Prévia do material em texto
Secreção fisiológica x Corrimento vaginal Anatomicamente, o trato genital feminino é constituído por uma sucessão de cavidades, que se comunicam com o exterior por meio da fenda vulvar. Assim, diariamente, ocorre a invasão da vagina por grande variedade de microrganismos. Diferentes formas de atividade sexual, toque não sexual, contaminação do reto, higienização e exposição ao vestuário e ao ambiente são fatores que resultam na deposição de microrganismos na região vulvovaginal. Além disso, níveis subinfecciosos de diferentes microrganismos colonizam a vagina de mulheres saudáveis. A não ocorrência de processos infecciosos e seus sintomas clínicos em consequência dessa continua presença de baixas concentrações de microrganismos potencialmente patogênicos ocorre devido à atuação da flora microbiana endógena protetora e dos mecanismos de defesa locais. Ecossistema vaginal As primeiras descrições sobre a microflora vaginal foram realizadas por Albert Sigmund Gustav Doderlein, que estudou o conteúdo vaginal de mulheres no puerpério e observou, ao microscópio, a presença de bacilos longos (posteriormente denominados Lactobacillus) nas mulheres saudáveis e a ausência deles nas mulheres com infecção puerperal. Sem dúvida, essa foi a primeira caracterização da diferença entre o estado de normalidade e de não normalidade da microbiota vaginal. Paulatinamente, o desenvolvimento das técnicas laboratoriais, particularmente de microscopia e cultura, foi possibilitando a identificação de novos componentes da flora vaginal; diferentes meios de cultura revelaram a diversidade de microrganismos aeróbios, anaeróbios e microaerófilos como componentes da microflora do trato reprodutivo. Ainda, por meio de métodos de cultura, a análise de espécimes obtidos sequencialmente durante o ciclo menstrual mostrou significativas alterações qualitativas e quantitativas nas concentrações de microrganismos aeróbios e anaeróbios, sugerindo ser a flora vaginal um ecossistema dinâmico. Foram também apontadas diferenças nos nichos ecológicos microbianos da cérvix e da vagina. Microbioma vaginal O microbioma é a totalidade de micróbios, comensais, simbióticos e patogênicos, seus elementos genéticos (genoma) e interações ambientais com determinado ambiente. Estudos já demonstraram que o microbioma vaginal é, na grande maioria das vezes, dominado por uma ou duas espécies de Lactobacillus, sendo os mais frequentes Lactobacillus inner, Lactobacillus crispatus, Lactobacillus gasseri ou Lactobacillus jensenii. Até o momento, a espécie de Lactobacillus identificada com maior frequência tem sido a inners, seguida pelas espécies crispatus, gasseri e jensenii (Pavlova et al., 2002). Entretanto, em algumas mulheres assintomáticas e saudáveis, o predomínio no meio vaginal não é dos Lactobacillus, mas sim de outras bactérias, incluindo espécies de Prevotella, Gardnerella, Atopobium e Megasphaera. Ácido láctico e pH Saúde da mulher Por: ANA CLARA MELO Uma importante influência na composição microbiana da vagina é o pH, que é dependente do estado hormonal da mulher. O estrogênio estimula o depósito de glicogênio nas células epiteliais vaginais, que posteriormente é degradado em glicose e ácido lático, por ação dos Lactobacillus. Isso resulta em um pH vaginal igual ou menor a 4,5 na maioria das mulheres assintomáticas na idade reprodutiva, com ciclos menstruais normais. Os Lactobacillus possuem vantagem seletiva e constituem a espécie microbiana mais frequente sob essas condições fisiológicas ácidas. Estima- se que existam aproximadamente 108 -109 Lactobacillus na vagina de mulheres saudáveis. Outros microrganismos, como Candida albicans e Streptococcus sp. aeróbio, também são tolerantes ao pH ácido. Em uma minoria de mulheres que não possuem Lactobacillus, outras bactérias (como Atopobium, Megasphaera, Leptotrichia) podem estar presentes e produzem ácido lático. A segunda fonte produtora de ácido lático são as células da mucosa vaginal de mulheres em idade reprodutiva, por meio de seu metabolismo, particularmente nas células da camada intermediária. O ácido lático é difundido para fora das células e acumulado no lúmen vaginal. Tal produção é estrogênio-dependente e explica, ao lado da diminuição da população de Lactobacillus, a elevação do pH em mulheres na pós-menopausa que não estejam recebendo terapia hormonal. A produção de ácido lático, peróxido de hidrogênio, bacteriocinas e outras substâncias microbicidas pelos Lactobacillus sp. inibe o crescimento de patógenos e outros microrganismos oportunistas. Estudos recentes têm sugerido que o ácido lático é componente ativo da defesa imune inata no trato genital, promovendo ativação de linfócitos auxiliares da linhagem TH17, que atua contra microrganismos extracelulares. Biofilmes são agregados de bactérias formados por colônias de microrganismos que aderem entre si e recobrem uma superfície sólida ou recobrem as suas próprias colônias. Os biofilmes já foram identificados nas superfícies das células vaginais, têm sido mais estudados em mulheres com vaginose bacteriana (VB) e, provavelmente, se associam aos episódios de recorrências (Swidsinski et al., 2008). É provável que os Lactobacillus constituintes da flora fisiológica também possam ter a capacidade de produzir biofilmes, que os recobririam e manteriam sua estabilidade no meio vaginal. Entretanto, tal hipótese ainda não foi estudada. Importante ressaltar que a flora vaginal sofre variações em sua composição na dependência de fatores endógenos ou exógenos. As diferentes fases do ciclo menstrual, gestação, uso de contraceptivos, frequência de intercurso sexual, uso de duchas ou produtos desodorantes, antibióticos ou outras medicações com propriedades imunossupressivas podem alterar as condições endovaginais, aumentando ou diminuindo as vantagens seletivas para microrganismos específicos. A ação do intercurso sexual desprotegido sobre a microflora vaginal ainda é controversa; um estudo relatou a perda de Lactobacillus e outro não demonstrou efeito sobre os Lactobacillus, mas, sim, elevação dos níveis de Escherichia coli e de bacilos Gram-negativos facultativos (DiGirolamo et al., 1992). As interações entre o microbioma vaginal, os mecanismos de defesa locais e os agentes potencialmente patogênicos podem resultar nos estados de saúde vaginal ou em processos infecciosos e/ou inflamatórios, que tantos problemas causam às pacientes. Secreção vaginal A secreção vaginal fisiológica é variável de mulher para mulher, podendo sofrer influências hormonais, orgânicas e psíquicas. A secreção fisiológica constitui- se por secreção sebácea, esfoliação vaginal e cervical e secreção das glândulas de Bartholin e Skene, com predomínio de aeróbios e menos de 1% de anaeróbios. O aspecto da secreção pode variar conforme a fase do ciclo menstrual e a presença de glicogênio, intimamente relacionada à concentração de estrogênio, e com a utilização de hormônios. A coloração normal da mucosa vaginal da mulher sadia apresenta aspecto rosa-pálido, tornando-se mais clara e adelgaçada em mulheres pós- menopáusicas e “vinhosa” durante a gestação. O pH normal é abaixo de 4,5 e, na microscopia, observa-se menos de um leucócito por campo e, eventualmente, algumas clue cells. Características: assintomática e predomina a flora aeróbica em relação a anaeróbica (10:1). Tem consistência flocular, cor branca, acumula-se no fundo de saco posterior. Função: os microrganismos produzem ácido lático e peróxido de hidrogênio que inibem o crescimento de bactérias oportunistas; produz leucócitos inibidores de protease que protegem a parede vaginal de agentes inflamatórios e infecciosos. É importanteconsiderar que nem sempre o fluxo genital é sinônimo de patologia e nem toda a patologia é infecciosa. Cerca de 5 a 10% das mulheres apresentam mucorreia, definida como secreção vaginal acima do normal (exame especular mostrando ausência de inflamação vaginal e áreas de epitélio endocervical secretando muco claro e límpido). O exame microscópico a fresco da secreção vaginal revela células sem alterações inflamatórias, número normal de leucócitos e abundantes lactobacilos, estando o pH vaginal na normalidade. O tratamento da mucorreia consiste em assegurar à paciente que as secreções vaginais são normais, sendo importante explicar-lhe a fisiologia normal da vagina e as suas variações relacionadas à idade e às variações hormonais. Corrimento Considera-se corrimento ou leucorreia a alteração das características da secreção normal, que tem o aspecto de “catarro fluido” ou de “clara de ovo”. A secreção aumenta sob ação estrogênica (pico ovulatório e terapêutica hormonal). Não se esquecer que é fisiológica a secreção das glândulas vestibulares maiores (Bartholin) durante a excitação sexual. Nos corrimentos patológicos, suas características variam conforme a etiologia: Corrimento aquoso, abundante, como se fosse o descrito como normal, mas em grande quantidade (hidrorreia), pode significar varicocele pélvica, retroversão uterina fixa ou uso de pílulas anticoncepcionais; Amarelo, espesso, fétido e espumoso, a causa costuma ser tricomoníase e/ou blenorragia; Corrimento branco, em grumos, como nata de leite ou coco ralado, indica a presença de fungos tipo Candida; Corrimento com aspecto de “água de carne” é próprio das neoplasias e das infecções graves. O prurido, a ardência e o odor fétido sempre acompanham o corrimento patológico. Além do exame direto, a fresco, da secreção, a bacterioscopia e a cultura em meios apropriados podem ser necessárias para o diagnóstico etiológico.