações Internacionais. A noção de “problematização” pressupõe, portanto, a reflexão crítica – seja por meio da análise historiográfica ou textual – acerca de como um determinado conjunto de temáticas (científicas, sociais ou políticas) passa a se configurar como um “problema”, quer dizer, como um enunciado sobre a realidade a respeito do qual é preciso refletir e buscar “soluções”. Assim, “ao invés de começar com uma pergunta de pesquisa que identifica os significados dos conceitos e explora as 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 12/24 relações entre eles, [...] uma abordagem partindo da problematização reflete sobre por que problemas particulares emergiram em determinados momentos históricos”. Problematizar aquilo que em geral permanece como um pressuposto indiscutido leva, em Relações Internacionais, a um ganho de reflexividade por parte do analista, que passa a colocar sob o crivo da crítica os próprios instrumentos teóricos da pesquisa: os conceitos (soberania, anarquia, Estado), pressupostos teóricos (o Estado como unidade de análise da realidade internacional) e técnicos (a quantificação do poderio militar, por exemplo). Esse tipo de indagação reflexiva também permite retomar “soluções” e cursos de ação alternativos, muitas vezes bloqueados ou invisibilizados pela linguagem corrente (Pereira; Blanco, 2021). Além desse ganho em matéria de reflexividade na pesquisa, a noção pós-estruturalista de problematização também colabora para jogar luz sobre a (estreita) relação entre conhecimento e poder, relação essa denegada pela concepção positivista de ciência e pesquisa. Para esta última, “o conhecimento deve estar imune à influência do poder”, o que exigiria “a suspensão de valores, interesses e relações de poder na busca de um conhecimento objetivo” (Devetak, 2005, p. 162). Problematizar, ao contrário, leva ao abandono “[da] tradição que permite imaginar que o conhecimento pode existir somente onde as relações de poder estão suspensas e que o conhecimento pode desenvolver-se somente fora de suas injunções, suas demandas e seus interesses” (Foucault, 1977, p. 27). Nessa concepção, poder e conhecimento implicam um ao outro: as relações de poder produzem campos de conhecimento e corpos de especialistas, assim como o conhecimento colabora para criar, manter ou alterar essas mesmas relações de poder. Da física nuclear à medicina, passando pela estatística ou economia, não há sistemas de conhecimento que não possam ser analisados em sua conexão com relações de poder. Outra importante contribuição do pós-estruturalismo à disciplina de Relações Internacionais reside na discussão a respeito das noções de “sujeito” e de “subjetividade”, termos filosóficos bastante antigos que se referem, respectivamente, ao “eu pensante, consciência, espírito ou mente enquanto faculdade cognoscente e princípio fundador do conhecimento” e à “realidade psíquica, emocional e cognitiva do ser humano” (Houaiss, 2009). Fundamental na consolidação da concepção moderna de “sujeito”, a filosofia cartesiana (referência ao filósofo francês René Descartes) argumenta por uma concepção racionalista e universalista de ser humano: dotado de uma essência universal e 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 13/24 atemporal, o ser humano define-se pelo uso metódico do pensamento, quer dizer, pela racionalidade (“penso, logo existo”). A abordagem pós-estruturalista, ao contrário, recusa qualquer atribuição de uma essência universal e atemporal ao “sujeito”, chamando a atenção para o seu caráter radicalmente histórico, ou seja, localizado no espaço e no tempo, e submetido, portanto, às relações de poder de seu contexto: “a crença humanista de que existe uma essência universal do ‘homem’ – um atributo atemporal de todos os seres humanos – é substituída pela visão do sujeito produzido por atos de poder, moldados pelas técnicas e conhecimentos políticos aplicados a ele” (Çalkivik, 2017, p. 5). O viés racionalista da concepção cartesiana e moderna de “sujeito” – reduzindo-o, no limite, a um agente calculador, plenamente consciente de si – também dá lugar a uma ênfase maior às dimensões inconscientes, fluidas e opacas da subjetividade, bem como à sua dimensão emocional e corporal. TEMA 4 – CONTRIBUIÇÕES DO PÓS-ESTRUTURALISMO ÀS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: LINGUAGEM, DISCURSO E TEXTUALIDADE A introdução do pós-estruturalismo nas Relações Internacionais – assim como de outras vertentes ligadas à já comentada “virada reflexiva” dos anos 1980 – como o feminismo e o pós- colonialismo – teve como consequência trazer o tema da “linguagem”, e da relação desta com a realidade internacional, para o centro dos debates na área. Mudança parecida já havia ocorrido em outras disciplinas, como Sociologia, Antropologia e Filosofia, levando a se falar em uma “virada linguística” nas Humanidades em geral (Gomes, 2011). Tal “virada” só foi possível graças à absorção, por parte dessas disciplinas, de avanços teórico-metodológicos oriundos da Linguística e da Semiótica, com destaque para a obra seminal de Ferdinand de Saussure, já mencionada nesta aula. A visão convencional sobre a “linguagem” a define como “qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc.” (Houaiss, 2009). Esses “signos” (as letras e as palavras que compõem este texto, por exemplo) funcionam como representações que evocam objetos, ações e fenômenos: a palavra cavalo evoca, na mente do leitor ou da leitora, a imagem do animal “cavalo”, ainda que este não esteja fisicamente presente. Daí a importância da linguagem para a sociabilidade humana: ela permite que se fale a 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 14/24 respeito daquilo que não está imediatamente presente ou mesmo sobre aquilo que existe apenas na imaginação (a ideia de “nação” ou de “Estado”, por exemplo). Essa função “representacional” da linguagem – a capacidade que ela tem de “simular” ou “evocar” os objetos e as características da realidade– tem sido salientada e analisada pela tradição filosófica ao menos desde os gregos antigos. A novidade trazida pela abordagem pós-estruturalista é a de enxergar a linguagem para além dessa função representacional, ressaltando, em vez disso, o papel dela como produtora de alterações na própria realidade: nomear algo é interferir ativamente na realidade; é, em certo sentido, criar realidade (Gomes, 2011). Muito da realidade internacional, por exemplo, baseia-se em atos de nomeação e renomeação – de atores, situações e fenômenos: expressões como anarquia, soberania, crise humanitária, direitos humanos, segurança internacional, terrorismo etc. funcionam como instrumentos de produção de uma maneira específica de enxergar a realidade e, por essa via, de atuar sobre ela: “a nomeação de objetos no mundo é arbitrária e, além disso, o processo de nomeação produz o objeto nomeado como algo que é separado do continuum das coisas no mundo” (Edkins, 2007, p. 91). A abordagem pós-estruturalista atribui, assim, um papel central à linguagem, como sistema de signos que molda a interpretação sobre a realidade e, dessa forma, a maneira como se age sobre ela: “o que é dito ou pensado depende do que uma língua específica, e o seu modo de ver o mundo, tornam possível dizer ou pensar” (Edkins, 2007). Tanto Foucault quanto Derrida exploram, em suas obras, esse papel ativo da linguagem e dos sistemas de signos em geral, relacionando-os, sobretudo, à distribuição de poder vigente em uma sociedade em dado momento do tempo. Noções como a de discurso, em Foucault, e de texto e textualidade, em Derrida, servem justamente ao objetivo de explorar esse vínculo entre signos, significados e relações de poder, fazendo a crítica da maneira como as hierarquias sócio-políticas são expressas, legitimadas e reforçadas por meio da linguagem. A noção foucaultiana de “discurso” procura descrever conjuntos de enunciados ou afirmações produzidos em contextos institucionais específicos – como o Estado, a prisão, o tribunal ou o hospital psiquiátrico – e que colaboram para a organização das práticas que ali têm lugar – o disciplinamento dos “encarcerados” ou dos “doentes mentais”, por exemplo. Esses enunciados combinam-se de maneira sistemática e previsível, formando sistemas de pensamento e de práticas dotados de coerência interna – o discurso psiquiátrico sobre a “doença mental” ou o discurso judiciário sobre o 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 15/24 “crime” – e definindo os parâmetros ou regras segundo os quais novos enunciados poderão ser produzidos: o discurso científico, por exemplo, estabelece os critérios de acordo com os quais um enunciado poderá ser considerado “científico” e “verdadeiro” ou, ao contrário, “falso” e “pseudocientífico”. Nesse sentido, o discurso “não simplesmente traduz a realidade em linguagem; ao invés disso, o discurso deve ser visto como um sistema no qual se estrutura o modo pelo qual se percebe a realidade” (Mills, 2003, p. 55), determinando o que pode ser falado e discutido, bem como quem é autorizado a falar e discutir: “[o discurso acaba por] construir o tópico de um modo específico e circunscrever os limites de como o mesmo pode ser pensado” (Çalkivik, 2017, p. 7). Em relação à realidade internacional, pode-se analisar, por exemplo, o discurso de segurança internacional em relação ao “terrorismo” ou ainda a formação de um discurso sobre a migração como “problema” ou “crise”. Outra contribuição pós-estruturalista à área de Relações Internacionais vem das noções, oriundas da obra de Derrida, de “texto” e de “textualidade”. O filósofo redefine o significado do termo texto, expandindo-o para além da ideia de escrita ou de literatura (Devetak, 2005) e sugerindo que a realidade se apresenta aos sujeitos como um texto, quer dizer, como uma estrutura de signos cujos significados só podem ser extraídos por meio de um processo interpretativo, tal como ocorre na leitura de um texto escrito (Derrida, 1988). Como dito anteriormente, o pós-estruturalismo considera vão o objetivo positivista de se chegar a uma “verdade objetiva” a respeito da realidade, já que esta se apresenta à maneira de uma linguagem, quer dizer, como um sistema de signos cujo significado não pode ser nunca esgotado, estando, ao contrário, sempre aberto à interpretação e reinterpretação. Nesse sentido, tanto os fenômenos do cenário internacional quanto as teorias utilizadas para explicá-los – idealismo, realismo ou neorrealismo – podem ser tratadas em sua “textualidade”, ou seja, a partir das oposições internas (os já mencionados pares de opostos) que organizam seus significados: guerra/paz; interno/externo; nós/eles; anarquia/soberania; ocidente/oriente; norte/sul etc. (Der Derian, 1989). Não apenas o significado dos fenômenos do cenário internacional e das teorias que os explicam organizam-se a partir de binarismos persistentes, mas, como lembra Derrida, a relação entre os termos que os constituem é, ela própria, assimétrica e hierárquica, baseando-se na dominância de um desses termos sobre o seu par (Der Derian, 1989). A crítica realista ao “liberalismo utópico”, por 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 16/24 exemplo, característica do primeiro debate da disciplina, opõe “guerra” à “paz”, privilegiando a primeira como estado típico da história e do cenário internacional e tratando a segunda como um ideal irrealizável diante das características da disputa de poder entre os Estados. Analisar essas relações internas de significado que estruturam a maneira como se apreende a realidade internacional – a textualidade dela – permite que se vá além dos argumentos explicitamente declarados pelos autores e autoras desses “textos”, além de suas intenções conscientes, salientando, no lugar, a lógica autônoma com base na qual são construídos: “enxergar a textualidade em um discurso é, em parte, reconhecer que um dado texto contém, ou catalisa, um excesso de significados para além do que a autora queria dizer” (Gregory, 1989, p. 18). TEMA 5 – METODOLOGIAS PÓS-ESTRUTURALISTAS PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Além das já elencadas contribuições do pós-estruturalismo à problematização de alguns dos pressupostos subjacentes às teorias tradicionais das Relações Internacionais, autores como Derrida e Foucault também oferecem valiosas sugestões às estratégias metodológicas que pesquisadoras e pesquisadores da área podem empregar em suas pesquisas. Tais estratégias afastam-se, contudo, dos parâmetros positivistas de pesquisa e de ciência, guiando-se, ao contrário, pela tarefa de crítica e de desestabilização da presumida objetividade dos discursos acerca da realidade internacional, tendentes a naturalizar e universalizar características contingentes produzidas por processos históricos particulares. Entre tais estratégias metodológicas pós-estruturalistas, destacam-se as estratégias textuais propostas por Derrida, notadamente a “desconstrução” e a “leitura dupla”; a análise genealógica, presente nas obras finais de Michel Foucault; e a análise estética, elaborada sobretudo a partir dos trabalhos do também francês Jacques Rancière (2004). Como mencionado, Derrida encara o processo de conhecimento da realidade como inescapavelmente interpretativo: não haveria uma realidade objetiva a ser “descoberta” pela pesquisa, mas um conjunto de signos (um “texto”) a terem seus significados permanentemente interpretados. Partindo dessa premissa, sua metodologia só poderia ter uma feição interpretativista, baseando-se na estratégia de explicitar a estrutura de sentido subjacente ao texto, as oposições e 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 17/24 tensões a partir das quais os argumentos do autor ou autora são construídos. Duas estratégias textuaisde análise se destacam aqui: a “desconstrução” e a “leitura dupla”. A desconstrução, como o nome sugere, pretende ultrapassar os argumentos explícitos apresentados no texto ou mesmo as intenções declaradas do autor, buscando, em vez disso, a estrutura profunda sobre a qual tais argumentos e intenções se sustentam: tal estrutura baseia-se sobretudo em oposições binárias, construídas de maneira hierárquica. Como afirma Devetak, “um dos dois termos da oposição é [sempre] privilegiado sobre o outro. Este termo privilegiado supostamente conota uma presença, propriedade, plenitude, pureza ou identidade que falta ao outro (por exemplo, soberania em oposição à anarquia)” (Devetak, 2005, p. 168). Dessa forma, a desconstrução é “um modo geral de desestabilizar conceitos e oposições conceituais que são de outra forma tidos como estáveis” (Devetak, 1995, p. 41). A desconstrução busca evidenciar que essas oposições “são insustentáveis, pois cada termo sempre já depende do outro. De fato, o termo valorizado ganha seu privilégio apenas ao negar sua dependência do termo subordinado” (Devetak, 1995). Ao construir um argumento a partir da oposição, por exemplo, entre soberania e anarquia, realizar-se-á o esforço retórico de apagar as zonas de intersecção entre os dois conceitos, tratando-os como mutuamente excludentes. A descontrução procura justamente desfazer tal esforço retórico, mostrando como tais noções se interpenetram: a soberania não exclui totalmente a anarquia; nem está está destituída de características da primeira. Uma segunta estratégia de análise textual é a chamada leitura dupla, em que são confrontados dois momentos interpretativos distintos: um primeiro, que segue a interpretação dominante a respeito do texto, subscrevendo a intenção ou argumento explícito do autor ou autora e preocupando-se em demonstrar como um “texto, discurso ou instituição atinge o efeito de estabilidade” (Devetak, 2005, p. 169). Dito de outra forma, essa primeira leitura se preocupa em relatar fielmente “a história dominante ao basear-se nas mesmas premissas fundamentais e repetindo etapas convencionais do argumento” (Devetak, 2005). A segunda leitura, ao contrário, “desestabiliza aplicando pressão naqueles pontos de instabilidade dentro de um texto, discurso ou instituição. Ela expõe as tensões internas e como elas são (incompletamente) encobertas ou expelidas”, a fim de manter a ilusão de coerência interna e unidade do texto” (Devetak, 2005). Assim, o objetivo da leitura dupla é enfatizar a tensão existente entre esses dois momentos interpretativos, expondo como qualquer “história depende da repressão de tensões internas de modo a produzir um efeito estável de homogeneidade e continuidade” (Devetak, 2005, p. 170). 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 18/24 A desconstrução e a leitura dupla são técnicas analíticas frequentemente empregadas nos trabalhos pós-estruturalistas em Relações Internacionais. Rob Walker (1995), em seu livro Inside/outside: international relations as political theory, apresenta uma análise sobre o campo teórico das Relações Internacionais partindo dessa lógica derridiana do contraponto. Segundo Walker, as teorias das Relações Internacionais podem ser compreendidas em sua totalidade – e especificidades – a partir da metáfora “dentro/fora” (inside/outsider). Essa metáfora faz referência aos âmbitos interno e externo dos Estados – supondo-se que estes são qualitativamente diferentes um do outro. Ela é, consequentemente, a dicotomia fundante do “internacional” – concebido em relação ao doméstico/nacional. Para realizar a sua análise, Walker faz a leitura das teorias tradicionais da disciplina, considerando os seus principais pressupostos. Essa leitura é seguida da apresentação sobre como a dicotomia fundadora do campo de estudos está presente em conceitos centrais às teorias tradicionais. Assim, o internacional é construído semântica e politicamente por meio de uma delineação dicotômica do espaço (dentro e fora), apoiando-se nas categorias de ausência/presença – por exemplo, ausência de soberania na esfera internacional e presença de soberania no âmbito doméstico. Nesse sentido, a noção de internacional está assentada em redes de exclusão e inclusão, e as relações internacionais só podem ser compreendidas a partir da observação dos conceitos/fenômenos/atores incluídos e dos conceitos/fenômenos/atores excluídos. Outra estratégia metodológica oriunda das problematizações pós-estruturalistas é a genealogia, vinculada à obra de Michel Foucault. Esse metódo é historicista, ou seja, faz uso da história a fim de elucidar a configuração do mundo presente, tendo sido aplicado pelo autor para compreender o surgimento de temáticas bastante diversas, como a do surgimento do discurso moderno sobre sexualidade ou do entendimento presente sobre a criminalidade e sobre a doença mental. Essa forma bastante particular de historiografia dá atenção sobretudo às relações entre poder e conhecimento, procurando identificar a formação de discursos em torno de certas instituições e populações, bem como os processos concomitantes de exclusão e encobrimento de maneiras de fazer e pensar alternativas, esquecidas pela historiografia dominante e pela concepção teleológica de história que lhe serve como base. Por concepção teleológica, entenda-se a crença de que a história seria portadora de uma lógica interna unificadora ou de que caminharia inexoravelmente em direção a um certo fim (o progresso da razão, por exemplo). A genealogia, ao contrário, enfatiza as 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 19/24 descontinuidades, as contradições entre diferentes forças históricas, assim como os acidentes e as casualidades que são apagadas pelo olhar historiográfico positivista. Considerando a abordagem pós-estruturalisna das Relações Internacionais, o método genealógico pode ser observado no trabalho desenvolvido por Cynthia Weber (1995) na obra “Simulating sovereignty: intervention, the state and symbolic exchange”. Ao realizar uma genealogia do conceito de soberania, Weber analisa o seu processo de conceitualização dentro da disciplina. Weber evidencia que, por mais que a definição da soberania envolva múltiplas discussões teóricas e disputas políticas, nas Relações Internacionais, esse conceito é, muitas vezes, tomado como “uma questão resolvida” ou como um dado – a soberania é percebida como parte da essência do Estado. Esse tratamento ao conceito, que se propõe objetivo, resulta em uma “cegueira analítica” quanto à sua historicidade e vinculação com as relações de poder estabelecidas no campo. Nesse sentido, o objetivo da autora não é escolher qual é a melhor definição para a soberania, mas sim entender como um determinado enquadramento ao conceito foi sendo naturalizado na área e quais as definições alternativas foram sendo esquecidas/marginalizadas. Uma última estratégia metodológica legada pelas abordagens pós-estruturalistas é a da análise da realidade internacional a partir da estética. Na base dessa estratégia metodológica está a ideia, oriunda de Rancière, de que haveria uma afinidade profunda entre a política e a arte, já que ambas trabalhariam em torno do que o autor chama de partilha do sensível, ou seja, a organização do que os nossos sentidos são capazes de perceber e apreender (Ranciére, 2004). Pós-estruturalistas que se utilizam desse modo de problematização acerca da política e da realidade internacional “fazem de imagens, narrativas, sons, literatura, arte visual, cinema, artes performativas, centrais às suas investigações” (Çalkivik, 2017, p. 15). O emprego da estética nas Relações Internacionais tende a ser menos frequente do que as técnicas analíticas anteriormente mencionadas. Ainda assim, esse tipo de abordagem reverberou entre os autores pós-estruturalistas que buscam compreendera política internacional através das imagens da mídia, da televisão e do cinema. Esse tipo de leitura está presente em Cinematic Geopolitics, de autoria de Michael Shapiro (2009). Para Shapiro, o cinema é uma estética exemplar, cujo objetivo é inspirar sensações e sentimentos em uma audiência por meio da imagem. Por conseguinte, o estudo sobre se e como a estética do cinema é empregada politicamente e, mais importante, sobre quais são os objetivos por trás da sua utilização é fundamental. 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 20/24 Nesse sentido, Shapiro se direciona a mapear, por meio do cinema, como a “violenta cartografia global contemporânea” possui incentivos epistêmicos. As cartografias violentas se constituem como uma articulação de imaginários e antagonismos geográficos, a partir de modelos de identidade/diferença. Assim, Shapiro relaciona a estética do cinema à construção de imaginários que delineiam certos espaços mais passíveis da incidência da violência/guerra ou ainda como o “outro”/inimigo” é representado. Isso é feito para problematizar como a estética serve às relações de poder e ao processo de contrução de conjuntos de verdades. NA PRÁTICA Richard Ashley, importante autor do pós-estruturalismo em Relações Internacionais, dá um bom exemplo de como utilizar a estratégia textual de desconstrução, a fim de analisar obras clássicas da área. Nesse caso, a análise recai sobre a obra O Homem, o Estado e a Guerra, do neorrealista Kenneth Waltz. Primeiramente, Ashley (I) detecta a oposição binária sobre a qual o argumento de Waltz é construído: a oposição entre “homem” e “guerra”. Nesse caso, o significado de “homem” é construído como força racional que exerce controle sobre o rumo da história, enquanto seu inverso, a “guerra”, descreveria a porção dessa história que escapa ao controle desse “homem”, sendo por isso anárquica, violenta e aleatória ou, em uma palavra, “irracional”. Ashley mostra assim que (II) existe uma relação hierárquica entre os termos, em que o subordinado (“guerra”) é definido apenas pela ausência das características definidoras do termo dominante (“homem”) (Ashley, 1989). Tendo esse exemplo de “desconstrução” em mente, procure agora selecionar um texto clássico da área, preferencialmente das tradições realista ou liberal, executando então esses mesmo dois passos ilustrados pela análise de Ashley. FINALIZANDO Nesta aula, foram mostradas algumas das principais contribuições do pós-estruturalismo à área de Relações Internacionais, principalmente por meio da problematização das premissas positivistas nas quais as teorias hegemônicas (realismo, liberalismo, neorrealismo) se baseavam. Foram apresentadas as bases teóricas dessa abordagem, como o estruturalismo, bem como as inovações metodológicas presentes em estratégias textuais como a desconstrução e historiográficas como a genealogia. Tais inovações, ainda que criticadas como muito heterodoxas, foram responsáveis por 27/08/2021 UNINTER - TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS https://univirtus.uninter.com/ava/web/roa/ 21/24 ampliar as possibilidades de pesquisa à disposição de pesquisadoras e pesquisadores da área, ao salientar a importância da relação entre linguagem e poder para o entendimento da realidade internacional. REFERÊNCIAS Ashley, R. Political Realism and Human Interests. International Studies Quarterly, v. 25, n. 2, p. 204–236, 1981. _____. The Poverty of Neorealism. International Organization, v. 38, n. 2, p. 225–286, 1984. _____. Living on Border Lines: Man, Poststructuralism, and War. In: DER DERIAN, J.; SHAPIRO, M. (Ed.). International/Intertextual Relations: Postmodern Readings of World Politics. New York: Lexington Books, 1989. Bleiker, R. Postmodernism. In: Devetak, R.; Burke, A.; George, J. (Ed.). An Introduction to International Relations: Australian Perspectives. 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