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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL THIAGO NUNES DA SILVA IMPACTOS DO PÓS-GOLPE NA POLÍTICA HABITACIONAL NO GOVERNO TEMER JOÃO PESSOA 2019 THIAGO NUNES DA SILVA IMPACTOS DO PÓS-GOLPE NA POLÍTICA HABITACIONAL NO GOVERNO TEMER Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, apresentado ao Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Bacharel em Serviço Social. Orientadora: Prof.ª Dra. Edna Tânia Ferreira da Silva. JOÃO PESSOA 2019 THIAGO NUNES DA SILVA IMPACTOS DO PÓS-GOLPE NA POLÍTICA HABITACIONAL NO GOVERNO TEMER Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, apresentado ao Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Bacharel em Serviço Social. Data de aprovação: ___/___/______. BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________ Profª. Drª. Edna Tania Ferreira da Silva - UFPB Orientadora ___________________________________________________ Me. Dalliana Ferreira Brito Grisi Examinadora ___________________________________________________ Me. Ingridy Lammonikelly da Silva Lima Examinadora A Deus, meu apoio e amparo nas dificuldades. A minha mãe, pelo apoio e luta pela minha educação, pelo cuidado e preocupação que tornou possível este momento. Ao meu pai, por se dedicar a me proporcionar sempre o melhor. AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, pelo dom da vida e pela capacidade de compreender e discernir sobre a realidade em que estamos inseridos. A minha mãe, Fátima Nunes, a quem sempre deverei meus estudos e vivências, respeito e caráter, por sua dedicação e edificação do meu ser. Ao meu pai, Antônio Pereira, pelas condições geradas e apoio dado, onde sem seu apoio não conseguiria ter concluído isto, me fazendo perceber os privilégios que tenho e conhecer o suor necessário para adquiri-los. A minha noiva, Wanessa Santos, que me apoiou e me deu forças para continuar, me incentivou e despertou o potencial que eu mesmo não conhecia. A minha orientadora, Drª Edna Tânia, pelo conhecimento transmitido e pela dedicação no ensino, possibilitando este feito. As minhas turmas de Serviço Social, a original com qual ingressei e me desenvolvi e a final, com quem criei laços e concluí o curso. A toda equipe do Trabalho Social da SEMHAB, que me acolheu e foi atuante na minha formação profissional. A todos os professores da UFPB que estiveram diretamente ligados a minha formação, por todo o conhecimento transmitido. Agradeço a todos que direta ou indiretamente se fizeram presente na conclusão da minha jornada acadêmica, que me impulsionaram e incentivaram, seja com apoios ou desafios, cada participação me fez ser o que sou hoje e auxiliaram na conclusão deste trabalho. RESUMO O presente estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica sobre a política habitacional no Brasil, com foco no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Foi construído a partir da experiência no Estágio Supervisionado I e II vivenciados na Secretaria Municipal de Habitação Social (SEMHAB), do município de João Pessoa - PB, responsável pela execução do Trabalho Técnico Social (TTS) com as famílias beneficiárias. Nesse contexto profissional e institucional e em contato com o desenvolvimento do PMCMV foi observado que enquanto política de governo, embora seja desde a sua concepção uma medida anticrise, desenvolveu e popularizou a política habitacional no governo, garantido o atendimento de necessidades sociais. Desse modo, as conjunturas de retomada neoliberal no segundo semestre de 2016, aliados com a crise política e econômica do governo Dilma, acabaram por depor a presidente em torno do impeachment. Ao assumir o governo, seu vice Michel Temer (2016-2018), acelerou o desenvolvimento e a consolidação de uma política econômica de ajuste fiscal, e cortou orçamento em diversas áreas de interesse social, inclusive a habitação. O Estudo realizado, que discute a política habitacional e o direito à habitação no Brasil, teve como objetivo analisar os impactos na atual política habitacional durante o governo Temer, cuja condução diminuiu os investimentos financeiros e os subsídios para a área, colocando em patamares mais elevados os riscos de acesso à moradia para as famílias de baixa renda e a precarização do PMCMV que há duas décadas se constitui na única política habitacional no Estado brasileiro. Este estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, para construir a fundamentação teórica, utilizando conceitos, variáveis e aspectos históricos analisados na literatura clássica e contemporânea, complementados com o levantamento da produção de textos, livros, dissertações, além da identificação de documentos e sistematização de dados secundários resultante de investigações realizadas em torno do PMCMV nos Estados brasileiros, que foram agrupados e analisados em torno do objeto construído. Desse modo, apresenta uma abordagem qualitativa, sendo a mesma complementada pela dimensão quantitativa. O Estudo ressalta os avanços no tocante à legislação social na Constituição Federal do Brasil de 1988 e leis complementares. Considera que o PMCMV foi um investimento importante na política habitacional, com subsídios para a classe de menor renda. No entanto, o governo vem impondo uma agenda de orientação neoliberal de caráter radical, cuja inclinação é transformar o Estado brasileiro e os princípios da constituição de 1988. Ao aplicar celeridade às reformas, impossibilita ao Estado o cumprimento da garantia dos direitos sociais, atingindo o PMCMV. Palavras-chave: Programa Minha Casa Minha Vida, Temer, Precarização, Política da Habitação. ABSTRACT The present study consists of a bibliographic research about the housing policy in Brazil, focusing on the Minha Casa Minha Vida Program (PMCMV). It was built from the experience in Secretaria Municipal de Habitação Social (SEMHAB), in the municipality of João Pessoa - PB, responsible for implementing the Social Technical Work (TTS) with the beneficiary families. In this professional and institutional context and in contact with the development of the PMCMV, it was observed that as a government policy, although it was an anti-crisis measure from its conception, it developed and popularized the housing policy in the PT government, guaranteeing the fulfillment of social needs. Thus, the conjunctures of neoliberal resumption in the second half of 2016, allied with the political and economic crisis of the Dilma government, ended up deposing the president around impeachment. By assuming the government, her vice Michel Temer (2016-2018), accelerated the development and consolidation of an economic policy of fiscal adjustment, where the budget was cut in several areas of social interest, including housing. The study, which discusses the housing policy and the right to housing in Brazil, aimed to analyze the impacts of the current housing policy during the Temer government, which reduced financial investments and subsidies to the area, placing the risks of access to housing higher for low-income families and precarizing the PMCMV, which for two decades constituted the only housing policy in the Brazilian State. This study was developed through a bibliographic research, to build the theoretical foundation, using concepts, variables and historical aspects analyzed in the classic and contemporary literature, complemented withthe survey of the production of texts, books, dissertations, besides document identification and systematization of secondary data resulted from investigations carried out around the PMCMV in the Brazilian states, which were grouped and analyzed around the constructed object. In this way, it presents a qualitative approach, being complemented by the quantitative dimension. The study identified advances in social legislation in the 1988 Brazilian Federal Constitution and complementary laws. It considers that the PMCMV was an important investment in the housing policy, with subsidies for the lower income class. However, the government has been imposing a radical neoliberal orientation agenda, whose inclination is to transform the Brazilian state and the principles of the 1988 constitution. By applying speed to reforms, it makes it impossible for the State to fulfill the guarantee of social rights, PMCMV. Keywords: Minha Casa Minha Vida Program. Temer. Precariousness. Housing Policy. LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Adequação do tamanho da moradia segundo percepção dos moradores, por tamanho da família, 2013. ………………………………………………………...... 71 Tabela 2 - Avaliação do atendimento por serviços na moradia atual, em comparação com a anterior. Serviços cujo atendimento melhorou, 2013. …………………….......72 Tabela 3 - Avaliação do atendimento por serviços na moradia atual, em comparação com a anterior. Serviços cujo atendimento piorou, 2013. ………………………........72 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Operações de créditos habitacionais .....................................................60 Gráfico 2 - Desenvolvimento da pobreza no Brasil...................................................65 LISTA DE SIGLAS ANSUR Articulação Nacional do Solo Urbano BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BNH Banco Nacional de Habitação CAPS Caixas de Aposentadoria e Pensões CEF Caixa Econômica Federal CFESS Conselho Federal de Serviço Social COHAB Campanhas de Habitação EO Entidades Organizadoras FAR Fundo de Arrendamento Residencial FCP Fundação Casa Popular FDS Fundo de Desenvolvimento Social FGHab Fundo Garantidor da Habitação Popular FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviço FNA Federação Nacional dos Arquitetos FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social FNRU Fórum Nacional da Reforma Urbana HBB Programa Habitar Brasil IAP Institutos de Aposentadoria e Pensão IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INOCOOP Institutos de Orientação às Cooperativas Habitacionais MNRU Movimento Nacional de Reforma Urbana MTST Movimento dos Trabalhadores Sem Teto ONU Organização das Nações Unidas PAC Programa de Aceleração do Crescimento PAIH Programa de Ação Imediata para a Habitação PASEP Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público PEHP Programa Especial de Habitação Popular PEP Programa Empresário Popular PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais PIS Programa Integração Social PlanHab Plano Nacional de Habitação PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida PNDU Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano PNH Plano Nacional de Habitação PNH Política Nacional de Habitação PNHR Programa Nacional de Habitação Rural PNHU Programa Nacional de Habitação Urbana SBPE Sistema Brasileiro de Poupanças e Empréstimos SFH Sistema Financeiro de Habitação SNDU Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano SNHIS Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social SNH Sistema Nacional de Habitação TTS Trabalho Técnico Social SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 - QUESTÃO URBANA E QUESTÃO SOCIAL NO CAPITALISMO ............... 15 1.1- A formação do espaço urbano e a questão da moradia: uma análise histórica ............. 15 1.2- A questão urbana na contemporaneidade .................................................................... 28 CAPÍTULO 2 - A POLÍTICA HABITACIONAL NO BRASIL ................................................ 36 2.1 - A política social da habitação nos governos do Brasil .................................................. 36 2.2 - A reforma urbana e o direito à moradia ........................................................................ 44 2.3 - Os governos Lula-Dilma e a política urbana ................................................................ 50 CAPÍTULO 3 - A EXPANSÃO DA FINANCEIRIZAÇÃO DA MORADIA NO BRASIL ......... 57 3.1 - Antecedentes: a política habitacional nos governos Lula-Dilma e o PMCMV ............... 57 3.2 - A política neoliberal do governo Temer e a progressiva destruição do acesso à moradia para os pobres ..................................................................................................................... 64 3.3 - Aspectos que configuram a precarização do PMCMV pelo estado brasileiro ............... 68 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 82 12 INTRODUÇÃO O presente estudo é resultado da vivência do Estágio Supervisionado I e II na Secretaria Municipal de Habitação Social (SEMHAB), do município de João Pessoa - PB, no setor social, responsável pela execução do Trabalho Técnico Social (TTS) com as famílias beneficiárias do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). O período vivenciado junto a SEMHAB possibilitou o acompanhamento da equipe do Trabalho Social no processo da execução do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) no município de João Pessoa-PB, assim como a aproximação a realidade dos beneficiários do Programa. A experiência no processo de formação, realizada na SEMHAB, permitiu conhecer as requisições e a intervenção profissional do Serviço Social na política da habitação, que no âmbito da profissão e o seu desenvolvimento acompanha a trajetória da política habitacional nos governos no Brasil, conformando uma instrumentalidade da profissão e suas especificidades nas políticas setoriais. Nesse contexto profissional e institucional e em contato com o desenvolvimento do PMCMV foi observado que enquanto política de governo, embora seja desde a sua concepção uma medida anticrise, desenvolveu e popularizou a política habitacional no governo do PT, garantido o atendimento de necessidades sociais. Desse modo, as conjunturas de retomada neoliberal no segundo semestre de 2016, aliados com a crise política e econômica do governo Dilma, acabaram por depor a presidente pela articulação golpista em torno do impeachment. Ao assumir o governo, seu vice Michel Temer (2016-2018), teve-se início o desenvolvimento e a consolidação de uma política econômica de ajuste fiscal à financeirização, onde se cortou orçamento em diversas áreas de interesse social, inclusive a habitação. A partir dessas observações preliminares e questionamentos foi elaborada uma hipótese que constituiu a linha de direção do estudo, qual seja: com a política de ajustes do governo Temer um novo ciclo se abre para o PMCMV, que mesmo tendo continuidade enquanto política de governo, a condução irá precarizar o acesso à habitação para as famílias de baixa renda. Assim sendo, a problemática foi formulada e discutida neste estudo por meio de pesquisa com dados secundários publicizados. 13 O Estudo realizado teve como objetivo analisar os impactos da atual política habitacional, o PMCMV, durante o governo Temer, cuja condução diminuiu os investimentos financeiros e os subsídios para a área, colocando em patamares mais elevados os riscos deacesso à moradia para as famílias de baixa renda e a precarização do PMCMV que há duas décadas se constitui na única política habitacional no Estado brasileiro. Desse modo, o estudo foi conduzido por meio de uma análise crítica sobre as condições de precarização da política habitacional agravadas pela política neoliberal do governo Temer, através da redução do investimento em políticas sociais e ataques aos trabalhadores, causando um agravamento no déficit habitacional e perda de investimento no PMCMV. Este estudo contempla as tendências de desmonte social do governo, com base de comparação aos governos anteriores com foco no governo petista na qual se realizou um maior desenvolvimento dessa política e apontar as mudanças exercidas por Temer. Este estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, para construir a fundamentação teórica, utilizando conceitos, variáveis e aspectos históricos analisados na literatura clássica e contemporânea, complementados com o levantamento da produção de textos, livros, dissertações, além da identificação de documentos e sistematização de dados secundários resultante de investigações realizadas em torno do PMCMV nos Estados brasileiros, que foram agrupados e analisados em torno do objeto construído. Desse modo, apresenta uma abordagem qualitativa, sendo a mesma complementada pela dimensão quantitativa. Nesse cenário, ressalta-se a relevância da temática, pois dela emerge a importante discussão sobre o direito social à habitação e como vem sendo o investimento do Estado na política e seus rebatimentos para a população de baixa renda. Desse modo, este estudo foi estruturado em três capítulos apresentados da seguinte forma: No primeiro capítulo, discute-se a questão urbana e a questão habitacional no movimento mais universal do capital em sua relação com a cidade, compreendendo o desenvolvimento do espaço urbano e suas contradições, intrinsecamente relacionadas à divisão social do trabalho, assim como o desenvolvimento das forças produtivas. Entende-se que a moradia é indissociável do fenômeno urbano na 14 sociedade capitalista em seus processos de acumulação e da pauperização da classe trabalhadora. No segundo capítulo, analisaram-se o desenvolvimento da política habitacional nos governos brasileiro para compreender a ação do Estado Brasileiro, destacando à formulação da política habitacional, necessárias para o entendimento das demandas habitacionais. Deu-se enfoque ao importante momento histórico da Reforma Urbana que trouxe avanços significativos no que diz respeito ao marco legal da Política Nacional de Habitação. No terceiro capítulo, partindo da compreensão adquirida dos capítulos 1 e 2, procede-se, com maior foco, ao objeto, caracterizando o PMCMV e analisando o desenvolvimento da política habitacional no fim do governo petista, trazendo o entendimento da conjuntura “neodesenvolvimentista”, seguindo para a análise da “readequação” neoliberal praticada por Temer e a desestruturação da política social. Por fim, seguem as considerações finais e as referências bibliográficas. 15 CAPÍTULO 1 - QUESTÃO URBANA E QUESTÃO SOCIAL NO CAPITALISMO 1.1 - A formação do espaço urbano e a questão da moradia: uma análise histórica Ao discutir a política habitacional para a classe trabalhadora, enquanto uma necessidade e um direito humano, referencia-se neste estudo o amplo debate sobre o urbano, situando o significado sócio histórico e os seus desdobramentos enquanto expressão da “questão social” na particularidade urbana. Entende-se que não são fenômenos recentes e o seu desenvolvimento segue a movimentação do processo de acumulação do capital, as configurações da política social assumida pelo Estado e as lutas sociais. Contudo, analisar o movimento mais universal do capital em sua relação com a cidade, exige a compreensão do desenvolvimento do espaço urbano e suas contradições, intrinsecamente relacionadas a divisão social do trabalho, assim como o desenvolvimento das forças produtivas e a exploração do trabalho, a questão agrária, a propriedade privada, a mercadoria, entre outros. Ainda que a existência das cidades preceda o capitalismo (MARICATO, 2015), ela se desenvolve pela ação do capital e sua urbanização. Assim como o desenvolvimento das condições de empobrecimento e precarização de vida da classe trabalhadora. Desse modo, enquanto processo histórico, nos séculos XVIII e XIX, desenvolveu-se o incremento do capitalismo industrial e a eclosão do fenômeno urbano que alterou o modo de vida da classe trabalhadora e as instituições sociais. Nesse período, verificou-se uma crescente desigualdade e pauperização dos trabalhadores em diferentes contextos que vão marcar a complexidade das expressões da questão social no espaço urbano. Inicialmente, tem-se a lenta passagem do modo feudal para o modo de acumulação capitalista e a acumulação primitiva do capital, com destaque para a formação das cidades e a expropriação dos trabalhadores do campo. O advento da Revolução Industrial e seu maquinário impactou diretamente os tecelões-agricultores uma vez que todo o processo de produção era feito de forma 16 artesanal. “A mulher e os filhos fiavam e, com o fio, o homem tecia - quando o chefe da família não o fazia, o fio era vendido.” (ENGELS, 2010, p. 45) As relações de trabalho impostas pelo emergente sistema capitalista, na forma da industrialização, negavam condições de sobrevivência e sociabilidade aos trabalhadores, que deixavam suas casas no campo em busca de emprego. Assim, passando a trabalhar inteiramente para sobreviver, se desvirtuou a origem do seu trabalho, pois não obtinham mais que o suficiente para se sustentar e nem tinham tempo em suas atividades recreativas. Engels (2010), afirma que antes do trabalho assalariado, os trabalhadores: Ganhavam para cobrir suas necessidades e dispunham de tempo para um trabalho sadio em seu jardim ou em seu campo, trabalho que para eles era uma forma de descanso; e podiam, ainda, participar com seus vizinhos de passatempos e distrações – jogos que contribuíam para a manutenção de sua saúde e para o revigoramento de seu corpo (p. 46). Engels (2010), ressaltou que a vida e o trabalho no campo se estabeleciam de forma diferente ao que se encontrava nas emergentes cidades, assim como as relações sociais. Ao migrar para as cidades os trabalhadores se submeterem ao regimento industrial. “Sentiam-se à vontade em sua quieta existência vegetativa e, sem a revolução industrial, jamais teriam abandonado essa existência, decerto, cômoda e romântica, mas indigna de um ser humano.” (p. 47) Desse modo, evidencia-se as formas de exploração capitalista à medida que está exposta a incapacidade da classe operária se sustentar pelo próprio trabalho em vantagem à acumulação de seus empregadores, ao passo que trabalhadores rurais são levados a deixarem seu espaço e antigas formas de trabalho para a implementação de máquinas, e é ao fazer isso que o capital se reproduz em seu estágio de acumulação. Engels (2010), explica que com a Revolução Industrial, os trabalhadores são forçados ao êxodo rural devido ao surgimento de máquinas que os expropriaram de suas funções laborativas pela incapacidade de concorrência. Esses trabalhadores, advindos da expansão industrial, se viram compelidos a adentrar na realidade urbana a qual não eram habituados para a servitude operária. Eram máquinas de trabalho a serviço dos poucos aristocratas que até então haviam dirigido a história; a revolução industrial apenas levou tudo isso às suas consequências extremas, completando a transformação dos 17 trabalhadores em puras e simples máquinas e arrancando-lhes das mãos os últimos restos de atividade autônoma – mas, precisamente por isso, incitando-os a pensar e a exigir uma condição humana (ENGELS, 2010, p. 47). A populaçãourbana cresceu com o adensamento da classe operária, impulsionados pela oportunidade de sobrevivência, “surgiram assim as grandes cidades industriais e comerciais [...] onde pelo menos três quartos da população fazem parte da classe operária e cuja pequena burguesia se constitui de comerciantes e de pouquíssimos artesãos.” (Engels, 2010, p. 59). O centro principal dessa indústria é o Lancashire, onde, aliás, ela começou – revolucionando completamente o condado, transformando esse pântano sombrio e mal cultivado numa região animada e laboriosa: decuplicou, em oitenta anos, sua população e fez brotar do solo, como por um passe de mágica, cidades gigantescas como Liverpool e Manchester, que juntas têm 700 mil habitantes, e cidades secundárias como Bolton (60 mil habitantes), Rochdale (75 mil habitantes), Oldham (50 mil habitantes), Preston (60 mil habitantes), Ashton e Stalybridge (40 mil habitantes) e uma miríade de outros centros industriais. A história do Lancashire meridional, embora ninguém a mencione, compreende os maiores milagres dos tempos modernos, todos eles operados pela indústria do algodão. O segundo centro têxtil, situado no distrito algodoeiro da Escócia (Lanarkshire e Renfrewshire), é Glasgow, cuja população, desde a instalação dessa indústria, passou de 30 mil para 300 mil habitantes (ENGELS, 2010, p. 51-52). O crescimento populacional devido à migração em busca de trabalho na indústria nascente moldou o espaço urbano de forma a dividir socialmente as classes, relegando os mais pobres das áreas nobres. Impunham a construção de suas moradias em áreas fora do interesse imediato do capital, as áreas mais precárias. Desta forma, Engels (2010) afirma que a burguesia está diretamente relacionada ao crescimento da população pobre no espaço urbano, assim como o enriquecimento e crescimento industrial através do empobrecimento dessa população. O fator agravante da exploração do trabalhador pelo capitalismo emergente se torna evidente ao serem incapazes de, com seus próprios ganhos, custear suas necessidades básicas de subsistência, dentre elas a moradia. A moradia é um fator constitutivo das cidades, pois o desenvolvimento industrial, de acordo com Engels (2010), mostra que o operário é apenas mais uma ferramenta à disposição do capital. Desta forma, sendo necessário estar facilmente ao seu alcance. Com isto, sempre que se construía uma fábrica de médio porte, 18 rapidamente se levantava uma vila operária nas proximidades para os seus funcionários. A tendência centralizadora da indústria, contudo, não se esgota nisso. Também a população se torna centralizada, como o capital – o que é natural porque, na indústria, o homem, o operário, não é considerado mais que uma fração do capital posta à disposição do industrial e a que este paga um juro, sob o nome de salário, por sua utilização. O grande estabelecimento industrial demanda muitos operários, que trabalham em conjunto numa mesma edificação; eles devem morar próximo e juntos – e, por isso, onde surge uma fábrica de médio porte, logo se ergue uma vila (ENGELS, 2010, p. 64). A parcela mais pobre de trabalhadores, ocupava áreas fora do interesse do capital, instalava-se em condições insalubres e manter tal parcela nestas condições era funcional, a fim de manter os salários baixos. Dentro desta produção de moradias, surgem suas necessidades imediatas de satisfação por terceiros (artesãos, alfaiates, sapateiros, padeiros, pedreiros e marceneiros) onde se multiplica o número de trabalhadores que residem em tais localidades. Esses trabalhadores, que se reproduzem em seus costumes tal qual no campo, ensinam os filhos sua profissão, ou seja, os filhos dos operários aprendiam a ser operários. O crescimento da mão de obra disponível, especialmente mais jovem, têm-se um excedente de trabalhadores em busca de empregos do qual não se pode suprir a demanda, forçando os salários a caírem e consequentemente estimulando a instalação de novas fábricas, reproduzindo o crescimento urbano. Os habitantes da vila, especialmente a geração mais jovem, habituam-se ao trabalho fabril, familiarizam-se com ele e quando a primeira fábrica, como é compreensível, já não os pode empregar a todos, os salários caem – e, em consequência, novos industriais ali se estabelecem. Assim, da vila nasce uma pequena cidade e da pequena, uma grande cidade (ENGELS, 2010, p. 64). O desenvolvimento do capital industrial e seus empregadores polarizou cada vez mais a divisão social das cidades, suprimindo as características originárias dos seus habitantes que se habituaram a nova realidade. Disto só restando “uma classe rica e uma classe pobre, desaparecendo dia a dia a pequena burguesia” (Engels, 2010, p. 65). 19 Desse modo, na forma de ocupação do espaço urbano industrial, formam-se os “bairros de má fama” onde habita a classe operária, longe das áreas mais nobres, quanto longe da visão da classe abastada, agrupando as piores construções e feitas irregularmente. Todas as grandes cidades têm um ou vários “bairros de má fama” onde se concentra a classe operária. É certo ser freqüente a miséria abrigar-se em vielas escondidas, embora próximas aos palácios dos ricos; mas, em geral, é-lhe designada uma área à parte, na qual, longe do olhar das classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinha. Na Inglaterra, esses “bairros de má fama” se estruturam mais ou menos da mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha chamam-se cottages e normalmente constituem em toda a Inglaterra, exceto em alguns bairros de Londres, a habitação da classe operária. Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar a roupa (ENGELS, 2010, p. 70). As características das moradias dos operários estavam marcadas pela falta de aparelhos de uso comum à população, tanto na construção da sua moradia como nas condições objetivas das ruas e vielas onde instalavam-se. As casas são habitadas dos porões aos desvãos, sujas por dentro e por fora e têm um aspecto tal que ninguém desejaria morar nelas. Mas isso não é nada, se comparado às moradias dos becos e vielas transversais, aonde se chega através de passagens cobertas e onde a sujeira e o barulho superam a imaginação: aqui é difícil encontrar um vidro intacto, as paredes estão em ruínas, os batentes das portas e os caixilhos das janelas estão quebrados ou descolados, as portas – quando as há – são velhas pranchas pregadas umas às outras; mas, nesse bairro de ladrões, as portas são inúteis: nada há para roubara. Por todas as partes, há montes de detritos e cinzas e as águas servidas, diante das portas, formam charcos nauseabundos. Aqui vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos, todos misturados com ladrões, escroques e vítimas da prostituição. A maior parte deles são irlandeses, ou seus descendentes, e aqueles que ainda não submergiram completamente no turbilhão da degradação moral que os rodeia a cada dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos influxos aviltantes da miséria, da sujeira e do ambiente malsão (ENGELS, 2010, p. 71). Os operários moravam em ruas e vielas, não tinham acesso à educação ou moradias decentes, faltavaacesso à saúde e condições higiênicas para sua 20 sobrevivência, não era incomum morrer-se de fome ou se constatar as condições insalubres de moradia. Não havia cômodos para abrigar todos os moradores da “casa” tendo que se abrigar junto com animais, pois os trabalhadores não conseguiam custear o aluguel em melhor estado ou simplesmente não existiam outras próximas às fábricas, sendo estas de posse do empregador, e este só emprega aqueles que aceitam viver em tais condições (ENGELS, 2010). Em ruas como Long Acre e outras, não propriamente espaços de luxo, mas bastante convenientes, incontáveis porões são usados como habitações, dos quais saem à luz do dia silhuetas de crianças doentes e mulheres esfarrapadas, meio mortas de fome. Nas vizinhanças do teatro de Drury Lane – o segundo de Londres – encontram-se algumas das ruas mais degradadas da cidade (Charles Street, King Street e Parker Street), cujas casas são habitadas, dos porões aos desvãos, por famílias paupérrimas. Nas paróquias de St. John e St. Margaret, em Westminster, segundo o JournaloftheStatistical Society, em 1840, 5.366 famílias de operários viviam em 5.294 “habitações” (se é que a palavra pode ser usada): homens, mulheres e crianças, misturados sem qualquer preocupação com idade ou sexo, num total de 26.830 indivíduos – e três quartos do total dessas famílias dispunham de um só cômodo. Na aristocrática paróquia de St. George (Hanover Square), de acordo com a mesma fonte, 1.465 famílias de operários, totalizando cerca de 6 mil pessoas, viviam nas mesmas condições – e, delas, mais de dois terços das famílias amontoavam-se num só cômodo. E a esses infelizes, entre os quais nem sequer os ladrões esperam encontrar algo para roubar, as classes proprietárias, por meios legais, como os exploram! Pelos horrorosos alojamentos de Drury Lane, acima referidos, pagam-se os seguintes aluguéis semanais: dois cômodos no porão, 3 shillings (1 táler); um cômodo no térreo, 4 shillings, no primeiro andar, 4,5 shillings, no segundo, 4 shillings, no sótão, 3 shillings. Os famélicos habitantes da Charles Street pagam aos proprietários dos imóveis um aluguel anual de 2 mil libras esterlinas (14 mil táleres) e aquelas 5.336 famílias de Westminster, um total de 40 mil libras esterlinas (270 mil táleres) (ENGELS, 2010, p. 71-72). A análise feita por Engels (2010), retrata que os bairros operários não tinham condições de habitabilidade, desta forma emergindo os problemas urbanos derivados da falta de infraestrutura urbana, assim como também afirma Hobsbawm (apud SANTOS, 2012, p. 37-38). As cidades e as áreas industriais cresciam rapidamente, sem planejamento ou supervisão, e os serviços mais elementares da vida da cidade fracassavam na tentativa de manter o mesmo passo: a limpeza das ruas, o fornecimento de água, os serviços sanitários, para não mencionarmos as condições habitacionais da classe trabalhadora [...] cortiços onde se misturavam o frio e a imundice, ou os extensos complexos de aldeias industriais de pequena escala. [...] O desenvolvimento urbano foi um gigantesco processo de segregação de classes, que empurrava os novos trabalhadores pobres para as grandes concentrações de miséria alijadas dos centros de governo e dos negócios, e das novas áreas residenciais da burguesia. A consequência mais patente dessa deterioração urbana foi o 21 reaparecimento das grandes epidemias de doenças contagiosas (principalmente transmitidas pela água), notadamente a cólera. [...] Só depois de 1848 quando as novas epidemias nascidas nos cortiços começaram a matar também os ricos, e as massas desesperadas que aí cresciam tinham assustados os poderosos com a revolução social, foram tomadas providências para um aperfeiçoamento e uma reconstrução urbana sistemática. Existiam ainda bairros que não eram ocupados pela burguesia por questões diferentes, não relacionadas às condições de moradia ou higiene. Deixava-se de ocupar determinadas regiões pela incidência de ventos frequentes vindos das fábricas carregando poluição. Deste modo, desvalorizando a propriedade, sendo apenas os operários aqueles que se interessavam em tais moradias. Para a burguesia, se alguém tiver que viver em condições insalubre, na poluição das fábricas que “sejam os operários os únicos a respirá-la” (Engels, 2010, p. 101). As consequências do crescimento da industrialização do capitalismo via revolução industrial atingiam diretamente o proletariado à medida que se retirava o valor gerado pelas mercadorias por eles produzidas, mas não consumidas. Submetidos aos meios de reprodução de sua força de trabalho impostos pelos seus empregadores, o trabalhador se tornava não apenas uma ferramenta de produção ao capitalismo como ele mesmo, e não apenas sua força de trabalho, se configurando como propriedade do capital. Propriedade esta que ao gerar valor, perde o seu próprio em concorrência aos outros operários que buscam da mesma forma a sobrevivência, submetendo-se à desvalorização da sua força de trabalho. Assim, ainda que o operário estivesse em sua plena forma e capacidade, não havia segurança que este não seria posto na multidão de operários ociosos, já que o desemprego é tido como forma de controle sobre a classe de forma a estimar tal competição para sua sobrevivência. Todas as suas condições objetivas de subsistência (moradia, saúde, alimentação, etc.) se combinam de modo que se força a aceitação de tal realidade, pois existem aqueles que estão em situações piores. A classe operária das grandes cidades oferece-nos, assim, uma escala de diferentes condições de vida: no melhor dos casos, uma existência momentaneamente suportável – para um trabalho duro, um salário razoável, uma habitação decente e uma alimentação passável (do ponto de vista do operário, é evidente, isso é bom e tolerável); no pior dos casos, a miséria extrema – que pode ir da falta de teto à morte pela fome; mas a média está muito mais próxima do pior que do melhor dos casos. E essa escala não se compõe de categorias fixas, que nos permitiriam dizer que esta fração da 22 classe operária vive bem, aquela mal, enquanto as coisas permanecem como estão; ao contrário: se, no conjunto, alguns setores específicos gozam de vantagens sobre outros, a situação dos operários no interior de cada segmento é tão instável que qualquer trabalhador pode ter de percorrer todos os degraus da escala, do modesto conforto à privação extrema, com o risco da morte pela fome – de resto, quase todos os operários ingleses têm algo a dizer sobre notáveis mudanças do acaso (ENGELS, 2010, p. 116). Todavia, muitos séculos se passaram e reafirmam as ideias de Engels, para o qual a falta de moradia para a classe trabalhadora é um problema inerente a lógica capitalista de reprodução e impossível de ser resolvida nesse modo de produção. Tal fato pode ser observado na medida em que as condições históricas de pauperização dos trabalhadores ainda são mantidas em tempos atuais. A precarização da moradia e a incapacidade de obtê-la por meio do trabalho demonstram o desenvolvimento deste processo. A Inglaterra apresentada por Engels (2010) é um estágio deste processo que se expandiu e se reproduziu pelos séculos em todo o mundo. A segregação espacial, o déficit habitacional e as condições precárias de habitação são formas de subsunção do trabalho ao capital, de relações de classe, representando o baixo custo da força de trabalho, reproduzindo a desigualdade das classes sociais. Ao referenciar o debate e as condições de moradia à realidade brasileira, na expansão do trabalho livre e do desenvolvimento urbano, entende-se que a questão da moradia se relaciona ao crescimento da metrópole, com destaque para a cidade de São Paulo, com traços similares aos apresentados por Engels (2010) na Inglaterra, porém, o Brasil não foi o berço da industrialização e esta não se desenvolveu plenamentee no mesmo período dos países da Europa. O Brasil era um país agrário, abolindo a escravidão apenas no fim do século XIX, a mão de obra estrangeira se consolidava na produção agrícola do café para a exportação. Após a crise sofrida pelos cafeicultores, a infraestrutura montada para o escoamento da produção passou a ser utilizada pela indústria (LIMA, 2017a). Ainda que a industrialização tenha acontecido tardiamente no país, as condições de pauperização dos trabalhadores e a substituição do modelo agrário se formaram com o desenvolvimento urbano-industrial, impulsionando a questão urbana. O desenvolvimento da industrialização foi tardio e não estimulou o processo competitivo; sequer, as reformas capitalistas aconteceram, como é o caso da reforma agrária, a qual expressa grande concentração de terra nas mãos 23 dos proprietários capitalistas. Portanto, esses processos econômicos e políticos com essas características e funcionalidades marcam o crescimento urbano no Brasil, redimensionando a questão social, as relações de classes, os processos democráticos e os direitos sociais (LIMA, 2017a, p. 28). Contudo, as relações sociais expressas pela divisão social do trabalho, separando o campo da cidade, demonstra formas de exploração social e econômica. Para Kowarick (1979), São Paulo se caracterizava como o centro dinâmico do País. Discutir este fenômeno é limitar-se apenas ao desempenho econômico, deixando de lado a relação do crescimento econômico com a pauperização da classe trabalhadora. Desta forma, nota-se o aumento da ocupação dos espaços urbanos de maneira irregular e desconexa, o crescimento dos bairros periféricos, cortiços e favelas sugerem o crescimento da população operária no século XX, sendo nestas áreas onde se concentra a pobreza da cidade (KOWARICK, 1979). A industrialização trouxe a urgência de suprimento de moradia para os operários, alijando os trabalhadores que não estão no mercado de trabalho do acesso a produção e aos meios de vida. Desta forma, um número reduzido de habitações necessárias, pois “o fornecimento de moradia pela própria empresa diminuía as despesas dos operários com sua própria sobrevivência, permitindo que os salários fossem rebaixados.” (KOWARICK, 1979, p. 30). O crescimento do número de trabalhadores inflige pressão direta na procura por habitações populares, aumentando a valorização dos terrenos próximos às fábricas, somado ao aumento dos operários que buscam o emprego, colaboram de forma geral para a precarização do seu trabalho. Este exército de reserva que se constitui à maneira que não se absorve toda a mão de obra disponível, estimula a desvalorização do trabalhador e torna inviável e “antieconômica” a produção de vilas operárias, culminando no processo de autoconstrução (KOWARICK, 1979). [...] o preço do progresso traduz e ao mesmo tempo justifica o crescimento caótico da metrópole. Indica inicialmente a incapacidade do poder público de programar formas mais racionais de ocupação do solo. Ademais, fundamenta uma forma de expansão que, devido à fragilidade das organizações populares para interferir nos processos decisórios, confere grande liberdade de ação aos grupos privados inteiramente voltados para a obtenção de lucro (KOWARICK, 1979, p. 33). O processo de retenção de terras para valorização se formava como um grande aliado à perpetuação desta realidade, os lotes retidos localizavam-se em 24 áreas próximas aos centros, expulsando os mais pobres às áreas mais distantes de seus interesses. Esta retenção, de forma indireta, gerou o que foi denominado de “periferia1” (KOWARICK, 1979). O distanciamento das moradias e o crescimento populacional, devido a industrialização e seus impactos no desenvolvimento da região, entre os anos de 1960-1970 chegou a 5,5% ao ano, segundo Kowarick (1979), este crescimento teve sua distribuição dada em cidades vizinhas à capital paulista de forma que se tornaram “cidades dormitório”, já que se era insustentável a moradia desses trabalhadores nas áreas mais caras. Porém, os fatores agravantes da especulação, nos anos 20 do século XX, que causam o aumento da questão habitacional em São Paulo não se dão apenas pelas áreas centrais e pontos de interesse dos trabalhadores, Kowarick (1979) afirma que: Ela se apresenta também com imenso vigor dentro das próprias áreas centrais, quando zonas estagnadas ou decadentes recebem investimentos em serviços ou infra-estruturas básicas. O surgimento de uma rodovia ou vias expressas, a canalização de um simples córrego, enfim, uma melhoria urbana de qualquer tipo, repercute imediatamente no preço dos terrenos (p. 37). Trabalhadores mais pobres que se mudam em busca de melhores condições de habitabilidade na cidade se veem impossibilitados, a terra se valoriza em certas regiões de tal maneira que os trabalhadores não a conseguem custear. Esses trabalhadores, ainda que consigam instalar-se em condições degradantes de habitação em áreas mais centrais, sofrem a imposição de adequações do poder público, que “higienizam” a área, expulsando a população pobre dos locais que vão se valorizando pelo interesse do mercado (KOWARICK, 1979). Após intensos “desfavelamentos” que ocorreram na capital nos anos 60, as favelas tenderam a seguir o fluxo do desenvolvimento econômico que ocorreria nas áreas mais industrializadas da grande São Paulo. Apesar de inexistirem dados precisos acerca da população favelada sabe-se que ela é numerosa em certos municípios - Guarulhos, Osasco, Diadema, São Bernardo do Campo - e que apresentam características sócio econômicas semelhantes às da Capital (KOWARICK, 1979, p. 38). 1Aglomerados distantes dos centros, clandestinos ou não, carentes de infra-estrutura, onde passa a residir crescente quantidade de mão de obra necessária para fazer girar a maquinaria econômica (Kowarick, 1979, p. 31). 25 Somado a tal realidade, existem ainda as obras de urbanização que buscam a melhoria do espaço urbano pelo poder público, exigindo a transferência da população alvo do local, forçando sua transferência para a periferia. A periferia como fórmula de reproduzir nas cidades a força de trabalho é consequência direta do tipo de desenvolvimento econômico que se processou na sociedade brasileira das últimas décadas. Possibilitou, de um lado, altas taxas de exploração de trabalho; e de outro, forjou formas espoliativas que se dão ao nível da própria condição urbana de existência a que foi submetida a classe trabalhadora (KOWARICK, 1979, p. 41). Situações como esta a que estão expostas a classe operária no Brasil, a desigualdade social, o valor da terra, a não viabilização do valor moradia incluído no salário recebido, faz com que o trabalhador construa com as suas próprias condições um lugar para morar, nos fins de semana e nas horas livres. Estes por não acessarem a terra ocupam espaços irregulares e constroem os barracos, formam as favelas, gerando a condição de submoradia agregado ao salário insuficiente para sua subsistência, que não refletem a capacidade de sustento para o indivíduo, muito menos de sua família (KOWARICK, 1979). Desse modo, de acordo com Kowarick (1979): Favelas, casas precárias da periferia e cortiços abrigam a classe trabalhadora, cujas condições de alojamento expressam a precariedade dos salários. Essa situação tende a se agravar, na medida em que se vêm deteriorando os salários. Para os gastos básicos de uma família - nutrição, moradia, transporte, vestuário, etc. - aquele que em 1975 ganhava um salário mínimo deveria trabalhar 466 horas e 34 minutos mensais, isto é, cerca de 16 horas durante 30 dias por mês (p. 41-42). O crescimento econômico na região paulista atraía moradores, apenas a sua fixação na Grande São Paulo já representava uma melhoria sócio econômica, mas isto não sedava sem a interferência do capital nas relações sociais que os obrigavam a isto. A saída do território originário tinha em vista um suprimento de consumo que não era possível anteriormente. Kowarick (1979), denomina de “mercado de ilusões” o subterfúgio utilizado para atrair a massa operária ao fetichismo do capital e seu consumo, e é a atração pelo consumo que trouxe o exército necessário para a reprodução da exploração e precarização da sua mão de obra. 26 Ainda que este crescimento e direcionamento do consumo, ilusório para as massas, tenha se dado às classes média e alta, se dilapidou ainda mais a sociedade aumentando a disparidade social, de forma que, ao se buscar sempre mais lucro, transpassou-se das empresas privadas e se reproduziu nos financiamentos públicos da construção civil, onde: 80% dos empréstimos do Banco Nacional da Habitação foram canalizados para os estratos de renda média e alta, ao mesmo tempo que naufragavam os poucos planos habitacionais voltados para as camadas de baixo poder aquisitivo. É contrastante neste sentido que as pessoas com até 4 salários mínimos constituam 55% da demanda habitacional ao passo que as moradias colocadas no mercado pelo Sistema Financeiro de Habitação raramente incluíam famílias com rendimento inferior a 12 salários (KOWARICK, 1979, p. 50). O “preço do progresso”, recaindo sempre sobre as massas, obrigando a reinvenção de sua subsistência, ao mesmo tempo que abre oportunidades de novas formas de expropriação do capital, reforça as formas de precarização da moradia do trabalhador que, lidando com as necessidades de poupar, vê na autoconstrução a subsistência que não encontra nos bens de consumo negados pelo Estado, fator contraditoriamente responsável pela sua aquisição. Portanto, os investimentos públicos também sob este ângulo aparecem como fator determinante no preço final das moradias, constituindo-se num elemento poderoso que irá condicionar onde e de que forma as diversas classes sociais poderão se localizar no âmbito de uma configuração espacial que assume, em todas as metrópoles brasileiras, características nitidamente segregadoras (KOWARICK, 1979, p. 57). A péssima condição de subsistência do trabalhador é uma condição inerente a expropriação da mão de obra e a precarização do seu trabalho. As habitações são planejadas para aqueles que têm poder aquisitivo, e não incorporam àqueles que delas necessitam. A ausência do Estado e a resultante exclusão expressa o que Kowarick (1979), denomina de “problema” habitacional, marcado por dois processos interligados: O primeiro refere-se às condições de exploração do trabalho propriamente ditas, ou mais precisamente às condições de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos os diversos segmentos da classe trabalhadora. O segundo processo, que decorre do anterior e que só pode ser plenamente entendido quando analisado em razão dos movimentos contraditórios da acumulação do capital, pode ser nomeado de espoliação urbana: é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou 27 precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho (KOWARICK, 1979, p. 59) (grifos do autor). A ausência do Estado em relação a implementação de política sociais conduz as espoliações decorrentes deste processo, de maneira que não há interesse em melhorias das condições habitacionais dos bairros que não circulam os bens de consumo. A infraestrutura estatal se acopla ao processo de expansão industrial responsável pela questão da moradia, ou seja, o Estado age como o fiador da indústria, e ao mesmo tempo controla a população com seu aparato autoritário, potencializado a estrutura necessária ao capitalismo. O papel do Estado é fundamental. Em primeiro lugar, por criar o suporte de infraestrutura necessário à expansão industrial, financiando a curto ou a longo prazo as empresas e por agir diretamente enquanto investidor econômico. Ademais, por ser o agente que tem por encargo gerar os bens de consumo coletivo ligados às necessidades da reprodução da força de trabalho. Em segundo lugar por manter a ‘ordem social’ necessária à realização de um determinado ‘modelo’ de acumulação (KOWARICK, 1979, p. 59). O processo de espoliação urbana que se desenvolve nas cidades, ocasionado pelas relações sociais capitalistas e legitimado pelo Estado, é a culminância das práticas de precarização da vida da classe trabalhadora. Ao se retirar o aparato necessário para a reprodução da mão de obra e ao mesmo tempo financiar o crescimento do modo de exploração capitalista, o Estado se ausenta da questão habitacional, precarizando ainda mais a vida das classes de menor renda. Embora sejam apresentados programas habitacionais para o financiamento de moradias, estas foram feitas com o objetivo do lucro, resultando na exclusão da massa pobre da população que não dispõe das condições de pagamento. Ainda que se desenvolvam programas para a demanda de “interesse social”, estas não adquirem a expressão necessária nem a população beneficiária consegue custeá-la (KOWARICK, 1979). O resultado é que as habitações ou ficam vazias ou acabam sendo transferidas para os grupos de renda mais elevada enquanto que as pessoas a quem se destinavam os programas subsidiados pelo poder público acabam voltando às suas condições originais de moradia, que, aliás, são aquelas que imensa parcela da classe trabalhadora precisa adotar para continuar se reproduzindo nas cidades (KOWARICK, 1979, p. 60). 28 Contudo, observa-se que o processo formativo das cidades e o seu crescimento social pela ação do capitalismo transformou-a em um amplo campo de expropriação de mão de obra, traçando visivelmente as linhas de divisão salarial pela geografia da região como apresentaram Engels (2010) e Kowarick (1979). O Estado, ao sustentar as formas de exploração do capital, se compromete e o representa, minando à condição de apresentar políticas sociais capazes de atender à realidade dos trabalhadores. A reprodução deste processo, com a reinvenção do capital a cada crise vivenciada, molda as relações sociais e impactam a cidade constantemente. A contemporaneidade desta questão urbana e a sociabilidade do trabalhador será tratada no item seguinte. 1.2 - A questão urbana na contemporaneidade É nesse cenário, de desenvolvimento do capitalismo, no qual emergem as contradições e os antagonismos de classe, onde a luta da classe trabalhadora pelo acesso à cidade e os projetos urbanos de interesses econômicos se reproduzem, que se move a questão urbana e de moradia. Considerando as reconfigurações do capital e do trabalho no contexto do século XX e XXI, a compreensão da questão urbana e da moradia contém a referência a esse movimento dialético que inclui os estágios de acumulação e no qual a questão da terra, da propriedade e da moradia são uma condição estrutural desse processo. É sabido que o capital vivencia crises, e é a partir destas crises, inerentes ou orgânicas, que ele se reformula para se adequar e formar novos estágios de acumulação. Harvey (2005), afirma que as manifestações de crise impõem racionalidade ao desenvolvimento econômico capitalista. Esta imposição acontece pelos custos sociais adversos à classe trabalhadora. A periodicidade destas crises se dá pelas contradições do processo de acumulação do capital, pelas “relações que os homens estabelecem entre si na produção da riqueza material” (TONET, 2009, p. 1). 29 Desta forma, “os capitais, em cada momento histórico, buscam moldar as cidades aos seus interesses, ou melhor, aos interesses de um conjunto articulado de diferentes forças que podem compor uma aliança.” (MARICATO, 2015, p. 18).Como o alvo do capitalismo é sempre o lucro a todo custo, e seu crescimento, qualquer obstáculo que se oponha a tal crescimento gera uma crise. É neste cenário de crise que o capitalismo se reinventa e se reestrutura para continuar prosseguindo ao seu objetivo, culminando em transformações produtivas e do papel do Estado. Assim, ao se recompor, extrai e reinventa as condições de mercado, desfavoráveis ao trabalhador. Tonet (2009), explica que a reestruturação produtiva representou a reformulação pós-crise estrutural do capital no século XX, onde a flexibilização e descentralização da produção tomaram força ao encontrarem nos países periféricos força de trabalho mais barata e propensa à exploração e desregulamentação dos direitos trabalhistas, sendo assim um terreno fértil para o crescimento do capital central. O período de crise que se inicia nos anos 1970 conduziu a uma reestruturação produtiva com implicância nas condições objetivas e subjetivas da sociabilidade, que se reflete na vida social, urbana, agrária, ambiental, em circunstâncias desfavoráveis ao trabalho. A manipulação reflexiva ou a “captura” da subjetividade tornou-se efetivamente o modo de operar do controle sociometabolico do capital. A luta de classes e as derrotas das forças políticas do trabalho na década de 1970 conduziram a reestruturação política do capital, constituindo o Estado neoliberal e as políticas de liberalização comercial e desregulamentação financeira; e o pós-modernismo e o neopositivismo permearam a reestruturação cultural. Nos “trinta anos perversos”, o capitalismo financeirizado, toyotista, neoliberal e pós-moderno levou a cabo uma das maiores revoluções culturais da história (ALVES, 2012, p. 1). A produção de riqueza neste modo de produção necessita diretamente da reprodução da pobreza, uma vez que se busca sempre a redução do custo de produção onde capital, financeirizado e globalizado, não encontra obstáculos ao seu crescimento. Tonet (2009), afirma que há um aspecto central da crise estrutural do capital, a contradição da produção e apropriação da mercadoria, sendo a produção capaz de suprir toda a demanda expressa na sociedade, contraditoriamente em meio a escassez das necessidades sociais. 30 O capitalismo necessita da escassez como um elemento vital para a sua reprodução. Uma produção abundante - tornada possível pela atual capacidade tecnológica - simplesmente assinaria a sentença de morte desse sistema social. Isso porque uma oferta abundante rebaixaria tanto os preços que os capitalistas simplesmente deixariam de ganhar dinheiro. O que, obviamente, não interessa a nenhum deles. Assim, o sistema capitalista tem que manter a escassez, mesmo que milhões de pessoas sofram as mais terríveis consequências, uma vez que o seu “objetivo” é a sua reprodução e não o atendimento das necessidades humanas (TONET, 2009, p. 4). A potencialização dos efeitos de mercado na sociabilidade, em sua fase financeira e globalizada, agrava os problemas sociais, “pela falta de acesso (em quantidade e qualidade adequadas) aos bens materiais necessários à manutenção de uma vida digna”. (TONET, 2009, p. 5) Grande parte dos trabalhadores tendem a viver nas cidades sob circunstâncias de pobreza, favelização, violência urbana, migração, destruição do meio ambiente e superpopulação, já que as condições necessárias à sua subsistência não são ofertadas de maneira acessível. Milhões de pessoas são obrigadas a viver em condições subumanas porque não têm acesso ou têm um acesso precaríssimo à alimentação, à saúde, à habitação, ao vestuário, ao saneamento, ao transporte, etc. Outros milhões de pessoas se deslocam de regiões e países mais pobres para outros lugares onde se concentram melhores possibilidades de ganhos e de vida, com todas as consequências - econômicas, sociais, políticas e ideológicas - que esse deslocamento traz consigo (TONET, 2009, p. 6). Desta forma, como explanado pelo autor e abordado no item anterior, os deslocamentos da população de regiões pobres para os centros capitalistas são fomentados pelo crescimento econômico urbano e as possibilidades de venda da sua força de trabalho, igualmente pela reprodução desigual dos espaços urbanos. O crescimento populacional e as desmedidas ações do capital para continuar gerando as necessidades de consumo forjam traços urbanos que agravam o contexto das cidades com o inexorável desenvolvimento do capital, produzindo efeitos e agravos nas condições de vida do trabalhador. As lutas sociais historicamente forçam o desmembramento das condições de proteção ao trabalho. Neste patamar de expropriação do trabalho, a riqueza produzida por muitos e apropriadas por poucos é causa da pobreza vivida por eles, resultando em 31 desemprego, precarização do trabalho, retorno de formas primitivas de trabalho e até escravismo. (TONET, 2009) Embora a pobreza seja condição de reprodução da riqueza, seu excesso a longo prazo torna danosa a reprodução do capital que através do Estado ou instituições não diretamente governamentais, elaboram modos de assistência à população desprotegida. Desta necessidade de manutenção social, estruturam-se as chamadas políticas sociais e programas sociais, que não tem como objetivo erradicar os problemas urbanos e sociais gerados pelo capitalismo, mas apenas minimizar seus efeitos mais graves. (TONET, 2009) Com o desenvolvimento da mercantilização da vida, através do avanço do neoliberalismo do Estado, os bens de uso público necessários à população também se tornam mercadorias à serviço do capital. O acesso à saúde, educação, habitação e etc, se tornam via de lucro ao mercado. Assim como a produção de mercadorias, a produção do espaço urbano se faz voltada ao atendimento das necessidades do capital. Áreas direcionadas à população com maior poder aquisitivo que se beneficia da infraestrutura urbana proporcionada pelo Estado, com equipamentos sociais adequados, comparado às áreas ocupadas pela classe trabalhadora carente de infraestrutura e serviços. Tais diferenciações baseiam-se no fato de que a cidade é antes de mais nada uma concentração de pessoas, exercendo em função da divisão social do trabalho, uma série de atividades concorrentes ou complementares, desencadeando uma disputa de usos. No caso do uso produtivo do espaço, este será determinado pelas características do processo de reprodução do capital; é o caso da localização das indústrias apoiadas pelas atividades financeiras, comerciais, de serviços e de comunicação (NEVES, 2009, p. 3). O processo de urbanização e a reprodução das desigualdades derivadas do processo capitalista ampliam a crise urbana, o crescimento da demanda populacional pelo espaço urbano e pelos aparelhos sociais. A cidade age como uma grande linha de produção de valor de troca, sendo o ambiente urbano moldado segundos as necessidades e interesses do capitalismo, e a habitação o seu produto mais caro. A habitação é uma mercadoria especial que tem produção e distribuição complexas. Entre as mercadorias de consumo privado (roupas, calçados, alimentos, e etc.) ela é a mais cara. Seu preço é muito maior do que os salário médios, e por isso o comprador demora muitos anos para pagá-la ou 32 para juntar o valor que corresponde ao seu preço (MARICATO apud LIMA, 2017a, p. 37). Neste contexto socioeconômico de reestruturação neoliberal, as necessidades da classe trabalhadora, em especial a moradia, se tornam “invisíveis” ao Estado devido à perda da força dos partidos de esquerda e dos sindicatos, como afirma Maricato. De fato, essa invisibilidade é maior a partir da globalização neoliberal (após a década de 1970, nos países centrais), quando se enfraquece o poder dos sindicatos e dos partidos de esquerda, e ao capital financeiro se torna hegemônico. Mas, nos países capitalistas periféricos, sobretudo essa invisibilidadeé histórica. [...] nesses países a habitação dos trabalhadores não é problema para o capital e na maior parte das vezes nem para o Estado. Por isso, os bairros de moradias dos trabalhadores são construídos por eles mesmos nos seus horários de descanso. E também por isso, as favelas fazem parte da reprodução de força de trabalho formal. Foi assim durante o processo de industrialização por substituição de importações e é assim atualmente nas cidades conhecidas como globais (MARICATO, 2015, p.19-20). Sendo a cidade o lugar por excelência de reprodução da força de trabalho, seu crescimento gera necessidades que não suportam soluções individuais, ou seja, o Estado é necessário cada vez mais. (MARICATO, 2015) As condições de habitabilidade necessárias para o desenvolvimento urbano, tanto em sua infraestrutura de abastecimento de água e luz ou transporte e equipamentos sociais, refletem a reprodução ampliada da força de trabalho, que não só depende do seu salário para sobreviver. As condições macro societárias da vida do trabalhador dependem da relação do Estado, pois “um aumento de salário pode ser absorvido pelo alto custo do transporte ou da moradia, por exemplo” (MARICATO, 2015, p. 22). O crescimento urbano acontece pela disputa de duas forças contraditórias, segundo Maricato (2015). De um lado a classe trabalhadora, responsável pelo crescimento urbano e populacional de uma cidade, e vê nela o seu valor de uso, buscando moradia e serviços públicos bons e baratos, e do outro lado o capital, que age na cidade de acordo com seu valor de troca, ou seja, a cidade é simplesmente uma mercadoria. Devido a incapacidade de custear a construção ou pagamento, ainda que através de endividamento, de uma moradia, a classe trabalhadora vê na 33 autoconstrução a saída obrigatória para a obtenção do bem necessário a sua sobrevivência e reprodução. O fenômeno da autoconstrução representa mais uma forma de extração de valor do trabalhador, que construindo em seus horários de folga, aos poucos e de forma irregular e informal, não seguindo normas urbanísticas ou leis ambientais, expropria mais ainda o seu salário. Este fenômeno representou explicitamente a acumulação capitalista pelo processo de autoconstrução, já que no período de 1940 a 1980 a taxa de crescimento no Brasil foi de cerca de 7% ao ano, enquanto que o processo de urbanização cresceu cerca de 5,5% ao ano (IBGE) (MARICATO, 2015). A partir deste período, as altas taxas de desemprego recorrente das relações capitalistas e da desestruturação do mercado de trabalho (LIMA, 2017a), acabam por impossibilitar o acesso à moradia para a classe trabalhadora. A luta “dos sem-terra” se realiza questionando a propriedade que permite “deixar a terra vazia” enquanto uma parcela crescente não tem terra para plantar, logo para viver. Ambas as lutas revelam o processo de deterioração e desintegração da vida colocando em cheque o direito da propriedade privada e as formas de apropriação do espaço enquanto condição de realização da vida seja para a produção do alimento, seja enquanto moradia e tudo o que esta atividade implica para a vida. Revelam, como a luta, a produção segregada do espaço; a privação enquanto produto, as condições da alienação e a luta ambos produto do modo como se realiza a reprodução das relações sociais no Brasil (CARLOS apud LIMA, 2017a, p. 46-47). A autoconstrução das moradias implica numa das expressões da questão urbana. Essas moradias não recebem o acesso ao saneamento, se localizam em áreas fora da cobertura do sistema de transporte público ou mesmo da rede básica de saúde, em alguns casos em locais insalubres e em conflito com o meio ambiente. Sendo assim, a autoconstrução aparece como algo externo ao capital, sendo inerente e funcional ao seu modo de reprodução, predominantemente nos países periféricos. Segundo Santos (1982, p. 66-67), se apresenta como: “um problema ou conjunto de problemas sociais específicos criado fora do mundo do trabalho e da produção e que, como tal, não é ao capital mas sim à sociedade no seu todo e, portanto, ao Estado que compete resolver.” Segundo Santos (1982), o Estado capitalista desassocia os aparelhos sociais da relação econômica produzida socialmente. Os investimentos em tais meios de consumo coletivo são em períodos desfavoráveis ao capital improdutivos. 34 Ao separar a questão urbana das contradições do modo de produção capitalista que estão na sua base, o Estado converte-a num conjunto de “problemas sociais” ou “tensões sociais” susceptíveis de serem resolvidos dentro dos limites estruturais e de compatibilidade funcional impostos pela lógica do capital. Uma vez formulada a questão urbana ao nível da estrutura de superfície da sociedade, é também ao nível desta estrutura que a sua resolução deve ser planeada e executada. O objetivo não é resolver as contradições mas antes dispersá-las, mantendo-as em níveis toleráveis e funcionais perantes as exigências da acumulação capitalista no momento histórico e na conjuntura dados (SANTOS, 1982, p. 68). O autor afirma que as políticas urbanas são um conjunto de mecanismos de dispersão variáveis e de variável articulação de acordo com diversos fatores estruturais e conjunturais, ou seja, se configurando como um aparato de controle de massas, utilizado nas capacidades e necessidades do Estado. A prática de autoconstrução e a falta de espaços apropriados para a construção de moradia para os trabalhadores representa o problema gerado pela articulação do capital flexibilizado, que segundo Boulos (2012), os trabalhadores em suas camadas mais pobres encontram dificuldades para se sustentar de maneira digna e autônoma, recorrendo às ocupações, coabitação familiar ou aluguel em ambientes sem habitabilidade. O número de casas desocupadas excede o número de moradores sem teto, sem falar nos terrenos ociosos sem edificações, que pertencem ao capital e são utilizados para manter o preço dos imóveis alto, ou seja, a especulação imobiliária sustenta o déficit habitacional. Assim, a formação das cidades acompanha a lógica da acumulação e formação do capitalismo. Nessa sociedade, a moradia é uma expressão do mercado, submetido as regras do capital imobiliário, e de nada vale o direito formal se não há políticas sociais para garantir o acesso à classe trabalhadora. O surgimento dos movimentos de luta por moradia, em especial o MTST em 1997, representou um passo na luta pela conquista de moradia para a classe trabalhadora, afirma Boulos (2012). O embate do MTST com o capital imobiliário se caracteriza como uma expressão da questão social, pois suas ações e reivindicações são respondidas com repressão, despejos violentos e ausência de concessões dos governos. As desigualdades e o investimento em políticas sociais em caráter seletivo, permite que a questão urbana tome patamares cada vez maiores no Brasil. Aliado à 35 conjuntura neoliberal mundial de orientação para o mercado, culmina no crescimento da pobreza e precarização da vida da classe trabalhadora. No Brasil, as conquistas sociais e o direito à cidade se deram pela luta da classe trabalhadora, em todas as suas formas. No próximo capítulo discute-se a trajetória da política habitacional nos governos no Brasil, história e fundamentos sócio-políticos, para compreender o caminho traçado para o acesso à habitação mediado pelo Estado. 36 CAPÍTULO 2 - A POLÍTICA HABITACIONAL NO BRASIL 2.1 - A política social da habitação nos governos do brasil A política de habitação no Brasil tem suas raízes históricas presentes no excludente processo de urbanização e industrialização do século XX - conforme discutido no capítulo I deste estudo - contudo, tem-se como ponto de partida da questão habitacional o processo iniciado com a Lei 601/1850, conhecida como a “Lei de Terras” segundo Holz e Monteiro (2008).As autoras explicam que esta lei determinava a forma de aquisição de terras única e exclusivamente por compra, criminalizando ocupações exatamente no período precedente à abolição da escravatura no Brasil, desta forma, desordenando o crescimento das cidades diante da população recém liberta que não tinha uma política pública para recorrer. Os escravos libertos que não permaneceram nas áreas rurais foram em busca de sobrevivência nas cidades. Todo este quadro faz com que as cidades cresçam com um flagrante despreparo em termos de políticas públicas que atendessem essa população, formando cidades desordenadas. Portanto, percebe-se que desde o início do processo de construção das cidades e da sociedade brasileira, houve um descompasso entre o acesso à moradia e o crescimento populacional (HOLZ; MONTEIRO, 2008, p. 2). O aumento populacional, devido a estes fatores ainda contou com o grande número de imigrantes que aportavam no Brasil, exigindo das cidades, especialmente de São Paulo e do Rio de Janeiro, uma grande demanda por moradia, transporte e demais serviços urbanos que não existiam na época (MOTTA, 2014). O processo de higienização das cidades no Brasil entre os séculos XIX e XX, de base europeia, inicia-se a partir da uma reformulação das grandes cidades com o alargamento de ruas e implantação do saneamento básico, conforme as demandas do capital industrial da época, tornando assim as habitações populares que conseguiram se construir nas áreas centrais das cidades alvo deste processo, impedindo que se instalassem novos moradores nas construções já existentes, como também impediam novas construções e algumas vezes as demolindo. estas construções. 37 A classe trabalhadora, assim como os escravos recém libertos, se amontoava em construções conhecidas como cortiços. Estas construções abrigavam trabalhadores em áreas centrais, consequentemente de interesse do capital, onde além de serem ilegais e conflitarem com os interesses, eram locais de propagação dos vícios e má condições de higiene, sendo sua proximidade um fator de desvalorização, como explica Sobrinho (2013). Os cortiços representam, portanto, uma ameaça à noção de civilidade; as greves, uma ameaça à ordem burguesa de cidade limpa, disciplinada e livre das imundícies e de manifestações turbulentas dos operários; a rua será objeto da disciplina devido à ameaça à própria ordem que mantém desigualdades. As doenças que se espalhavam pela urbe, do ponto de vista ideológico, teriam como foco de proliferação justamente as áreas pobres (p. 214). As reformas higienistas, ao atenderem os interesses do capital, não tinham a intenção de realocar essa população pobre para outras áreas centrais, embora tenham criado algumas habitações populares, estas não foram o suficiente para suprir a demanda da população, obrigando sua remoção às periferias e a ocupação de novas áreas ilegais para moradia, o que culminou na “favelização”. Percebe-se que não existia nenhuma política que pudesse dar garantia a classe trabalhadora, o que existia na verdade era a vontade do Estado em afastar da classe média o perigo das epidemias e consequentemente a expansão desses cortiços, como também os interesses mercantis de empresários ligados a construção civil, que viam nesse aspecto de destruição dos cortiços, uma forma de lucrar, a partir do momento em que passaram a impor um novo modelo de construções de casas, oportunizando lucros, pois a população seria obrigada a ter que adequar-se a esse novo padrão de edificação, e que de fato houvesse a efetividade dessas vontades (LIMA, 2017a, p. 59). A industrialização agregou-se a este processo, inserindo mais e mais pessoas às cidades e, ao não conseguirem adquirir suas condições de moradia, agravou-se mais os problemas sociais urbanos e consequentemente o crescimento das áreas ilegais. Contudo, o governo brasileiro disponibilizou crédito para as empresas privadas no intuito de que produzissem habitações. Todavia, os empresários não obtiveram lucros com a construção de habitações individuais, devido à grande diferença entre os preços delas e das moradias informais; alguns passaram a investir em loteamentos para as classes altas, enquanto outros edificaram prédios para habitações coletivas, 38 que passaram a figurar como a principal alternativa para que a população urbana pobre pudesse permanecer na cidade, especificamente no centro, onde estariam próximos das indústrias e de outras possibilidades de trabalho (PECHMAN & RIBEIRO apud MOTTA, 2014, p. 1-2). A pressão social na crescente demanda por moradias evidenciou a incapacidade do setor privado do suprimento de tal demanda, sendo assumida pelo Estado, que passou a ser cobrado tanto pelos trabalhadores como pelo empresariado, pois o valor em alta dos aluguéis demandava a reivindicação de maiores salários (MOTTA, 2014). Têm-se o início do esboço do que seria uma política habitacional, Motta (2014), afirma que começou com a proposição do financiamento pelos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) para casas de aluguel, destinada apenas aos associados dos institutos, ou seja, a classe média. Também se construiria novas habitações, ao mesmo tempo que o governo da época tratava a favelização como “caso de polícia”, agravando a questão urbana, realizando remoções e uma política de erradicação de favelas. Antes de discutirmos os IAPs, é importante destacar que a lei Elói Chaves (Decreto 4.682, de 24/01/1923) foi a primeira legislação a regular a previdência do país, quais sejam as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs). As CAPs eram administradas por um colegiado composto de empregados e empregadores e sua estratégia de contribuição era tripartite: empregador, empregado e Estado. As supracitadas caixas foram referência para a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) (BARBOSA, 2016, p. 23). Com isto, nos anos 1940 têm-se início a atuação do Estado na habitação popular, mesmo que sem expressão. O surgimento da Fundação Casa Popular (FCP) em 1946, embora ineficaz por falta de recursos e regras para seu financiamento, resultou em poucas unidades entregues, tendo existido “para funcionar como uma resposta social a um contexto de fortes pressões dos trabalhadores e de crescimento do Partido Comunista.” (MOTTA, 2014, p. 3). Todavia, o problema da escassez de moradia e a inconstância de recursos sempre persistiram, uma vez que o Estado era o principal financiador e a verba para esse órgão dependia da distribuição interna dos recursos e da situação econômica do país (AZEVEDO & ANDRADE, 1982). Outro grave problema eram as relações clientelistas e o autoritarismo, combinação característica do período populista, que determinavam as regiões onde seriam construídos os conjuntos e os critérios de seleção dos candidatos. A postura autoritária também se fazia presente após a entrega dos apartamentos nos conjuntos: técnicos da FCP visitavam os apartamentos 39 para avaliar e orientar o comportamento social e individual dos moradores, que poderiam ter seus contratos rescindidos caso tivessem conduta nociva ‘‘à ordem ou à moral do Núcleo Residencial, ou criarem embaraço à sua Administração” (AZEVEDO & ANDRADE apud MOTTA, 2014, p. 4). Nos anos 1940 o Estado ainda cria o Decreto-Lei do Inquilinato, que congelava o valor dos aluguéis e regulamentou as relações entre proprietário e inquilino, vigorando por 22 anos. Houveram outras tentativas de desenvolvimento na política de habitação como a do Banco Hipotecário em 1953 e a formulação do Plano de Assistência Habitacional, assim como a criação do Instituto Brasileiro de Habitação, ambos em 1961, que não chegaram a ser implementadas (MOTTA, 2014). O golpe militar de 1964 extinguiu a FCP, dando lugar ao Plano Nacional de Habitação (PNH), que “buscava a dinamização da economia, o desenvolvimento do país (geração