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A invenção do psicológico Quatro séculos de subjetivação FIGUEIREDO

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A invenção do psicológico
Quatro séculos de subjetivação
1500- 1900
A GESTAÇÃO DO ESPAÇO PSICOLÓGICO NO SÉC. XIX: LIBERALISMO, 
ROMANTISMO E REGIME DISCIPLINAR
O século XIX pode ser e tem sido caracterizado como o do apogeu do liberalismo e do 
individualismo como princípios de organização econômica e política (cl., p. ex., Polany, 
1980). É sabido, também, que no campo das artes e da filosofia o século XIX assistiu ao 
pleno desabrochar dos movimentos românticos (cf., p. ex., Gusdorf, 1982 e 1984). 
Finalmente, desde Foucault (1977) o mesmo século pode ser identificado como o do 
início de uma sociedade organizada pelo regime disciplinar. Poderíamos pensar que uma 
destas caracterizações deva prevalecer sobre as demais, ou ainda que elas se apliquem a 
diferentes nações ou culturas, ou, finalmente, que correspondam a momentos distintos 
da história do Ocidente. Meu objetivo neste capítulo será o de defender a tese de que as 
três formas de entender o século XIX são legítimas simultaneamente, embora, está 
claro, contraditoriamente. Os destinos do liberalismo, do romantismo e das práticas 
disciplinares foram bastante diversos no entanto, nenhum deles perdeu de todo a 
vigência até os nossos dias, em que pesem as transformações porque passaram e os 
diferentes pesos que foram assumindo na cultura contemporânea. Pretendo ainda sugerir 
— deixando o desenvolvimento dos argumentos para uma outra ocasião — que o 
espaço psicológico, tal como hoje o conhecemos, nasceu e vive precisamente da 
articulação conflitiva daquelas três formas de pensar e praticar a vida em sociedade.
As vicissitudes do liberalismo e do individualismo
O liberalismo na sua versão original, formulada em suas linhas básicas por John Locke 
(1632-1704), sustentava a tese dos direito naturais do indivíduo a serem defendidos e 
consagrados por um Estado nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos 
autônomos para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar a 
vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da vida doméstica. seja 
no dos negócios, mas apenas regular as relações entre indivíduos para que nenhum 
tivesse seus direitos violados pelos demais. Era fundamental, portanto, preservar OS 
espaços da privacidade contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, 
limitar o alcance e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer justiça 
e punir deveria estar completamente subordinado à função de salvaguarda dos direitos 
individuais, entre os quais se destacavam os dom à liberdade e à propriedade. Para 
manter o Estado nessa condição limitada, convinha separar os poderes (Poder 
Executivo, Legislativo e Judiciário), distribuí-los regionalmente (conforme o 
preconizado pela doutrina federalista) e valorizar, à medida do possível, as tradições 
locais e as experiências particulares. Com ênfase na jurisprudência e na consideração de 
casos concretos, em detrimento de leis gerais e racionalmente construídas. Nem todas 
estas decorrências estavam previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno 
espírito do liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito ao 
espaço privado são as duas faces do mesmos apego ao particular, ao individual.
Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para o pleno 
desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada. Em c os agentes 
econômicos se encontravam e se deixavam articular uns com os outros nos espaços 
livres dos mercados de bens e de trabalho, O liberalismo econômico (cf. Lukes. 1975; e 
Polany, 1980) defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica, 
confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual dos agentes e na 
função auto-regulativa do mercado como as condições suficientes para o progresso e 
para a estabilidade da vida social. Ora, somente no final do século XVIII e no início do 
XIX a doutrina do liberalismo econômico e a auto-regulação da sociedade pelo mercado 
vieram à luz.
No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível de elaboração, havia 
surgido uma versão das idéias liberais que dava ao liberalismo um novo rumo que. 
progressivarnente, o foi descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy 
Bentham (1748-1832), o criador do ‘utilitarismo’. De certa forma, pensar em termos de 
eficiência, interesse e utilidade pertencia também à tradição liberal. Contudo, o 
utilitarismo irá substituir a crença e a defesa intransigente dos direitos naturais dos 
indivíduos pelo cálculo racional da felicidade. Em outras palavras, a índole empirista do 
liberalismo vai ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado já 
não se mantém nos limites de suas antigas funções, mas vai gradativamente assumindo a 
de intervir positivamente na administração da vida social. “A missão dos governantes 
consiste em promover a felicidade da sociedade, punindo e recompensando” (Bentham [ 
l 19).
Há, ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata de derrubar leis e 
tradições que obstruem a livre ação individual, a del’esa pelos agentes sociais de seus 
interesses e felicidades. Todavia, mesmo este combate já não se centra na questão da 
liberdade e dos direitos naturais, senão que nas consequências positivas ou negativas 
das leis e das ações que propiciam ou proíbem. “O objetivo geral que caracteriza todas 
as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em aumentar a felicidade global da 
coletividade” (Ihid.; p. 59).
Por aí se vê que não apenas a ênfase na garantia de direitos é substituída pela ênfase nas 
conseqüências, como estas são avaliadas em termos de ‘coletividade’, de forma a, 
supostamente, favorecer a maioria, mesmo que em prejuízo de alguns indivíduos. Trata-
se, efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público em termos da 
soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em felicidade de cada indivíduo 
sejam as unidades básicas de cálculo — o que traduz uma posição predominantemente 
individualista —‘ o que importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande 
balanço coletivo da soma total de felicidade:
A comunidade constitui uni corpo fictício, composto de pessoas individuais (...) Qual é 
nesse caso o interesse da comunidade?
É inútil falar do interesse da comunidade se não se compreender qual é o interesse do 
indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um indivíduo, ou favorece ao 
interesse de um indivíduo quando tende a aumentar a soma total dos seus prazeres. ou 
então, o que vale afirmar o mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. 
(Ihid.; p. 4)
Bentham não fica, como se sabe, na formulação das questões meramente filosóficas e 
programáticas. Mas procura elaborar as regras dc cálculos, tanto para a avaliação das 
felicidades individuais como para a estimativa da soma total de felicidade.
Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos destinados a produzir 
conseqüências — e não mais garantir direitos — como a eficácia delas deveria repousar 
numa concepção da natureza humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para 
Bentham, são sensíveis às conseqüências do que fazem: “A natureza colocou o gênero 
humano sob o domínio dc dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles 
compete apontar o que devemos fazer bem Como determinar o que na realidade 
faremos” (Ibid.; p. 3).
As leis devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de Castigos e 
recompensas e, a longo prazo. Propiciar uma ampliação das oportunidades de condutas 
recompensadas.
Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e tecnocrática do 
liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades básicas da ação e são deixados livres’ 
para escolher entrecastigos e re compensas. Ao Estado não cabe uma função 
primordialmente coercitiva, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos 
naturais do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das privações. das 
punições e das recompensas liberadas para os comportamentos individuais, instaurando 
uma nova modalidade de poder. Uma for ma acabada e sofisticada de benthamismo será 
desenvolvida no século XX, na engenharia comportamental’ dc B. F. Skinner.’ Já o 
próprio Bentham. contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de programação 
de ‘contíngências ambientais’, como as industri-houses e, cabe recordar, foi dele a 
invenção do panopticon, consagrado por Foucault (1977) como emblema do regime 
disciplinar.
Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas, sanitárias e militares 
assumem novas funções; da mesma forma, a família deixa de ser o espaço da liberdade 
privada, em contraposição às regras dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. 
cap. 3), para se converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a, 
simultaneamente, individualizar e normatizar suas crianças, jovens e adultos. (Nestas 
novas condições, como assinala Sennett, 1978, a liberdade individual poderá com mais 
sucesso ser procurada no anonimato das cidades do que dentro de qualquer coletividade 
regida pelo princípio utilitário.)
Por tudo isso. Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha negra. Mesmo um 
liberalismo reformista como o de Dewey, que não está absolutamente livre da marca 
utilitária, procura restaurar o valor da liberdade individual que o cálculo da felicidade 
total de Bentham havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos 
mais comprometidos com o liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem 
considerar Bentharn como um dos seus e não o perdoam pela tendência coletivista que 
ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de elementos racionalistas e 
construtivistas na boa tradição inglesa (Cray, 1988; e Hayeck, 1967).
Estas transformações do velho liberalismo no utilitarismo disciplinador no século XIX, 
antes de se fazer sentir no plano da vida social corno uma tendência dominante, foi 
vivida na pele por um dos grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Miii (i806
O pai de Stuart Mdl. James Mili (1773-1836) ,foi o principal discípulo e aliado de 
Bentham e organizou sua família e educou seus filhos seguindo estritarnente suas 
opções filosóficas e políticas. John foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina 
capaz de constituí-lo, desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. 
Nada impediu. contudo, que ele viesse a sofrer durante a adolescência e início da idade 
adulta uma série de crises existenciais. Queixava-se ele de um vazio, de uma aridez, de 
urna falta de sentido e de valores autênticos que o tornam uma das primeiras vítimas 
notáveis do niilismo. Foi no contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos 
românticos ingleses e alemães, alguns dos quais se tornaram seus grandes inspiradores e 
lhe forneceram os temas e valores em torno dos quais elaborou sua versão do 
liberalismo.
Na obra de Stuart Mili há claros ingredientes da tradição iluminista: por exemplo, ele se 
dedicou ao desenvolvimento dos princípios do associacionismo que lhe proporcionavam 
urna concepção científica, elementarista e mecanicista da mente. Concebeu, igualmente, 
a criação da etologia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter a partir 
das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual que de alguma forma se 
aproxima da fisionomia de Lavater (cf. cap. 3) e da frenologia de Gall: ambas as 
disciplinas obedeciam ao mesmo intuito de correlacionar o público ao privado, dando ao 
privado uma expressão pública legítima (a fisionomia para Lavater. a conformação do 
crânio para GaIl e OS comportamentos para Stuart MilI) e. cm contrapartida, permitindo 
o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de interesse assinalar, 
inclusive, como na obra contemporânea de Honoré de Balzac (1799-1 850) as três 
abordagens são mobilizadas na caracterização dos personagens. Na verdade, embora 
não cite Stuart Mili — mas se refere profusamente aos outros dois —, Balzac concebia 
sua obra ficcional corno obra de conhecimento sociológico e ela de fato pode ser lida 
como unia concretização do projeto etológico dc MilI.
Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a reunião de elementos 
liberais e românticos promovida por este genuíno filho precoce do regime disciplinar.
No seu clássico On iibertv (1859). que traz como epígrafe um trecho dc Humboldt que 
nos coloca de chofre no seio do ideário romântico. Stuart Mili formula uma proposta dc 
metas e formas dc vida social e política em que as conquistas civis liberais são 
colocadas a serviço dos valores românticos. Decerto que as marcas da disciplina e da 
doutrina utilitária estão aí presentes: estão, contudo, confinadas a certas situações-limite 
que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o governante progressista e 
civilizado tem o direito de exercer o poder disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da 
civilização; a coerção da espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de 
lidar com marginais e criminosos que põem cm risco os direitos alheios.
Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade, em contraposi ção ao 
indivíduo, só tem interesse indireto, supondo-se mesmo que te nha algum: queremos 
nos referir àquela que compreende toda a parte da vida e da conduta pessoais que 
somente afetam o próprio indivíduo (...) Tal, portanto, a região apropriada da liberdade 
humana. Compreende, em primeiro lugar. o domínio interior da consciência, a liberdade 
de pensa mento, de sentimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento em 
todos os assuntos práticos e especulativos, científicos, morais e teológicos (...) Em 
segundo lugar. o princípio exige liberdade de gostos e de ocupações, a de Jórinular 11,1! 
plano de i’tda que esteja (te acordo com o cara ter do indivíduo, a de dizer o que se 
deseja (...) Em terceiro lugar, da liberdade de cada indivíduo resulta a liberdade, dentro 
de certos limites. de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para 
qualquer fim que não envolva danos a terceiros. (Stuart Mill, l 15—grifo meu)
É interessante observar no trecho acima como, de permeio aos velhos temas liberais da 
‘liberdade negativa’ (a liberdade exercida no espaço esvasiado de controles sociais, ou 
seja. a liberdade na área ( cf. Berlin, 1981; p. 136), já se insinua um tema novo: o da 
liberdade para a formulação de uni projeto individual de vida conforme o caráter do 
indivíduo. Nesta noção de ‘caráter individual’ se expressa a crença cm diferenças 
qualitativas entre indivíduos, ou seja, em diferenças de personalidade, e na noção dc 
‘projeto’ a liberdade se identifica com a autonomia e com o auto desenvolvimento.
No capítulo 1 (introdução) dc On iiherr’m’, Stuart MuI deixava muito claro estar 
escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo ameaçadas pelo 
“fortalecimento da sociedade”, o que em nossa linguagem se expressaria como a 
expansão do regime disciplinar. O segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e 
dc discussão e, apesar de interessante, não é onde se revela a maior originalidade do 
autor. Já o terceiro capítulo intitula-se ‘Da individualidade corno um dos elementos do 
bem-estar’ e é aí que aflora o idcário romântico: a ênfase na diversidade, na 
singularidade, na espontaneidade e na interioridade dos indivíduos; por exemplo:
A natureza humana não é máquina que se possa construir conforme um modelo 
qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefaque se lhe prescrever, mas 
uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de todos os lados, de acordo com a 
tendência de Forças interiores que o fazem um ser vivo. (lhid.: p. 67)
Há aí uma valorização e interpretação da vicia para romântico nenhum colocar defeito. 
Como estamos longe da aridez do mecanismo associacionista ou da psicologia dos 
castigos e recompensas num texto como o que transcrevo a seguir:
Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o entendimento 
(...) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o entendimento: irias não se observa 
a mesma boa vontade no sentido de admitir que também devam ser nossos os nossos 
desejos e impulsos (...) Contudo, desejos e impulsos formam parte do ser humano 
perfeito. tanto quanto crenças e restrições: sendo os impulsos fortes somente perigosos 
quando não convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos e 
inclinações adquire intensidade, enquanto outros, que com eles devem coexistir, 
permanecem fracos e inativos (...) Impulsos fortes nada mais são que o outro nome para 
a energia (...) Aqueles cujos impulsos e desejos são próprios, conforme desenvolvidos e 
modificados pela cultura que lhes é peculiar — diz-se possuir caráter (lbid.; p. 68)
Vinte e três anos depois da morte do pai. o filho de James Miii franqueia o acesso aos 
próprios desejos! É inevitável que esta concepção da natureza humana como desejante e 
impulsiva, é inevitável que esta ‘energética’ e esta concepção não-disciplinar do 
controle dos impulsos (trata-se dc desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de 
domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal, traduziu Stuart Mil! 
para o alemão), assim como Bentham nos evocara a lembrança de Skinner.
É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Miii se opõe ao calvinismo e à sua 
ênfase na contenção dos impulsos e na obediência, para concluir: “Não é desgastando 
no sentido da uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e 
suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os 
seres humanos se tornam objeto de contemplação, nobre e belo” (Ihid.; p. 71).
O reconhecimento e a valorização das diferenças individuais acarretam a reivindicação 
da desigualdade e diversidade nos modos de vida, a liberdade de opções e a tolerância 
diante das minorias,
O quarto capítulo trata dos mesmos lemas sob o ângulo dos limites da autoridade da 
sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final reafirma as mesmas teses no contexto 
de alguns exemplos práticos.
O maior mérito de Ou 1/bem’ reside, creio eu, no seu valor como testemunho pessoal de 
um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto da disciplina utilitarista e vendo ao 
seu redor crescerem as forças coletivas, os controles sociais, o peso da administração 
burocrática e as malhas finas da opinião pública, tenta defender os espaços ameaçados 
da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do liberalismo.
No mesmo século, porém. há uma outra obra, que inclusive exerceu considerável 
influência sobre Stuart Miii, que trata das mesmas questões com uma perspicácia e uma 
capacidade analítica (e profética) inigualáveis. Refiro-me a A democracia na América 
( 1987), de Alexis de Tocqueville (1805-1859).
Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro estudioso do 
individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro contém algumas passagens 
antológicas. No entanto, como veremos, o individualismo segundo Tocqueville não 
consiste apenas na separação e autonomização dos indivíduos, no seu virtual isolamento 
das coletividades e das tradições, no investimento maciço de cada um em si mesmo e na 
própria independência. O individualismo simultaneamente constitui, valoriza e 
enfraquece o indivíduo, dá-lhe mais status e responsabilidades e lhe traz mais ameaças e 
desamparo. Talvez o que haja dc mais instigante nas análises de Tocqueville sejam as 
relações que estabelece entre uma cultura individualista e as novas forças e formas do 
despotismo. Ele observa tanto um crescimento dos espaços de individuação como dos 
poderes das agências governamentais e da opinião pública, os quais tendem a invadir 
progressivamente as esferas da privacidade. São os próprios indivíduos livres, mas 
apequenados, que se entregam a estes novos déspotas, vigilantes e meticulosos, 
organizadores detalhistas das crenças, das condutas e dos sentimentos comuns.
É assim que depois de enaltecer a pretensão de cada americano julgar-se capaz de 
formular seus próprios juízos e defender com bravura a independência de pensamento e 
expressão, Tocqueville (1987; p. 326) nos alerta: “Nos Estados Unidos a maioria 
encarrega-se de fornecer aos indivíduos uma infinidade de opiniões completas e assim 
os alivia da obrigação dc formular opiniões que lhes sejam próprias”.
Da mesma forma quanto aos sentimentos embora os homens numa cultura individualista 
voltem para si todos os seus sentimentos, reconhecendo que não devem esperar dos 
demais muita atenção e apoio, sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes 
extremos voltam naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva 
no meio do abatimento universal. É para ele que as suas necessidades e sobretudo .OS 
seus desejos constantemente os impelem: é ele que tal cidadão acaba por considerar 
como o sustentáculo único e necessário da fraqueza individual. (lhid.: p515)
Este ser imenso tanto pode ser o Estado napoleônico como a grande burocracia estatal 
de um Estado democrático “... e o braço deste Estado vai procurar cada homem em 
particular no meio da multidão (Ibid.; p. 447); ou seja. exerce sobre cada indivíduo 
aquele poder cotidiano e invisível que ao mesmo tempo controla e individualiza.
Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os menores 
cidadãos e a conduzir sozinho cada um deles, nas menores questões (.0.) Não só o poder 
do soberano é amplo, como acabamos de ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas 
esta não basta mais para contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora 
reservado à independência individual (...) Asseguro que não há país da Europa onde a 
administração não se tenha tornado não só mais centralizada, mas também mais 
inquisitiva e minuciosa: por toda a parte ela penetra mais além que outrora nos afazeres 
privados; regula à sua maneira mais numerosas ações e ações menores, e estabelece-se 
em melhor posição todos os dias, ao lado. em volta e acima de cada indivíduo para 
ajudá-lo, aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (lhid.: pp.522-523)
O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais nítida do que 135 anos 
depois Foucault viria ‘descobrir’ com grande estardalhaço: o regime disciplinar com 
toda “... a minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das 
mínimasparcelas da vida e do corpo (Foucault, 1977; p. 129).
Curiosarnente , Tocqueville não é citado por Foucault. Tocqueville está perfeitamente 
ciente de que o próprio desenvolvimento da economia e da sociedade burguesa e 
industrial exigeni maiores intervenções do Estado, maiores investimentos, mais 
regulamentação e mais administração. Antecipa-se nesta sua compreensão do processo à 
tese de K. Polany de que os avanços da administração burocrática e os recuos da 
liberdade individual atendem mais às demandas de uma sociedade burguesa, que assistia 
aos repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação, do que a um 
complô antiliberal, tal corno os próprios liberais costumam entender a história do 
liberalismo (Polany. 1 980).
No entanto, o que me parece ainda mais original e revelador na análise de Tocqueville é 
a sua tese de que a regulação completa, capilar e abrangente das existências individuaisnão é apenas imposta pelo Estado em atenção às demandas da economia e da grande 
política, mas é como que solicitada pelos indivíduos autônomos e livres. Individualismo 
e centralização administrativa não são meros opostos; liberalismo e regime disciplinar 
mantêm entre si relações muito mais perversas do que poderia parecer à primeira vista: 
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia serproduzido no mundo: 
vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se 
voltam sobre si mesmos à procura de pequenos e vulgares prazeres. com os quais 
enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de 
todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a espécie 
humana; quanto ao restante dos seus concidadãos., está ao lado deles, mas não os vê; 
toca-os, mas não os sente, existe apenas em si e para si mesmo...
Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de garantir o seu 
prazer e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando (...) 
Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente e árbitro 
exclusivo; provê a sua segurança, conduz os seus principais negócios, dirige a sua 
indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças: que lhe falta tirar-lhes 
inteiramente, senão o incômodo de pensar e a angústia de viver? (Tocqueville. 1987; 
pp .531-532)
Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta outra face do moderno 
individualismo, seriam maiores na Europa continental, onde inexistia urna longa 
tradição de liberdades individuais, do que nos Estados Unidos e na Inglaterra. Por outro 
lado, mais que em qualquer outra parte, a ditadura da opinião pública seria poderosa nos 
Estados Unidos, onde inexistiam tradições culturais fortes o suficiente para se contrapor 
às pressões das idéias majoritárias.
É um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar. Cabe-nos apenas 
observar a inexorável expansão da sociedade administrada (Habermas, 1978; e Polany, 
1980) e da sua expressão em lormas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em 
contraponto apenas aparentemente dissonante com o aprofundamento do individualismo 
e com as repetidas ressurreições do ideário liberal.
Convém agora acompanhar as peripéctas da outra vertente do pensamento de Stuart 
Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma nova para reanimar o liberalismo 
fraudulento de Jeremy Bentham: a vertente romântica.
O romantismo: promessas e realizações
As relações dos movimentos românticos com o pensamento liberal e com a forma de 
individualismo que lhe corresponde e, mais ainda, com as práticas de poder do regime 
disciplinar são, à primeira vista, de franca exposição. Contudo, tanto o romantismo 
como o iluminismo no século XVIII corresponderam a movimentos de exteriorização 
das experiências privatizadas; por exemplo, na França e na Alemanha foram plataformas 
críticas às convenções, regras e procedimentos de controle absolutistas impostos às 
esicras públicas (cf. cap. 3). Não só pela origem comum, mas pela convivência dc temas 
iluministas e românticos em diversas obras do século XVII impõe-se a necessidade de 
compreender iluminismo e romantismo de forma menos dicotômica e mais articulada. 
Finalmente, a versão do liberalismo de Stuart Mill, que acabamos de resenhar mostra 
como em pleno século XIX o pensamento liberal precisou recorrer ao ideário romântico 
para se fortalecer na sua luta contra os avanços do regime disciplinar. Como todas estas 
evidências não nos devem impedir de também reconhecer o conflito entre iluminismo e 
romantismo, a tarefa da análise deve ser, exatamente, a de revelar como se constitui este 
campo em que iluminismo e romantismo se reúnem e se separam como ingredientes 
mutuamente indispensáveis de uma mesma configuração ideológica. As relações do 
pensamento romântico com o regime disciplinar, entretanto, poderiam ainda nos 
parecer menos complexas, resolvendo-se na forma de pura oposição. Também aqui, 
porém. A realidade não se mostra tão simples, e uma das tarefas da análise será a de 
expor os vínculos menos evidentes que conduzem as águas românticas para o moinho 
da sociedade administrada. Deixarei para uma outra ocasião a outra face do problema, 
ou seja, a que nos revela os avanços do regime disciplinar engrossando as águas 
românticas.
Comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico como crítica ao 
iluminismo, ao liberalismo e ao individualismo da ilustração. Coube, sem dúvida, aos 
artistas, músicos, poetas e pensadores românticos pôr em questão as perspectivas do 
iluminismo como princípio civilizatório. Tanto a epistemologia iluminista — empírica e 
racional — como os valores liberais de independência individual, e a conjugação destes 
traços numa interpretação individualista da vida social (a qual incluía tanto a noção de 
um contrato firmado entre indivíduos livres para a instituição da sociedade como a 
articulação dos átomos econômicos através dos mercados e de suas leis impessoais) 
foram rejeitados. O próprio termo — ‘individualismo’ — nasceu na França como 
conseqüência de uma reação negativa do pensamento conservador romântico aos ideais 
e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975) e com este sentido pejorativo o 
termo invadiu outros ares culturais.
Os movimentos românticos, na sua dimensão política, se apresentaram ora como uma 
face nitidamente conservadora e tradicionalista, buscando em formas arcaicas de 
organização social uma saída para os impasses do individualismo, ora com uma face 
revolucionária, lançando-se então, na direção do futuro para a superação do 
individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes ficavam completamente 
separáveis uma da outra. De qualquer forma ambas sempre corresponderam a um 
projeto de restauração. Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração dc 
valores autênticos, restauração de modos dc relação entre os homens e entre eles e o 
mundo físico e histórico que trariam de volta a integridade, a espontaneidade e a 
fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta medida, os românticos criaram, eles 
também, uma noção de individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais 
definido pelo isolamento e pela privacidade nem pela identidade social, mas pela 
capacidade de se auto propulsionar, auto desenvolver, de criar e, na própria criação, 
transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições. Estas, por sua vez, também 
eram concebidas sob a forma da personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, 
o espírito da religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do que 
matrizes de experiências, representações, sentimentos e possibilidades existenciais.
Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa a liberdade exercida 
no terreno da não-interferência — para uma versão moderna na liberdade positiva — 
como ‘autonomia’ —, processos estes que implicam tanto a transformação dos sujeitos 
naquilo que eles de fato são (a constituição de uma personalidade singularizada), como 
na permanente perda de suas identidades convencionais: o ‘tornar-se o que 
verdadeiramente se é’ contrapondo-se ao ‘conservar os papéis e as máscaras 
socialmente convencionadas’.
É sob este aspecto que fazem sentido as diatríbes românticas contra os ‘filisteus’, contra 
os hipócritas, mesquinhos, acomodados e medíocres, os homens livres com suas 
pequenas ambições; a defesa romântica das paixões, dos impulsos. dos estados alterados 
da consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo, das 
experiências mediúnicas e êxtases etc.); a defesa da absoluta liberdade de criação e 
transfiguração — o culto românticode Dionísio a valorização da alienação, da loucura, 
dos desdobramentos da personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as 
representações racionais e para com OS interesses egoístas (ou egóicos); o cultivo da 
imersão nos processos vitais da natureza e da história e a procura dc participação nas 
vivências míticas e arquetípicas, tudo isso faz sentido no bojo das grandes promessas 
restauradoras do romantismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o 
liberalismo de Stuart MilI nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf., a 
propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5).
Trata-se, é claro, de uma restauração paradoxal, que pode passar pela fragmentação da 
identidade e pela mais desregrada extravagância. A fragmentação da identidade, de certa 
forma, é a condição e a conseqüência de uni processo de crescimento e florescimento da 
personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa a subordinar-se 
aos moldes das representações convencionais. É típica do romantismo a ternatização da 
dupla ou tripla identidade. Basta que se recorde a respeito a obra musical de Schumann. 
Quanto à extravagância. Binswanger (1977) ensina que se trata de uma posição 
existencial insustentável: na extravagância, o sujeito “que foi além de todo limite 
razoável” coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado, sem forças para subir mais 
nem condições dc descer para o terreno da humana convivência, Os que se fragmentam 
ou extravagam enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de 
diversos românticos notáveis.
O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi mais que uma coisa de 
‘eleitos’. Aliás, sua força se nutria exatamente da condição de marginalidade que lhe era 
destinada numa sociedade que se pensava predominantemente a partir das concepções 
liberais e que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No entanto, 
a música composta pelos românticos, a poesia escrita por eles e os quadros que 
pintavam mantinham com o público uma relação contraditória: nela estava presente 
tanto o escândalo e a mútua agressão como a reverência e mesmo a veneração às 
grandes personalidades criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o 
caso de tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar.
Em formas e versões menos contundentes e dissonantes, as idéias e modos românticos 
podem ser perfeitamente assimilados pelo liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas 
que vão preencher o vazio deixado pela redução da vida social à dimensão puramente 
instrumental, racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Miii: a 
defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da liberdade positiva, 
tal como aparece na idéia de um projeto de vida que permita o desabrochar das 
virtualidades, das tendências espontâneas ao desenvolvimento individual (neste aspecto, 
Stuart Mill parece estar mais próximo de Rogers do que de Freud. de quem se 
aproximava pelo lado da energética e dos desejos).
Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição mais ou menos 
favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste critério para avaliar, tomar decisões 
e participar da vida em sociedade e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, 
que irá caracterizar a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na 
segunda metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre as 
esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já que a liberdade no 
espaço de não-interferência requer exatamente a clara delimitação do privativo, o 
liberalismo romantizado, embora se proponha também a sublinhar a inviolabilidade do 
privado, conduz a uma perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da 
privacidade que passam a se elevar como organizadores e juízes da vida pública. Desta 
maneira, estaríamos diante de uma decorrência ‘natural’ do desinvestimento do social e 
do superinvestimento do privado de que já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é 
apenas um lado da questão, e talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que 
não se pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas românticas 
com a sociedade administrada.
Sabe-se, por exemplo, que as intervenções estatais visando limitar a liberdade de ação 
dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder de auto-regulação espontânea dos 
mercados de bens e de trabalho foram promovidas por políticos conservadores, aderidos 
às críticas românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey, 1970). Isto 
quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram necessariamente obra do 
liberalismo henthamista, disciplinador, embora na verdade estas intervenções 
respondessem a demandas de ajustamento do sistema econômico e social a longo prazo, 
tenham beneficiado as perspectivas tecnocráticas (Polany, 1980). As idéias e iniciativas 
coletivistas que emergiram no início e se expandiram na segunda metade do século XIX 
tanto no campo das forças de ‘esquerda’ como nas de direita’, devem, desse modo, mais 
ao ideárío romântico que a uma ideologia tecnocrática consolidada quando as práticas 
administrativas á estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e disciplina unem-
se contra o liberalismo, embora esta união passe quase sempre despercebida.
Não só no terreno das leis e da grande política a coalizão antiliberal pode ser 
reconhecida. A personalidade carismática, capaz de exercer um controle supra-racional 
sobre os homens, de mobilizar suas paixões, conquistar suas mentes, modelar suas 
crenças, empolgar suas vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato 
do gênio romântico.
Uma novela de Balzac (Urro/a Mirone 1841) relata uma história passada na década de 1 
830, na qual se contrapõe a figura de um velho cientista, anticlerical, amigo pessoal e 
aliado dos iluministas revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, 
de um lado, e do outro, os vestígios renascentes do mesmismo. É a vingança de Mesmer 
contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou: desta vez é o velho médico 
que se converte depois de assistir a uma sessão de telepatia. A descrição que Balzac 
( 1990; v. 5, p. 73) nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade 
romântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena reproduzi-lo:
Naquele momento, exibia-se em Paris um homem extraordinário. Dotado, pela fé de uni 
incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas cm todas as suas 
aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive não somente curava por si mesmo,
à distância, as doenças mais cruéis mais inveteradas, súbita e radicalmente, como 
outrora o salvador dos homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos 
mais curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A fisionomia 
deste desconhecido, que diz não depender senão de Deus e comunicar-se com os anjos, 
como Swedenhorg é a de um leão: brilha nela urna energia concentrada, irresistível. 
Seus traços, singularmente delicados, têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que 
vem da profundidade do ser é como que carregada de fluido magnético: penetra no 
ouvinte por todos os poros.
Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se procurava nos artistas, 
românticos, principalmente nos músicos, nos concertistas e, entre eles, de preferência 
nos solistas, com seus solos e seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada 
em particular no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennett 
analisa o poeta Lamartine ‘enrolando’ a multidão) e no regente de orquestra. outro 
emblema do romantismo,
Dos músicos e regentes, nenhum como Wagner (1813-1883) personificou tãobem e 
deliberadamente o carisma e o projeto restaurador, Na carta de desagravo que 
Baudelaire ( 1990; p. 43) lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há 
repetidas menções à natureza subjugante desta música:
Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há de excessivo, 
imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece às vezes, ao escutarmos esta 
música ardente e despótico, que reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas., 
dilacerado pelo devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu)
O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura de Wagner todo o 
ideário romântico, e por isso vale a pena reproduzi-lo um pouco mais:
Já observamos, creio, dois homens em Richard Wagner, o homem da ordem e o homem 
apaixonado. É do homem apaixonado, do homem de sentimento que se trata aqui. No 
menor de seus trechos ele inscreve sua personalidade com tanto ardor, que não será 
muito difícil realizar esta procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma 
consideração surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da 
abertura da Tannli o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta energia quanto na 
pintura da misticidade que caracteriza a abertura de Lohengrin (...). O que me parece, 
portanto, antes demais nada, marcar de maneira inesquecível a música deste mestre é a 
intensidade nervosa, a violência nas paixões e na vontade (... ) Tudo que implicam as 
palavras: vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e faz-se 
adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem quer que seja ao 
afirmar que vejo aí as principais características do fenômeno que denominamos gênio. 
(lbid.; p. 93)
Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner para conciliar a 
ordem e a paixão na criação e na realização de obras de arte totais que colhem e 
orquestram todos OS sentidos do público e conduzem emoções e vontades 
despoticamente. Muitas das obras românticas são, antes, testemunhos dos processos de 
fragmentação de identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista 
(que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma capacidade de 
subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos a uma concepção ordenada e 
subjugante da vida comparável à de Wagner; contudo, mesmo aí não se encontram os 
efeitos despóticos das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora 
esteve sempre presente. e as obras de Wagner apenas realizam esta intenção profunda de 
todo o movimento. Nesta realização, porém, ressalta, como se viu no discurso de 
Baudelaire, a vinculação subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, 
por sinal, o caso de Wagner), coni a docilização dos homens subjugados pela exibição 
da força, da vontade e do poder. Baudelaire, inclusive, com a finalidade de demonstrar 
que as posições políticas do autor não contam para nada na apreciação de sua música, 
observa, en passan!, que Wagner chega a Paris a convite dc Luís Napoleão e revela, 
candiclamente: “O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas previsões e a suas 
esperanças [ pois foi preciso, na França. a ordem dc um déspota para fazer executar a 
obra de um revolucionário” (Ihid.. p. 47).
O território da ignorância
No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de organização da vida em 
sociedade: o liberalismo e os romantismos em suas diversas versões e o regime 
disciplinar, este acompanhado progressivamente dos seus discursos legitimadores, 
muitos dos quais de extração romântica e outros de extração utilitária. Falar em 
convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer pouco. 
Considerando-se as relações de complementaridade e conflito que unem e separam cada 
um destes pólos dos outros dois, podemos conceber a formação de um novo território no 
qual as experiências individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham 
sentido. Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo
Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do individualismo ilustrado. 
Temos, então, como ideal, o reinado do ‘eu’ soberano com identidades nitidamente 
delimitadas, autocontidas, autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem 
umas em relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do tempo e 
das condições. Temos, ainda aqui, uma clara separação entre as esferas da privacidade e 
da publicidade: nesta dominam as leis, as convenções, o decoro e o princípio da 
racionalidade e da funcionalidade; à outra caberia o exercício da liberdade individual 
concebida como território livre da interferência alheia.
Ao pólo R, de romantismo, pertencem os valores da espontaneidade impulsiva, com 
identidades debilmente delimitadas, porque atravessadas pelas forças da natureza, da 
coletividade e da história, que se fazem ouvir de ‘dentro’ e não são impostas pelos 
hábitos e pelas conveniências civilizadas. A potência destas forças promove uma 
restauração do contato do homem com as origens pré-pessoais, pré-racionais e pré-
civilizadas do ‘eu’ com os elementos da animalidade, da infância etc. Esta restauração 
propulsiona, idealmente, uma espécie de autodesenvolvimento que se faz à custa dos 
limites e da unidade identitária e que é marcado por crises, experiências de 
desagregação, adoecimento, loucura e morte.
Finalmente, ao pólo D, de disciplina, pertencem as novas tecnologias de poder, tanto as 
que se exercem sobre identidades reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da 
razão calculadora, funcional e administrativa, como as que se abatem sobre identidades 
dehilmente estruturadas e passíveis de manipulação mediante a evocação calculada de 
forças suprapessoais encarnadas em figuras carismáticas ou projetadas em lendas e 
mitos saudosistas ou revolucionários
Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os dois a dois 
correspondem às suas mais ou menos dissimuladas relações de 
afinidadecomplementaridade. Para nosso uso, podemos designar estas superfícies com o 
nome de alguns dos personagens da história. Teríamos, assim, uma superfície Benrhani 
ligando o liberalismo ao regime disciplinar. Nesta superfície os procedimentos 
disciplinares encontram- se com seus objetos precípuos — os indivíduos livres — e, na 
direção oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios. Todos 
saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo ao romantismo pode ser 
designada como superfície Stuart Miii. Nela os ingredientes românticos alimentam os 
projetos de vida dos indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos 
na intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias. Novamente, aqui, todos se 
revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a disciplina ao romantismo 
poderia ser chamada de superfície Wagner. Nesta superfície articulam-se as forças e o 
poder da Vida e da Vontade (tudo cm maiúsculas, como convém) aos procedimentos de 
controle carismático e docilizadores da disciplina.
Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo que entram em contato com um 
ou outro dos dois outros vértices. Há , por exemplo, determinados aspectos do 
individualismo liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo 
com as idéias e modos românticos, O mesmo vale para as outras combinações. Isto 
significa que, paralelamente às linhas que ligam entre si os três pólos, há outras 
sinalizando a sua mútua rejeição. Rejeição, porém, não consumada numa separação 
efetiva. Desta tensão persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem 
nome.
É da natureza deste espaço que ele seja um espaço de desconhecimento.As relações de 
coalizão e de conflito que o constituem sobrevivem numa certa clandestinidade. Em 
particular, a superfície Bentliain e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as 
afinidades entre liberalismo e romantismo, de um lado, e os procedimentos 
disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição cognitiva. As vidas vividas no 
interior deste espaço são vidas cindidas, sobre as quais pesam os véus da ignorância e 
do esquecimento.
As diversas versões contemporâneas da psicologia, que se estabelecerão nesse território 
no final do século XIX e início do XX (quando o território da ignorância sofrer algumas 
transformações decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies. 
Há psicologias claramente próximas da superfície Bentharn, como os 
comportamentalismos disciplinadores. Há outras mais próximas da superfície Stuart 
Miii; penso, aqui, como exemplo, em algumas leituras americanas da psicanálise, como 
a ‘psicologia do self, de Kohut. Há, finalmente, as que se aproximam da superfície 
Wagner, libertárias, expressivistas profundamente domesticadoras; aqui se encaixam 
todos os ‘gurus bruxos e ‘fazedores de cabeça’, quase que independentemente de suas 
idéias, se é que as têm.
Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenciar as escolas psicológicas ou as 
diferentes leituras de uma mesma escola pela sua maior ou menor distância em relação a 
cada vértice do triângulo. Por exemplo, sobre a superfície Stuart Miii podemos situar a 
‘psicanálise do ego’ próxima ao vértice liberal e a ‘terapia não-diretiva’ de Rogers, 
próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esta maior proximidade R coloca 
Rogers, sem que isto possa ser facilmente aceito e compreendido pelos rogerianos mais 
próximo à superfície Wagner (recorde-se, porém, os ‘espetáculos de não-diretividade’ 
em que Rogers exibia seus ‘solos’ de compreensão empática diante de uma platéia de 
discípulos ‘semimesmerizados’). Em contrapartida, também quem se aproxima muito 
do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham.’ os pressupostos funcionalistas 
e a índole adaptativa da psicanálise do ego, por exemplo, já foram sobejamente 
explicitados.
Algumas destas psicologias parecem perfeitamente satisfeitas consigo mesmas e 
dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio processo constitutivo do território 
que ocupam. É realmente difícil para quem se situa muito próximo a uma das 
superfícies admitir seus compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no 
entanto, é um elemento constitutivo do seu território. Outras, no entanto, parecem 
interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender a recordação como tarefa 
crítica conservando-se no lugar do psicólogo?
Notas
1. A conexão entre Bentham e Skinner é praticamente óbvia para quem conheça OS dois 
autores, Para os que não conhecem o pensamento skinneriano, sugiro a leitura de 
qualquer texto de Skinncr que trate da análise ou do delineamento de sociedades e 
culturas como, por exemplo, os artigos sobre o tema publicados em Cotigências de 
reforçamento e o romance utópico Waiden
li. Uma excelente análise do pensamento político do autor foi realizada por
Maria Amélia Pie Abib Andery (1990).
2. De muito me valeu, entre outros, o trabalho de 1. Berlin (1981) sobre Stuart
Mdl no contexto da história do liberalismo.
3. A estas razões seria também necessário acrescentar as oriundas de uma 
nova
conjuntura política em que a classe operária, através de sindicatos e partidos
de massa, começa a ter uma presença política substancial e que exige uma
mais eficiente e organizada presença política e repressiva do Estado burguês.
4. Nesta interpretação do romantismo, além do contato com as obras literárias
e musicais de autores da época e dos elementos oferecidos por Gusdorf (1982
e 1984), tirei grande proveito do livro de Morse Peckham, Bevond lhe lragic
vi The qites/Jor identitr in 1/me ni,meteent/m centw-V. Este ensaio de Peckham, 
ao menos entre nós muito pouco divulgado, será também uma fonte
indispensável para o próximo capítulo.
5. Esta questão recebeu um tratamento original por Sennett (1978), em que me
inspirei para a presente análise.
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