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Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos ESTUDOS SEMÂNTICOS Unidade 2 - Fenômenos semânticos João Trindade Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos Introdução Na unidade anterior, abordamos a relação entre o dito e o não dito, o dito e o escrito, o escrito e o lido, o lido e o relido. Pudemos abordar, dessa forma, como cada palavra vem agregada de determinado significado (ou seja, significado lexical), além de um outro, atribuído à sua presença na sentença. Esse sentido vai sendo construído de maneira intrínseca com nosso conhecimento de mundo, o qual é composto pelas nossas ações, observações, intenções, capacidades interpretativas, etc. Nesta unidade, teremos a oportunidade de analisar uma gama de fenômenos linguísticos, bem como suas relações de produção de sentido. Teremos a oportunidade, também, de estudar a diferenciação entre uma palavra no seu uso pluri- lexical e seu campo de atuação semântica. Poderemos observar, dessa forma, como toda uma área voltada à compreensão da semântica cultural se estrutura nos estudos culturais. Por último, tentaremos responder uma das respostas mais fundamentais do campo dos estudos da semântica: o que é significado? Bons estudos! 1. Fenômenos Semânticos A palavra “semântica” poderia estar associada ao conceito de "relativo", e há um motivo para essa interpretação errônea (ou não tão errônea assim): o termo foi apropriado pelo senso comum e utilizado no sentido de "interpretação variável". E isso, por si, também é um fenômeno semântico, do próprio termo possuir um significado diferenciado de acordo com o uso das palavras e de uma sentença. Isso significa dizer que a semântica é a explicação de aspectos de interpretação que dependem exclusivamente do sistema da língua e não de como as pessoas a colocam em uso. A pragmática estuda os usos situados da língua e lida com certos tipos de efeitos intencionais. Entretanto, nem sempre é tão clara essa divisão e nem sempre conseguimos precisar o que está no terreno da semântica e o que está no terreno da pragmática. (CANÇADO, 2012, p. 17-18) Parece-lhe familiar? Pois bem, você obviamente conhece os termos "conotação" e "denotação", ou seja, sentido figurado e sentido literal. Ocorre que a capacidade de diferenciação entre as sentenças significativas de uma língua está intimamente à capacidade de um falante, seu domínio linguístico. Talvez, em algum momento de descontração, algum professor lhe disse que você precisa frequentar lugares mais ou menos sofisticados. Se for o caso, ele quis dizer que você precisa transitar pelas variedades da língua, mas não apenas as de Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos registro linguístico, mas de sentido: é isso que são os fenômenos semânticos, efeitos de sentido que estão associados, também, a determinados contextos. São, também, fenômenos comunicativos. Se você já estudou os elementos da comunicação na premissa de Jakbson (BRASILEIRO, 2015), deve lembrar que um elemento fundamental é o Canal, e quando a comunicação não se completa, ocorre o ruído, uma espécie de perturbação na comunicação. Mas esse ruído comunicativo não é apenas de recepção, mas também de interpretação: um enunciado pode ser recebido de maneira totalmente diferente do esperado, e mesmo assim produzir algum tipo de sentido. Márcia Cançado, no Manual de Semântica (2012), explicita como a teoria da semântica deve apontar como a palavra/sentença se relaciona ao(s) significado(s) que assume no uso cotidiano da língua. Porém, esse significado não pode ser isolado, pois mescla-se e forma-se por influência tanto lexical quanto gramatical. Observe as expressões: Colocou o boi na frente do carro. Colocou o carro na frente do boi. São sentenças com significados igualmente diferentes, mas isso não se dá pelas palavras utilizadas, mas pela ordem das sentenças: o segundo caso é um ditado popular que tem o sentido de denominar pessoas atrapalhadas ou apressadas. Ainda assim, esse significado pode não se limitar à escolha lexical ou à ordem dos termos, uma vez que a noção de significado de sentença pode depender, tanto lógica quanto metodologicamente, da noção de significado do enunciado, de maneira que não se pode dar conta totalmente do significado de sentença sem relacionar as sentenças, em princípio, a seus possíveis contextos de enunciação (LYONS, 1981a, p. 137) Observe que, se a frase "Colocou o boi na frente do carro" tem determinada composicionalidade, sua expressividade tem um valor denotativo. Porém, a composicionalidade de "Colocou o carro na frente dos bois" aponta uma expressividade conotativa. 2. Relações de sentido e o significado lexical Nos estudos das relações semânticas, um dos grandes cernes das pesquisas envolve a percepção dessas relações (e, por assim dizer, também, das reações pragmáticas) criadas pelos falantes, por pura intuição. Nas duas frases acima, mesmo utilizando certo número de elementos gramaticais em comum, o falante é capaz de Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos compor enunciados significativos, sem perder, na maioria das situações, sua percepção de significado. É por isso que podemos abordar, dessa forma, a diferença essencial entre léxico e semântica: se o léxico é o conjunto de palavras utilizadas/disponíveis/possíveis em uma língua - e, aqui, abordamos todas as possibilidades do uso da língua, como o texto escrito -, a semântica envolve os significados dessas palavras dentro de dado sistema linguístico. Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos Você quer ler? Para que você possa se aprofundar nas relações inerentes ao léxico e à semântica, além de compreender a formação de enunciados significativos com base em sua estrutura, sugerimos a leitura de um texto que aborda essas relações de modo aprofundado por toda uma geração de teóricos. Gustava Braune promove uma pesquisa para analisar essas etapas e apresenta as contribuições de pesquisadores da área. O título do artigo é “Sobre a semântica lexical: Jerry Fodor e Ernest Lepore versus Pustejovsky”. Leia aqui. Procure associar: o léxico é o seu vocabulário sociocultural - abordaremos essa questão mais adiante -, só que infinitamente superior a qualquer dicionário de papel, pois ele guarda, inclusive, as possibilidades de uma língua. Já a semântica estuda as relações que essa palavra estabelece. Observe o seguinte exemplo: Pedro inventou uma mochila que voa, e quer utilizá-la para ir para a escola. Que nome utilizará? Pedro não faz ideia, mas acha que "aerochila" soa bem. Esse prefixo, "aero", ele já viu em outras coisas associadas ao ato de voar, como "aeronave", "aeroplano", "aeromoça", "aeroporto"... logo, mesmo não sabendo o significado da palavra, ele intui sua semântica. Deve considerar que “especificidade das implicaturas ressalta numa comparação com as pressuposições. Em algum sentido, tanto as implicaturas como as pressuposições não fazem parte do conteúdo acertado (ILARI; GERALDI, 2006, p. 76). Dentro do fenômeno linguístico, o falante possui os recursos para fazer essa correlação. Porém, nem sempre esses fenômenos se dão de maneira tão tranquila, como nos diferentes fenômenos linguísticos. É o caso de dois fenômenos conhecidos como ambiguidade e vagueza. Muito comum é a confusão desses termos: uma expressão é vaga ou ambígua? Se por um lado a ambiguidade relaciona-se com uma informação descontextualizada - observe como semântica e contexto são termos irmãos -, na vagueza ocorre um conflito com informações que bagunçam um sentido textual. Ex: Mário é pobre, mas é o mais rico da rua. http://www.pucrs.br/edipucrs/online/vsemanaletras/Artigos%20e%20Notas_PDF/Gustavo%20Brauner.pdf Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos Afinal, quala informação correta? Ele é pobre se considerar a renda mensal da população, mas é o mais rico do bairro? Mais rico em relação à quem? E pobre em relação a quem? Não há elementos suficientes para determinar isso. Mesmo se a expressão fosse "Por morar na zona norte da cidade, Mário é pobre", ainda seria vago. Zona norte de qual cidade? É uma informação imprecisa, vaga, pois em algumas cidades o equivalente a uma região mais pobre pode ser a zona oeste, por exemplo. Há uma inconclusão que atrapalha a completude da informação. A ambiguidade, por sua vez, fornece excesso de informações e impossibilita uma decisão. Dada notícia de jornal possuía a seguinte manchete: "Polícia cerca prédio com 30 indígenas". Mas a polícia ocupa o prédio com 30 moradores, todos indígenas, ou utilizou os indígenas para cercar o prédio"? Você quer ler? Há uma série de estudos que abordam as transformações ocorridas nos últimos tempos nos meios comunicativos, e como isso influenciou a produção de novos enunciados significativos. A pesquisa de Maria Aparecida da Silva, “O ensino da língua portuguesa através de comunicação informatizada em ambiente de ‘chat’”, aprofunda esse ponto de discussão, e aponta como, gradativamente, os enunciados significativos evoluem para a produção de hipertextos, textos estruturados diretamente para o ambiente digital. Leia aqui. É fato que nós, falantes, realizamos esses fenômenos semânticos de maneira bem prática e cotidiana, e dificilmente teríamos dúvidas quanto ao sentido do enunciado. Porém, o texto na variedade escrita exige uma explicitude dos enunciados, acompanhado de uma maior expressividade - ou seja, dizer de maneira clara o que deve ser dito. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/83431/192901.pdf?sequence=1&isAllowed=y Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos A compreensão entre as características significativas desses dois fenômenos envolve o fato de que a estrutura linguística acessada pelos falantes - no nosso caso, a Língua Portuguesa - fornece o arcabouço instrumental para que o mesmo os compreenda. E essa vagueza muitas vezes funciona no plano conotativo. Imagine que um namorado chega na casa da namorada e a encontra na sala com sua família e, em seguida, pronuncia o enunciado "vamos sair?". Ele implicitamente exclui os demais envolvidos, com exceção da namorada. Isso envolve fenômenos semânticos conhecidos como pressuposição e implicação, que por sua vez envolvem os sentidos literais de uma frase, e aquilo que a ele são estranhos (ILARI; GERALDI, 2006, p. 77). Já a paráfrase, enquanto fenômeno, carrega implícita a si seu sentido - para- phrasis- continuidade ou repetição de uma sentença (Sant’Anna, 2003, p. 75) . Para Sant’Anna, o termo paráfrase tem um sentido diversificado, é a reafirmação, em palavras diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita. Uma paráfrase pode ser uma afirmação geral da ideia de uma obra como esclarecimento de uma passagem difícil. Em geral ela se aproxima do original em extensão. (2003, p. 17) Podemos delimitar a paráfrase como um fenômeno de tradução, ou seja, ressignificação de um enunciado, em outros termos. Parece estranho o uso do termo "ressignificação", mas isso se associa com o princípio da sinonímia, ou seja, de que podemos utilizar termos diferentes para apontar o mesmo sentido, mas não significa que venham a abrangê-lo da mesma forma. Você sabia? A noção de “canto paralelo” da paráfrase envolve justamente a sua origem grega, e está presente na noção pós-moderna de paráfrase, a de crítica contextualizada, de releitura da diferença. Toda uma geração de escritores e críticos literários, como Fredric Jameson, releem os clássicos da modernidade por esse viés. Nos aprofundaremos no fenômeno da sinonímia a seguir. Por hora, basta observarmos que o simples fato de reescrevermos um enunciado, de dizê-lo com outras palavras, já significa uma negociação dos sentidos, de transpor um conjunto sintático-semântico, para outro. E uma vez que a formação dos valores semânticos associa-se com a capacidade linguística de dado sujeito - e, também, sua capacidade de interpretação de enunciados significativos - significa dizer que também é uma tradução para um universo sociocultural. Observe, por exemplo, como as expressões "Loser" e "Winner", muito utilizados em filmes americanos, perdem muito de seu valor contextual ao serem traduzidos Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos literalmente como "perdedor" e "vencedor". No caso das palavras em inglês, elas têm toda uma relação com o processo de formação dos EUA e a ideia calvinista de que os escolhidos são os que vencem, e vencer é a prova de que são os escolhidos. Como paráfrase, faz muito mais sentido, utilizar como correspondentes em Português Brasileiro, os termos "zero à esquerda e "O cara que venceu na vida". A paráfrase não envolve apenas uma adaptação, mas, justamente, um processo de negociação intersemiótica (ECO, 1986) entre sistemas sígnicos diferentes, mesmo que próximos, como o próprio espaço semântico da língua portuguesa. Lyons, por sua vez, aproxima a sinonímia da paráfrase pelo fato da primeira representar uma "identidade de significado" (1981a, p. 143), mas não ocorrer de maneira absoluta. Em dados enunciados menino e moço podem ser sinônimos, mas a própria palavra "moço" já pressupõe uma determinada formação fisiológica. Da mesma forma que "menina" e "mulher" podem ser utilizados como sinônimos, mas não em todas as situações. O que difere o fenômeno da paráfrase da sinonímia é que, no caso da paráfrase, a informação em enunciados diferentes transmite a mesma informação. Observe como a paráfrase, por vezes, confunde-se com a paródia, mas o equívoco é que, na paródia, ocorre uma desconstrução e, até, releitura de outro texto, em busca de novos sentidos (HUTCHEON, 1985, p. 79). Em ambos os casos, são fenômenos semânticos do campo da intertextualidade, textos que mantêm relações dialógicas, de sentido, com seus textos de origem. Antonímia, por sua vez, é apontada como a capacidade que duas palavras, em relação dialógica, têm de assumir significações opostas, como "entender/desentender". Observe a especificidade do prefixo "des", que indica "desfazer o feito". É um valor semântico construído no campo morfológico ao se acrescentar um prefixo de negação. Saussure apontava isso como o fenômeno de uma palavra ser um centro em si, e para o qual convergem outros significados, em associação, aproximação ou oposição (2002, p. 146). Como apontamos anteriormente, essas relações apontam para enunciados, como em "Ele gosta de você" e "Ele não gosta de você". São enunciados que estão em uma relação de antonímia, uma vez que são sentenças contraditórias. Contradição, por sua vez, é o efeito semântico através do qual os enunciados encontram-se em conflito. Observe como a contradição é produzida pelo acréscimo do advérbio "não". Observe que o primeiro enunciado significa, que, "Ele gosta de você", mas não que "você gosta dele". Uma vez que nem sempre a informação é explícita, deve-se tomar cuidado ao apontar toda antonímia como inerentemente contraditória. Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos Curiosamente, Márcia Cançado (2012) aponta, também, para o fenômeno da Anomalia, um tipo de enunciado gramaticalmente aceito, mas que em sua expressividade apresenta um valor incoerente. Ex: A cor do carro de Marcos é fria. Alguns poderiam alegar que se trata de um caso de sinestesia - figura de linguagem que promove a mistura de sensações -, mas observe que o enunciado é gramaticalmente correto - "fria" é um predicativo -, mas não faz sentido. Talvez se ele colocasse "cor fria" o enunciado se completasse. Há outros casos, como "Ana é furiosa e dengosa". Sem a devida contextualização - o que nos leva, também,ao campo da ambiguidade -, o enunciado é tomado de uma dispersão semântico-textual. Observamos até aqui como cada palavra/enunciado atua como um núcleo para o qual se distanciam ou confluem outros termos/enunciados, estabelecendo, assim, relações de sentido. É muito comum o estudo da semântica como base no significado lexical, ou seja, da derivação, composição e outros processos de formação de palavras. Observando a palavra "aeronave",identificamos que a mesma é formada a partir do mesmo radical que deu origem a "aeroporto". 3. Campo Lexical e Semântica Cultural Por outro lado, há uma série de processos de formação semântica de palavras nas quais as mesmas se aproximam em detrimento de uma relação simbólica, ou seja, do seu mesmo campo semântico de atuação. A isso damos o nome de "Campo Lexical". No primeiro, utilizam-se as palavras associadas a um mesmo campo de conhecimento. Utilizemos, novamente, "aeronave". A ela associam-se "piloto", "mala", "translado", e assim por diante. Por outro lado, o campo semântico envolve o grupo dos significados possíveis de dada palavra. Se olharmos, por exemplo, o verbo "bater", ele pode possuir os seguintes significados: brigar, ganhar, faturar, colidir, e etc. Deve-se observar como relações de sentido entre as palavras se alimentam de nossa memória cultural, formando um léxico mental. É por isso que uma palavra como “menina” pode substituir, em algumas situações, "mulher", "moça" e "garota", por Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos manterem relações de sentido, estarem atreladas ao mesmo campo semântico, ou seja: As relações de sentido são de dois tipos fundamentais: paradigmática e sintagmática. Cada uma das duas relações de sentido possui a sua significância distinta. Relações paradigmáticas, em grande parte, refletem a forma na qual a realidade experimentada, a qual se dá de forma infinita e variada, é apreendida e controlada por meio da categorização, subcategorização e gradação ao longo das dimensões específicas de variação. Elas representam os sistemas de escolhas com os quais o falante se depara quando codifica a sua mensagem. Já os aspectos relacionadas às relações sintagmáticas do significado lexical, por outro lado, servem à coesão do discurso, adicionando informação necessária à mensagem, ao mesmo tempo controlando a contribuição semântica de elementos individuais da enunciação através da desambiguidade, por exemplo, ou pela sinalização de estratégias alternativas – e.g. figuração – de interpretação (CRUSE, 1986, p. 86). Dessa forma, o processo de representação e de interpretação de um enunciado envolve necessariamente o significado atribuído à dada mensagem, de maneira que o ato da comunicação envolve, necessariamente, o acesso aos sentidos intuitivos dos falantes presentes na língua. Esses sentidos ampliam-se conforme o seu uso, sua interação com os elementos internos ao seu próprio campo linguístico. Uma vez que abordamos o próprio conceito de semântica, é muito relevante essa acepção que a traz como elemento da cultura. De fato, uma vez que a língua agrega os elementos socioculturais de dada sociedade, é por meio desta que se expressa determinada cultura, ou seja temos a semântica cultural. Celso Ferrarezi e Renato Basso, em estudo sobre a semântica cultural, salientam a característica inerente da língua de ser uma construção humana, o que por definição implica sua associação com a cultura (2013, p. 74). Para os pesquisadores, a língua atua como parte da cultura e, ao mesmo tempo, metacultura, pois também ajuda a construí-la. Considere a seguinte situação: Você seria você exatamente como é se não o fosse em Língua Portuguesa? A maneira como você se define transita pela língua e, consequentemente, pela forma como a mesma expõe seus significados e significantes circulantes entre o campo lexical-semântico de cada falante. É curioso observar como certas expressões cotidianas assumem, até mesmo, significados diferentes de acordo com o seu campo semântico de transição e de atuação: a palavra "moleque", por exemplo, para uns tem o valor semântico de "menino", "garoto" e, para outros, é uma ofensa, de maneira que chamar o filho de alguém de moleque - ou até mesmo um adulto - é uma ofensa maior ainda, como se dissesse que se trata de uma pessoa irresponsável. Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos Afrânio Garcia aponta como determinadas palavras podem assumir diferentes significados em contextos diferenciados: a palavra rapariga tinha (e, em Portugal, ainda tem) o sentido de moça, mulher jovem. Como muitos homens abastados de outrora tinham raparigas como concubinas, o português do Brasil passa a diferenciar moça de rapariga, ficando o termo rapariga, principalmente no Nordeste, quase como sinônimo de prostituta (GARCIA, 2001, p. 71). A língua, formadora e formada pela cultura, constitui-se de elementos indissociáveis. Porém, é no interior da língua, nos sentidos culturais, que esses elementos se confluem. Como aponta Barthes (1987), a Língua te obriga a dizer, não te dá opção a não ser se comunicar por meio dela, mas, ao mesmo tempo, possibilita uma constância de significados e significantes. Não é só na língua falada, mas também na língua escrita que transitam esses sentidos. Gilles Deleuze e Félix Guattari abordam isso ao falar, inclusive, sobre um uso menor de uma língua, delimitado não no sentido de qualidade, mas político, quando determinado termo, muitas vezes de uso comum, passa a ser utilizado em um sentido diferenciado. Se a palavra "moleque" pode ter um valor depreciativo em alguns lugares, um grupo musical chamado "Jeito Moleque" desconstrói o termo em si - produz uma palavra - como uma espécie de "bagunça linguística", utilizando a palavra como forma de afirmação de um gênero musical, o pagode. 4. Sentido e referência Temos abordado, ao longo do texto, a questão do significado. Mas, de fato, o que é o significado? Apontamos esse termo, na unidade anterior, ao tratar da teoria linguística de Saussure sobre o caráter dicotômico de todo signo linguístico, sua divisão em significado e significante. Gottlob Frege, dentre várias atribuições, foi também um filósofo da linguagem, além de conceber a ideia de uma lógica da matemática moderna. É dele a noção de que os nomes possuem tanto sentido quanto referência. Essa noção de referencialidade tem origem na ideia de signo, já apresentada por Saussure, pois os signos significam algo, ou seja, possuem significado. De igual forma, não há signo linguístico sem significação, palavra sem utilidade em uma língua. Tome como exemplo a palavra "crush". Você a conhece? Não? Bem, esse é um uso recente muito comum do termo por jovens e adolescentes, no sentido de "paquera", “ficante". O mesmo vale, por exemplo, para palavras que deixam de ser significativas em determinado contexto. No caso de palavras que sofreram uma modificação Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos morfológica, podemos observar o seu processo até cair em desuso. A palavra "geolho" é uma forma arcaica de "joelho", e não é mais utilizada, perdendo, assim, seu significado para os falantes do português contemporâneo. Isso ocorre porque esse signo necessariamente precisa representar algo para alguém. Se algum dia encontrar uma pessoa mais velha falando uma palavra que ninguém mais usa, talvez você considere chamar esse fenômeno de ato falho linguístico, pois mesmo que essa pessoa a utilize, essa palavra dificilmente ainda possuirá referencialidade. Entretanto, voltamos ao tema desse tópico: o que pode ser apontado como significado? Estudiosos da língua buscam uma definição específica para o termo, em especial, se apropriando dos estudos de Frege, principalmente quando ele delimita o que é significado e o que é referência. Estudos Semânticos - Unidade 2 -Fenômenos semânticos Para Frege a referência de um nome é o que ele denota (sentido literal), de modo que o sentido é a apresentação da denotação desse objeto. Ele atingiu esse ponto de análise ao observar o que recebe o nome de "sentenças de identidade informativa". Ex: C=D, onde "C" e "D" dispõem da mesma referencialidade. Mas se não houvesse um sentido, ou seja, os nomes não indicassem referência, não haveria nenhuma distinção no enunciado "C=C" e "C=D"; No primeiro caso, "C=C" é uma consequência dessa identificação, enquanto que "C=D" agrega nova informação. E o que isso significa? Que o nome tem um significado na medida em que há pessoas que dominam determinada língua, ou seja, estrutura linguística na qual esse signo se encaixa. Em suma, um signo tem um significado, o qual corresponde a uma espécie de referência. Se mudarmos a língua, ou seja, o sistema linguístico, o mesmo significado pode não ter a mesma referência. Observe a palavra "gato", um signo linguístico que tem a referência de "animal do gênero felino". Porém, é comum, principalmente em algumas regiões do Brasil, esse substantivo ser utilizado no sentido ou de um adjetivo ou, até, de um predicativo do sujeito que indica “beleza física”. O significado seria, então, o objetivo, representação de uma espécie de subjetividade. E por causa dessa subjetividade, a representação que uma pessoa tem de algo pode não ser a mesma que os demais tem do mesmo objeto. Daí que nem todo significado pode ter um mesmo correspondente ou, ao menos, um com precisão. Observe que o signo "família" pode assumir diversas acepções. Para uns, refere-se a pai, mãe, irmãos. Para outros, pode ser o seu cachorro. Ilari segue a mesma premissa de Frege ao apontar como, por meio da língua, selecionamos objetos-tema (indivíduos, elementos, ações) em particular e os tornamos elemento de nossos discursos (2013, p. 172). Tomemos novamente Barthes como referência, principalmente quando este disserta sobre vivermos em um mundo feito de palavras (1987, p. 127). Se nossa expressão de individualidade, estar-no-mundo, é feito por meio da comunicação, sempre que buscamos entender o que significa dado enunciado, o que procuramos, assim, é um ponto de referenciação e confirmação. Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos Da mesma forma, se dizemos "A feira de Paquetá é organizada aos domingos", proferimos uma sentença informacional que carece de verificação para que se instaure sua confirmação. Como já apontava Frege, dar significado a um enunciado envolve necessariamente as noções de sentido e referencialidade. Essa referencialidade envolve o que ela aponta no mundo que nos cerca, o que valora positivamente, neste caso, o enunciado "A feira de Paquetá é organizada aos domingos". Já o sentido relaciona-se à maneira como tal enunciado se apresenta. Observe que "feira", 'Paquetá" e "domingos" possuem a mesma referência, mas podem ter sentidos diferenciados de acordo com o contexto comunicativo, pessoal e interacional. "de Paquetá" é um adjunto adnominal da feira, dentre várias que ela pode receber. "Paquetá" é o nome de uma ilha, mas também pode ser conhecida como uma unidade municipal administrativa e, inclusive, pode ter um sentido totalmente diferente do apresentado. Basta lembrar que no Estado do Rio de Janeiro, devido a crescente onda de violência, há uma avenida que é conhecida como "Faixa de Gaza", sem necessariamente referenciar esse espaço geográfico na região do Oriente médio. As relações de sentidos, de maneira implícita e explícita, podem sofrer uma determinada variação. Entretanto, como a língua é um signo linguístico em constante transformação sincrônica e diacrônica, é passível da ocorrência de fenômenos para múltiplos signos, mas que possibilite que os mesmos sejam, em dado contextos, compreensíveis no mesmo contexto linguístico. Síntese Nesta unidade abordamos os fenômenos semânticos e os conceitos a eles relacionados a partir de alguns autores. Nós vimos que: ● o estudo dos fenômenos semânticos aborda os efeitos de sentidos e a construção de enunciados significativos. Dessa forma, pudemos abordar processos mais formais, como a sinonímia, e outros mais complexos, como a paráfrase e a paródia. ● Pode-se observar, dessa forma, como todo um enunciado significativo vai sendo construído tanto pelas suas relações lexicais quanto semânticas, e como a disposição dos termos da oração, mesmo que em consonância, modifica o sentido da enunciação. Estudos Semânticos - Unidade 2 - Fenômenos semânticos ● Pudemos, assim, abordar as relações intrínsecas entre língua e cultura, num processo de retroalimentação que traz a tona o estudo dos signos sob a ótica das trocas culturais, bem como estes se relacionam com a linha da negociação linguística e tradução intersemiótica. ● Nesse caminho, abordamos o sentido de “significado”, através de toda uma tradição de estudos semânticos que busca desenvolver um arcabouço teórico sobre o tema. 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