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Autor: Prof. Adilson Rodrigues Camacho Colaboradoras: Profa. Maria José Dias Profa. Tânia Sandroni Sociologia Rural e Urbana Professor conteudista: Adilson Rodrigues Camacho É doutor em Ciências pelo programa de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) desde 2008; mestre em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCT-Unesp) desde 1994; e graduou-se em Geografia pela USP em 1990. É professor titular na Universidade Paulista (UNIP) e na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência em estudos socioambientais municipais e regionais. Atua principalmente nas linhas de pesquisa ligadas à epistemologia das ciências sociais, às metodologias de planejamento, qualificação territorial, econômica, política e ecológica dos usos territoriais do ambiente (diagnóstico e prognóstico dos impactos socioambientais), associada à adequação das políticas públicas às demandas locais. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. U503.19 – 19 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C172s Camacho, Adilson Rodrigues. Sociologia Rural e Urbana. / Adilson Rodrigues Camacho - São Paulo: Editora Sol, 2019. 232 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-214/19, ISSN 1517-9230. 1. Sociologia rural. Sociologia urbana. 3. Agentes sociais. I.Título CDU 301 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice‑Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice‑Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice‑Reitor de Pós‑Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice‑Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Ingrid Lourenço Giovanna Oliveira Sumário Sociologia Rural e Urbana APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................ 10 Unidade I 1 SITUAÇÕES: FAZERES E CONCEITOS SITUADOS ............................................................................................ 15 1.1 O caminho do estudioso, da confecção teórica....................................................................... 16 1.2 O caminho que se volta para entender a si mesmo, estudando o próprio pertencimento ao fazer parte da prática investigada .................................................................. 17 1.3 Sociologia rural: das localizações inconfundíveis aos debates sobre sua existência (aniquilamento epistemológico) ...................................................................................... 21 1.3.1 As críticas ................................................................................................................................................... 26 1.4 Sociologia urbana: de localizações incontestes à ubiquidade ........................................... 29 1.4.1 Movimento crítico .................................................................................................................................. 38 1.5 Mais questões e conceitos ................................................................................................................ 39 2 RURAL E URBANO PELAS EXPERIÊNCIAS ORIGINAIS ....................................................................... 43 2.1 Experiências ............................................................................................................................................ 52 2.1.1 Cidades e campos seguem diminuindo a evidência de suas marcas distintivas ......................60 2.1.2 A leitura antropológica da cidade .................................................................................................... 70 Unidade II 3 ESTRUTURAS SOCIAIS E FUNDIÁRIAS: ONDE ESTÁ O RURAL? ..................................................... 76 3.1 O mapa do texto ................................................................................................................................... 76 3.2 Procurando as pessoas e seus modos de vida .......................................................................... 77 3.3 Cultivando e criando o mundo: além da coleta ...................................................................... 78 3.4 Cidades gigantes ................................................................................................................................... 82 3.5 Rural agrário e os horizontes do urbano .................................................................................... 85 3.6 Modelos agrários atuais de produção.......................................................................................... 88 3.7 Formas de exploração da terra ....................................................................................................... 88 3.8 Tipos de lavouras .................................................................................................................................. 90 3.9 Relações de trabalho ........................................................................................................................... 90 3.10 Principais produtos agrícolas ........................................................................................................ 91 3.10.1 Principais lavouras ............................................................................................................................... 91 3.10.2 Culturas permanentes ........................................................................................................................ 92 3.10.3 Cana-de-açúcar .................................................................................................................................... 93 3.10.4 Café ............................................................................................................................................................ 94 3.10.5 Cacau ......................................................................................................................................................... 95 3.11 Atividade pecuária ............................................................................................................................. 97 4 TRABALHO, INSTITUTOS E INSTRUMENTOS DE CONTROLE SOCIAL: ESTADO E DEMAIS AGENTES ............................................................................................................................................... 99 4.1 Criar e/ou produzir .............................................................................................................................101 4.2 Políticas de manutenção da força de trabalho ......................................................................103 4.3 Estado: figura de poder e política consolidada historicamente......................................103 Unidade III 5 CIDADANIA SELETIVA: DIVISÃO E DETERMINAÇÃO DO TRABALHO ..........................................111 5.1 Alfabetizaçãofinalitária: atalhos da redução .........................................................................115 5.2 As mãos no trabalho esfacelado ..................................................................................................120 5.3 Campos do capital, da urbanização disruptiva ......................................................................122 5.4 Cidades esfaceladas: bairros e distritos .....................................................................................129 5.5 Problemas urbanos: a vida na cidade ........................................................................................132 5.5.1 Habitação ................................................................................................................................................ 132 5.5.2 Especulação imobiliária ..................................................................................................................... 132 5.5.3 Violência, insegurança e medo ....................................................................................................... 133 5.5.4 Desemprego e precarização do trabalho .................................................................................... 134 5.5.5 Os circuitos da economia e a informalidade ............................................................................ 135 5.5.6 Sistema viário ........................................................................................................................................ 136 5.5.7 Transporte coletivo, individual e o trânsito .............................................................................. 138 5.5.8 Saneamento e saúde .......................................................................................................................... 139 5.5.9 Educação ................................................................................................................................................. 140 5.5.10 Sistemas condutores de energia e alimentação das cidades .......................................... 140 5.5.11 Fronteiras urbanas ..............................................................................................................................141 6 A SOCIEDADE DETERMINADA: MENSAGEM E VOZES DA NORMATIZAÇÃO ..........................143 6.1 Cidadania seletiva para os habitantes dos espaços rural e urbano: o peso da norma .......................................................................................................................................................148 6.2 Ações sobre o mundo rural ............................................................................................................149 6.3 Ações sobre o meio urbano ............................................................................................................150 6.4 A fenomenologia do mercado ......................................................................................................150 6.5 Sensação das perdas .........................................................................................................................152 Unidade IV 7 TENSÕES ENTRE DIREITOS E NORMAS: PERDAS E GANHOS .......................................................159 7.1 Diferenças, contrariedades ao modelo único de inserção no movimento global .............172 7.2 Campos e cidades rebeldes, movimentos sociais urbanos ................................................175 8 SOLUÇÕES, APONTAMENTOS E PERSPECTIVAS .................................................................................184 8.1 Visão ou percepção intencionada ...............................................................................................185 8.2 Urbanização, modernização e ambiente como recurso .....................................................185 8.2.1 Escopo dos estudos de impactos ambientais ........................................................................... 187 8.3 Abordagem estrutural com registro cartográfico .................................................................188 8.4 Algumas considerações sobre o campo que queremos ......................................................192 8.5 Algumas considerações sobre a cidade, o novo urbano que temos hoje ....................201 8.6 Vida humana, que transforma necessidades e matéria em vida, em sentido ...........207 9 APRESENTAÇÃO Este livro-texto procura trazer a natureza da sociologia rural e urbana, seu alcance e complementaridade às demais áreas do curso de sociologia. O objeto de interesse, a vida rural e urbana, é caminhável, sensível, comestível, tomável, e dá-se com o desenrolar da existência das pessoas que compõem a sociedade, bem como de seus projetos. Somos moldados e moldamos o nosso entorno, sendo dobrados pelas regras, quando de fora, incoerentes, com virtuais opções de liberdade. A sociologia, no geral, dá conta dos fenômenos sociais, das associações humanas, tais quais fossem, onde estivessem. Não havendo a necessidade de parcelar ainda mais o conhecimento; pelo contrário, seria a sede de articulação disciplinar para apreender e estudar a vida social. A sociologia rural e urbana apresenta-se como referência positiva a esferas específicas da vida social; há modos de vida marcantemente distintos, com usos ambientais correspondentes: há a vida no campo e há a vida urbana, normalmente nas cidades. O poder explicativo da sociologia está no diálogo com os demais saberes. A importância da disciplina, sua principal pujança, é tanto a identificação do que é o rural e o urbano, hoje, quanto o enfrentamento das crises (e obstáculos) à explicação nos temas sociais e, portanto, crises responsáveis pelas distorções (inadequações e, até mesmo, depravações) de projetos sociotécnicos (da arquitetura e engenharias até as políticas públicas); como decorrência óbvia da superficialidade e do desconhecimento (e muitas outras perdas ligadas à “pressa” executiva) dos diagnósticos e prognósticos coerentes ao fluxo da vida, considerada em sua plenitude. Precisamos resgatar o papel do fazer, da execução, como desdobramento lógico da análise e da avaliação daquilo que encontramos pronto sem que questionemos as histórias que o levaram até onde se põe para nossas experiências. A proposta deste livro-texto é procurar e apresentar as associações históricas de campo e cidade, de cunho fortemente espacial ou geográfico, discorrendo sobre os principais aspectos das profundas transformações culturais, políticas e econômicas dessa reflexão, aproximação e exposição integradora, interdisciplinar, sediada na sociologia. Procura, interdisciplinar, de conhecimentos sobre o habitar (ontológico, essencial) e a urbanização (manifestação metafísica do “estado de natureza” humano), cujas formas, relações e configurações resultantes estão para além das racionalidades parciais de sua realização social, o que abre espaço para a busca das dimensões invisíveis da realidade (MERLEAU-PONTY, 2005). Ao denominarmos nossos objetivos, dos mais gerais aos mais específicos, temos, então que os mais genéricos vão desde identificar e conceituar a realidade social, com suas especificidades econômicas (organização e normalização do trabalho), políticas (poder, autonomia e emancipação), culturais (expressão) que nos puderem auxiliar na empreitada de encontrar o que há de rural e onde; bem como delinear o que é urbano nas cidades e o que há de urbano nas áreas tradicionalmente tidas como rurais. Essa busca sociológica dá-se em meio às interfaces disciplinares com lida das questões rurais e urbanas, além da antropologia e das ciências políticas: tais são as ciências humanas e sociais, como a geografia, a história, a ecologia, o urbanismo; conhecer e refletir sobre os principais 10 processos sociais, direta ou indiretamente associados à vida social nos espaços rurais e urbanos, suas particularidades e universalidades, organizações e conexões e diferenças; compreender a urbanização em países dependentes(para alguns, emergentes); além de analisar concepções teóricas de sociólogos mais afeitos às questões rurais e urbanas. Ainda do ponto de vista dos objetivos gerais, apontamos as abordagens teóricas e metodológicas das ciências sociais que definem espaços e sociedades rurais e urbanos, juntamente com o rol de conceitos daí advindos, como: região, modo de vida (tipicamente rural e urbano), produção (tipicamente agrária e urbana) e reprodução social (cultural e normativa), circuitos produtivos e produtividade. É também fundamental relacionar as estruturas e organizações da vida social no campo e na cidade, bem como as especificidades produtivas e interdependências mercantis entre os espaços agrários (áreas de agricultura, extrativismos e de pecuária) e as cidades (áreas, que, desde a Revolução Industrial, são associadas à industrialização e a serviços). A produção e o consumo são atividades-chave tanto agrárias como urbanas. Dentre os objetivos mais específicos, temos o exercício de diferentes versões teóricas da sociologia (sempre que possível consideradas em suas relações com as demais ciências sociais: antropologia, geografia, ciências políticas), discutindo os modelos explicativos das tais realidades rurais e urbanas estudadas. As disciplinas do curso de sociologia (sociologia do desenvolvimento, Estado e sociedade, ciência política, geopolítica, teoria antropológica, entre outras) estão entrelaçadas tanto pelo objeto de interesse de sociologia rural e urbana quanto pelo seu instrumental. Caminharemos em meio a escopos positivistas, plenos de certezas no estabelecimento de questões e respostas absolutas, e em meio às posições críticas, cujas dúvidas assumem papel valorizado, pois indicam aprendizado. E, por fim, aprender a reconhecer os interesses subjacentes à realidade social, urbana e rural; interesses expressos em projetos, teorias, conceituações, experimentos, ações tanto privadas quanto públicas. Aprendizagem que implica identificar o Estado (institucionalização do poder social), nele reconhecendo sua composição e perfil; o papel estrutural do modelo de propriedade da terra (estrutura fundiária emparelhada da própria sociedade); os agentes envolvidos em sua manutenção; o cerne dos movimentos políticos, seja com ênfase econômico ou cultural, nas áreas rurais e nas cidades, considerados com base nas referências às transformações das tradições. Os objetivos contemplam a orientação do aluno no contato com padrões de fatos e processos socioespaciais e na problematização de suas razões e desdobramentos, aventando alternativas de organização social. 11 INTRODUÇÃO Caminharemos juntos por palavras e realidades sociais que, por vezes, parecerão fundidas, outras vezes, confundidas: estamos nos referindo aos universos comumente associados ao modo de vida rural e ao modo de vida urbano, seus conteúdos e suas formas, procurando a lógica do baralhamento sofrido pelas realidades do rural e do urbano até há pouco, aparentemente cristalizadas em suas localizações, por análises clássicas e percepções da superfície. Para falarmos desse assunto, seguiremos um plano! Cada parte do texto é um jeito de ser do corpo humano, corpo-sujeito. A metáfora de comunicação do percurso analítico é a do corpo, suas partes e unidade; o método é baseado nas experiências, de pensamento e de percepção, recolhendo os pedaços que encontrarmos pessoalmente, em estudos e pesquisas, juntando tanto quanto possível nesse trajeto; indo, portanto, das questões concretas às alternativas. O percurso segue em dois níveis: por uma trilha que leva pela percepção mais imediata e por outra, cujas mediações a tornam mais teórica, ambas tornando-se texto. Imediaticidade, e até concretude, conferidas pelo caráter existencial do corpo que tem experiências de campo e cidade; uma história vivida. Trata-se de caminho ontológico, indo em direção ao que se fala e reflete, com as pessoas que encontramos nas ocupações reais, muito além das noções e conceitos (sempre datados, atávicos) que também traremos, de pessoas, supostamente, vivendo e trabalhando na agricultura e na pecuária de paisagens nitidamente rurais e agrárias (vivendo em aldeias e povoados) ou na indústria e serviços (em vilas, cidades e metrópoles), com suas paisagens características. Este, nosso segundo movimento delineado pela aproximação de inspiração epistemológica, ocupado com as atribuições conceituais ao real. Como anunciado, colocamo-nos a percorrer tanto o rural e o urbano (objeto de nosso interesse) quanto as sociologias do rural e do urbano (corpos teóricos que por eles se interessam). Passearemos pelas coisas, nela pensaremos apoiados nos grandes estudiosos do assunto, as classificaremos, e o faremos com crítica. Em qualquer situação, ação localizada, em que estivermos, o que se movimenta é o corpo-sujeito; e enquanto andarmos por aí, metendo-nos com as coisas interessantes que nos couberam estudar, coisas do rural e do urbano (ontologia), pensaremos sobre isso, pondo o próprio corpo, interessado, em análise: ser humano é criatura-criador/criador-criatura, seguindo a versão clássica do Frankenstein, de Mary Shelley. Minha imaginação, porém, estava por demais exaltada diante do primeiro êxito, para permitir-me dúvidas quanto à possibilidade de dar vida a um animal tão maravilhoso como o homem. Eu tinha a fórmula. Faltava-me a matéria-prima. Onde e como obtê-la? Sabia que iria enfrentar um sem-número de empecilhos que poderiam me pôr em risco de realizar uma obra imperfeita. Mas face ao incessante progresso da ciência e da mecânica, aos aperfeiçoamentos que surgem dia a dia, eu teria, pelo menos, a possibilidade de assentar os alicerces para um êxito futuro. A impraticabilidade da empresa estava, todavia, fora de minhas cogitações. 12 Tais eram as condições em que comecei a criação de um ser humano. Como a complexidade dos órgãos constituía um obstáculo à rapidez do meu empreendimento, resolvi, contrariando minha primeira intenção, construir um ser de estatura gigantesca, partindo da ideia de que, trabalhando em escala mais ampla, seria mais fácil manipular as partes para chegar ao todo, tal como ocorre ao cartógrafo ao elaborar um mapa (SHELLEY, 2012, p. 52-53). Richard Sennett considera duas imagens de objetos simulacros do corpo humano, tão arquetípicos e caros à contemporaneidade, propondo reflexão importante para o nosso trabalho, ao cotejar o antigo desejo de imitar o ser humano e de reproduzi-lo, mecanicamente; é aí que fala na categoria dos objetos de imitação do humano (os replicantes, de Blade Runner, por exemplo) e aqueles que o superariam (os robôs de todo tipo), Para ele, ambos seriam “ferramentas-espelho” (2009, 101-102). O mapa de nosso “caminhar-texto” “O corpo humano” encobre um caleidoscópio de épocas, uma divisão de sexos e raças, ocupando um espaço característico nas cidades do passado e nas atuais. Em vez de elaborar um catálogo, procurei entender como as suas imagens coletivas foram usadas no passado. Imagens ideais do corpo humano levam à repressão mútua e à insensibilidade, especialmente entre os que possuem corpos diferentes e fora do padrão. Em uma sociedade ou ordem política que enaltece genericamente “o corpo”, corre-se o risco de negar as necessidades dos corpos que não se adequam ao paradigma. Porém, a conveniência da imagem idealizada está bem evidente na expressão “corpo político”, como condição da ordem social. O filósofo João de Salisbury talvez tenha formulado a definição mais simples e literal desse conceito, ao declarar, em 1159, que “o estado (res publica) é um corpo”. Ele quis dizer que um governante funciona como um cérebro humano; seus conselheiros, como o coração; os comerciantes são o estômago da sociedade; os soldados, suas mãos; camponeses e trabalhadores manuais, seus pés. Trata-se de uma imagem hierarquizada, segundo a qual a ordem social parte do cérebro, órgão do governante. João de Salisbury vinculou a forma do corpo humanoà forma da cidade, cuja cabeça situava-se no palácio ou na catedral; o estômago, no mercado central; pés e mãos, nas casas. Por conseguinte, as pessoas deveriam mover-se vagarosamente na catedral, posto que o cérebro é um órgão reflexivo, e mais depressa no mercado, já que a digestão se processa como uma fagulha no estômago (SENNETT, 2003). 13 Os pés no chão marcam nosso início, pois toda existência é situada, partimos da situação deste observador, autor, que segue por entradas disciplinares, mas ainda sediados na sociologia, com entrecruzamentos necessários (interdisciplinares), obrigando que nos acerquemos dos fenômenos do habitar, tanto daqueles tipicamente rurais quanto daqueles tipicamente urbanos. Seguimos tomando consciência de nós mesmos e dos demais sujeitos e organizações estudados, enquanto deles estivermos tratando. Os pés nos levam, assim, para um lugar primitivo do humano, do predomínio do labor e da dimensão de nosso “organismo”, isto é, procuramos pelo labor do corpo como movimento independente do organismo, das cadeias energéticas e de nossa realidade metabólica no centro de tudo. Com esse espírito, o que tocamos foi o núcleo de nossos usos materiais e espirituais do mundo (da revolução neolítica, ferramentas e mitos na sua base, aos voláteis dias de hoje). Esse ponto apresenta nossas experiências sociais agrárias e “proto-urbanas” mais elementares, construções comuns e respostas de inspiração mítica. Maurice Merleau-Ponty (2005; 2006) nos convida a não abandonar as dimensões que tragam ambiguidade aos estudos; como desafios a serem considerados no combate às reduções excessivas do real. Dando continuidade ao conteúdo, vamos aos problemas da existência, com as soluções reflexivas, mais elaboradas do que os impulsos de base laborais das primeiras experiências, considerando as primeiras soluções (técnicas) em medida humana, vitais (MERLEAU-PONTY, 2006). Encaminhamento político, próprio às preocupações sobre dominação, propriedade e a liberdade. Escolhemos a cabeça para representar as soluções corporais (de corpo inteiro, o corpo-sujeito da fenomenologia), portanto, a um só tempo intelectuais e práticas, trata-se da viabilização da vida social por meio das inteligências práticas de criação e soluções imediatas de problemas da existência, como criar, cultivar, coletar etc. Cabeças e pés constituem corpos coletivos, espécie de amarração das ações particulares às instituições ou essas, como uma mente generalizada ou coletiva, várias mentes agindo e pensando, torna-se síntese (complexa) das relações vitais, estamos agora no plano das instituições sociais: abstrações concretas, construções comuns e institucionais dos saberes, também das crenças e demais respostas religiosas e míticas às científicas; das técnicas às tecnologias, ao controle/gestão social e da natureza (redução sistêmica), nível que tende ao abstrato, político e econômico – circuitos econômicos com divisão do trabalho Karl Marx e Max Weber. Aqui há lugar para o reconhecimento da unidade, das possibilidades de sínteses. As mãos aparecem em nossa jornada como símbolo do fazer, de um fazer já manipulado, continuamente especializado. Trata-se da domesticação do corpo, seleção das funções (habilidades e movimentos) que interessam àqueles que controlam o fio condutor (estratégico) das acumulações de riqueza na modernidade. As mãos, habilidosas, competentes, entretanto, de ações fragmentárias, aplicadas à contínua expansão do capital, no trabalho (produção) dirigido de fora, com estrutura extravertida. Costas ou estruturas de sustentação. Sujeição, com as costas dobradas. Práticas, normatizações do “mundo determinado”, como se apropriar dos aspectos requeridos pelo mercado; instrumentalização dos símbolos e discursos com vistas à sujeição. Modo como se vem apropriando. Educação diretiva, do pensamento único (Foucault, Bourdieu e Milton Santos). 14 Olhos, ouvidos e narizes como instrumentos privilegiados nesse momento. Rebeldia no olhar; ocupamos um ponto de vista crítico. Procurando as falhas, crescente concentração de poder privado; Estado instrumentalizado, com suas razões. Lugar do corpo indócil, das subversões... É o espaço dos movimentos sociais: nos campos ou áreas de vida rural, aplanamento das desigualdades promovidas pelo capitalismo; questão rural-agrária (sem-terra, desemprego, paradoxo do “preço baixo demais” dos alimentos em oposição ao alto custo da vida do pequeno produtor, determinado pela lógica contraditória do mercado capitalista (no caso, de bens agrários, como afirma Mazoyer, 2010); Agora, o privilégio é o da visão, intuição, intenção. Experiência inteira. Esperança em ver, enxergar, voltando o olhar para o horizonte das utopias motoras da realidade, onde está principalmente o humano que buscamos desde o alvorecer do sapiens sapiens, procurando alternativas e possibilidades de melhoria da vida social. Queremos que esse texto chegue até você, aluno, como uma conversa; então, esperamos que, ao ler, pense a respeito e responda, por meio de exercícios, fóruns e provas, trazendo esses resultados para nossa comunicação baseada na perspectiva sociológica da vida social rural-urbana. 15 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA Unidade I 1 SITUAÇÕES: FAZERES E CONCEITOS SITUADOS Quando se admite a existência de uma multiplicidade de julgamentos cognitivos correspondentes à multiplicidade dos quadros sociais, a coexistência de diversos desses julgamentos e a reunião de diversas hierarquias de valor, ainda que contraditórias, no interior de qualquer sociedade, tornam-se também admissíveis (QUEIROZ, 1972a, p. 63). [a relação campo-cidade, “ruralização” ou “urbanização” de uma sociedade devem ser tomadas] como dois fatos que podem ter áreas que se recobrem, enquanto outras permanecem distintas; que ora convergem em seus processos internos, ora divergem; que às vezes se associam em complementaridade, e outras vezes se opõem. […] A sociologia rural precisa abandonar seus falsos problemas e admitir um dado fundamental: o campo nunca pôde ser compreendido por si mesmo, pois se ele existe, é porque existe a cidade – e vice-versa. A cidade pertence ao universo do campo, como o campo pertence ao universo da cidade. Quando falamos numa Sociologia Rural diremos que é do ponto de vista do rural que nos colocamos para compreender as relações entre o rural e o urbano; e no ponto de vista urbano quando fizermos Sociologia Urbana. Quando esta regra fundamental é esquecida, chegamos a explicações falsas, ou ficamos girando em círculo diante de questões que parecem insolúveis (QUEIROZ, 1978, p. 309). O foco nas questões próprias à vida rural e à vida urbana nos levam às suas especificidades e, em seguida, às suas ramificações (inter-relações/interações) e interdisciplinaridade. De específico, temos as práticas sociais: culturais, econômicas, políticas e territoriais. A vida, com a relativa universalização técnica e simbólica, transborda os lugares, pois os núcleos de convívio vão se mesclando e conectando lugares, por isso não podemos tratar apenas de loci como se as ações estudadas fossem a eles circunscritas (atividades estritamente rurais ou urbanas); estas tendem a ligações em diferentes combinações e escalas, por fios visíveis e invisíveis. As tais conexões entre grupos e lugares nem sempre se traduzem em comunicação e comunidade; o que tem havido está mais para costuras comerciais e informacionais de áreas, atravessadas por 16 Unidade I circuitos econômicos que lhes impingirão a tônica dos conteúdos sociais por eles requeridos; essa é parte importante de nossa temática. Fazemos essa incursão a partir do lugar no qual nos situamos, autor e pessoas das quais estamos falando. Assim, estamos com os pés no chão, no lugar (o corpo todo nos espaços que ocupa); a existência situada nos lugares e regiões; nas cidades e nos campos. A experiência de estar no mundo embasa as experiências da vida e permite que nos situemos como seres sociais. O ser socialespacializa-se, isto é, as pessoas vivem nos diferentes âmbitos e formações socioespaciais em inúmeras combinações específicas; daí decorrem as mais variadas estruturas sociais, como familiares, burocráticas, recreativas, entre outras. Estamos falando de organizações sociais da vida humana, compostas pelas dimensões econômicas, cujos movimentos requerem produzir, extrair, criar, transformar, para satisfação das necessidades; dimensões políticas, sustentadas pelo exercício do poder em diversas combinações e domínios; dimensões culturais, que contemplam a esfera das idealizações e ideologias. Todas essas atividades podem nos parecer rurais, agrárias ou urbanas, citadinas, estando, no entanto, conjugadas e impossíveis de serem consideradas separadamente. Seguimos dois caminhos que levam à vida social. Nas trilhas de uma ontologia do ser vivente, o pensamento científico procura pelas entradas, as mais diretas, da situação de quem vive e trabalha; situação que, de outro modo, é buscada por aquele que fala sobre si mesmo, por fazer parte do ser social, sempre da realidade estudada; o discurso como possibilidade de conhecimento, epistemologia sobre o vivente. Se na primeira via a palavra é, ela própria, coisa do mundo, na segunda é representação. É assim que nossa condição de estar no mundo, com os pés firmados no chão, numa posição no espaço geográfico e na estrutura social, supõe nossos atributos de seres percipientes-percebidos (percebemos e somos percebidos). A realidade que se abre nessas duas frentes (a do pesquisador que conhece, como sujeito, e que é também o pesquisado, o objeto), leva-nos por essas duas sendas mencionadas: o caminho do estudioso sobre o mundo objetivo, num esforço para deixá-lo “externo”, e o caminho do estudos sobre o mundo consigo, identificação entre sujeito e objeto, empreitada que traz os maiores desafios. 1.1 O caminho do estudioso, da confecção teórica Estabelecemos os fundamentos racionais clássicos da sociologia rural – como em José Arthur Rios – e urbana – de acordo com a Escola de Chicago, Park, Wirths ou M. Delle Donne etc. –, apresentando-as de modo desde as origens, periodizações, contextos e organizações, além de correntes, classificações e conexões, bem como suas rupturas – analisadas por J. J. Martins, J. E. Veiga, R. Abramovay, Otávio e Gilberto Velho, R. Sennet, Henri Lefebvre, M. Castells. No primeiro caso, a epistemologia é a do sujeito que vê algo fora de si, enquanto no segundo, as rupturas trariam objetos de estudo e sujeitos indissociados. Aqui, a história por dentro das coisas é procurada nos processos sociais identificados (além daqueles trazidos por terceiros), procurada nas intenções das ações dos sujeitos, constituindo-se em corpo 17 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA teórico e institucional (no caso, a sede disciplinar do pensamento sociológico) que se põe a elucidar a realidade que lhe dá sentido. Tal corpo teórico supõe sua própria história (mudanças profundas no objeto de interesse da disciplina e em seu corpo teórico e fundamentos) nas transformações internas e externas das porções da realidade estudada; desse modo, a sociologia urbana e a sociologia rural devem se transformar com os campos e as cidades, e o ser social deve ser o objeto de ambos; o que torna, ao longo dos séculos, as áreas confinadas e estritamente reconhecidas por suas funções, uma quimera acadêmica. História e epistemologia teriam, assim, implicações (e negações) mútuas, pois as coisas se transformam, e as teorias a reboque destas, o que também provoca avaliações mutáveis. Sempre estaremos fazendo história das coisas e trazendo as coisas da história. Em suma, apesar das imagens persistentes, não é mais possível, sem excessivas generalizações, identificar áreas como sendo estritamente rurais ou urbanas. 1.2 O caminho que se volta para entender a si mesmo, estudando o próprio pertencimento ao fazer parte da prática investigada O que se procura é uma sociologia em pleno senso comum, emaranhada na própria vida, seu objeto de interesse, sua vocação, aquém do plano disciplinar. Dessa maneira, procuramos pela dinâmica social que demanda instrumentos conceituais e procedimentos de captura adequados, tanto ao método quanto aos acontecimentos. Pensamento mais livre que o científico, entretanto, nele ancorado – afinal, quanto pode o senso comum ser livre? –, traremos vida e lugares de que se fala, campos e cidades, do modo como são percebidos, vividos e sentidos. Estamos no terreno da ontologia, os sentidos das experiências dos contatos com a realidade buscada. Observação Tratar do objeto de interesse de qualquer ciência supõe ao menos esses dois níveis de aproximação: na base dos estudos de sociologia rural, dialogamos com M. Jollivet, que marca enfaticamente a importância da interdisciplinaridade, falando em holismo, apontando para a ideia filosófica, teórico-metodológica da complexidade. No caminho do estudioso , do sujeito situado em sua dimensão de conhecedor (estudantes, professores e pesquisadores), aparecem as leituras do passado junto àquelas de hoje. É o caso do fundamental Émile Durkheim, pai da sociologia. Seguem algumas breves considerações de seu trabalho, com sua classificação dos campos da sociologia, que devem ser entendidas, debatidas e superadas. Segue um esquema simplista do pensamento de Durkheim, para iniciarmos uma certa história das classificações: 18 Unidade I Religião Fisiologia social Consciência coletiva Representações coletivas Grupos e instituições Morfologia social Anom ia So lid ar ie da de so ci al Indivíduo Orgânica Mecânica Direito repressivo Profano Sagrado Direito restritivo Moral Divisão do trabalho Suicídio Sociedade (complexo integrado de fatos sociais) Coerção egoísta altruísta an ôm icoCo erç ão tipo funções tipo Coerção Figura 1 O esquema apresentado por Rodrigues (2000) a fim de facilitar a visualização da teoria sociológica de Durkheim, embora represente certa violência, é um esforço de simplificação didática dessa teoria. Desse modo, o esquema é um roteiro de leitura da obra durkheimiana. Podem-se encontrar no esquema os elementos principais da teoria durkheimiana, sem seus contextos e exposições de argumentos (seus porquês); para os quais devemos recorrer a seus textos. Rodrigues (2000) segue apresentando os planos diacrônico e sincrônico da figura. O esquema pretende ser tanto diacrônico como sincrônico, por se supor que ambas as diretivas possam ser encontradas na teoria sociológica de Durkheim. A diacronia é representada horizontalmente, tendo a solidariedade social – ponto de partida da teoria durkheimiana ao iniciar seus cursos em Bordeaux – como ponto de partida também da organização social; e a anomia como fim, melhor dito, quando ela afrouxa seus laços e permite a desorganização individual, ou ausência dos liames e normas da solidariedade. A sincronia é simultaneamente representada na vertical – tal como uma estrutura –, a partir de um fundamento concreto e objetivo, que é a morfologia social, até atingir a fisiologia social (2000). Todas essas questões ou pedaços da realidade poderiam tornar-se pontos de partida de muitas pesquisas, desde que correspondam àquelas ideias associadas nos esquemas, que ajudam a ganhar sentido, algo como um mapa para nos guiar em meio aos objetos do mundo. O panorama intelectual da modernidade europeia é marcado pela fundação e pelo desenvolvimento da Sociologia. O positivismo representa um esforço intelectual e político evolucionista na esteira da visão de progresso do Iluminismo, em perseguição impossível da harmonia como marca de equilíbrio no conjunto social, com um pensamento imbuído de um modelo organicista de sociedade e de cidade de 19 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA base biológica (nascimento, crescimento e morte das organizações), com lugar para um funcionalismo de bases matemática e biológica (principalmente geométrico e anatômico). As ciências sociais afirmam-se deacordo com as ciências físicas ou da natureza: uma determinada observação na raiz do conhecimento. De tanta ênfase na observação em meio ao pensamento positivista, ao negá-lo, passamos a viver em sociedades de abstração; de sentidos extrínsecos, isto é, não gerados por toda coletividade, mas a ela atribuídos externamente. Os exemplos são abundantes da antropologia (valores absolutos) à geografia (arranjos socioespaciais padronizados para localidades diferentes), economia (desenvolvimento exógeno), entre outros. O positivismo, desde sua fundação por Auguste Comte, mudou muito e foi se adaptando às críticas que sofria. Porém, alguns aspectos são essenciais, tais como: • Os objetos de estudo são dados inquestionáveis. • Rejeição peremptória a qualquer ideia que não seja facilmente demonstrável em laboratório, como metafísica e teologia. • Ancora-se num cientificismo, cabendo toda explicação à ciência, orientada metodologicamente pela filosofia. • O que a ciência não explica não tem explicação; deve permanecer sem resposta, afastado da pauta de pesquisas, como veleidades e metafísicas. Observação O caráter evolucionista, bem como os traços funcionalistas e organicistas, estão interligados e atravessam todas as formas e procedimentos de indagação científicas, numa filosofia do “como” que afasta o “porquê” e é a principal marca do positivismo, e estudá-la é obrigatório para entendermos o modo de desenvolvimento vigente. Feitos tais adendos sobre as bases da sociologia, segue uma enumeração que se baseia em classificação do campo de estudos da sociologia, elaborada por Florestan Fernandes (1972a), expandindo a de Karl Mannheim, e indica seis áreas básicas: • Sociologia sistemática: plano de ordenamento, nexos das relações, nas frentes da “sociologia sistemática estática” (estruturas e funções, como nas ações sociais, por exemplo), e da “sociologia sistemática dinâmica” (processos de competição e de cooperação, por exemplo). • Sociologia descritiva: afeita à observação da realidade a ser recomposta sensorial e intelectualmente, portanto dependente de trabalhos de campo, que dá sua configuração presumidamente acabada (pesquisa participante em comunidades, por exemplo). 20 Unidade I • Sociologia comparada: procura tanto o que há em comum como o que há de particular nos agrupamentos estudados, com objetivos prescritivos; além da evolução de determinados aspectos ou comportamento de indivíduos e grupos, focalizando-os como processos (comportamento e adaptação simbólica de rituais aos diferentes contextos históricos, como aqueles do judaísmo transformados pelo catolicismo, por exemplo). • Sociologia diferencial: procura a individualidade de cada grupamento estudado; sua alma, ou psique (carnaval brasileiro, os quilombos, por exemplo). • Sociologia aplicada: prescritiva, normativa, estabelece as melhores condições para implantar e planejar (pesquisa participante em comunidades, por exemplo). • Sociologia geral ou teórica: encampa as demais, verificando sua facticidade e alcance (discussão sobre a validade, consistência e coerência dos instrumentos de pesquisa, por exemplo). Saiba mais Como todo esquema é redutor, seu emprego é justificado apenas com objetivos didáticos, como faz José Albertino Rodrigues. Para conhecer melhor o autor, consulte uma de suas obras: RODRIGUES, J. A. (Org.). Durkheim. São Paulo: Ática, 2000. (Coleção Grandes Cientistas Sociais). Segue, nesse sentido, mais um registro, agora baseado em Fernando de Azevedo (apud LAKATOS, 1990, p. 26), na forma de esquema relacionado às regras de estudo da sociologia, ao modo de uma abordagem sistemática ou taxonômica: Geral ou especial: técnicas de ação social e política social (ajustamentos, reajustamentos e reformas), em que a aplicação das teorias é oganizada de um destes dois pontos de vista Sociologia geral (teoria sociológica) que tem por objeto So ci ol og ia a pl ic ad a (té cn ic a de a çã o co m o ap lic aç ão d e su as te or ia s) So ci ol og ia S oc io lo gi a pu ra o u te ór ic a Sociologia especial (estudo de categorias específicas de fatos sociais) 1. Conceitos fundamentais 2. Sociologia dos grupos 3. Organização e estrutura social 4. Dinâmica sociocultural 5. Métodos e técnicas de investigação social 1. Sociologia Antropológica 2. Sociologia do Direito 3. Sociologia Econômica 4. Sociologia Política etc. 1. Descoberto o jogo das leis naturais, aplicar-se em regular a conduta “segundo elas“, ou conduzir a vida social pela corrente da lei natural 2. Conhecido o jogo das leis naturais, que supõe a ideia de mudança, regular a conduta não “segundo elas“, mas “por meio delas“, ou fazendo-nos servir por elas Figura 2 – Áreas de estudo da Sociologia, de acordo com Fernando de Azevedo 21 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA Agora, voltamos ao núcleo de nossa questão: as sociologias especiais, conforme Lakatos (1990). A Sociologia da Comunidade, Sociologia Rural e Sociologia Urbana estudam, respectivamente, a organização, os problemas sociais das comunidades e a diferenciação do espaço socioecológico; o modo de vida rural e a natureza das diferenças rurais e urbanas; as alterações socioculturais que ocorrem no contínuo rural-urbano, origem e evolução das cidades e o urbanismo como modo de vida: mudanças socioeconômica-culturais determinadas pela concentração de uma elevada população, de composição heterogênea, em limitada área geográfica (LAKATOS, 1990). Para Lakatos, são exemplos dessas áreas de estudos específicos, “as relações de vizinhança; as resistências às mudanças no meio rural; a desumanização do homem na grande cidade” (1990, p. 28). É claro que a abordagem de tais temas tornou-se extremamente complexa, o que veremos mais adiante. Almejamos tratar dessas práticas a partir do que se convencionou chamar de campo ou espaço rural em oposição ao espaço urbano, com suas formas típicas de cidade, lançando mão ora da morfologia social de Durkheim, ora das interações sociais de Simmel, e até mesmo das regiões de Vidal de La Blache (apud FEBVRE, 1954). Tais visões, como a de Rios (1979) não trarão as cidades e as áreas rurais atuais, em sua complexidade, mas ajudarão a entender as transformações pelas quais passaram e no que estão se tornando. 1.3 Sociologia rural: das localizações inconfundíveis aos debates sobre sua existência (aniquilamento epistemológico) A partir de Rios (1979) e Jollivet (1998), surgem questões como estas: • Há uma ou várias sociologias? • Onde estão e sob quais condições existem os objetos (as sociedades rurais e urbanas) de que falamos e em meio aos quais andamos? As pistas para enfrentá-las estão na aproximação das relações reais entre sociologia e a vida rural e urbana. Mesmo com suas falhas de contextualização (era seu ponto fraco a aproximação relacional, interdisciplinar), a Escola de Chicago Nos Estados Unidos da América representa um certo tipo de reação, resposta às transformações ou modernizações opressoras (capitalistas) das cidades que, no jargão do planejamento e ciências sociais, passam a ser chamadas de metropolizações […]. Pomos os estudos rurais, primeiramente sob a ótica clássica, com foco mais rígido, fixo, no objeto de interesse científico; então seguimos Rios (1979) em suas explanações sobre a sociologia rural em momento de consolidação da disciplina nos Estados Unidos da América e na Europa, para tratar do Brasil. Para ele, três são as fases mais importantes na evolução da sociologia rural nos Estados Unidos. A primeira fase (1916-1920) foi marcada pelo estudo de Charles J. Galpin (RIOS, 1979), “sobre a anatomia social de uma comunidade agrícola” (p. 90). Esse estudo teve o mérito de revelar a importância da comunidade e as linhas essenciais de sua estrutura. 22 Unidade I Um grupo de educadores cria em 1917 a Comissão da Vida Rural, que se desdobra em Associação Nacional de Vida Rural, cujas atividades de 1920 a 1930 também estão intimamente ligadas aoavanço da disciplina. Nessa fase, são iniciados os primeiros cursos ministrados (junto com os de sociologia). Desses cursos, ministrados em universidades, resultou o primeiro acervo de estudos oriundos de notas de aulas, programas e bibliografias. Esses só foram sendo sistematizados depois de 1920; tal material refere-se ao estudo de comunidades rurais. Estudos e pesquisas em sociologia rural passam a motivar eventos acadêmicos; além de surgirem os primeiros livros didáticos da disciplina (RIOS, 1979, p. 91-92). Em 1920, na segunda fase (1929-1930), identifica-se o apogeu da disciplina, com a definição de seu conteúdo. Galpin, novamente, tem aí papel fundamental: utilizar parte do seu orçamento (de gestor público) em projetos cooperativos nos quais participavam sociólogos de todo o país, com afinidade nos diversos aspectos da vida rural. Foi um período profícuo, com muito trabalho acadêmico (universitário) acompanhado de incremento produtivo por meio de atividades extensionistas “de suas respectivas estações agrícolas experimentais, um grande acervo de monografias sobre a vida rural” (RIOS, 1979, p. 91-92). Foi essa ajuda financeira que alimentou a maior parte dos estudos realizados em universidades americanas até 1932. Graças ainda aos esforços de Galpin introduziu-se a categoria rural-agrícola nas tabulações do censo demográfico norte-americano de 1930, permitindo análises posteriores (RIOS, 1979, p. 91-92). Para Rios (1979, p. 91-92), nessa fase, além dos esforços de Galpin, tem reconhecida importância Edmund S. Brunner (diretor do Instituto de Pesquisas Sociais e Religiosas, personagem fundamental nesse período), que emprega recursos do Movimento Mundial de Igrejas para realizar estudos de sociologia rural, orientados, principalmente, para 140 comunidades agrícolas. Em 1930, aproximadamente, esses estudos já estavam quase todos concluídos e constituem, com a segunda análise efetuada em 1936, a mais ampla pesquisa até hoje realizada sobre mudança social rural. De 1925 é também a Lei Purnell, votada pelo Congresso Americano e que teve grande importância no desenvolvimento dos estudos rurais. Reforçando os recursos distribuídos às estações agrícolas experimentais, veio destiná-los não só à sociologia rural como à economia agrícola, ao estudo de mercado e à economia doméstica. A singularidade desse instrumento legal é que, pela primeira vez, autorizava-se a utilização desses recursos não só para a aplicação de técnicas agrícolas, mas para estudos sociológicos. Por outro lado, isso tornou possível que as estações agrícolas empregassem sociólogos rurais, o que representava o reconhecimento nacional da sociologia rural como instrumento importante do desenvolvimento agrícola norte-americano (RIOS, 1979, p. 92). A Lei Purnell, entretanto, teve efeitos bastante desiguais, territorialmente. Rios constata que “houve Estados em que os estudos da vida rural sofreram retrocesso, o que merece reflexão”, pois havia despreparo na aplicação desses recursos, o que só melhorou em 1927, quando “o Conselho de Pesquisas de Ciências Sociais iniciou um programa de bolsas destinadas à formação de sociólogos rurais e economistas agrícolas para que ocupassem os postos criados nas estações experimentais”. Rios afirma que “dessas bolsas surgiram os nomes mais significativos da sociologia rural no período seguinte”; e segue denominando-os (RIOS, 1979, p. 92). 23 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA Surgem, então, as “tentativas de síntese”, como as publicações de Gillette, de Taylor e Simms, e da famoso Principles of Rural-urban Sociology, de Sorokin e Zimmerman (p. 91-92). Como se verifica, esse desenvolvimento da sociologia rural resultou de uma estratégia consciente, na qual cabe ressaltar alguns fatores importantes: (a) o aparecimento de uma problemática, que exige pronta resposta dos administradores e provoca a reflexão dos intelectuais; (b) a criação de centros de estudos importantes; (c) a disponibilidade de recursos que possibilitam uma resposta intelectual a esses problemas e finalmente (d) o aparecimento de personalidades decisivas (RIOS, 1979, p. 91-92). A terceira fase de Rios (1930-1945) apresenta a “maturidade da disciplina e sua expansão universal, que ocorre principalmente entre 1930 e 1945”. Maturidade, expansão e adensamento de trabalhos de pesquisa, que contribui à rápida implantação do New Deal de Roosevelt no meio rural. Foram elaborados programas de ajuda ao campo, confiados aos sociólogos de enfoque rural dos diversos Estados, aos quais foram fornecidos amplos recursos. Almejava-se, assim, duas linhas de pesquisa em escalas diferentes de ação: “a execução, nas áreas escolhidas, dos planos traçados a nível nacional; e projetos locais previamente aprovados”. Rios aponta a importância desses programas que se constituíram na espinha dorsal dos estudos de sociologia rural de 1933 a 1936 (RIOS, 1979, p. 93). Há, também, nesse período, disseminação do trabalho de profissionais estadunidenses em outros países (RIOS, 1979, p. 93-95). Preparava-se dessa forma a oportunidade para que a sociologia rural de tipo americano se expandisse a outros países, fertilizando outros métodos e alimentando novas experiências. É o que vai ocorrer de 1946 a 1956 […]. Houve também considerável refluxo depois de 1945 nas atividades de pesquisa sociológica dos diversos organismos federais, o que se explica principalmente pelos cortes orçamentários e pelos desmembramentos administrativos que acarretaram a estagnação de certos serviços (RIOS, 1979, p. 95). Ao mesmo tempo, verifica-se um deslocamento de interesses nos estudos sobre a Igreja e a família, bem como os de níveis e padrões de vida para preocupações com a organização social rural, sobretudo a comunidade de vizinhança, população, estratificação social, relações entre o homem e a terra, participação social e mudança social (RIOS, 1979, p. 93). Seguindo a explanação de Rios (1979), há “novos campos de estudo que se abrem depois da Segunda Guerra”, como aqueles ligados a aspectos de saúde e serviços médicos, difusão de técnicas agrícolas, envelhecimento e aposentadoria, suburbanização e a sociedade rural em outros países. Outro foco de interesses passou a ser a natureza dos processos sociais de comunicação, filão, que segundo tudo indica, continuará a ser 24 Unidade I explorado. O crescimento e expansão das cidades e a invasão de áreas agrícolas, criando problemas de suburbanização, vêm, do mesmo modo, atraindo cada vez mais a atenção dos sociólogos, principalmente no que diz respeito a formas rurais e urbanas de povoamento que, ao que parece, deverão predominar no futuro (p. 95-96). Segundo Rios (1979), é preciso que os grandes mestres da sociologia rural ofereçam novas sínteses da realidade mutável. O autor passa a analisar a sociologia rural europeia da seguinte maneira: Ao contrário da americana, a sociologia rural europeia procurou fugir a fatalidade de tornar-se uma mera sociologia da agricultura. Para isso, diversos fatores contribuíram, a começar pelo próprio cenário rural europeu, de passado secular, constituído de civilizações superpostas e de uma rica arqueologia. Essa dimensão histórica é fundamental na compreensão da maneira europeia de tratar a disciplina. Além disso, a Europa contava há séculos com um tipo de povoamento concentrado, a aldeia, inexistente na América, fora dos agrupamentos indígenas e onde, apesar de sua breve aparição em certa fase da história colonial, não prevaleceu. Inexistente na América portuguesa e espanhola, marca a forma da comunidade rural europeia, dando-lhe características intransferíveis para o Novo Mundo (RIOS, 1979, p. 96). Rios (1979) pensa que, talvez motivados por essa singularidade, os sociólogos europeus integraram a vida rural à sociedade mais ampla, além de promover visões interdisciplinares em conjunto com “a economia agrária, o direito, a geografia, a psicologia, a demografia e a etnologia” (RIOS, 1979, p. 96). O autor frisa que acitada interdisciplinaridade “é muito importante para a América Latina, onde a introdução de uma sociologia agrícola especializada representa uma tentativa artificial e ‘importada’” (RIOS, 1979, p. 96). A referida artificialidade da redução do objeto de interesse da sociologia rural às atividades agrárias, é aqui aludida na linha de raciocínio defendida por Henri Mendras (1969, p. 315-316 apud RIOS, 1979), diz: Se não a limitarmos a uma sociologia agrícola especializada, a sociologia rural terá de se definir por seu campo de estudo, as sociedades rurais, e exigirá o concurso de todas as ciências sociais para chegar a uma integração dos diversos aspectos da vida rural. Nessa perspectiva, ao sociólogo rural se atribui uma dupla tarefa: de um lado, estudar os aspectos da sociedade que se prendem a seu trabalho ou suas especialidades, e, por outro lado, reinterpretar e integrar nesse ponto de vista os dados que lhe fornecem os pesquisadores das outras disciplinas (RIOS, 1979, p. 96). Ao que parece, aquilo que se apresenta como preocupação de Mendras já dá indícios da grande abertura à interdisciplinaridade antevista por Jollivet (1998), como benéfica ou necessária. A indicação de 25 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA uma dupla tarefa emerge como espécie de mínimo metodológico: a necessária atenção do pesquisador ao plano de seu interesse imediato e à integração com os contextos pertinentes. Rios (1979) tenta estabelecer as fronteiras entre o modo estadunidense e o europeu de trabalhar sociologia rural, e ao analisar a produção de ambos como se fossem duas escolas homogêneas, divisa aspectos essenciais de ambas as produções: atribui à sociologia estadunidense características de pesquisa de fronteira do conhecimento (vertente normalmente associada à instrumentalização da história pela premência da tecnologia), enquanto caberia aos europeus certa tradição em estudos monográficos, com principado de estudos históricos. Tal constatação é verdadeira para as demais ciências sociais, principalmente na França. Rios (1979) oferece uma lista de temas da década de 1070, que é de onde ele fala: Atualmente a sociologia rural europeia parece voltar-se para os problemas do desenvolvimento. Seus temas habituais são 1) as atitudes e comportamentos face ao progresso, isto é, resistências culturais psicossociais e socioeconômicas, motivações etc.; 2) as relações comunitárias de vizinhança, solidariedade e cooperação, num contexto de estratificação social, abrangendo as mudanças ocorridas na interação e desencadeadas pelos sistemas de modernização, mobilidade socioprofissional e geográfica das populações rurais, intensificada pela adoção de novas tecnologias e pelas relações entre a cidade e o campo, bem como entre a agricultura e outras atividades econômicas; 3) o associativismo no meio rural, tanto de caráter profissional, cultural, recreativo como os movimentos de juventude; 4) os métodos e técnicas de divulgação na agricultura, encarados sob o aspecto da integração das atividades econômicas e das estruturas de produção e comercialização na lavoura; 5) a difusão de inovações, novas técnicas e novos conhecimentos; 6) a sociopedagogia da promoção rural, setor que também no Brasil, por necessidades próprias e também por influência francesa, teve grande expansão no começo da década de 60, quando foi encarado como necessária à formação de adultos e à educação de base; e ainda a substituição dos autodidatas na agricultura por profissionais especializados; 7) as ciências domésticas e a modernização do habitat rural; 8) os estudos sobre os objetivos do planejamento local e regional; 9) a influência na vida rural das transformações ocorridas nas zonas suburbanas, industriais e turísticas; 10) a previdência social na agricultura e seus efeitos, bem como ação social para a reestruturação das organizações agrícolas – campo de estudos inexistentes no Brasil, dado o caráter recente e restrito da previdência social mas que certamente representará importante filão nas décadas futuras e, finalmente 11) as pesquisas tecno-econômicas que levam em conta a participação da estrutura agrícola no quadro geral do desenvolvimento nacional (RIOS, 1979, p. 100). Para Rios (1979), haveria dois problemas fundamentais no estabelecimento da sociologia rural: um deles ligado à própria ideia de ciência, posto que estudos monográficos não se propõem a universalizar 26 Unidade I seus estudos, instrumentos e conclusões; outro deles relacionado ao questionamento da própria existência do universo rural; seria uma hipostasia, um objeto extemporâneo? Essa é a tese da urbanização completa, como veremos mais adiante. Este é um lugar importante do texto, no que diz respeito ao quadro em que estamos fazendo aparecer figuras: se expusermos a vertente sob inspiração positivista da sociologia rural, há que complementá-la com alguma concepção crítica. Trazemos, com essa finalidade, José de Souza Martins e Margarida Maria Moura, além de outros pensadores, como Regina Sader e Ariovaldo Umbelino de Oliveira, entre outros. Ao reunir suas ideias, é preciso esclarecer alguns pontos teóricos importantes, elencados como questões: • O que nós vemos quando olhamos relações sociais diversas, em lugares e regiões diversas, é ainda objeto de muitas discussões acaloradas; afinal, qual é a verdade? • Se alguns veem camponeses trabalhando onde outros não veem nada ou veem feixes diferentes de forças se exercendo, como elucidar aquilo que é visto? • De que são feitas as lentes que nos permitem ver melhor quem trabalha a terra e de que maneira o fazem; e, ainda, como poli-las? 1.3.1 As críticas A malha ou a trama das peneiras teóricas não são apenas recursos técnicos e neutros, não, pois são essencialmente políticos. No que tange à verdade do que se declara visível, há debates sobre lentes boas e ruins, adequadas e inadequadas; sobre peneiras que trazem, ou não, o que de fato existe, isto é, se servem para algo. Esse solilóquio quer afirmar o que todo cientista sabe: o quão movediças são a realidade (estudada, pesquisada) e as imagens que dela fazemos para representá-la; as teorias! Não é por menos que Adam Smith (em seu arrazoado metódico) afirmava que o principal papel das teorias era apaziguar (psicologicamente) os investigadores ou estudiosos. Decerto que em meio a estas questões, sabemos que o quadro será colorido, mas continuará como esboço, em processo. A angústia de pesquisador não diminui ao assumirmos a precariedade de nossa apropriação intelectual da realidade nos termos de “ruralidade” e de “urbanidade” (quer sejam precários linguagens, concepções, instrumentos), procurando relações no mínimo polissêmicas. O maior problema, encabeçando essa lista, é que estamos vivendo em meio à banalidade de tudo e ao conhecimento tácito, agora, sem pudores, declarados nas redes. “Banal” porque tudo parece óbvio na boca de todos; “tácito” porque não há mais dúvidas, apenas certezas. Esse sempre foi o sonho de poder do empirismo, do positivismo ingênuos, puros. É assim que, para muitos, rural é rural e cidade é cidade, como sempre foram. Nunca foi fácil designar aspectos da realidade com nítido delineamento, os contornos sempre foram sombreados e generalizamos porque é aceitável metodologicamente. O problema é aceitar o genérico e 27 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA impreciso como verdadeiros, como já apontava Maurice Merleau-Ponty, como parte de nossos problemas com a fé perceptiva ou crença no conhecimento tácito, que não requer averiguação. A sociologia (como de resto, as ciências que se pensam) descobre-se em fins do século XX, nos limites das explicações da realidade; tendo que se contentar, como pensamento maduro, com as interpretações sobre raras constatações por evidências... Se nas malhas e lentes de Rios (e mais um time imenso de intelectuais) o camponês não aparece, ele está ao alcance dos olhos de muitos outros respeitáveis intelectuais. No primeiro grupo temos desde positivistas quenão aceitam o possível, somente o provável, até a nata do marxismo (Henri Lefebvre, entre eles) que acredita na “realização plena da urbanização capitalista”, que se completaria com a subsunção do modo de vida originário do campo e dos seus habitantes (o modo camponês, por exemplo), todos rendidos, incorporados pela vida urbana. O camponês e seu trabalho familiar seriam, quando muito, residuais, vestigiais, a expressão do velho que não se digna a perecer para se tornar outra coisa, mais moderna! O que querem ver aqueles se dedicam a olhar para o campo e que olham para as cidades? Essa deve ser nossa pergunta, antes de saber o que veem! Do ponto de vista crítico, José de Souza Martins traz sua contribuição sobre o papel não cumprido da sociologia rural e de seu próprio desencantamento: A sociologia rural tem um pesado débito para com as populações rurais de todo o mundo. As gerações vitimadas por uma sociologia a serviço da difusão de inovações, cuja prioridade era a própria inovação, ainda estão aí, legando aos filhos que chegam à idade adulta os efeitos de uma demolição cultural que nem sempre foi substituída por valores sociais includentes, emancipadores e libertadores: ou legando aos filhos o débito social do desenraizamento e da migração para as cidades ou para as vilas pobres próximas das grandes fazendas de onde saíram, deslocados que foram para cenários de poucas oportunidades e de nenhuma qualidade de vida. Porque essa é, certamente, uma preocupação de todos nós, especialmente de minha geração, gostaria de colocar no centro desta reflexão o tema do desencontro entre a sociologia rural e as populações rurais a cujo estudo se dedica. E gostaria de fazê-lo assinalando que, para a sociologia rural, as últimas décadas foram décadas de seu próprio desencantamento (MARTINS, 2001, p. 31). José de Souza Martins é acompanhado por aquele time de antropólogos (Margarida Maria Moura), geógrafos (Regina Sader, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Bernardo Mançano Fernandes) e economistas (José Eli Veiga, Ricardo Abramovay). 28 Unidade I Saiba mais Os principais autores da temática camponeses e agricultura familiar são: MARTINS, J. S. O futuro da Sociologia Rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural. Estudos Avançados, v. 15, n. 43, 2001. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9820/11392>. Acesso em: 23 maio 2019. MOURA, M. M. Invasão, Expulsão e Sucessão: notas sobre três processos sociais no campo. Anuário antropológico, v. 7, n. 1, 1983. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/ view/6235/7764>. Acesso em: 23 maio 2019. ___. Camponeses. 2 ed. São Paulo: Ática, 1986. ___. Os deserdados da terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. ___. Os herdeiros da terra. São Paulo: Hucitec, 1978. José de Souza Martins terá seu trabalho e suas concepções criticados por Bertero (2007), não quanto ao método, mas quanto ao objeto concebido, percebido. O lugar de observação de Bertero, também com lentes marxistas, não parece ser o lugar do etnógrafo ou antropólogo, do pesquisador de campo, cuja realidade lhe chega por todos os poros, a qual se vai tentando compreender enquanto fluxo dos vividos. Mas Martins apontará a modernização justamente como motor da desorganização camponesa, da desestruturação das sociedades não assalariadas, não incorporadas ao mercado de trabalho capitalista. Por muito tempo e para muitos, a sociologia rural foi mais uma sociologia da ocupação agrícola e da produtividade do que uma sociologia propriamente rural. Mais uma sociologia das perturbações do agrícola pelo rural do que uma sociologia de um modo de ser e de um modo de viver mediados por uma maneira singular de inserção nos processos sociais e no processo histórico. Não raro, o mundo rural tornou-se objeto de estudo e de interesse dos sociólogos rurais pelo “lado negativo”, por aquilo que parecia incongruente com as fantasias da modernidade. Não por aquilo que as populações rurais eram e sim pelo que os sociólogos gostariam que elas fossem. Quando assumiu o mundo rural como objeto, a sociologia rural o fez mais como “adversária” do que como ciência isenta e neutra. Mais como ciência da modernização do que como ciência aberta à compreensão dos efeitos destrutivos e perversos que não raro a modernização acarreta. A 29 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA modernização é um valor dos sociólogos rurais e não necessariamente das populações rurais, porque, de fato, para estas não raro ela tem representado desemprego, desenraizamento, desagregação da família e da comunidade, dor e sofrimento (MARTINS, 2001). O material trazido pelos pesquisadores de campo, que fizeram ou ainda fazem trabalho de campo, é para nós o de maior valor, pois traz gente viva, que fala sobre o modo como vive, requerendo interpretação. Observação A ideia da fusão da socioantropologia confirma essa necessária parceria, conforme podermos ver nos trabalhos de Antonio Candido. Além dos questionamentos básicos que são feitos sobre a existência desse camponês e se a modernização expropriou ou expropria o camponês, Jollivet (1998) encaminha sua reflexão por meio de três referências básicas: • A sociologia rural é uma aplicação da sociologia geral? • Sociologia rural e ciências sociais da ruralidade supõem uma escola ruralista? • Quais seriam as demarcações, as delimitações da sociologia rural e da sociedade? O que estaria dentro e o que estaria fora? O ponto mais relevante de seu trabalho é a conclamação à interdisciplinaridade. Assim como caminhamos um pouco sobre o pensamento clássico ou classificatório sobre o corpo teórico da sociologia rural e seu objeto de estudo; passaremos agora por preocupações semelhantes sobre a sociologia urbana e seu objeto, as cidades, o espaço urbano e a urbanização. 1.4 Sociologia urbana: de localizações incontestes à ubiquidade Se antes rural e urbano apareciam de modo nítido, com seus conteúdos, limites e fronteiras, tornaram-se objeto de disputas intermináveis já há algum tempo (a globalização do capital, dos anos 1970 para cá, acentuou tais dificuldades classificatórias), passando a haver muita controvérsia entre os estudiosos e pesquisadores do fenômeno urbano, de historiadores a geógrafos, politólogos, antropólogos e urbanistas. Começaremos por aqueles que têm visão clara do objeto, passando para a conturbada contemporaneidade. Faremos o mesmo painel para a sociologia urbana, trazendo-a como objeto de estudo e pesquisa nítido, plenamente visível e previsível, bem ao gosto dos modelos positivistas e afins, assim como traremos a cidade e o espaço urbano como incerteza, como voláteis, de contornos borrados e conteúdos que estão além da captação científica, sem as lentes da arte, as malhas da reflexão de uma ciência mais comprometida com os erros e as dúvidas, como ensinava Descartes. 30 Unidade I Sociologia urbana convencional, de Durkheim, Weber e Park e Wirth, da Escola de Chicago. Apresentaremos essas visões da cidade e do urbano, generalizando suas semelhanças como vertente convencional que, embora ofereça valiosas descobertas e concepções, chega até nós mais com seus limites explicativos do que com sua heurística. Apoiemo-nos na obra Sociologia urbana, de Ângelo Silva (2009), para trazer os clássicos do pensamento sociológico sobre a cidade. Faremos algumas considerações simplificadas dos autores clássicos da disciplina conforme o manual de Ângelo. Georg Simmel, sociólogo de grande interesse, trata da afetação mental das pessoas pelas metrópoles (SILVA, 2009). Procura as soluções individuais entre a normalização, normatização e desejo de liberdade. Preocupa-se com as tensões, os desgastes das relações indivíduo-sociedade O que importa ao autor é destacar que o deslocamento do foco do pequeno círculo para a incomensurável medida da grande cidade produz no indivíduo uma espécie de amortecimento dos sentidos. Essa paralisia das capacidades afetivas e a amplificaçãoda racionalidade se mostram tanto no perfil psicológico dos habitantes da metrópole quanto nas próprias formas de vida desse espaço urbano. Um elemento articulador desse universo, segundo Simmel, é o dinheiro (SILVA, 2009, p.48). Georg Simmel relaciona liberdade individual, limites da cidade e população, categorias que estão na base da vida urbana: A característica mais significativa da metrópole é essa extensão funcional para além de suas fronteiras físicas. Essa eficácia reage por seu turno e dá peso, importância e responsabilidade à vida metropolitana. O homem não termina com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que emana dela temporal e espacialmente. Da mesma maneira, uma cidade consiste em seus efeitos totais, que se estendem para além de seus limites imediatos. […] O ponto essencial é que a particularidade e incomparabilidade que, em última análise, todo ser humano possui, sejam de alguma forma expressas na elaboração de um modo de vida. O fato de estarmos seguindo as leis de nossa própria natureza – e isto, afinal, é liberdade – só se torna óbvio e convincente para nós mesmos e para os outros se as expressões dessa natureza diferirem das expressões de outras. Apenas nosso caráter inconfundível pode provar que nosso modo de vida não foi imposto por outros (SIMMEL, 1973 apud SILVA, 2009, p. 49-50). Simmel toca nos pontos mais importantes das teorias dos conhecimentos, quais sejam, a tensão constante entre a aceitação da complexidade (por vezes idiografia) e a nossa busca redutora por padrões e regularidades (questão comumente envolta na quase mística singularidade (difíceis reflexões sobre identidade individuais e coletivas) em face da experiência da teia da vida, na qual estaríamos indivisos); 31 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA evoca a intersubjetividade e intermaterialidade das relações socioambientais, posto que estabeleçamos redes e territórios ao agir nos espaços geográfico e social. Toca no ponto nodal da sociedade capitalista do apego à propriedade (filosofia ou doutrina do ter, do apego ao consumo e à propriedade dos bens): Porém, uma série de mecanismos se articula para promover esse movimento de recuperação. Por isso, o outro lado dessa mesma história é o fato de que os indivíduos pautados pelo dinheiro, pela racionalidade, pela supressão do contato afetivo com os outros e pela expansão do sentimento de liberdade para o interior do próprio indivíduo estabelecem uma relação com as coisas e não com o espírito. É construída, assim, uma alavanca para a autoestima que se apoia na materialidade e não na afetividade. O indivíduo é o que ele tem e não outra coisa qualquer que incorpore valores, personalidade etc. Caminhamos para o mundo das aparências, da substituição do eu sou pelo eu tenho (SILVA, 2009, p. 51). Para que o habitante da grande metrópole consiga construir sua própria identidade ele necessita ver e ser visto (SILVA, 2009, p. 52). Muito oportuna é a conclusão de Simmel sobre a conduta necessária em tempos de hiperexposição e hiperinformação, isto é, estamos mais para montes de dados em tráfego de informações quebradas, defeituosas, sem efetivação de comunicação superior (diálogo), cujas consequências são uma espécie de descomprometimento com as consequências das mensagens e atos, algo como uma leviandade coletiva. Muitas pessoas expressam opiniões sem saber que as experiências, suas, na melhor das hipóteses, é que falam por si. O inconsciente freudiano. A metrópole se revela como uma daquelas grandes formações históricas em que correntes opostas que encerram a vida se desdobram, bem como se juntam às outras […]. Entretanto, neste processo, as correntes da vida, quer seus fenômenos individuais nos toquem de forma simpática, quer de forma antipática, transcendem inteiramente a esfera para a qual é adequada a atitude de juiz. Uma vez que tais forças da vida se estenderam para o interior das raízes e para o cume do todo da vida histórica a que nós, em nossa efêmera existência, como uma célula, só pertencemos como uma parte, não nos cabe acusar ou perdoar, senão compreender (SIMMEL, 1973 apud SILVA, 2009, p. 52). Simmel nos deixa muitas questões; seu encaminhamento é aberto, portanto contribui, essencialmente, para a reflexão! Em primeiro lugar, temos uma aproximação intensa entre o pesquisador e sua pesquisa. Nas palavras de Waizbort, podemos dizer que “para Simmel, filosofia significa sempre abordar o campo de forças que se estabelece 32 Unidade I entre sujeito e objeto” (WAIZBORT, 2000 apud SILVA, 2009, p. 52). Essa relação sujeito/objeto pode ser compreendida, também, como uma relação entre sujeitos e objetos sob o olhar do pesquisador. Para Simmel, muitas vezes, a sutileza diz mais do que o explícito. O segundo aspecto a ser destacado é que esse autor nos coloca diante de questões e de respostas com uma naturalidade muito grande. Em várias oportunidades temos a sensação de que chegaríamos àquelas conclusões naturalmente, sem a ‘ajuda’ da leitura do texto. Em outros momentos notamos certa lentidão do nosso raciocínio para acompanhá-lo. Mas não há dúvidas de que os conceitos de racionalização e calculabilidade da vida, de autoproteção e de atitude blasé, bem como autoafirmação e reconhecimento, apesar de facilmente encontrados em nossa vida cotidiana adquirem outro aspecto a partir da forma como são utilizados por Simmel. No final da história acabamos por olhar para nós mesmos, e também para a cidade de outra maneira. Como se nós estivéssemos vagando pelas ruas e identificando aqueles fenômenos, posturas individuais, sensações e, por que não, cheiros das grandes metrópoles (SILVA, 2009, p. 52). As cidades seriam tipos mistos e requereriam concepção interdisciplinar para reconhecê-las como conjunto de geografias complexas. Vemos que existem diferentes origens e formas assumidas pelas cidades. Essas diferenças articulam-se no decorrer da história do lugar e fazem com que a definição dessas “instituições” agregue diferentes elementos. Podemos alinhar enfim, uma primeira definição para o nosso tema: Apenas cabe dizer que as cidades representam, quase sempre, tipos mistos e que, portanto, não podem ser classificadas em cada caso senão tendo-se em conta seus componentes predominantes. Neste caso, um dos elementos que se destaca do conjunto para a apreciação da cidade é o econômico (WEBER, 1973 apud SILVA, 2009, p. 60). Tratemos um pouco da Escola de Chicago, que é muito importante, por suas forças e por suas fragilidades. Devemos valorizar tanto a pesquisa quanto o exercício prático das disciplinas; assim, sociologia deve ser praticada, em âmbito acadêmico de experimentação e provas, além de sua expressão pública, que se estende desde as concepções até as aplicações dos conceitos e de seus resultados na vida das pessoas. A política deve chegar às raízes das iniciativas de políticas públicas. As experiências universitárias são, a um só tempo, ricas de possibilidades e restritivas como bitolas, gabaritos, diretivas por meio de regras e conceitos ordenadores da realidade. Assim, a ordem de nosso texto deverá ser prescrita pelas aproximações ontológicas, alimentada pelo real circundante, que nos conduz imediata e diretamente às próprias coisas. 33 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA Passemos às bases sociológicas da análise do rural e do urbano, por Marcella Delle Donne, para contextualizar essa espécie de estudo e, assim, prosseguirmos em nosso percurso por esses lugares. Na figura a seguir, há um exemplo de visão geométrica, matemática e evolucionista (ecologia e biologia), como concepções de fundo teórico para os modelos: vemos as áreas naturais de Park e de Burgess. No que diz respeito ao nascimento da sociologia urbana, Donne (1983) afirma a importância dos Estados Unidos como modelo, seguido, aprimorado ou mesmo negado. Segundo Eufrásio (1995), o desenvolvimento da sociologia nos
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