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Métodos de Pesquisa em História Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Vanderlei Elias Nery Revisão Textual: Profa. Ms. Selma Aparecida Cesarin A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica 5 • Definições Teórico-Metodológicas: Conceitos e Categorias de Análises • O Diálogo entre as Teorias e as Fontes Históricas · O objetivo da Disciplina é analisar a relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica. · Para tanto, discutiremos as definições teórico-metodológicas e a relação entre as teorias e as fontes históricas. Nesta Unidade, buscaremos compreender a relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica. Faremos, também, algumas indicações de leitura interessantes para que você compreenda melhor o que procuramos apresentar no texto. Não deixe de fazer essas leituras. Certamente, você irá achá-las bem interessantes! Nesta Unidade A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica, você deve estar atento à definição do método científico, à importância da formulação do problema e das hipóteses e à importância da teoria para a explicação científica. É importante, também, que você participe dos fóruns propostos e se prepare para as avaliações planejadas. Nesta Unidade, haverá um fórum de discussão e questões de múltipla escolha na Atividade de Sistematização. Ao realizá-las, você poderá avaliar seus conhecimentos e se preparar para a avaliação presencial que ocorrerá ao final do semestre. A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica 6 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica Contextualização Iniciamos os estudos relativos à Unidade, tratando do tema A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica. Esta Unidade está subdividida em 2 itens: » Definições teórico-metodológicas: conceitos e categorias de análises; » O diálogo entre as teorias e as fontes históricas. Nas definições teórico-metodológicas: conceitos e categorias de análises, destacaremos a importância do método científico na busca de explicações e como para o método científico é fundamental a definição do problema e das hipóteses. No diálogo entre as teorias e as fontes históricas, destacaremos a importância do aparato teórico para a análise das fontes. 7 Definições Teórico-Metodológicas: Conceitos e Categorias de Análises Ao longo dos séculos XIX e XX, a História foi reconhecida como ciência dotada de um método que busca explicações, dando conta da realidade e a demonstrando. Para que haja método científico, é fundamental: definir o problema, formular as hipóteses – analisando a realidade “à que se referem as hipóteses (...) e propõem-se explicações dos fenômenos e soluções aos problemas observados” (ARÓSTEGUI, 2006, p.421). Vídeo: Sobre hipótese, consulte: http://www.dicionarioinformal.com.br/hip%C3%B3tese/ Não existe um único método para a pesquisa científica. Entretanto, “não há dúvida tampouco de que os ‘fundamentos’ do método da ciência são algo real e que podem ser ensinados e transmitidos”. Método científico é “um conjunto de regras de procedimento – o que não quer dizer regras de ‘trabalho’ – ou princípios normativos para o trabalho científico (sic), mas que não esgotam, nem podem pretender esgotar, as possibilidades operativas que todo processo de conhecimento apresenta” (ARÓSTEGUI, 2006, p.422-4). O método científico nos diz muito mais o que não fazer do que propriamente o que fazer. Método Científico Observar • Literatura • Ambiente Concluir • Resultados • Literatura Formular hipóteses Obter resultados Testar a hipótese Publicar Perguntar Para Julio Aróstegui, a utilização do método científico está calcada em determinadas condições. A primeira delas seria a adoção de pressupostos teóricos prévios. Isso quer dizer que “O processo metodológico não pode ser estabelecido fora de uma delimitação dos ‘objetivos’ de um determinado conhecimento” (ARÓSTEGUI, 2006, p.425). A segunda condição apontada por ele é que “Todo campo de estudo da ciência é ou tem de ser uma realidade adequadamente definível e definida. Nem toda realidade é objeto da Ciência”. http://www.dicionarioinformal.com.br/hip�tese/ 8 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica Para que uma dada realidade se torne objeto da pesquisa científica é preciso, como já se disse anteriormente, que seja definido claramente o problema a ser analisado. “Consequentemente, nenhuma pesquisa é válida se está distanciada de um contexto de problemas que apresenta em cada momento um ‘estado da questão’ bem preciso e que é imprescindível conhecer” (ARÓSTEGUI, 2006, p.426). O autor chama a atenção para não confundirmos o método científico “com um mero catálogo de práticas para a descrição ou a classificação de ‘fatos’”. O método científico deve nos levar à produção de conhecimento que esteja para além do senso comum “(...) um método se valoriza quando é capaz de estabelecer um procedimento que nos faça avançar em conhecimentos de forma simples, completa e fiável, além de contrastável” (ARÓSTEGUI, 2006, p.426). Esta seria a terceira condição do método científico. Como última condição, Julio Aróstegui afirma que “A ciência não termina, naturalmente, em uma descrição de coisas, como dissemos, mas na definição de uma linguagem para apreendê- las de forma universalizada” (ARÓSTEGUI, 2006, p.426). Essa linguagem está diretamente relacionada com o método. A prática científica correta é definida por princípios metodológicos, mas é importante lembrar que “Em último caso, as concepções metodológicas não levam nunca aparelhadas o uso de técnicas estritamente definidas. Um método pode empregar diversas técnicas e uma mesma técnica pode ser útil a diversos métodos” (ARÓSTEGUI, 2006, p.426). Sobre métodos e técnicas de pesquisa, consulte: https://youtu.be/FRRhVzYX2mU Uma questão colocada para as ciências sociais é a da objetividade, pois muitos pesquisadores questionam essa possibilidade argumentando que é muito difícil ou, em alguns casos, quase impossível, que o pesquisador das Ciências Sociais se livre dos preconceitos, dos interesses etc. É aí que entra o método. Para Julio Aróstegui: Métodos científicos são, precisamente, aqueles que tentam eliminar deliberadamente o ponto de vista individual do sujeito que conhece, que estão concebidos como regras que permitem estabelecer uma distinção adequadamente nítida entre o produtor de um anunciado e o procedimento pelo qual é produzido. O método científico tem, pois, como característica essencial sua transparência. O processo de exposição de um conhecimento deve expressar com absoluta clareza os passos seguidos para sua aquisição. Não há método científico se não pode ser entendido de forma intersubjetiva, a partir de princípios universais. (ARÓSTEGUI, 2006, p.427). O método científico tem como base a observação, mas não existe observação pura como afirmavam os positivistas; há certo relativismo na observação: “Daí que o método científico tenha procurado estabelecer regras da ‘observação normalizada’ e formas de contrastar a adequação da observação a condições normais perceptíveis intersubjetivamente” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 428). https://youtu.be/FRRhVzYX2mU 9 Vídeo: Sobre objetividade e subjetividade, aprofunde-se em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/9377 O autor chama a atenção para as operações lógicas do método, que podem ser entendidas como: [...] fases operativas, aquelas situações ou momentos, aqueles estágios ou fases da pesquisa pelos quais atravessa todo processo de conhecimento que tenta descobrir relações reais entre os fenômenos ou as leis de seu comportamento, que não são dedutíveis da mera observação. (ARÓSTEGUI, 2006, p.436). Essas fases não devem ser entendidas como sucessivas, mas sim marcos da pesquisa, que não seguem, necessariamente, uma ordem cronológica e ordenada no processo do conhecimento. Com o método de conhecimento, busca-se a explicação,ou seja, a construção de uma teoria. É daí que extraímos a fiabilidade do conhecimento construído. Essa é a diferença entre o conhecimento comum e o científico. Toda pesquisa científica deve passar por “momentos de uma série de operações cognoscitivas que podemos chamar ‘momentos lógicos’, frase, operações ou ‘contextos’” (ARÓSTEGUI, 2006, p.436), esses momentos são: as hipóteses prévias; observação ou descrição sistemática; validação ou comprovação; explicação. As hipóteses são formuladas a partir de problemas não resolvidos de novas perguntas postas a fenômenos conhecidos ou não. Isto é, “[...] qualquer primeira resposta possível a fenômenos não explicados, a tentativa de pôr ordem na definição de um problema que suponha novos posicionamentos, com diferentes graus de elaboração, qualquer esboço de explicação provisória pode constituir uma hipótese de trabalho” (ARÓSTEGUI, 2006, p.437). O pesquisador, ao formular hipóteses, não deve buscar confirmá-las a qualquer custo; elas devem ser um ponto de partida, que podem ou não ser confirmadas. Nas Ciências Sociais, dada à dificuldade de formulação de “verdadeiras” hipóteses, é recomendável que sejam formuladas mais de uma hipótese. Sem elas, não se pode delimitar com clareza o campo de uma investigação e, consequentemente, não se pode planejar corretamente. Para avançar “no trabalho de classificação dos dados” (ARÓSTEGUI, 2006, p.438) é fundamental a formulação de boas hipóteses. O trabalho científico nas Ciências Sociais que parte de hipóteses não deve ficar preso à mera descrição, mas buscar respostas às perguntas formuladas, prestando-se atenção ao fato de que novas hipóteses podem aparecer ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Para a realização da operação da descrição e observação sistemática, é fundamental que a pesquisa seja norteada por perguntas prévias. Os fatos não são realidades dadas, daí a importância da teoria e das perguntas norteadoras. Mais uma vez Julio Aróstegui nos lembra da importância do método: “O método transforma os fatos em dados. O processo da transformação dos fatos de observação em dados de um problema é, naturalmente, a primeira operação crucial de uma pesquisa científica”. Daí se destaca, também, a importância da coleta de dados, que constitui “um momento já plenamente normatizado e decisivo em todo processo de pesquisa. (...) A coleta dos dados deve estar sempre orientada, portanto, a partir da eleição das variáveis que o pesquisador considera significativas em seu estudo” (ARÓSTEGUI, 2006, p.439). http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/9377 10 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica A validação ou confrontação na pesquisa científica é o momento de confirmação ou não das hipóteses. A hipótese validada é o que confirma uma “verdadeira” explicação científica. Porém, é preciso lembrar “que uma hipótese nunca pode ser considerada definitivamente validada”, porque na Ciência “A ‘confirmação das teorias’ é um assunto que nunca se pode dar por encerrado” (ARÓSTEGUI, 2006, p.441). Isso não quer dizer que devemos cair no relativismo, só demonstra que estas podem ser complementadas, superadas ou refutadas por novas pesquisas. A explicação é o resultado final de toda pesquisa científica. É importante fazer a diferença entre explicação e interpretação. Esta “não é muito mais do que uma hipótese, que admite a existência de alternativas e que não se submete a uma validação rigorosa”. Já a explicação deve ser validada “e não supõe alternativas com as quais se possa conviver se não for por meio de sua própria superação” (ARÓSTEGUI, 2006, p.443). Apresentando o método da ciência, fazendo referência ao esquema por ele elaborado, Julio Aróstegui afirma: Este esquema pretende mostrar não só que o procedimento científico apresenta certos estágios “canônicos”, mais ou menos flexíveis, mas sobretudo que o resultado da ciência nunca é, nem pode ser considerado, um conhecimento definitivo, irrefutável. Ao contrário, a ciência progride unicamente graças à discussão perene dos conhecimentos adquiridos, de forma tal que esse progresso apresenta uma forma semelhante à de uma espiral, da mesma forma que Giovanbattista Vico representava o progresso histórico. O progresso do conhecimento é circular e linear ao mesmo tempo. Algumas teorias englobam outras, as completam, não as eliminam, mas isso faz com que o conhecimento passe a estágios qualitativos novos, mais ricos. Isso é o que podemos entender por progresso científico. (ARÓSTEGUI, 2006, p.446). Sem dúvida, a afirmação acima é muito importante, pois sem cair no relativismo, demonstra a importância de não colocar o conhecimento científico como verdade absoluta; pelo contrário, ele deve estar sempre submetido à discussão e a novas abordagens, que podem incorporar o conhecimento anteriormente produzido, assim como superá-lo e até, em última instância, refutá-lo. É importante não confundir método científico com práticas metodológicas. Estas “são, essencialmente, os conjuntos de regras sistematizadoras para a observação eficaz e a melhor análise da realidade estudada e para a validação ou refutação de hipóteses” ou, ainda, “As práticas metodológicas são formas de acesso à realidade empírica em função da natureza das hipóteses e das características da realidade ou da própria orientação de uma pesquisa” (ARÓSTEGUI, 2006, p.448). Até aqui falamos do método científico nas ciências sociais. A partir de agora, trataremos do método historiográfico. Porém, é preciso lembrar que a historiografia é uma ciência social e que, portanto, em muitos aspectos, os métodos se entrecruzam. Como afirma Julio Aróstegui, o método historiográfico está inserido “no âmbito do social. A sociedade é o sujeito da história”. Outra questão fundamental para o método historiográfico é o tempo: “A temporalidade, a mudança é o determinante, o condicionante essencial de sua pesquisa” (ARÓSTEGUI, 2006, p.453-4). 11 Esses aspectos, principalmente o da temporalidade, definem como objeto de trabalho da historiografia os documentos, “posto que se produziram em um tempo anterior ao nosso. Portanto, na pesquisa da História, o ‘documento indiciário’, e não a observação do fenômeno, é a ‘fonte de informação’” (ARÓSTEGUI, 2006, p.456). Mas é preciso tomar cuidado com esta afirmação para não elevar o documento à forma mítica, como fez, por exemplo, a historiografia tradicional. Podemos, a título de ilustração, lembrar-nos da História Oral ou da História do Tempo Presente, que abrem outras perspectivas de pesquisa historiográfica, mas devemos lembrar, também, que estas não invalidam a importância do documento para a pesquisa histórica. A comparação é parte fundamental do método historiográfico. Ela possibilita a percepção de fenômenos singulares, assim como tenta perceber os traços gerais. O estudo comparativo pode trazer valiosas contribuições para a historiografia. Entretanto, deve ser aplicado de forma cautelosa e planificada, pois a utilização inadequada pode acarretar problemas importantes para a pesquisa, como afirma Julio Aróstegui: Uma análise comparativa não é possível sem um trabalho prévio para definir o que é comparável, para definir de forma muito estrita as realidades empíricas ou as conceituações extraídas de cada âmbito que querem ser comparadas, e sem um controle constante da comparação. As vantagens são, em alguns casos, propriamente metodológicas: melhoram a utilidade do trabalho histórico, ajudam a formular problemas novos, fixam melhor o “território” sobre o qual se trabalha, permitem generalizar e controlar conclusões. Em outros, as vantagens são explicativas: permitem definir melhor cada um dos fenômenos comparados, podem estabelecer melhor as “causas” ou a relação entre fenômenos etc. (ARÓSTEGUI, 2006, p.461). Esse processo é fundamental para evitar anacronismos, como, por exemplo, a tentação de se comparar sociedades que estão separadas no espaço e no tempo eque não são suficientemente conhecidas. Mas na historiografia atual, as vantagens são muito superiores aos riscos e apresentam, sobretudo, o grande avanço de que a história comparativa é a melhor forma de entender os processos de ‘mundialização’ de algumas das características das sociedades contemporâneas. (ARÓSTEGUI, 2006, p.462). 12 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica O Diálogo entre as Teorias e as Fontes Históricas A explicação histórica só é possível a partir de uma dada teoria. Sem ela, é possível pesquisar; porém, o máximo a que se chegará será a descrição dos fatos. Somente nos marcos de uma teoria “é possível formular perguntas, conjecturas, hipóteses, enfim” (ARÓSTEGUI, 2006, p.476). Glossário: Teoria é o conjunto de princípios fundamentais de uma arte ou de uma ciência. Do grego theoria, que no contexto histórico significava observar ou examinar. Com sua evolução, o termo passou a designar o conjunto de ideias, base de um determinado tema, que procura transmitir uma noção geral de alguns aspectos da realidade. Disponível em: http://www.significados.com.br/teoria/. Acesso em: 18/06/2015. Uma primeira questão relevante entre teoria e fonte está na relação entre o pesquisador e o documento. Para o historiador, que lida com vestígios, testemunhos e relíquias, é fundamental ter em mente que o importante não é a observação das fontes, mas as informações que se busca nelas. O conhecimento da história não se reduz, porém, exclusivamente à exploração das fontes, mas se apoia também em conhecimento ‘não baseado em fonte’ (...) o que é uma maneira simples de dizer que as fontes não funcionam sem um aparato teórico-crítico. (ARÓSTEGUI, 2006, p.480). Saiba Mais Existem várias correntes teóricas nas ciências sociais: Positivismo, Idealismo e Marxismo, entre outras. Sem desprezar a importância do aparato teórico-crítico, é importante ressaltar que a teoria deve ser um guia para a análise. Entretanto, não se deve fazer da teoria a confirmação da realidade, pois se corre o risco de atribuir “um papel secundário (para não dizer nulo ou mesmo prejudicial) aos eventos que não corroborariam as balizas da teoria” (CARDOSO, 2009, p.8). A História deve ser entendida como processo. Isso não significa: [...] defini-la a partir de um cânone teórico, apontando para um programa, um fim, como um procedimento alheio à vontade humana, mas sim como processo que inclui suas ações, visualizando suas sincronias e diacronias, formulando questões ao campo teórico, como um problema. (CARDOSO, 2009, p.8). http://www.significados.com.br/teoria/ 13 Apesar de os eventos históricos serem únicos, eventos separados no tempo e no espaço podem revelar regularidades de processo, pois podem guardar simetrias que ajudam o historiador a entender seus movimentos e desdobramentos. Porém, isso não pode ser entendido com um vir a ser, como [...] uma fórmula de futuro que corresponderá às tendências do processo lidas na análise da história. Isto justamente porque o que está em jogo são as ações humanas interferindo no processo e tais obras não são susceptíveis a juízos que as reduzam a programas, atando-as a camisas de força teóricas. (CARDOSO, 2009, p.8). Aqui vale lembrar a crítica que vários historiadores fizeram à visão positivista da História e reafirmar que o pesquisador da área de História “desenvolve esta atividade a partir de uma posição específica e de uma inscrição em uma sociedade e, com relação à questão que lhe era mais cara, de certo lugar nacional” (BARROS, 2012, p.408). José D’Assunção Barros, analisando a obra Operação historiográfica, de Michel de Certeau, afirma que este autor: [...] encontrou a palavra certa para desdobrar uma arguta reflexão sobre o fazer historiográfico. “Lugar de Produção” foi a expressão que Certeau celebrizou para expressar a ideia de que o historiador, em sua prática e operação historiográfica, escreve ele mesmo a partir de um lugar, de uma inscrição em uma sociedade e em uma comunidade historiográfica atualizada pela sua própria época, de um enredamento que o situa em uma instituição (universitária, por exemplo), de uma teia de intertextualidades que o influenciam de múltiplas maneiras. (BARROS, 2012, p.409) Se o historiador escreve de um lugar determinado, a própria escolha do tema de pesquisa está associada ao lugar de produção em que o pesquisador está inserido. Ora, para não cair na subjetividade ou na pura descrição, o pesquisador deve tratar a Fonte como base científica da História, pois é ela [...] que dá legitimidade ao discurso do historiador. É um daqueles elementos que vai produzir a distinção entre a História e o relato de ficção. Qualquer afirmação do historiador deve ser proposta a partir de uma base documental; da mesma forma que as hipóteses por ele levantadas devem ser comprovadas ou admitidas como aceitáveis a partir do seu trabalho com as fontes. (BARROS, 2012, p.411) Sobre história e ficção, consulte: http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2736 Nesta perspectiva, é fundamental que os documentos estejam em sintonia com o problema histórico definido. O Historiador pode se deparar com pesquisas em que os documentos estão definidos a priori. Como exemplo, podemos citar uma pesquisa “sobre ‘os programas de todos os partidos políticos oficiais desde o início da República’, ou então sobre a ‘correspondência entre Getúlio Vargas e seus aliados políticos’”. Na análise dos programas dos partidos políticos, os documentos a serem pesquisados são os programas dos partidos políticos oficiais. “No segundo caso, o nosso universo documental também aparece previamente delimitado – a saber: a correspondência particular de Getúlio Vargas” (BARROS, 2012, p.412). http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2736 14 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica Nos dois casos, o autor lembra que podemos cotejar os documentos previamente definidos com outras fontes; porém, esta já é outra etapa da pesquisa. Mas, em geral, os historiadores se deparam com pesquisas mais amplas, nas quais os tipos de documentos não estão previamente definidos. “Nesses casos, abrem-se algumas escolhas e, para orientá-las, a ‘crítica de adequação’ será particularmente importante” (BARROS, 2012, p.413). Para este caso, o autor cita como exemplo uma pesquisa que tem por objetivo investigar a qualidade de vida da população negra no período colonial brasileiro. Esta pesquisa possibilita uma gama muito grande de documentos. Para José D’Assunção Barros: É preciso, nestes casos, proceder à constituição de um corpus documental adequado. O corpus documental pode ser definido como o conjunto de fontes que serão submetidas à análise do historiador com vistas a lhe fornecer evidências, informações e materiais passíveis de interpretação historiográfica. Sua constituição não é gratuita: implica escolhas e seleções que deverão atender a determinadas regras e critérios. (BARROS, 2012, p.413). O autor destaca quatro critérios que considera relevantes para a constituição do corpus documental. Em primeiro lugar, este deve atender ao critério de pertinência, ou seja, “deve ser adequado ao objetivo da análise”. O próximo critério a ser considerado deve ser o da homogeneidade. “A documentação deve ser produzida ou agrupada conforme critérios de identidade e de similaridade”. Em terceiro lugar ele destaca o critério de totalidade. O documento “não pode conter ‘lacunas’ derivadas da relação entre o historiador e seu documento, como a dificuldade de acesso, a falta de ânimo em empreender uma tradução difícil, ou a pouca capacidade para decifrar uma caligrafia menos transparente” (BARROS, 2012, p. 415). Por último, mas não menos importante, aparece o critério de representatividade. Isto é, a análise pode ser efetuada em uma amostra, desde que o material a isto se preste. Se a amostra for uma parte representativa do universo inicial, os resultados para elaobtidos poderão ser generalizados ao todo. Por exemplo: colocamos como problema a identificação das principais características estéticas da pintura renascentista, para que depois se possa proceder ao relacionamento daquelas com a sociedade do seu tempo. (BARROS, 2012, p.415-6). Seguindo o exemplo acima, das obras renascentistas, para uma melhor generalização é importante selecionar obras de diversos autores, para não incorrer no erro “de tomar certas características estéticas individuais como características estéticas de sua época” (BARROS, 2012, p.416). Como ilustração, gostaríamos de citar nossa pesquisa de doutorado, que teve como tema Diretas Já, campanha que tinha como proposta o restabelecimento de eleições pelo voto universal para Presidente da República. Esta campanha desenvolveu-se entre os anos de 1983- 1984, no final da ditadura militar brasileira. Para a reconstituição da campanha, que envolveu variados personagens, buscamos destacar os principais participantes e para não nos restringirmos a uma única fonte, que poderia dar ênfase a determinadas características das lideranças e omitir outras, utilizamos matérias de três jornais e uma revista. 15 Dois dos jornais utilizados foram a Folha de S.Paulo e O Globo, e a Revista Veja, todos eles representantes da grande mídia. Em contrapartida, utilizamos o jornal Em Tempo, periódico de uma tendência interna do Partido dos Trabalhadores (PT), à época legítimo representante dos anseios populares e operários. Essa contraposição nos permitiu confrontar, por exemplo, os discursos dos principais oradores nos comícios, que foram a principal forma de organização das Diretas Já, nos jornais e na revista da grande mídia, com o jornal “popular”. Nessa forma de análise, encontramos na Folha de S.Paulo, no Globo e na Veja vários cortes nos discursos das lideranças populares, que no jornal Em Tempo aparecem completos. As omissões nos jornais e na revista da grande mídia foram, principalmente, relativas às propostas mais voltadas para a defesa dos interesses dos trabalhadores. Assim, pudemos perceber o principal objetivo das matérias da grande mídia, que tinham por finalidade convencer a maioria da população que o mero retorno da democracia resolveria todos os problemas dos setores populares e operários, deixando de lado as reivindicações imediatas destes setores. O exemplo acima está em consonância com a análise de José D’Assunção Barros quando ele afirma: Boa parte dos documentos produzidos intencionalmente, com uma finalidade (ou mesmo sem uma intencionalidade consciente), são também “monumentos”: foram construídos para transmitir uma determinada imagem social, para atender a determinados interesses sociais ou políticos, para impor certa direção ao olhar (BARROS, 2012, p. 418). Somente o cotejamento de várias fontes, de diferentes matizes, permite ao historiador desconstruir esses “monumentos”. É preciso identificar o “lugar de Produção relacionado à fonte histórica – um contexto complexo que produz o documento em sua monumentalidade, e que cabe ao historiador decifrar, um pouco à maneira do psicanalista que preside à decifração de seu paciente”. Fica claro que a contextualização é uma questão “fundamental para a compreensão da fonte histórica” (BARROS, 2012, p.418-9). Para a compreensão do contexto de produção do documento, é importante lembrar que todo texto, seja qual sua for a forma, “tem um emissor (aquele que produz o texto), um objeto (a mensagem que é transmitida) e um receptor (aquele a quem a mensagem se destina) (BARROS, 2012, p.419). No contexto do emissor de um determinado discurso, está inserida a sociedade à qual o autor pertence, assim como “sua posição social, os constrangimentos aos quais ele está submetido e tantas outras coisas que fazem do autor nominal apenas a ponta de um imenso iceberg” (BARROS, 2012, p. 19). Este é o lugar de produção. A definição do lugar de produção principia com sua própria época. Às vezes, é possível identificar certo conjunto de características que abarca sociedades diversificadas em um determinado período. 16 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica Como exemplo, podemos citar as ditaduras militares que governaram a América Latina entre as décadas de 1960 e 1980. Elas têm certas características mais amplas, como, por exemplo, a utilização da tortura, o discurso contra o comunismo, a xenofobia etc. Essas características habilitam a falar em ditaduras da América Latina. Ora, para estudar o caso da ditadura de cada país dessa região, temos de levar em consideração que estes não estão isolados, ou seja, esses países não estão isolados uns dos outros, fazem parte de um determinado contexto mais geral: É claro que esta coordenada mais ampla, a coordenada da época, requer muitos cuidados por parte de um historiador (...) Na verdade, a aplicabilidade daquelas expressões abrangentes [por exemplo, ditaduras da América Latina] depende do próprio objeto de minha pesquisa, do problema que tenho em vista, das hipóteses que orientam minha reflexão historiográfica (BARROS, 2012, p.420). É preciso identificar, também, a possibilidade de o documento ser produzido em várias épocas, como demonstra José D’Assunção Barros: Tomaremos como exemplo significativo o conjunto das diversas narrativas bíblicas. Textos como o Samuel ou o Reis I e II apresentam, além de seu autor principal – que por sinal já construiu sua narrativa baseando-se em documentos mais antigos – mais dois ou três autores posteriores e outros tantos compiladores. Desta forma, trata-se de um discurso que sofreu alterações e interpolações. Assim sendo, um historiador não pode se pôr a refletir seriamente sobre uma narrativa bíblica sem indagar pelos seus lugares de produção do discurso, caso contrário sua leitura será pouco menos ingênua que a de um fiel devoto que se ponha a meditar sobre o texto sagrado em uma manhã de culto dominical. (BARROS, 2012, p.421) Não é só a época que marca o “lugar de produção”. Ela está inscrita em uma determinada sociedade. Ditaduras da América Latina é uma construção útil, mas generalizante. Quando analisamos os países em que essas ditaduras se instalaram, percebemos que a brasileira difere da paraguaia, que difere da Uruguaia e assim por diante. Mais ainda, uma determinada sociedade comporta uma multiplicidade de ambientes internos (...) O lugar de um autor está não apenas dentro de uma sociedade historicamente localizada, mas também dentro de um ambiente social que caberá ao historiador definir a partir do exame das muitas coordenadas que o determinam (BARROS, 2012, p.423). Ainda utilizando como exemplo as ditaduras da América Latina, definir o lugar que o autor do documento ocupa na sociedade é relevante para a análise, pois um general não é igual a um soldado. “Além disto, um autor participa de um determinado circuito de posições estéticas, filosóficas ou metodológicas que contrasta, por ventura, com as de um contemporâneo pertencente à outra corrente de pensamento”. É preciso definir também a posição de classe ocupada pelos autores, pois isto pode ser um fator “interferente na produção do discurso de cada um dos seus autores” (BARROS, 2012, p.423). Sem dúvida, não se esgotam aqui os procedimentos que o historiador deve adotar para análise do lugar de produção, mas entendemos ter destacado as principais características que devem ser levadas em conta na pesquisa histórica para a definição deste lugar. 17 Conceitos De�nições Relações Proposições Teoria Fenômeno Fenômeno = aspectos da realidade que podem ser percebidos ou vivenciados Para o analista da História, é fundamental sair da superfície do documento e aqui retornamos ao início da nossa discussão: o aparato teórico é fundamental para que o historiador faça a imersão nas fontes. Poucos pecados são tão rejeitados para um historiador como o de reduzir--se não- criticamente à opinião que faziam de si mesmos os próprios homens de umaépoca ou de um contexto histórico. Estas opiniões devem ser tratadas antes de tudo como materiais, como acontecimentos a serem analisados (BARROS, 2012, p.427). Como afirmamos anteriormente, para superar a simples descrição e chegar à explicação, para não adotar a opinião presente em um documento como explicação, é fundamental o domínio teórico, que possibilita a formulação de perguntas e hipóteses adequadas à pesquisa. Perguntas e hipóteses bem elaboradas ajudam o historiador a superar a mera observação das fontes, retirando destas as informações mais relevantes para a pesquisa. É importante destacar também que: O confronto entre fontes, ou mesmo entre um ponto do discurso e outro ponto que o contradiz, seja explícita ou implicitamente, faz parte certamente do mais simples repertório de ações do historiador diante da documentação que sua problemática levou a interrogar. Situar a fonte em uma rede intertextual ou contextual equivale a nelas introduzir uma profundidade não apenas útil, mas necessária ao historiador (BARROS, 2012, p.427). Aqui vale repetir uma citação de Julio Aróstegui: “O conhecimento da história não se reduz, porém, exclusivamente à exploração das fontes, mas se apoia também em conhecimento ‘não baseado em fonte’ (...) o que é uma maneira simples de dizer que as fontes não funcionam sem um aparato teórico-crítico” (ARÓSTEGUI, 2006, p.480). 18 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica Material Complementar Para complementar os conhecimentos adquiridos nesta Unidade, leia os textos disponibilizados nos links a seguir: Vídeos: Teoria da História: https://youtu.be/fNIZkaYzTeU O Método Científico e os Tipos de Pesquisa: https://youtu.be/EmG2OJ5Zmf8 Sites: A Relação entre Teoria e Prática na Formação de Professores de História: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/view/27499 Teoria e prática: diversas abordagens epistemológicas: http://congressos.cbce.org.br/index.php/cepistef/v_cepistef/paper/viewFile/2685/1135 https://youtu.be/fNIZkaYzTeU https://youtu.be/EmG2OJ5Zmf8 http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/view/27499 http://congressos.cbce.org.br/index.php/cepistef/v_cepistef/paper/viewFile/2685/1135 19 Referências ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa Histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006. BARROS, José D’Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção. Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v. 25, n. 2, jul/dez, 2012. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/ cdhis/article/view/15209. Acesso em: 16 jun. 2015. CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio. Sobre teoria e metodologia da história: questões e desafios. I Seminário nacional fontes documentais e pesquisa histórica: diálogos interdisciplinares. Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, dez./ 2009. Disponível em: http://www.ufcg.edu.br/~historia/isnfdph/filestodownload/CADERNO_DE_ RESUMOS-ISNFDPH.pdf. Acesso em: 16 jun. 2015. http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/15209 http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/15209 http://www.ufcg.edu.br/~historia/isnfdph/filestodownload/CADERNO_DE_RESUMOS-ISNFDPH.pdf http://www.ufcg.edu.br/~historia/isnfdph/filestodownload/CADERNO_DE_RESUMOS-ISNFDPH.pdf 20 Unidade: A relação entre a teoria e a prática da pesquisa histórica Anotações
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