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Apresentação Um livro que embriaga I Nietzsche relata que seu encontro com O mundo como vontade e como representação, obra máxima de Schopenhauer, se deu ao entrar num antiquário em Leipzig, ano de I865, e ter sua atenção chamada para o livro ali exposto. Comprou-o e teve a sua vida mudada para sempre. Ao iniciar a leitura, não mais conseguiu se desapegar das páginas. Sentia-se embriagado com as revelações ali feitas. Encontrara o seu "primeiro e único educador", que tinha escrito aquele livro para ele e lhe falava intimamente numa linguagem perfeitamente clara. Sua confiança naquela forma de pensamento foi completa. II O que Nietzsche diz traduz boa parte da experiência de desconcerto e deslumbramento vivida por muitos leitores de O mundo como vontade e como representação, publicado em I8I8 com data de I8I9. Eu mesmo, ao final da minha graduação em filosofia na Universidade de São Paulo (USP) , casualmente remexendo nas prateleiras da biblioteca da faculdade de educação, descobri uma edição em francês da obra, tradução de A. Burdeau. Era noite, não tinha nada a fazer no campus universitário nem em meu alojamento estudantil. Pus-me a ler o exemplar encontrado. O tempo passou num átimo e a noite com seus fantasmas foi esquecida. Era difícil largar o livro. A biblioteca ia fechar e tinha de voltar para o meu barulhento quarto, à beira de uma movimentada avenida. Mas a obra não me saía da mente, a ponto de não ouvir mais o barulho dos escapamentos. Fiquei ansioso pelo dia seguinte. E assim, durante quatro dias seguidos de leitura, levei a termo a última página da obra. Tempos depois compreendi perfeitamente o relato de Nietzsche. Dali em diante havia descoberto não só o filósofo "educador" com quem queria dialogar sobre a filosofia, mas um autor que precisava verter para a "última flor do Lácio", e propiciar assim ao público de língua portuguesa uma das prosas mais agradáveis da língua alemã. Só que não sabia alemão. Que fazer? Matriculei-me num curso do Goethe-Institut São Paulo. Dessa forma, imitando Borges, aprendi alemão com o intuito de ler no original e de traduzir Schopenhauer. Depois do mestrado e doutorado concluídos, nesse ínterim uma estada de três anos na Alemanha (Frankfurt e Gottingen) como bolsista do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD )/Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico, iniciei em 200I a presente versão. Agora, em 2005, tenho o prazer de oferecer ao público de língua portuguesa uma das obras filosóficas mais marcantes do pensamento ocidental, imprescindível para o vislumbre do horizonte em que se movem as chamadas filosofias do impulso com sua reflexão sobre o irracional e o inconsciente, bem como a crítica a esse irracional que também passa por uma crítica da razão, esta que não mais define o homem como uma substância essencialmente pensante. Nesse sentido, desmascara-se o narcisismo racional do homem, pois ele não só se vê despido da primazia de uma razão legisladora que o conduz a um bom télos mas também descobre o fundo sem fundamento da própria natureza. Um fundo volitivo, insaciável, desejante, sem objetivo final definido, o que torna a existência absurda em sua ânsia de viver e obter satisfação de desejos. Uma existência que é comparável a um negócio que não cobre os custos do investimento, pois ao fim sobrevém como recompensa aos esforços, a morte. A bancarrota é certa. Para enegrecer mais ainda esse cenário, a Vontade, coisa-em-si dos fenômenos do mundo, é uma autodiscórdia, crava os dentes na própria carne, o que se espelha no mundo diante de nós como a luta de todos contra todos. "Toda vida é sofrimento." E mesmo que os desejos sejam satisfeitos e levem ao alívio do sofrer, contra cada desejo satisfeito existem dez que não o são; e o desejo satisfeito sempre volta ao fim da fila, exigindo nova satisfação, com o que a ilusão se renova. Se os desejos são satisfeitos muito rapidamente, sobrevém o tédio; se demoram, sobrevém a necessidade angustiosa. O primeiro é mais comum às classes sociais ricas; esta última, às classes sociais pobres. Paliativos contra tal estado de coisas são sobretudo os narcóticos e as viagens de turista. Em ambos os casos o homem tenta fugir de si mesmo, da própria condição, do seu "maior delito" - ter nascido. A razão é impotente para mudar esse estado de coisas; Schopenhauer a aponta como secundária em relação ao querer cósmico, é um mero momento dele, e nisso o filósofo revoluciona a tradição, para a qual o querer era um momento do racional, como Descartes exemplarmente indica em suas Meditações metafísicas. O homem, assim, perde a proteção da faculdade racional, e os demônios do mundo são revelados, vê-se nitidamente o inferno do sofrimento e da irrazão, comprovados pelas guerras e violências em seus aspectos mais tenebrosos. O pano de fundo da filosofia schopenhaueriana, como se vê, é o pessimismo metafísico. Este, entretanto, não impede uma espécie de otimismo prático, proporcionado pela eficiência da sabedoria de vida em nos desviar de males. Otimismo no qual, em certa medida, pode-se incluir a alegria da fruição estética da natureza e da arte, autêntico bálsamo para a existência fundamentalmente sofredora do ser humano. Foi esse papel conferido pelo autor ao belo, que por instantes nos resgata do sofrimento, por conseguinte o lugar da estética em sua filosofia, o que a levou a ser primeiro recebida e assimilada com entusiasmo por artistas. Uma fortuna receptiva que se deu também no Brasil, como o demonstram os seus dois leitores mais famosos, Machado de Assis e Augusto dos Anjos, que não apenas o citam nominalmente em crônicas, poemas, mas também se aproximam várias vezes em suas obras, conscientemente, de sua cosmovisão, num diálogo que muitas vezes confunde as fronteiras da literatura com as da filosofia. Quem leu O mundo e Quincas Borba ou Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis concordará que, em muitos momentos, há ali um diálogo rico e original da literatura com a filosofia. Quanto a Augusto dos Anjos, há um poema seu intitulado "O meu Nirvana", referência ao nirvana schopenhaueriano da negação da Vontade ocasionado pela intuição da Idéia; outro momento, o da poesia "Monólogo de uma sombra", elogia o papel balsâmico da arte, tema da estética de O mundo. Nos meios acadêmicos a recepção de Schopenhauer se deu com reticências. Isso se deve em grande parte, a meu ver, a três fatores: sua crítica à razão (as universidades costumam ter grande apreço às formas de pensamento que indicam a razão como princípio do mundo, pois isso significa a entronização do homem como coroa da criação, o que lhe salvaguarda sua dignidade de pessoa e seu pretenso poder em face da natureza e dos animais); o irracional como princípio do mundo (gera desconforto ao nosso narcisismo saber que há algo em nós que não é nós mesmos, um fundo abismal e insondável que nos tem em vez de nós o termos); e, talvez para surpresa de muitos, o estilo literário de Schopenhauer, de agradável leitura (isso gera desconfiança em face do rigor conceitual e da profundidade de pensamento; aliás, o filósofo já se antecipava respondendo que um lago suíço, límpido, parece raso, mas uma prospecção dele revela as suas profundidades). Indicar, porém, um princípio irracional do mundo e mostrar o papel secundário da razão na natureza humana não significa ser irracionalista; ao contrário, identificar o inimigo pode conduzir a estratégias de combate, que a própria razão fornece quando vislumbra o todo da vida e o conhecimento conduz à redenção e negação desse próprio irracional, como no caso da ascese ou do nirvana budista. Ademais, a sabedoria de vida nos ajuda a enfrentar com prudência a eclosão do irracional na vida prática cotidiana. Já o estilo claro, em contraste com a tradição alemã de filosofia e próximo da britânica, apenas evidencia a honestidade intelectual de pensar e expor claro, em vez de esconder-se em obscuridades estilísticas que não significam,necessariamente, profundeza de pensamento, ao contrário, na maioria das vezes significa ausência dela. O insucesso de Schopenhauer nos meios acadêmicos se prefigurou na época em que ele leu suas preleções na Universidade de Berlim, em 1820, ofuscadas totalmente pelas de Hegel, a tal ponto que teve de desistir da carreira universitária, mas não de uma perseguição filosófica estilístico-conceitual àquele que disse que "todo racional é real, todo real é racional", o que constitui um modo de ver o mundo situado no antípoda de Schopenhauer. Entretanto, fora dos muros acadêmicos, o pensamento do filosofo de Frankfurt já repercutia nas concepções de A origem da tragédia, de Nietzsche, no par conceitual apolínio (princípio de razão: espaço + tempo + causalidade: formas bem definidas da obra de arte, o belo, e das coisas do mundo) e dionisíaco (Vontade: o caótico e a embriaguez da criação: a música, a dança) de Nietzsche, bem como, em tal filosofia, o posterior conceito de Vontade de poder, cunhado a partir da leitura do conceito de Vontade schopenhaueriano; E. von Hartmann empreende uma tentativa estranha de unificá-lo com Schelling e Hegel; e a psicanálise de Freud absorve por completo a teoria dos impulsos inconscientes, do papel nuclear da sexualidade na vida humana, do retorno ao inorgânico etc. de O mundo. Nos meios acadêmicos franceses o autor passa despercebido e até hoje ainda se encontra envolvido em penumbra. O mesmo não se dá na Alemanha, para o que em muito contribuiu sua recepção pela Escola de Frankfurt. Quanto à Inglaterra, graças ao domínio da filosofia analítica, o destino de qualquer filosofia continental é quase sempre a má compreensão e consequente assimilação falha, se bem que em referência a Schopenhauer tenhamos lá a exceção de B. Magge. Ora, como o Brasil tem uma tradição filosófica acadêmico-uspiana marcadamente francesa, era natural que, num primeiro momento, também importássemos de lá a penumbra a envolver o pensamento schopenhaueriano. Isso começa a mudar com uma tese doutoral defendida na Alemanha, de Muriel Maia, e publicada em 1991 pela Vozes, A outra face do nada. Em 1994 vem a lume pela Edusp/Fapesp, baseada em tese doutoral defendida no Brasil, de Maria Lúcia Cacciola, Schopenhauer e a questão do dogmatismo. A partir daí os estudos schopenhauerianos ganham significativo incremento entre nós, a ponto de bianualmente realizar-se numa cidade brasileira um colóquio em torno do pensamento do autor de O mundo, fórum privilegiado para discutir as mais diversas e instigantes temáticas filosóficas, não só relacionadas a Schopenhauer, mas também a um espectro de autores e temas que de algum modo permitem a prática da autêntica filosofia (que, como ensinava o velho e bom Platão, é essencialmente diálogo. Como se nota pelo impacto nos autores antes citados, Schopenhauer, de fato, está na base do pensamento contemporâneo. Ora, se ele abre o horizonte para as filosofias do impulso como a de Nietzsche e a psicanálise de Freud, então em vez de dizer que os pilares do pensamento contemporâneo são Nietzsche, Freud e Marx, como o quer Foucault, talvez mais acertado seria dizer que esses pilares são Schopenhauer e Marx. Sem o primeiro a filosofia da Vontade de poder e a psicanálise seriam impensáveis. Há na base desse edifício do saber contemporâneo dois grandes desmascaradores da condição humana, um no plano econômico, que envolve a luta de classes, outro no plano metafísico-imanente, que envolve a autodiscórdia essencial do em-si, a Vontade cega e irracional, que se espelha em luta de todos contra todos. Os dois diagnosticam o que há de mais real do mundo como um mal radical - que se exprime em luta de classes ou de indivíduos, na exploração e uso violento do semelhante sob diversas formas - e não estão contentes com ele: elogiam a sua supressão/superação (Aujhebung), um pela via da revolução política, que conduziria a um reino da liberdade, outro pela via da supressão da individualidade, a viragem individual, que é a negação da Vontade, liberdade no místico. E aqui entra em cena outro aspecto de peso do pensamento de Schopenhauer: foi o primeiro filósofo do Ocidente a propor uma intersecção visceral entre a filosofia oriental (budismo, pensamento vedanta) e a filosofia ocidental de inspiração platônico-kantiana. Embora reivindicasse para si um "pensamento único" e este se tenha desenhado desde a juventude, ainda assim, quando da elaboração da sua obra máxima, em Dresden, o autor teve contato com a literatura filosófica oriental em que é exposta a doutrina de que, por trás dos acontecimentos, turvados por um véu de Maia, encontra-se a realidade última e verdadeira das coisas, alheia ao tempo e à mudança. Realidade essa sem começo e fim, idêntica e inalterável, a tudo animando. Essa concepção reaparece justamente na noção de Vontade cósmica (e Idéias platônicas, arquétipos eternos e imutáveis da natureza, "atos originários" do em-si volitivo) una e indivisível, coisa-em-si imperecível da pluralidade dos fenômenos ilusórios regidos pelo chamado princípio de razão, forma de conhecimento do entendimento ou cérebro, já radicada neste e que permite ao indivíduo conhecer tão-somente as aparências das coisas, não a natureza Íntima delas, portanto o seu véu de Maia propriamente dito. Quanto ao papel do budismo em seu pensamento, é desempenhado especialmente no livro IV de O mundo, ou seja, na metafísica da ética, que trata da ação humana não apenas no domínio de sua significação usual que leva o egoísmo ou a malvadeza a darem as cartas nos relacionamentos humanos, mas sobretudo daquela ação praticada por ascetas e santos, que negam a Vontade e os sofrimentos do mundo, redimindo-o, instalando assim uma contradição no fenômeno. É como se o asceta quisesse um não-querer; seu corpo ainda afirma aquilo que intimamente ele já negou. Nesse instante, a negação da Vontade é referida ao nada. III Este primeiro tomo de O mundo como vontade e como representação se subdivide em quatro livros. Dois elegem o tema da representação e dois o tema da Vontade. Cada livro assume um ponto de vista diferente da consideração. O primeiro, sobre o mundo da "representação submetida ao princípio de razão", aborda os fenômenos da realidade dados no espaço, no tempo e na causalidade (princípio de razão do devir), tendo-se aí "o objeto da experiência e da ciência"; examina como se constroem as imagens do mundo, as intuições empíricas em nosso entendimento, e qual o papel da nossa faculdade de conhecimento nessa tarefa; é prestado um tributo à epistemologia kantiana e aos ensinamentos vedantas, no sentido de que o véu de Maia de nossa mente só permite conhecer fenômenos transitórios, não a coisa-em-si, pois o tempo, "forma arquetípica" da finitude, torna tudo aquilo que nos aparece, perecível, um rio heraclitiano no qual não podemos entrar duas vezes, pois já somos outros e as águas mudaram. É aí que se apresenta a angustiante condição humana de ser para a morte, com o nosso corpo orgânico. Mas como não há males que não trazem um bem, tudo isso inspira ao filosofar, e a morte é declarada a musa da filosofia. O corpo animal, "objeto imediato do conhecimento", ponto de partida para a apreensão cognitiva do mundo, é posto no centro da teoria do conhecimento. Eis aí um dado importante para a construção de uma metafísica imanente pós-Kant e sua crítica aos dogmatismos metafísicos, ocupados com indemonstráveis objetos transcendentes, além da experiência dos sentidos (Deus, mundo, liberdade, imortalidade da alma). No livro II se encontra a primeira consideração sobre o mundo "como Vontade", no aspecto da sua "objetivação". Surge aí a teoria dos "atos originários" da Vontade, as Idéias platônicas, arquétipos imutáveis e eternos, que Schopenhauer interpreta como espécies da natureza. O filósofo, a partir novamente do corpo humano, agora considerado uma "objetidade da Vontade", encontra via de acesso privilegiado ao íntimodos corpos do mundo, pois o investigador inspeciona a sua subjetividade e intelige que os movimentos por motivo do seu corpo têm por mola impulsora o querer interior. Apreende, de dentro, a causalidade (motivos), isto é, a própria natureza volitiva. Em seguida, analogicamente, estende esse achado por intelecção a todos os corpos do mundo e chega por conclusão analógica, guiado pelo sentimento, ao conceito de Vontade de vida como coisa-em-si universal que se objetiva em fenômenos. A objetivação da Vontade traz consigo a autodiscórdia originária dela, que se espelha na guerra de todos os indivíduos pela matéria constante do mundo, com o fim de exporem, afirmarem a sua espécie. Isso gera sofrimento e dor em toda parte onde há vida. Tais reflexões levam a um pessimismo metafísico. O livro III trata da metafísica do belo e retoma a consideração do mundo "como representação", porém agora "independente do princípio de razão". As Idéias platônicas, espécies da natureza expostas em fenômenos e apreendidas pelo princípio de razão turvadamente - e aqui se tem no tempo uma "imagem móvel da eternidade" -, podem ser intuídas límpida e puramente por meio da intuição estética. Tem-se o "objeto da arte", tema privilegiado de um livro que tanto impactou artistas plásticos, poetas, romancistas, músicos, escultores. A contemplação estética é elevada a um estado de forma de conhecimento do mundo, que compete com as ciências e as supera, se se leva em conta a satisfação e alegria metafísica que proporciona. Compreendemos o mundo ao ler uma bela poesia, ao ver uma bela estátua grega ou romana, ao fruirmos um belo Rafael ou Vermeer, ao ouvirmos um Brahms ou Beethoven, ao nos perdermos num belo panorama marítimo ou montanhoso. O espectador se funde à natureza e desaparece, nesse momento beatífico, a diferença entre eu e qualquer coisa exterior a mim: vê-se através do véu de Maia e da pluralidade dos indivíduos. A ver O mundo como vontade e como representação A verdade é revelada pela beleza. Retomando um antigo mote platônico, o belo, o verdadeiro e o bom vão juntos. A contemplação estética é um bálsamo em meio às durezas da vida, espécie de hora de recreio que nos dá um descanso da seriedade da existência. "Séria é a vida, jovial é a arte", diz Schiller. O livro IV retoma a consideração do mundo "como Vontade", porém agora trata do momento decisivo de sua "afirmação ou negação". Examina as ações humanas e seu sentido. É uma metafísica da ética. Chegando ao conhecimento de si, a Vontade cósmica, num ato de liberdade no mundo da necessidade fenomênica, e iluminada pelo conhecimento do todo da vida, de seus conflitos e sofrimentos em toda parte, decide se continua a querer esta vida sofredora ou se renuncia a ela: no primeiro caso se tem, no ápice, a figura do herói; no segundo, a figura do asceta. Aqui o budismo entra em cena, pois o ato de negação da Vontade é chamado por Schopenhauer de nirvana. Num mundo parecido ao inferno e de tormentos por todos os lados, o santo vê a humanidade sofredora, confunde-se compassivamente com ela e desiste da vida: efetua a grande viragem, sabe que a única saída, a grande saúde é o nada. Mas tal estado não é de tristeza, como se poderia pensar num primeiro instante, e sim de alegria interior, bem-aventurança. O asceta sabe que com a negação do querer nega, ao mesmo tempo, a fonte dos sofrimentos. É um momento em que o pensamento de Schopenhauer·desemboca no misticismo, no silêncio em face do grande acontecimento do mundo, pois a linguagem só pode mostrar tais acontecimentos, indicar biografias de santos, sem poder esgotar o sentido deles. Algo dramático para alguém, o filósofo, que lida primariamente com a linguagem no ofício de expressar-se sobre a condição humana e do cosmo. O sentido do mundo não é apreensível pela linguagem (como já não· era o acesso à coisa-em-si, feito pelo sentimento interno da causalidade corporal). Paradoxalmente, é no silêncio que melhor se apreende (sente) o sentido daquilo que pode ser claramente dito. É no silêncio que se apreende o quê do como do mundo. Semelhante limite da expressão lingüística é sintomaticamente indicado na "palavra" final de Schopenhauer, grafada no último termo do livro IV de sua obra, e destacada de todo o corpo do texto por um travessão, - “Nichts" - nada. Seja pela teoria do conhecimento, metafísica da natureza, metafísica do belo ou metafísica da ética, o autor pretende sempre ter à mão uma porta de entrada ao conteúdo de seu "pensamento único". Uma parte se refere à outra e é por ela pressuposta. Apresenta uma "coesão orgânica", isto é, "uma tal em que cada parte tanto conserva o todo quanto é por ele conservada, nenhuma é a primeira ou a última, o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte não pode ser plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido previamente" (prefácio à primeira edição). A prosa clara e bem ritmada (repetições) do filósofo até nos permite começar a leitura de sua obra por qualquer um dos seus quatro livros, mas, didaticamente, convém seguir a ordem por ele escolhida. Referência: BARBOZA, Jair. Apresentação. Um livro que embriaga. In: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, I. tomo. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
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