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ISSN 2176-1396 PSICOGÊNESE DA PESSOA COMPLETA: UMA ANÁLISE TRANSDISCIPLINAR DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL Maria Thaís de Oliveira Batista1 - UFRPE/FUNDAJ Gilvaneide Ferreira de Oliveira2 - UFRPE/FUNDAJ Jardiene Manuela Santos da Silva3 - UFRPE/FUNDAJ Grupo de Trabalho – Educação, Complexidade e Transdisciplinaridade Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O presente trabalho é resultado da disciplina Seminário Interdisciplinar: abordagens inter e transdisciplinares, presente no programa de pós-graduação em Educação, Culturas e Identidades (UFRPE/FUNDAJ), sendo um estudo teórico pelo qual nos propomos a responder o seguinte problema: Considerando ser a psicogenética walloniana uma teoria que aborda o desenvolvimento do sujeito a partir da integração dos seus diferentes domínios – afetivo, cognitivo e motor, em que aspectos essa teoria se aproxima de uma perspectiva transdisciplinar de se compreender o desenvolvimento infantil? Para isso tivemos o objetivo de relacionar os pressupostos da teoria do desenvolvimento infantil de Henri Wallon com a abordagem transdisciplinar de Nicolescu. A formação do sujeito integral de acordo com a teoria psicogenética walloniana e a possibilidade de um novo olhar sobre o desenvolvimento infantil, implica numa atitude transdisciplinar de se compreender essa formação, na medida em que se interioriza o entendimento de que razão, afeto, intuição, sensibilidade e corpo, precisam ser considerados enquanto interdependentes entre si e enquanto aspectos que se encontram em um movimento transdisciplinar, ao ponto que se compreende a complexidade do vivido. Desse modo, vemos a íntima relação da transdisciplinaridade com a teoria psicogenética walloniana, pois, na medida em que os professores em formação, bem como os profissionais que já atuam no âmbito educacional, compreendem o desenvolvimento humano de forma não fragmentada, estes passam a enxergar a possibilidade de desenvolvimento integral. Nessa perspectiva, o desenvolvimento infantil, é permeado por interações e multiplicidades que podem ser melhor compreendidos, através das lentes de uma prática transdisciplinar, o que tende a ser inviável se visto sob uma pratica cartesiana. Como bem propõe a teoria psicogenética da pessoa completa de Henri Wallon, o desenvolvimento 1Mestranda do Programa de Pós-graduação - Associado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e Fundação Joaquim Nabuco (UFRPE/FUNDAJ) - em Educação, Culturas e Identidades. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG (2014). E-mail: taholiveira.thais@gmail.com. 2Doutora em Ciências da Educação: Universidade da Madeira/Portugal. Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: gildedufrpe@gmail.com. 3Mestranda do Programa de Pós-graduação - Associado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e Fundação Joaquim Nabuco (UFRPE/FUNDAJ) - em Educação, Culturas e Identidades. E-mail: jardienemanu@hotmail.com. 2073 infantil, deve ser visto a partir de uma compreensão integrada dos aspectos que dele fazem parte – afetividade, cognição e motricidade como complementares a esse processo formativo. Palavras-chave: Psicogênese da Pessoa Completa. Educação Infantil. Transdisciplinaridade. Afetividade. Introdução Diferentes enfoques perpassam os estudos e pesquisas que recaem sobre o desenvolvimento da criança na educação infantil. Dentre esses, queremos destacar o desenvolvimento infantil visto sob uma análise psicogenética da teoria de Henri Wallon, conhecida como Psicogênese da Pessoa Completa, que considera a complexidade do sujeito, a partir da integração de seus diferentes domínios4 – afetivo, cognitivo e motor. Nessa abordagem, Wallon (1973) compreende o desenvolvimento da criança para além do aspecto cognitivo – principal domínio considerado e trabalhado dentro do âmago das instituições de ensino –, atrelando a este, a relevância de se trabalhar os aspectos que perpassam as relações afetivas e o desenvolvimento motor das crianças. Dando origem ao quarto domínio funcional da sua teoria, o qual chamou de Pessoa, que seria a integração efetiva de todos os domínios tocados anteriormente. Essa concepção de desenvolvimento defendida pelo autor, nos traz subsídios para analisá-la sob à luz de uma perspectiva transdisciplinar de compreensão do desenvolvimento infantil, pois, considera que o sujeito não se desenvolve de forma fragmentada, mas sim a partir de uma integração dos diferentes domínios funcionais que o compõem, e que, desse modo, necessitam ser considerados como partes relevantes nesse processo. A transdisciplinaridade ao enfatizar a complexidade que perpassa todas as coisas, reflete, assim, nos pressupostos da teoria walloniana, de modo que ambas enxergam o que está para além do que é posto, considerando o que tende a ser excluído e/ou deixado em lugar de menos importância pelas pessoas e diferentes instâncias políticas e sociais. Dentro dos estudos sobre o desenvolvimento infantil pautado numa abordagem psicogenética da teoria walloniana, podemos citar alguns dos mais significativos no Brasil para a sua maior disseminação. Autores como Almeida (2005), Almeida & Mahoney (2004), Prandini (2004), Dér (2004), Galvão (2008), dentre tantos outros, defendem a teoria walloniana como de extrema relevância a ser estudada nos cursos de formação de professores, 4Nos estudos sobre os aspectos afetivos, motores e cognitivos do desenvolvimento infantil, podemos encontrar o termo domínios, campos ou conjuntos funcionais. 2074 devido a sua ênfase no desenvolvimento integral dos sujeitos. Desse modo, os estudos vêm despertando novos olhares em torno da formação humana do sujeito em fase de desenvolvimento, ao ponto que defendem a relevância da existência de boas relações estabelecidas no âmbito escolar, dando ênfase ao trabalho com as emoções dentro da sala de aula, como uma possível implicação em melhores resultados, no que diz respeito ao desenvolvimento pleno e integral dos sujeitos. Já no que compete aos estudos que versam sobre a transdisciplinaridade, damos destaque aos seguintes teóricos: Boaventura Santos (2010), Basarab Nicolescu (2000), Akiko Santos & Américo Somermman (2008) e Edgar Morin (2000), que trazem nas suas obras, significativas discussões para os estudos que recaem sobre a temática cada vez mais emergente e que veremos detalhadas mais adiante. Nessa perspectiva, o presente artigo é resultado da disciplina Seminário Interdisciplinar: abordagens inter e transdisciplinares, presente no programa de Pós- graduação em Educação, Culturas e Identidades (UFRPE/FUNDAJ), cujo problema de pesquisa está assim estruturado: Considerando ser a psicogenética walloniana uma teoria que aborda o desenvolvimento do sujeito a partir da integração dos seus diferentes domínios – afetivo, cognitivo e motor -, em que aspectos essa teoria se aproxima de uma perspectiva transdisciplinar de se compreender o desenvolvimento infantil? Na busca por responder essa questão norteadora, temos o objetivo de relacionar os pressupostos da teoria do desenvolvimento de Henri Wallon com uma abordagem transdisciplinar de Basarab Nicolescu. Metodologia Mediante o objetivo almejado para este artigo, foi feito uma pesquisa bibliográfica em torno do tema, como forma de se obter maior ênfase na discussão atual da temática em meio à realidade que se tem vivenciado. A pesquisa bibliográfica é “aquela que se caracteriza pelo desenvolvimento e esclarecimento de ideias, com o objetivo de oferecer uma visão panorâmica, uma primeira aproximação a um determinado fenômeno” (GONÇALVES, 2001, p.65). Através da pesquisa exploratória, é notório que esta se concebe como de grande relevância para as metas que se deseja alcançar,de modo que possibilita ao pesquisador um leque de informações a respeito do tema em estudo, pela qual se pode consultar diferentes obras e autores, ou seja, contribuindo, assim, para a qualidade final do seu trabalho. 2075 Para Gonçalves (2001), a pesquisa bibliográfica faz um levantamento de boa parte do conhecimento disponibilizado sobre o tema, de modo a possibilitar ao pesquisador outras teorias elaboradas por diferentes autores, de diversos lugares do mundo, podendo, assim, analisar e avaliar as contribuições dos mesmos em relação a explicação do seu objeto de estudo. É por meio desse tipo de pesquisa que se pode dar seguimento a um trabalho mais significativo e de qualidade, sem romper com os objetivos que são elaborados no início do processo, de modo que permite um outro olhar mediante um determinado objeto. Podendo, assim, compreender de diferentes ângulos os pontos de vista de teóricos estudiosos do assunto, e consequentemente, fazendo com que possamos construir nosso próprio posicionamento diante do tema. Alguns pressupostos sobre a psicogenética walloniana: a afetividade como terceiro termo incluído5 Henri Wallon além de uma grande figura acadêmica, foi também um homem político, porém, sua participação na humanidade foi marcada mais por sua dedicação enquanto pesquisador. O teórico na busca incessante por compreender o psiquismo humano, encontrou nos estudos sobre a criança, uma forma de chegar a seus reais objetivos, pois, através de um estudo do desenvolvimento infantil, é possível ter acesso a gênese dos processos psíquicos dos sujeitos. Wallon (1941) focou sua análise numa perspectiva de desenvolvimento abrangente e global, que considera os diferentes domínios – afetivo, cognitivo e motor –, que dele são resultantes, pelo qual todos estes nas suas diferentes etapas, implicam com o todo do processo de desenvolvimento infantil – a construção da personalidade. É possível afirmar que um grande número de pesquisas relacionadas à afetividade na perspectiva walloniana, tem sido determinantes na existência de uma maior visibilidade de discussões acerca da compreensão – por parte dos diferentes agentes educacionais envolvidos no dia-a-dia da criança na educação infantil – da constituição do sujeito em sua totalidade; da relevância da presença dessa discussão e de sua efetivação na relação professor-aluno dentro e fora dos ambientes escolares e, por fim, nas influências deste trabalho no processo de desenvolvimento das crianças. 5Um dos pilares que compõem a forma de se pensar e perceber a realidade a partir de uma abordagem transdisciplinar. 2076 É certo que desde muito cedo as crianças se comunicam com seu entorno por meio de choro, espasmos, gestos e sinais particulares, tornando-se assim sujeitos funcionais que precisam ser compreendidos pelos pais ou responsáveis, para um atendimento imediato das suas necessidades fisiológicas, psicológicas e afetivas. Com isso, o seu desenvolvimento ocorre por meio de uma inter-relação entre a sua condição orgânica e sua condição enquanto sujeito social inserido em uma determinada cultura, com costumes, valores e crenças particulares do seu grupo. Em meio a esta realidade, vê-se a necessidade de uma maior compreensão das concepções em torno da afetividade e sua epistemologia, o que requer, também, uma discussão dos demais conjuntos funcionais que compõe o que Wallon (1973) chama de pessoa integral. Essa pessoa completa e integral na psicogenética walloniana, é possível através de dois tipos de integrações: integração organismo-meio e integração cognitiva-afetiva-motora. Desse modo, [...] na criança, opõem-se e implicam-se mutuamente fatores de origem biológica e social [...]. O objetivo assim perseguido não é mais do que realização daquilo que o genótipo, ou gérmem do indivíduo, tinha em potência. O plano segundo o qual cada ser se desenvolve depende, portanto, de disposições que ele tem desde o momento de sua primeira formação. A realização desse plano é necessariamente sucessiva, mas pode não ser total e, enfim, as circunstâncias modificam-na mais ou menos. Assim, distinguiu-se do genótipo, o fenótipo, que consiste nos aspectos em que o indivíduo se manifestou ao longo da vida. A história de um ser é dominada pelo seu genótipo e constituída pelo seu fenótipo6 (WALLON, 1941, p. 49-50). Vemos aqui uma das principais características da teoria psicogenética walloniana, que considera o caráter biológico e social do desenvolvimento infantil, na medida em que essa abordagem abarca um desenvolvimento não-fragmentado do sujeito, pelo qual tanto fatores biológicos quanto sociais, ou seja, internos e externos ao indivíduo, contribuem para esse processo de desenvolvimento contínuo. Nessa perspectiva Prandini (2004) reforça o pensamento e nos diz que a teoria walloniana enfatiza que o processo de ensino-aprendizagem dos educandos se dá por meio de uma integração em duas direções. A primeira diz respeito às relações que o indivíduo estabelece com o meio, na qual o outro é sujeito indispensável no seu desenvolvimento. Esse processo é chamado de integração organismo-meio, na qual se integra o potencial genético dos sujeitos com as relações que o mesmo irá estabelecer com o meio em está inserido. Uma 6O genótipo diz respeito às características genéticas do sujeito, enquanto que o fenótipo é resultado da interação do genótipo com as condições do meio em que o indivíduo se encontra inserido. 2077 integração da criança com o meio em que vive, de modo a estabelecer uma íntima relação dos fatores orgânicos e socioculturais. O desenvolvimento dos sujeitos se dá no contexto o qual estão inseridos desde o nascimento, implicando, assim, com os seus fatores biológicos e sociais. A criança nessa perspectiva é estudada de acordo com o meio em que vive, o qual influencia significativamente o seu contínuo desenvolvimento ao longo da vida. Meio esse que segundo Mahoney (2004), se dividem em três grandes categorias, que diferenciam os tipos de meios existentes. O primeiro diz respeito aos meios físico, químico, biológico e social. Seguido pelo segundo, o qual se refere à espécie humana, na qual o meio social se superpõe ao meio físico. E por último, também, se tratando da espécie humana, o meio físico e espacial, o qual se refere às representações simbólicas. Nessa perspectiva, Wallon (1973) enfatiza a necessidade de uma compreensão do funcionamento humano a partir de três conjuntos funcionais e indissociáveis entre si, e que é por meio da coesão do social com a dinâmica afetiva que a criança tem acesso ao pensamento, à linguagem. Aqui encontramos a outra forma de integração discutida pelo autor, a integração afetiva-cognitiva-motora, na qual ver a afetividade, a motricidade e a cognição como inseparáveis na constituição do quarto conjunto funcional que ele chamou de pessoa, – que se caracteriza pela integração de ambos no processo de desenvolvimento do sujeito. Assim, “Os domínios funcionais, portanto, são constructos de que se lança mão para analisar o homem como objeto de estudo, por meio do agrupamento de funções em categorias, de acordo com suas características predominantes” (PRANDINI, 2004, p.30). Para Galvão (2008), essa existência do desenvolvimento humano a partir de conjuntos funcionais é o que torna essa divisão em uma categorização dos principais aspectos que constituem o sujeito integral. É desta forma que o conceito de pessoa na teoria walloniana deve ser compreendido. Na teoria psicogenética walloniana, os três domínios funcionais – afetividade, cognição e motricidade – são interdependentes entre si, havendo um diálogo constante entre estes ao longo do processo de desenvolvimento da criança. Esse entendimento do teórico, ajuda-nos a compreender a necessáriasuperação das práticas que visam a fragmentação e ruptura do saber – aquelas que são pautadas numa visão cartesiana de enxergar e perceber as coisas. Para Wallon (1973) no que compete ao conjunto motor, este trata-se de uma combinação de todos os movimentos executados pelo corpo do sujeito, que o permite 2078 deslocar-se de acordo com o tempo e o espaço, de modo a expressar suas emoções e sentimentos, auxiliando, assim, o seu pleno equilíbrio. Já o conjunto cognitivo é o campo que transforma em conhecimento todas as ações exercidas pelos sujeitos, auxilia e organiza as representações do vivido. Enquanto que o conjunto afetivo envolve os componentes do ato motor e cognitivo, e é onde estão presentes as emoções, os sentimentos e a paixão. O conjunto afetivo do desenvolvimento infantil, foi detalhadamente discutido por Wallon ao longo da sua vida enquanto pesquisador. A autora Dér (2004), de acordo com a teoria walloniana, defende que a afetividade é uma forma do indivíduo estar no mundo, de ser afetado e de afetar as outras pessoas que estão a sua volta, a partir de sensações agradáveis e desagradáveis. Esta forma de estar no mundo caminha, conjuntamente, com outros três elementos que se referem a um tipo de evolução da afetividade, as quais se caracterizam em emoção, sentimento e paixão e que para Wallon (1941) tem um papel imprescindível no desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos, e na constituição do educando enquanto ser integral. Desse modo, o indivíduo em meio à afetividade como facilitadora do seu processo de ensino-aprendizagem, acessa o seu próprio mundo simbólico e desenvolve as suas habilidades cognitivas. O que fica claro na elaboração dos estágios de desenvolvimento do ser humano ressaltados pelo autor, nos quais se vê a presença tanto do conjunto cognitivo quanto do afetivo no processo de desenvolvimento dos sujeitos, de forma a predominar com mais ênfase um dos dois em cada estágio. Essa predominância ora do cognitivo, ora do afetivo, se dar de forma a no decorrer do desenvolvimento do sujeito, estar presente uma predominância alternada seja da afetividade, seja da cognição, sendo que em cada fase do desenvolvimento um desses conjuntos exercem um domínio maior sobre o sujeito, porém, sempre contando com a presença do outro conjunto. Desta forma, se pensarmos na afetividade como preponderante sobre a cognição em uma determinada fase, percebemos que o interesse do sujeito está voltado para o seu interior, ou seja, para a construção do seu eu7, porém, quando pensamos o contrário, na cognição preponderando sob a afetividade, vemos que o interesse do sujeito está voltado para o seu exterior8, para o conhecimento advindo do mundo, das experiências e das relações que estabelece com o outro. 7 O que Wallon (1973) chama de movimento centrípeta. 8 O que Wallon (1973) chama de movimento centrifuga. 2079 A autora Prandini (2004, p. 43) de acordo com a teoria walloniana, discorre que é dever do professor “[...] reconhecer as condições de seus alunos, em especial seus afetos, seus desejos, a fim de procurar canalizá-los para que colaborem na produção do conhecimento”. Uma boa relação dos sujeitos que fazem parte do cenário educativo é imprescindível para transformar o ambiente escolar em um local agradável e que esteja favorável para o pleno desenvolvimento da aprendizagem dos educandos Para Saltini (2008, p.98), “O educador sensível é aquele que questiona suas ações baseando-se na abordagem que a criança faz da realidade, verbalizando uma realidade vista a seu modo (criança), com as suas capacidades estruturais, funcionais e afetivas. 104). Portanto, isso ganha maior significado ao pensarmos no ambiente da sala de aula, principalmente infantil, pelo qual percebemos que esse é um local em que estão centrados todos os tipos de emoções. Sujeitos que necessitam de afeto, que veem na escola uma alternativa para suprirem tais desejos e carências, que, muitas vezes, são condições do seu próprio ambiente familiar. A transdisciplinaridade e uma nova forma de enxergar a formação do sujeito As discussões sobre a transdisciplinaridade9 nos trazem a possibilidade de refletirmos e compreendermos as bases da existência humana, de modo que venhamos a entender o mundo e o pensamento multifacetado que dele resulta, a partir das diversas relações que estabelecemos entre as nossas ações e os nossos pensamentos, os quais são e devem ser vistos enquanto totalidade mediante o espaço em que vivemos. Desde meados do século XIV que o paradigma vigente na nossa sociedade é aquele conhecido como paradigma cartesiano e reducionista, em que considera que para se obter um real conhecimento sobre algo, é preciso dividirmos esse “algo”, ou seja, fragmentá-lo em partes distintas para podermos entendê-lo. Este paradigma tornou-se dominante e influenciou de forma determinante a concepção de educação formulada pelas instituições de ensino, de modo que a organização estruturante e inflexível dos currículos destas, em disciplinas, é resultado de tais influências. Esse paradigma dominante segundo Santos (2010), trata-se de uma concepção newtoniana-cartesiana de compreensão do curso das coisas, pelo qual se tende a fragmentar e 9Segundo Nicolescu (2000), o prefixo trans de transdisciplinaridade indica o que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através delas e além de qualquer uma delas, dando uma ideia de transcendência e de inter-relações no mundo e na vida. A transdisciplinaridade está relacionada ao mundo acadêmico, pois se preocupa com aquela parte do mundo real que trata do conhecimento, de sua organização em disciplinas, das superposições e espaços vazios entre elas. 2080 reduzir tudo, compartimentando as relações que deveriam ser consideradas, entre razão/emoção; corpo/alma; sujeito/objeto, dentre outros, e que se mostra cada vez menos eficaz para solucionar e atender os diversos problemas e crises enfrentadas em todos os lugares do mundo. A respeito do paradigma dominante, ainda segundo Santos (2010), é perceptível que a ciência em si já vai percebendo a ineficiência de aplicabilidade deste paradigma, no que compete aos diferentes campos da sociedade, de modo que ela própria tenta romper com a sua concepção de incompletude para uma outra de completude, que leve em conta as diferentes relações entre eventos, sujeitos e objetos presentes a todo o momento no mundo. Em relação às influências desse paradigma na implementação dos currículos das instituições de ensino, Morin (2011, p.38) diz-nos que [...] as mentes formadas pelas disciplinas perdem suas aptidões naturais para contextualizar os saberes, do mesmo modo que para integrá-los em seus conjuntos naturais. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada qual tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada), assim como ao enfraquecimento da solidariedade (cada qual não mais sente os vínculos com seus concidadãos). Uma nova concepção de compreensão da realidade passou a ser analisada no que diz respeito ao modo como as disciplinas presentes nos currículos das instituições de ensino, eram compartimentadas e não estabeleciam nenhum tipo de relação complementar umas com as outras, de modo que ao mesmo tempo emergia cada vez mais a necessidade de uma maior articulação entre estas, ao ponto que isso resultou numa grande e significativa mudança de percepção em relação às ciências humanas e da natureza. O que pudemos ver na proposta da discussão do tópico anterior, em que Wallon (1941) propõe a compreensão de um desenvolvimento que não compartimentalize as dimensões humanas, mas sim estabeleçam relações entre estas. Em meio a essas e tantas outras críticas, surge o paradigma emergente, que requer que saibamosque a necessidade de uma nova compreensão da organização das relações existentes no mundo e seus efeitos para com este, é condição do ser humano, ao ponto que somos resultado das interações decorrentes do espaço em que vivemos, e, portanto indissociável ao funcionamento deste. Com essas críticas e em meio aos avanços na área da Mecânica Quântica, segundo Santos e Sommerman (2009) os alicerces que asseguravam o pensamento cartesiano de um mundo uno e imutável dão lugar ao múltiplo e ao mutável - que propõe o 2081 pensamento complexo das coisas -, de modo que trouxe consigo uma ruptura radical em relação a até então mecânica clássica que se tinha conhecimento. Para Morin (2011), esse embate entre o paradigma dominante e o paradigma emergente é resultado das novas demandas da sociedade, que se fizeram através das mudanças e das relações estabelecidas do todo com o todo ao longo dos anos, dando início a uma crise de paradigmas. Em relação a essa discussão, Santos (2010) também acredita que estamos enfrentando uma crise de paradigmas, pela qual se encontra em momento de transição do dominante para o que emerge na sociedade, sendo que isto não é algo fácil de se conceber, na medida em que não se pode, nem mesmo, refletir acerca de uma possível ruptura que ascenda a existência desse paradigma emergente em todas as situações e espaços de forma rápida e instantânea, pois, requer primeiramente, uma mudança de percepção do sujeito mediante sua visão de mundo. Uma percepção que compreenda a necessidade de estabelecermos relações de tudo com tudo, ao ponto que a todo o momento e para qualquer lugar que olharmos, existem relações de interdependência entre sujeitos e objetos, e que estes estão interligados e interferindo no mundo de forma constante e recíproca. Segundo Santos e Sommerman (2009), outra grande contribuição para a emergência da transdisciplinaridade, foi o Princípio da Complementaridade dos Opostos elaborado por Bohr e sua concepção de que um objeto pode ser ao mesmo tempo igual e diferente de si mesmo, – a partir de uma perspectiva de complementaridade mútua – o que contribuiu de forma direta para a formação dos três pilares da metodologia da Transdisciplinaridade, os quais são: 1. Diferentes níveis de realidade, 2. Terceiro Termo Incluído e 3. Complexidade. Os respectivos pilares nos atentam para o fato de que todo e qualquer objeto ou fenômeno está suscetível à contrariedade, ao antagonismo, de maneira que ambos os pólos dessa complementaridade, encontram em algum momento um ponto de equilíbrio que os subsidiam na busca por uma coexistência dinâmica, formando, assim, um sistema aberto e sujeito a criação de outros níveis de realidade perante essa interação de pólos opostos. A abordagem da transdisciplinaridade, não almeja diluir as disciplinas, mas sim mudar a forma que elas se relacionam entre si, de modo que seja possível compreender os diferentes níveis de realidade que perpassam um determinado sujeito ou objeto, ao ponto que a atual estrutura rígida disciplinar, não possibilita este feito. Para Nicolescu (2000, p.123) 2082 O ponto de vista transdisciplinar nos permite considerar uma realidade multidimencional, estruturada em muitos níveis, substituindo a realidade do pensamento clássico de um único nível, unidimensional. As considerações que se seguem não dependem de esse número ser finito ou infinito. Em nome da clareza, suponhamos que esse número seja infinito. Desse modo, pensar numa educação pautada numa abordagem transdisciplinar, requer que saibamos que isso acarretará em uma transformação do modo de se conceber as finalidades educacionais, o que implica uma mudança de atitude, ao ponto que resultará em um novo olhar sob os diferentes aspectos que são, muitas vezes, desconsiderados na lógica cartesiana do paradigma dominante. Aspectos como, por exemplo, a compreensão do desenvolvimento infantil de forma integrada – a partir da integração dos domínios cognitivo, motor e afetivo. O desafio transdisciplinar: compreendendo o desenvolvimento infantil a partir de uma abordagem psicogenética da teoria de Henri Wallon Mediante as discussões anteriormente delineadas acerca da psicogenética walloniana, bem como do paradigma emergente que deu origem a uma maior visibilidade da transdisciplinaridade, notamos que é perceptível as relações existentes entre ambas as correntes, de modo que quaisquer atitudes transdisciplinares, requerem o reconhecimento da formação de um sujeito multifacetado, que afeta e é afetado pelo seu entorno de maneiras agradáveis e desagradáveis ao longo da vida. A formação do sujeito integral de acordo com a teoria psicogenética walloniana e a possibilidade de um novo olhar sobre o desenvolvimento infantil, implica numa atitude transdisciplinar de se compreender essa formação, na medida em que se interioriza o entendimento de que razão, afeto, intuição, imaginação, sensibilidade e corpo, precisam ser considerados enquanto interdependentes entre si e enquanto aspectos que se encontram em um movimento transdisciplinar constante. Essa lógica transdisciplinar e que requer um pensamento complexo sobre as coisas, dar vazão cada vez mais a mudança de paradigmas que temos enfrentado desde algum tempo, pois, segundo Morin (2007), essa proposta desperta a necessidade de se obter um pensamento planetário e multifacetado do todo e das partes que o compõe. Desse modo, vemos a íntima relação da transdisciplinaridade com a teoria psicogenética walloniana, pois, na medida em que os professores em formação, bem como os profissionais que já atuam no âmbito educacional, compreendem o desenvolvimento humano 2083 de forma não fragmentada, estes passam a enxergar a possibilidade de desenvolvimento integral do sujeito, que segundo Prandini é (2010, p.33) “[...] condição de vida para o organismo, e é a partir dela que o conceito de pessoa de Wallon como um domínio funcional que integra os outros três deve ser entendido”. É nessa perspectiva que Wallon (1941) foi um teórico transdisciplinar, considerando as relações que os conjuntos afetivo, cognitivo e motor estabelecem entre si e com o todo que os compõem – que nesse caso, seria a formação da personalidade infantil. Em relação a essa discussão Santos e Sommerman (2009), nos trazem a ideia de unitas multiplex, um termo essencialmente contemporâneo que promove o pensar complexo e reafirma a noção de ser completo que pensa numa realidade universal e múltipla, ou seja, um pensar que vai além de uma visão reduzida e fragmentada. Para os autores, baseados em estudos de Edgar Morin, o sujeito é um ser paradoxo e múltiplo. Se pensarmos no Terceiro Termo Incluído, desenvolvido por Nicolescu (2000), veremos que este trabalha como um instrumento que explica a completude dos pares dicotômicos e suas dinâmicas de interação. Isso só fica claro quando se observa os diferentes níveis de realidade – primeiro pilar da abordagem da transdisciplinaridade. Nessa perspectiva, neste artigo podemos considerar a afetividade como esse terceiro termo incluído, na medida em que ela vem a ser o que está para além do que é trabalhado e considerado dentro das instituições de ensino – que priorizam o desenvolvimento das potencialidades referentes ao campo da cognição. Os fenômenos afetivos representam a maneira como os acontecimentos repercutem na natureza do sensível do ser humano, produzindo nele um elenco de reações matizadas que definem seu modo de ser-no-mundo [...]. São as relações sociais, com efeito, as que marcam a vida humana, conferindo ao conjunto da realidade que forma seu contexto (coisas, lugares, situações, etc) um sentido afetivo (PINO, s,d, p.130-131). Essa proposta de um sujeito complexo visto pela transdisciplinaridade, que tende a desenvolver uma consciência planetária mediante as relações que estabelece com o todo e as partes que o compõe,está intrinsecamente ligada ao sujeito afetivo – e com necessidades de interação –, visto por Wallon (1941), pois, a transdisciplinaridade toca na necessidade de educar um sujeito a partir do universo do sensível. Um sujeito que esteja preparado para viver em comunhão com o planeta e as pessoas que dele fazem parte, compreendendo, assim, de forma mais clara, a complexidade dos fenômenos que o rodeia. 2084 Para Santos e Sommerman (2009), um dos maiores obstáculos para a efetivação de uma educação que paute o desenvolvimento do sujeito a partir de uma perspectiva transdisciplinar, é o próprio sistema educacional que está imerso em conceitos presentes na lógica clássica, pois, mesmo munidos de conhecimentos e certezas quanto ao efeito favorável de uma metodologia transdisciplinar, muitos profissionais recorrem ao vicio de fragmentar e isolar áreas do conhecimento. Os autores acreditam que o desapego ao método tradicional pode acontecer através de uma juntura entre o conceito de clausura e abertura mental, isso porque mesmo a clausura limitando a ação do sujeito ela também proporcionará uma garantia diante do novo. Nessa perspectiva, vemos que o desenvolvimento infantil, bem como a dinâmica do mundo em geral, é permeado por interações e multiplicidades que podem ser melhor compreendidos e percebidos, através das lentes de uma prática transdisciplinar, o que tende a ser inviável se visto sob uma pratica cartesiana. Sendo assim, a lógica transdisciplinar nos mostra que para se enxergar o todo é preciso entender toda a complexidade que o envolve, mediante os diferentes níveis de realidade que fazem parte deste. Portanto, como bem propõe a teoria psicogenética da pessoa completa de Henri Wallon, o desenvolvimento infantil, deve ser visto a partir de uma compreensão integrada dos aspectos que dele fazem parte – afetividade, cognição e motricidade como complementares a esse processo formativo. Conclusão Ao final dessa discussão, acreditamos que o objetivo inicial almejado, de relacionar os pressupostos da teoria do desenvolvimento de Henri Wallon com uma abordagem transdisciplinar de concepção do desenvolvimento infantil, foi alcançado, e a questão norteadora do delineamento do texto – Considerando ser a psicogenética walloniana uma teoria que aborda o desenvolvimento do sujeito a partir da integração dos seus diferentes domínios – afetivo, cognitivo e motor -, em que aspectos essa teoria se aproxima de uma perspectiva transdisciplinar de se compreender o desenvolvimento infantil? – respondida, de modo que pudemos entrar em contato com aspectos da teoria psicogenética de Henri Wallon e com os pressupostos que norteiam a metodologia da transdisciplinaridade, pelo qual notamos os principais pontos de convergência dessas duas abordagens. Na medida em que ambas consideram a complexidade do real, a relação do todo com as partes que o compõe e a necessidade de se compreender a natureza do sensível nos processos formativos dos sujeitos desde a educação infantil. 2085 Nessa perspectiva, é basilar refletirmos o que foi evidenciado ao longo da discussão proposta nesse texto. Que estamos em um longo processo de crise paradigmática, pelo qual a todo o momento somos bombardeados por uma série de informações de diferentes campos da sociedade, que centram o pensamento a partir de uma visão reducionista, fragmentada e mecanicista do mundo em que vivemos. No entanto, se optarmos por uma mudança nesse tipo de pensamento, necessitamos compreender que isso será possível, na medida em que pudermos perceber a necessidade de ver o mundo de forma global e transdisciplinar. O que requer uma ruptura na ideia de um pensar fragmentado, individualista e reducionista, para uma atitude que gere um pensamento complexo do vivido. Desse modo, concordo com Santos (2010) quando diz que os anseios da sociedade atual requerem um novo tipo de paradigma, um paradigma que esteja condizente com a complexidade do vivido, que além de científico seja também social, de modo que se deve haver um diálogo constante e interdependente entre os diversos âmbitos que compõem a nossa sociedade, na medida em que estes estão interligados entre si, compondo, assim, o relógio transdisciplinar do mundo atual, que é resultado das mudanças decorrentes das relações políticas, econômicas, culturais e sociais da nova era, e que, portanto, almejam uma nova concepção de mundo e de funcionamento deste. Temos aqui uma significativa convergência com a teoria psicogenética walloniana, ao considerar o desenvolvimento infantil a partir de uma interdependência dos diferentes domínios que o constitui. O professor que percebe a relevância de um olhar e escuta atenta mediante o pleno desenvolvimento das potencialidades e necessidades dos sujeitos, vai ao encontro do que é proposto e defendido pela psicogenética walloniana e pela metodologia da transdisciplinaridade, pois, a formação de sujeitos pautados numa ideia complexa e integradora, tem como aspecto primordial a compreensão da necessidade de uma maior sensibilidade em relação as práticas educativas. A perspectiva transdisciplinar, portanto, abre possibilidade para a criação de espaços que valorizam a natureza do sensível, do afetivo e do que é primordial para a formação de sujeitos plurais e conscientes do mundo em que vivem e dos cuidados que com ele devemos ter, de modo que isso requer uma mudança de postura mediante a forma de se compreender o mundo e os diferentes níveis de realidade que nele coexistem. Vemos assim ao final da discussão, as significativas contribuições que o presente trabalho acarreta para a prática vivenciada nos diferentes espaços educativos, bem como para a formação dos profissionais da 2086 educação, pois, possibilita um encontro com uma discussão atual e pautada em teóricos de grande relevância social. REFERÊNCIAS DÉR, Leila. A constituição da pessoa: dimensão afetiva. In: MAHONEY, Abigail; ALMEIDA, Laurinda (Orgs). 1. ed. A constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo: Edições Loyola, 2004. GALVÃO, Izabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. GONÇALVES, Elisa Pereira. Conversa sobre iniciação a pesquisa científica. 1. ed. Campinas: Alínea, 2001. MAHONEY, Abigail. A constituição da pessoa: desenvolvimento e aprendizagem. In: MAHONEY, Abigail; ALMEIDA, Laurinda. (orgs). 1. ed. A constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo: Edições Loyola, 2004. MORIN, Edgar. 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