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Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Estudos Semânticos Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental João Trindade Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Introdução Abordamos nas unidades anteriores os caminhos tomados pela semântica quando ela se desvencilhou - mas não por completo - da linguística. Tivemos a oportunidade, inclusive, de abordar as diversas semânticas, como a própria semântica computacional. Procuraremos abordar mais alguns campos desta, cada vez em processo de retorno e mescla com as teorias linguísticas. É uma visão comum imaginar uma linha de estudos dissociada de outros campos de saber. Porém, ocorre de um campo de estudos ser uma dissidência de outra, seja por aprofundamento, seja por oposição ou, ainda casos nos quais um estudo desenvolvido dá origem a outras informações. Mais comum ainda é a mescla desses saberes, quando os campos interagem entre si, dando origem a outras informações. A psicolinguística segue um desses caminhos. Como abordamos anteriormente, as relações entre semântica e linguística são muito entrelaçadas, sendo, em determinado ponto, a semântica uma subcategoria da linguística. Enquanto ciência, sua abrangência está correlacionada com outras áreas, como a própria psicolinguística, de modo que a abordagem cognitiva da semântica busca observar o processo funcional da língua no processo comunicativo, paralelamente a uma criação imagística do mundo em movimento, em especial, à construção do pensamento. Abordamos anteriormente na semântica cognitiva, em consonância com a psicolinguística, como a percepção física do mundo por parte do sujeito se corporifica nos processos de interações do sujeito. E como isso se correlaciona com a psicolinguística? Vejamos. Bons estudos! 1. Semântica e Psicolinguística Experimental Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Para o ramo linguístico da psicolinguística, o processo comunicativo favorece a capacidade de compreensão do indivíduo, e isso em muito nos agrega. Procure se lembrar como você desenvolve conceitos a partir de outros previamente transmitidos. Para você agregar o conceito "país estrangeiro", deve considerar um signo-conceito externo ao nosso, o qual nos auxilia no desenvolvimento de processos de externalidade, por exemplo. Essa influência externa aponta como o processo de aprendizagem da linguagem humana - e não apenas da vida - é inerente ao seu processo de desenvolvimento, ocorrendo desde os primórdios da sua vida. De igual forma, por ser processo e aprendizagem, não se desenvolve da mesma forma com as demais pessoas, porém há padrões comuns a todos. Dessa forma, a psicolinguística estuda como o comportamento humano é influenciado pela aprendizagem da linguagem (LEITÃO, 2008, p. 12). Nosso processo de desenvolvimento e aprendizagem é intrinsecamente voltado para a linguagem e, ainda mais, para a língua. Podemos traçar, por exemplo, um paralelo com a língua brasileira de sinais: estudos apontam como surdos tem seu desenvolvimento cognitivo prejudicado na medida em que demoram mais tempo para dominar a LIBRAS (LORENZETTI, 2001). Da mesma forma, o ser humano desenvolve-se mais plenamente ao dominar as faculdades comunicativas do grupo com o qual interage. A psicolinguística valoriza também o contexto, elemento essencial para a compreensão de um enunciado. E o faz ao analisar dois tipos de processo: a produção de linguagem, e a sua compreensão. Observe as particularidades do português, por exemplo. Não produzimos enunciados sem vogais, nem mesmo no caso de sílabas ou encontros consonantais. Da mesma forma, nossas palavras tendem a uma redução de acordo com a sílaba tônica: "Senhor" vira "seu", entre outros casos. Dessa forma, até uma criança, por meio da internalização, pode exercitar as premissas de produção de sentido da nossa língua. Porém, compreendê-la envolve outros parâmetros. É por isso que, na linha de progressão da produção de sentidos, deparamo- nos com a percepção, a compreensão e a produção. Uma criança, gradativamente, percebe a origem e o direcionamento dos enunciados - "ele está falando comigo" -; em seguida, os decifra - "aquela é a minha mãe" - e, por fim, os produz, talvez não com perfeição gramatical, mas com organização semântica - "se comer se fala eu Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental como, saber se fala eu sabo". Em outras palavras, o observador compreende a mensagem do interlocutor e desenvolve suas próprias faculdades a partir destas. Todo esse processo envolve o que determinados como o contato social, de maneira que a psicolinguística aborda a relação entre a comunicação e a formação do indivíduo, ou seja, entre a mensagem e a mente. Esse campo de estudo aborda esse conjunto de relações, tendo como um dos seus grandes desenvolvedores Noam Chomsky, o qual defendia a relação entre linguística e psicologia cognitiva. Podemos observar, dessa forma, como a psicolinguística tem como campo de análise processos associados à comunicação humana em qualquer uma de suas manifestações, bem como as estruturas psicológicas que permitem que compreendamos as mais diferentes linguagens. Dessa forma, estuda os processos de cognição envolvidos nesse processo, podendo, inclusive, se relacionar a outros campos de estudo da linguagem humana, como a psicologia, as ciências cognitivas, a neurologia, etc. Seu campo de atuação desenvolve-se a partir de dois pontos: a aquisição da fala e a compreensão da linguagem, o que envolve a percepção da fala, sua produção (escrita e oral), leitura, bem como perturbações (LEITÃO, 2008, p. 16). Porém, pode-se sintetizar essas premissas em três: como as pessoas adquirem a capacidade da linguagem; como elas produzem essa linguagem; e como elas a compreendem. Utilizamos anteriormente o exemplo da linguagem de uma criança. Mas imagine um adulto que desenvolveu precariamente suas habilidades cognitivas, observe como sua conexão interacionista está, da mesma forma, prejudicada. A linguagem atua como um ciclo: a adquirimos ao passo que a compreendemos e a produzimos. O processo que envolve da compreensão até a produção é chamado de psicolinguística experimental. Não trata apenas da linguagem, mas como o indivíduo a compreende e a produz, numa relação de observação dos fenômenos de produção de sentido da linguagem, em sua relação entre falantes/ouvintes, bem como seu aparato perceptual/articulatório, além dos seus sistemas de resgate e produção de sentidos. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Figura 1 - Exemplo do linguagem corporal. Fonte: PXHERE, 2017. Observe isso por outro ângulo: o que ocorre quando conversamos com alguém? As palavras que chegam até nós, dotadas de significado e significante, podem ser entendidas como um conjunto de sons que precisam ser decodificados para nosso aparelho fonador em algo compreensível. Observe o som de "casa", que encontra uma equivalência semântica em nosso sistema de significados, e é decodificada como "residência". Ocorre um longo processo pelo qual o sinal sonoro é codificado em informação e traduzido em forma de uma estrutura sintática, lexical e, por fim, criando estruturas semânticas. Todo esse processo envolve a interpretação de um sintagma e das sentenças que o formam, de maneira que o significado do que está sendo transmitido seja interpretado. Da mesma forma, para darmos prosseguimento a esse diálogo, nos fazemos valer de todo o nosso arcabouço linguístico - que, por sua vez, envolve o uso de elementos lexicais, fonéticos, sintáticos e etc. - para construirum enunciado semântico associado a sinais verbais que serão decodificados pelo nosso interlocutor. Observe como esse processo ocorre nesse texto que você está lendo: você associa as letras e as sílabas por meio de um processo cognitivo no qual desconstrói a equivalência dos elementos linguísticos, formando, dessa maneira, sentido. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Podemos ir mais além: há todo um processo psicolinguístico pelo qual você compreende tanto as palavras aqui escritas, quanto o processo de compreender as palavras de um jargão, o dos estudos linguísticos, o que por si acarreta todo um processo de aprendizagem diferenciado. Ocorre uma conversão da informação visual em informação linguística, permitindo que você compreenda as estrutura sintáticas e semânticas do texto. Independente das divisões linguísticas - orais, escritas, verbais, não verbais ou mistas - todo o fenômeno envolve a aplicabilidade das habilidades cognitivas associadas à linguagem. Dessa forma, o processo comunicativo, o qual nos parece banal, é incrivelmente complexo e envolve um amplo conjunto de procedimentos psíquicos que, em conjunto, recebem o nome de processamento linguístico. Assim como outros campos do saber, a psicolinguística experimental envolve- se com uma pergunta fundamental: como esses processos ocorrem e se estruturam na mente humana? Essa resposta é buscada pelo recurso a uma gama de procedimentos de acordo com o objetivo linguístico ou fenômeno a ser focalizado, de maneira a abranger elementos diferenciados sobre a produção e compreensão da linguagem. Há todo um campo da Psicolinguística voltada para o estudo de enunciados linguísticos e gêneros textuais. Adair Bonini desenvolve, no artigo “Reflexões em torno de um conceito psicolinguístico de tipo de texto” como esse campo de pesquisa auxilia no desenvolvimento de estratégias e práticas em prol do ensino de leitura e produção textual, em sala de aula. Disponível aqui. Curiosamente, essas etapas do processo linguístico - produção e compreensão - já foram abordadas como aspectos do mesmo processo, só que inversos: no processo de produção os significados eram transformados em um conjunto de estímulos exteriores, e na compreensão, os estímulos exteriores eram transformados em significados (LEITÃO, 2008, p. 23). Analogamente, era como dizer http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44501999000200004 Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental que o processo pelo qual a água vira vapor e o vapor vira água fossem o mesmo, só que inversos. Porém, da mesma forma que no caso da água, os processos envolvidos não eram tão simples. Observou-se, com o passar do tempo, que dados experimentais recepcionados por diferentes indivíduos eram interpretados de maneira diferente, de modo que produção e compreensão são procedimentos diferenciados, com dissociações e não simétricos. Exemplo disso é que o falante, ao produzir um enunciado, escuta e compreende o que diz, de maneira que se autoafeta, influencia o que está dizendo, como está dizendo e o que irá dizer. Observe como, à medida que percebemos nosso tom de voz, podemos aumentá-lo, diminuí-lo e, inclusive, mudar sua intensidade sonora. Modificamos nosso próprio léxico dependendo da maneira como percebemos nossa forma de falar. Isso se aplica para as variedades escritas da língua, de modo que podemos observar isso em gêneros textuais formais - como memorandos - e informais – como postagens em redes sociais. Em suma: a produção não é o inverso da compreensão, mas por ela é realimentada. Compreendemos sem necessariamente reproduzir o que viemos a compreender. Podemos alterar uma mensagem escrita de acordo com a compreensão do que estamos escrevendo, mas o ato da compreensão não envolve sua reprodução, pelo menos, não imediata: podemos ler uma reportagem que, ao apresentar novos fatos, nos leve a uma profunda reflexão sem que isso signifique uma reprodução desses novos entendimentos. 2. Teoria da argumentação na língua Essencialmente, qual é a função da língua? Observemos pelo viés fisiológico: órgãos do corpo humano que, separadamente, exercem determinadas funções mas, em conjunto, atuam como o aparelho fonador. Por outro lado, é a língua um fenômeno comunicativo? Observando suas partes, cada uma delas funciona de maneira isolada, de modo que diferentes etapas precisam se realizar. Porém, não possuir uma língua oral não delimita sua capacidade comunicativa, a exemplo de outros meios de comunicação. O indivíduo, acima de Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental tudo, e para se fazer valer no mundo, precisa expor suas ideias e interagir com os indivíduos ao seu redor: eis o caráter argumentativo da língua. Figura 2 - Aparelho Fonador. Fonte: SAINT-POL, 2013. A Teoria da argumentação na língua apregoa que a língua, essencialmente, não tem a função de ser influenciada por, mas influenciar a, de maneira que o uso da língua tem como premissa projetar a direção do discurso. A intuição da língua - o discurso - aborda como a atividade da argumentação assume particularidades que não são facilmente explicáveis pela demonstração, elemento da psicolinguística experimental (DUCROT, 2007, p. 5), como as palavras soltas que conectam enunciados, como, por exemplo, as conjunções - "como", "de maneira que", "e" -, as quais só possuem significado pleno na interação com os enunciados: isolados, possuem apenas um valor, mas não constituem sintagmas. São elementos que os pesquisadores da argumentação da língua chamam de "conectores", e tem a função linguística de condicionar a sequência do discurso. Dessa forma, o enunciado "Aqui faz frio, mas eu gosto" remete para a sequência "continuemos aqui", dando prosseguimento semântico ao discurso. O operador argumentativo "mas" cria uma condição de expectativa para essa sequência, atribuindo o princípio da argumentação com indissociável da própria língua. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Essa teorização buscou não se limitar à articulação dos enunciados, mas no próprio uso das palavras. Esse elemento remete ao princípio polissêmico do léxico, bem como sua valoração: a palavra "melhor" já agrega ao seu sentido argumentativo uma qualidade objetiva, da mesma forma que, no enunciado anterior, "frio". Longe de descrever subjetivamente uma característica de um lugar, procede em termos de classificação que associa-se a uma significação de palavras. As palavras, ao denotarem e conotarem, assumem o valor de feixes de topoi (DUCROT, 2009, p. 65), e aquilo ao que se referem indica uma forma de orientar. Em outras palavras, a associação de palavras, por si, prediz uma forma de argumentação. Você sabia? Há toda uma linha de estudos discursivos sobre os operadores argumentativos. É comum associá-los a estudos da retórica e da argumentação, mas a linha de estudos discursivos observa como a criação de enunciados significativos tem como um dos seus caminhos esses conectores. Outras visões agregam a teoria dos blocos semânticos, bloco de significado e a noção de que o discurso se estrutura por meio de um encadeamento. Dessa forma, um encadeamento de proposições em dado enunciado cria uma relação de interdependência, de maneira que as proposições possuem determinado significado em bloco, não possuindo isoladamente uma relação inferencial uma com a outra. Um exemplo disso é o enunciado "diga-me com quem tu andas, e eu te direi quem és". Pela orientação discursiva tanto agrega o sentido de que devemos escolher bem nossas companhias, como direciona o discurso para "há pessoas que você deve conhecer". Porém, isoladamente cada termo não possui significado entre si. Exemplo é que "tu", pronome, e "andas",verbo, embora possuam uma relação de flexão, não possuem necessariamente de argumentação. Dessa maneira, conforme aponta Ducrot, "cada uma destas aparentes afirmações contém, com efeito, o conjunto do encadeamento em que ocorrem" (2009, p. 23), o argumento carrega um valor semântico que introduz previamente e Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental linguisticamente o encadeamento do discurso, de maneira que este é derivado do funcionamento inerente da língua e não de um logos argumentativo. Isso significa que há a distinção entre uma argumentação linguística - inerente à produção de enunciados - e uma argumentação retórica. Para Ducrot, "a argumentação linguística não tem qualquer relação direta com a argumentação retórica" (2009, p. 17), de modo que a conclusão de um enunciado não envolve um argumento retórico, mas linguístico. Para o pesquisador, "as palavras não permitem nem a demonstração nem tampouco essa forma degradada da demonstração que seria a argumentação. Esta não é se não um sonho do discurso, e a nossa teoria deveria chamar-se antes 'teoria da argumentação'" (2009, p. 234). A relação inerente a esse princípio é que a argumentação linguística funda-se pela demonstração discursiva, indicando que não há neutralidade na língua, embora a noção de uma competência crítica do discurso seja complexa à teoria da argumentação da língua (PLANTIN, 2008, p. 53). Observe, por exemplo, as afirmações que definimos dentro da língua. Quando produzo um enunciado com os dizeres "aqui está frio", há também uma defesa de um ponto em oposição à "aqui está quente". Da mesma forma, se eu produzisse o enunciado "aqui não está frio", ele também é uma resposta a "aqui está quente". Mesmo em estruturas que possuem uma negação como premissa, há o desenvolvimento de um valor semântico afirmativo, na medida em que afirmo algo em relação a outrem. No sentido apresentado, a palavra "argumentação", para Ducrot, assume um sentido diferente do já associado. A argumentação "tradicional", também chamada por Ducrot de argumentação retórica, é uma atividade verbal que tem o objetivo de levar alguém a concordar com algo, convencer esse alguém. Observa que isso carrega, de maneira implícita, o sentido de "fazer crer", uma forma de persuasão pela palavra. Se a argumentação retórica é um esforço ativo, a argumentação linguística é um fazer implícito à língua. Utilizemos um exemplo: "Jorge tem ciúmes da namorada, pois ela é muito bonita". Há uma argumentação linguística presente no uso do léxico "ciúmes" e "bonita", que isoladamente não possuem uma definição específica. Pode-se afirmar que Jorge não tem ciúmes, mas é possessivo; ou que a namorada não é bonita, de maneira a destruir uma argumentação retórica. Porém, mantém-se a linguística, pela expressão de um viés implícito à constituição do discurso. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Dessa maneira, nem toda argumentação linguística presume uma argumentação retórica, mas o inverso, sim. Observe que a retórica conecta-se a uma estratégia persuasiva envolvendo a própria escolha lexical. Toda argumentação é previamente linguística, pois busca, antes de convencer alguém, defender a estrutura afirmativa e impositiva de um enunciado. Como já abordava Roland Barthes, a língua tem esse caráter autoritário. Não apenas nos faz dizer, mas nos obriga a dizer (1987). A todo um campo de atuação nos estudos do discurso sobre o uso da língua. Como aponta Foucault em “A ordem do discurso” (1999), há um uso da língua que perpassa as relações sociais do que pode ser dito, quando, como e principalmente, por quem é dito. 3. Máximas conversacionais Abordamos, até então, certas marcas semânticas no interior da língua, de como ela se estrutura para compor afirmações e, dessa forma, apresentar seus discursos. Todo esse processo ocorre mais por uma inerência do que uma influência, de maneira que há um sentido implícito, um "assenhorear-se" (BARTHES, 1987, p. 43) que se manifesta independente de uma posterior intencionalidade. Podemos, com base nisso transitar da argumentação linguística para o próprio ato conversacional. Você já teve a impressão de que alguém está conduzindo um diálogo, e que sem isso o mesmo talvez seria previamente encerrado? Costuma assistir programas de debates, nos quais há um apresentador/coordenador que direciona os envolvidos para os temas previstos? Ocorre que a conversa, o diálogo, não são fenômenos isolados ou não motivados: há todo um processo de interação que conduz o ato conversacional em prol do uso da língua. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Observe a expressão "variedade linguística". Essa expressão não teria sentido se não houvesse um grupo associado ao seu uso, que desse embasamento ao acontecimento em si. Há, dessa forma, um caráter inerentemente cooperativo na língua. Quando abordamos a argumentação linguística, tratamos da questão de que toda a língua produz um discurso interno, e não apenas em resposta a outro. Da mesma forma, esse discurso é produzido na medida em que é significativo para determinado grupo sociocultural. Veja que certos termos/jargões estão associados a determinado grupo profissional, como o jargão dos advogados. Ou a própria língua portuguesa, utilizada com diferenças no Brasil e no mundo, mas ainda assim razoavelmente compreensiva devido ao caráter inerente cooperacional da linguagem. O que chamamos de "máximas conversacionais” (GRICE, 1982, p. 85) são regras que conduzem o ato da conversação. Por meio delas podemos descrever os princípios do comportamento linguístico dos falantes, bem como as normas de conduta das situações específicas. Em suma, descrevem o modo como os alocutários raciocinam ao interpretar o processo de enunciação produzido pelos locutores. A relevância dessas premissas é por que são a parte constituinte da competência comunicativa, de maneira que, se interrompidas ou mal executadas, colocam em xeque o ato da comunicação. Uma pergunta simples: biscoito ou bolacha? Você pode interpretar isso como uma brincadeira, mas observe como a mesma premissa da máxima conversacional envolve o uso específico de termos linguísticos em determinadas situações. Se você é de uma cidade como o Rio de Janeiro, usa o termo "biscoito". Se é de São Paulo, "bolacha". Porém, se utilizar "bolacha" no Rio de Janeiro, pode não receber o que espera. A máxima conversacional possui um valor inerentemente semântico: certos termos possuem sua própria contextualização e processo de manifestação. Se não utilizadas corretamente, provocam o que é conhecido como ruído linguístico. Grice aborda como essas máximas regem o processo comportamental comunicativo dos falantes durante o ato da interação verbal, e dividem-se em quatro tipos: qualidade, quantidade, relevância e modo. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Figura 3 - Ato de interação verbal. Fonte: CÉSAR, 2016. A máxima da qualidade envolve o princípio da veracidade, de maneira que devemos afirmar o falso e o não confirmável. Ex: Rio de Janeiro é a capital do Brasil. O enunciado acima viola, de acordo com Grice, o princípio da qualidade. Porém, ele defende que enunciados falsos são exemplos de ironias ou metáforas. No caso acima, há uma ironia ao se referir ao Rio de Janeiro, antiga capital brasileira e um dos grandes centros econômicos do país, sendo considerada sua "janela para o mundo". Por outro lado, há situações nas quais a máxima da qualidade é violada de propósito pelo falante, criando assim um falso-positivo. A máxima da quantidade aborda o princípio da informação e da necessidade, de que a contribuição de um enunciado esteja atrelada à sua relevância. Um enunciado deve ter a informação na medidanecessária para uma conversação. Observe como os problemas de coerência e redundância associam-se a essa máxima, pois sobrecarregam o enunciado de informações repetitivas e desnecessárias. Ex: Ele se suicidou. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Esse é um enunciado muito comum utilizado pelas pessoas, já que desconhecem o valor etimológico do prefixo "sui", "a si mesmo", criando uma redundância. Por outro lado, a quebra da máxima da quantidade não envolve apenas tautologias composicionais, mas semânticas e estruturais. Uma mensagem emitida em um aplicativo de mensagens, por exemplo, deve ser concisa, sob o risco de não ser plenamente lida, levando-se em conta o espaço para a transmissão desse conteúdo. A máxima da relevância, como o próprio nome prediz, envolve a pertinência do conteúdo transmitido em relação ao objetivo proposto pela conversa, a ponto de se evitar a impertinência entre os enunciados. Observe o exemplo abaixo: "Você chegará cedo?" "Não, pois tenho outro compromisso." Observe como a informação "pois tenho outro compromisso". Fere essa máxima, pois não é inerente à interação inicial. A conversa envolve a confirmação, não a justificativa. Por último, a máxima de modo envolve a coesão interna do enunciado, ou seja, ser organizada. Muitos podem confundir essa máxima com a quantidade, mas ela não se limita a isso. Observe o trecho abaixo: "Rose, que é bombeiro, mora na Tijuca, que fica no Rio de Janeiro, cidade que fica no Estado do Rio de Janeiro". Dentre os vários elementos, podemos apontar a quebra da máxima de modo nos seguintes pontos: a) uso do pronome relativo "que"; b) repetição de palavras implícitas e enunciado que não vai direto ao ponto. Uma forma de uso da máxima de modo seria esse: "A bombeiro Rose mora na cidade do Rio de Janeiro, no bairro da tijuca". 4. Teoria dos atos de fala Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Encerramos essa etapa do curso abordando um dos últimos elementos correlacionados entre semântica e linguística: os atos de fala. Falar é produzir sentido, enunciado, discurso. Todo indivíduo, ao se comunicar, entrelaça uma intenção comunicativa em prol da produção de significados. Envolve também dizer que toda comunicação envolve uma ação, ou seja, participação ativa para a produção de informações. Roland Barthes aponta como vivemos em um mundo feito de e por palavras (1987), pois é por meio destas que damos sentido ao nosso redor. Pense na seguinte situação: você consegue se definir por meio de outra língua? Consegue imaginar sua maneira de agir, personalidade e demais características de uma forma que não seja em língua portuguesa? Damos sentido ao mundo por meio da palavra. Não são poucas as religiões, inclusive, que atribuem a criação de um mundo por meio das palavras - "Deus disse: faça-se a luz! E a luz foi feita" -, sobre o momento inicial a partir do qual tudo passou a existir. Em muitas situações, dar nome é criar. Há uma relação ao ato de criar algo, e nomeá-lo. Observe como em muitos contos de fadas as criaturas parecem só existir enquanto lhe atribuímos nomes. Antes disso, são uma massa disforme. O vilão do conto Chapeuzinho Vermelho é chamado de "lobo", mas o dos três porquinhos, "lobo mau", ganha um nome associado à sua astúcia. Observe como essas manifestações contísticas entram no campo da ação: são histórias com um fundo moral, que não apenas buscam ensinar algo, mas agir em relação a algo. Daí o apontamento de Austin, um dos pioneiros da Teoria dos Atos de Fala, para o qual a linguagem seria uma forma de ação (1990, p. 12). Dessa maneira, existiriam uma série de ações humanas que se realizariam por meio dos atos de fala. Em uma sociedade que é produzida linguisticamente, o indivíduo age sobre seu interlocutor por meio dessa comunicação. Durante boa parte dos estudos sobre a linguagem, muitos defendiam que as informações eram formas de descrever as coisas, ou seja, atestar sua veracidade ou falsidade. Porém, Austin busca refutar a visão da língua em seu caráter puramente descritivo, de modo a apontar como determinadas afirmações não descrevem, mas ordenam, impõem atos. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Quando digo "pegue aquilo", o que eu descrevo? Nada. Há um processo de injunção, por meio do qual emito ordens verbais que buscam criar efeito sobre o interlocutor. Com base nessa teorização, pode-se apontar dois tipos de enunciados: constatativos e performativos (1990, p. 21). Os enunciados constatativos descrevem e/ou relatam um estado de coisas, podendo, por isso, se submetem às máximas conversacionais. São enunciados mais associados à afirmações, relatos ou descrições, como "eu gosto de chocolate", "o Sol é o centro do sistema solar", etc. Já os enunciados performativos são aqueles que não são utilizados para descrever, relatar ou fazer qualquer tipo de constatação, motivo pelo qual não se submetem ao critério de verificabilidade, de modo que não podem ser atestados como falsos ou verdadeiros. Porém, por se constituírem como enunciados pronunciados, geralmente, na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, na forma afirmativa e na voz ativa, realizam uma ação. Ex: "Eu te ajudo". Observe que não se constata, relava ou descreve alguma coisa, mais uma ação produzida linguisticamente, antes que se realize de fato. A mesma situação encontra em enunciados como "Ordeno que saia", "Eu te perdoo", etc. São enunciados que, ao serem proferidos, realizam verbalmente a ação denotada. Nessa linha interpretativa, dizer algo equivale a fazer esse algo. Dessa forma, quando o professor diz "a avaliação começa agora", não está informando quando a avaliação tem início, ele a inicia. É por isso que Austin utiliza o termo "enunciado performativo" para indicar uma ação em determinado contexto. Porém, proferir algo não significa necessariamente sua realização. há necessidade de determinadas circunstâncias para sua realização. É por isso que um enunciado performativo pronunciado em circunstâncias não favoráveis não é considerado falso, mas nulo (AUSTIN, 1990, p. 30). Se um aluno, em sala, pede que os colegas fiquem em silêncio, pois atrapalham a aula, o enunciado performativo não se realiza - fracassa - por que o aluno não tem a autoridade - hierárquica e simbólica - para tal ato. Daí que, para Austin, trata-se de um enunciado "infeliz" (1990, p. 36) Para que um enunciado performativo seja atendido, devem-se satisfazer as chamadas "condições de felicidade" (AUSTIN, 1990, p. 51), que seriam: Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental - A autoridade do falante; - As circunstâncias apropriadas para a emissão do enunciado - se ao invés do aluno fosse um professor, mas ao invés da sala de aula estivesse em casa, o enunciado performativo não teria efeito, pois não possui as devidas circunstâncias. Ocasionalmente, podemos observar que nem todos os tipos de enunciados performativos realizam-se no tempo verbal utilizado, tampouco na pessoa e na voz. Alguns sinais de trânsito - por exemplo, “Pare" - estão associados a esses termos. Observe que, no exemplo citado, temos um enunciado performativo de proibição. Da mesma forma, nem todo enunciado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo na forma afirmativa e na voz ativa indica uma enunciação performativa. Ex: "Eu jogo dominó". O ato de jogar dominó não se realiza ao se enunciar a sentença, e dela não depende. Assim como no caso de "Pare", há enunciados performativos que não possuem palavras associadas ao ato que executam, como "Cuidado", que equivale a ter cuidado com algo, como "tenha cuidado mais à frente". Essa preposição se reflete em frases imperativas, como "Fique quieto". Porém, há uma diferençaentre "Fique quieto" e "Pare”. O primeiro tem uma indicação precisa do ato que realiza, pois é uma ordem. Já "Parece” pode ser ambíguo: pode significar "não entre aqui" ou "espere aqui". Tendo isso em mente, podemos dividir o enunciado performativo em dois tipos (AUSTIN, 1990, p. 59): a) explícito - no caso de enunciados com uma performatividade explícita, como "Eu ordeno que ela fique"; e b) implícito - no caso de enunciados que dependem muito mais da situação comunicativa para transmitir um sentido específico, como em "Cuidado". Austin aponta o que chamamos de "performativo primário", um enunciado performativo explícito. Porém, ao observar essa redução, constata que um enunciado constatativo pode ser também um performativo primário (citar), já que todo enunciado constativo pode ser convertido em um performativo, bastando que a ele anteceda verbos de ação. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Ex: "A maçã está podre". "Eu declaro que a maçã está podre." Todos os enunciados seriam, assim, performativos - na medida em que, durante a enunciação, são manifestações de algum tipo de ação. Ao retomar toda a problematização por esse novo viés, constata que há três atos - que ocorrem simultaneamente - que se realizam em cada enunciado: o locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário (AUSTIN, 1990, p. 85). O ato da fala possui dimensões por realizarmos diferentes atos de fala em uma única locução. Tomemos como exemplo a frase "Você está me empurrando". Ao dizermos o enunciado, praticamos o ato locucionário. Já ao pronunciarmos o ato locucionário, o ato executado na fala, executamos um ato ilocucionário. Nessa situação, "Você está me empurrando" não é apenas uma constatação, mas um protesto, uma advertência para a pessoa a qual o enunciado é direcionado, se afaste. O efeito que eu causo no meu interlocutor é o ato perlocucionário, de maneira que eu influencie suas ações, pensamentos e/ou emoções. Na situação, para que o outro se afaste ou, pelo menos, perceba que me incomoda. Essas dimensões do ato de linguagem podem ser subdivididas em cinco categorias (AUSTIN, 1990, p. 123-124): a) representativos - envolvendo o uso de preposições afirmativas (afirmo, declaro); b) direitivos - buscam influenciar a ação de algo ou alguém (peço, mando); c) comissivos - correlacionam o locutor com uma ação no futuro (almejar, promoter); d) expressivos - expressam estados emocionais (clamar, desculpar); e) declarativos - indicam um fato novo (demitir, batizar). Durante a produção do enunciado realiza-se um ato proposicional - o conteúdo do comunicado - e um ato ilocucional - o ato que se realiza na linguagem. Dessa forma, um mesmo conteúdo proposicional pode exprimir um número diferenciado de valores ilocutórios. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Ex: "Pedro, coma tudo." O valor ilocutório dessa sentença pode ser de pedido, conselho, ordem, etc. A inovação trazida pela Teoria dos Atos de Fala para os estudos linguísticos/semânticos agregou às pesquisas os elementos do contexto (quem fala, com quem, para que, onde, o que, etc.), acrescentando elementos essenciais para a compreensão dos estudos da enunciação. Dessa forma, diversos campos de estudos vieram a aprofundar questões envolvendo os estudos discursivos, de modo que os Atos de Fala são estudados tanto na área da Linguística, da Semântica e outras. Síntese Nesta unidade, nós vimos que: ● A linguagem se desenvolve por uma série de processos de compreensão e produção, o campo de estudo da psicolinguística. A mesma abrange o estudo das relações de sentido, e como estes são produzidos pelos falantes. ● Outra linha de estudos, a Teoria da Argumentação da Língua, aborda a premissa de que a língua é um mecanismo de produção de sentidos argumentativos: atribuímos, via discurso, sentidos a algo, projetamos algo. Não se limita a argumentação a um caráter retórico, mas inerente à língua. É dessa forma que ela atribui a outros objetos os seus respectivos significados. ● As máximas conversacionais, por sua vez, abrangem os elementos fundamentais de um diálogo. Ao colocarmos em prática seus elementos essenciais – se um enunciado é verdadeiro, é necessário, é relevante e é ordenado – teremos um enunciado completo. ● Por sua vez, os Atos de fala abordam as características inerentes à fala, ou seja, seu caráter de nomear o mundo, de realizar ações por meio de sua declaração. É um campo de estudos que trouxe toda uma percepção para os estudos semânticos e linguísticos, dentre outros. Estudos Semânticos - Unidade 4 - Semântica e Psicolinguística Experimental Bibliografia AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1987. DUCROT, O. Argumentação e ‘topoi’ argumentativos. In: GUIMARÃES, Eduardo (Org.). História e Sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 2007. _____. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 2009. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. LEITÃO, M. Psicolinguística Experimental: Focalizando o processamento da linguagem". In: Martelotta, M. (org.) Manual de Lingüística. São Paulo: Contexto, 2008. GRICE, H. P. Lógica e conversação. In: Dascal, M. (Org.) Fundamentos metodológicos da linguística, vol. IV. Campinas, 1982, p. 81-103. LORENZETTI, M. L. A inclusão do aluno surdo no ensino regular: a voz das professoras. Dissertação (mestrado em Educação Científica e Tecnológica). 2001. 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