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Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO Departamento de Enfermagem Disciplina: Enfermagem em Trauma e Emergência Enfermagem em Trauma e Emergência Enf.º Ms. Herlon Fernandes de Almeida Enfermeiro do Núcleo de Educação Permanente – SAMU 192 Juiz de Fora, 2021 História do Pré-Hospitalar e Estrutura e organização dos serviços de urgência e emergência A urbanização decorrente do processo de industrialização, o crescimento demográfico acelerado e a migração rural são características recentes da civilização, acentuadas a partir do século XIX, tanto nos países industrializados, como nos em desenvolvimento. A partir de meados do século XX o perfil epidemiológico de morbidade e de mortalidade das populações urbanas passou a apresentar características típicas deste processo. Com a incorporação de tecnologias de controle sanitário do meio ambiente, a destinação apropriada dos dejetos, tratamento de esgotos, água tratada encanada e melhores condições habitacionais, principalmente nos países industrializados, as doenças infectocontagiosas, flagelo dos centros urbanos do século XIX, perderam gradualmente a relevância. No século XX surgiram com maior importância as doenças cardiovasculares, as neoplasias e as lesões decorrentes de causas externas, sejam as provocadas pelos acidentes de transporte, do processo de trabalho ou, mais recentemente, pela violência urbana. Guardadas as devidas proporções, justamente o tipo de morbidade comum aos campos de batalha, onde começa a história do Atendimento Pré-Hospitalar (APH). As ambulâncias de tração animal eram usadas para atender e remover os soldados feridos do campo de batalha para os hospitais de campanha. As tais chamadas ambulâncias voadoras, “ambulance volantes", invenção do médico cirurgião francês Dominique Jean Larrey (1766- 1842), um dos pioneiros da medicina militar, que percebeu a necessidade de se criar serviços especializados para evacuar e tratar os feridos em combate rapidamente (BAKER et al., 2005). Essas ambulâncias levavam médicos e socorristas ao front, que tinham como objetivo, além de retirar o ferido, realizar rápidos procedimentos cirúrgicos, basicamente amputação de membros e limpeza de ferimentos, prevenindo a tão temida gangrena gasosa é o tétano, e atuar no controle de hemorragias visíveis através de aplicação de torniquetes e curativos. Não é sem motivos que a história do atendimento pre hospitalar está intimamente ligada a medicina militar, constituindo um de seus principais componentes. Há tempo os lide res militares perceberam a importância de se retirar rapidamente o soldado ferido do campo de batalha, e não por motivos exclusivamente humanitários. Como vimos, a medicina militar e seu componente pré-hospitalar ganharam importância estratégica nos campos de batalha nos últimos duzentos anos, muito antes da divulgação da importância da chamada Golden Hour no prognóstico das vitimas de trauma, ou seja, o atendimento médico feito na primeira hora após o evento (COWLEY, 1976), pois se sabe que em combate cerca de 40% das mortes são potencialmente evitáveis se houver uma intervenção rápida nos primeiros 20 minutos. Tanto que, em nossos dias, vultuosos recursos são empregados nas operações militares de evacuação médica (MEDEVAC) através do emprego de helicópteros de transporte que acompanham o deslocamento das tropas e de hospitais móveis de campanha tão bem equipados com recursos materiais e humanos quanto os serviços de emergências das grandes metrópoles. São estes os recursos empregados na luta contra o tempo para que o melhor atendimento medico chegue até o combatente ferido ainda enquanto há chances de sobre vivência e de recuperação (INSTITUTE OF MEDICINE, 1999) No entanto, longe dos campos de batalha, para que surgissem serviços de atendimento pré- hospitalar nas grandes cidades e autoestradas, como os conhecemos hoje, seriam necessários três requisitos mínimos simultâneos: uma perceptível necessidade social como o acentuado aumento da incidência de patologias agudas de natureza clinica ou traumática: a convicção plena da importância e dos benefícios da intervenção precoce nestas situações: e a disponibilidade da tecnologia e dos recursos materiais e humanos necessários. Estas condições só surgiriam no século XX, em especial a partir de meados dos anos 1960. Não devemos confundir atendimento pré-hospitalar com a simples remoção e transporte de enfermos através de ambulâncias. O atendimento pré-hospitalar é bem mais que isto e se caracteriza por intervenções e cuidados realizados precocemente, antes da chegada ao ambiente hospitalar, que de alguma forma favorecerão a recuperação do enfermo, reduzirão seu sofrimento ou aumentarão suas chances de sobrevivência e de se evitar que se agravem, além, naturalmente, de atuar como uma ambulância de transporte rápido e segura até a sala de emergência e aos recursos médicos necessários, levando o paciente certo ao local correto, que nem sempre é o mais próximo (MANISH, 2006) As instituições hospitalares como as conhecemos hoje, ou seja, os hospitais modernos, devem em parte sua origem aos hospitais militares para feridos de guerra, tanto no seu componente de atendimento emergencial, a sala de emergência, como no componente de recuperação nas enfermarias. A instituição hospitalar moderna é recente na vida civil, até o século XIX, os enfermos eram tratados normalmente em suas próprias casas. Um dos primeiros hospitais do século XVII, o Hotel-Dieu de Paris foi idealizado inicialmente como forma de retirar os mendigos e miseráveis das ruas da cidade (FOUCAULT 1992). Os hospitais de isolamento eram dedicados a abrigar os enfermos portadores de doenças consideradas contagiosas, fossem elas endemias crónicas, como a hanseníase (lazarentos ou leprosários) ou epidemias agudas, como a peste bubônica, a cólera, o sarampo e a varíola, também com o mesmo objetivo principal de afastamento e isolamento do convívio com as pessoas sadias. Ambos os tipos de instituição se assemelhavam muito mais a prisões do que a hospitais como os entendemos hoje, de onde dificilmente os enfermos recebiam alta em vida. Não se enganem a instituição hospitalar como a conhecemos hoje e uma invenção recente, dos últimos 100 anos. ATENDIMENTO PRE-HOSPITALAR NOS ESTADOS UNIDOS A experiência adquirida nos combates da II Guerra Mundial (1939- 45), da Península Coreana (1950-53) e do Vietnã (1959-75) produziu grande conhecimento médico no atendimento de urgência aos feridos. Destacam-se as técnicas de controle de hemorragias, reposição volêmica, tratamento do choque hemorrágico e de suas complicações. Tais conhecimentos são hoje comumente adotados na abordagem a vitimas de acidentes de transporte e da violência urbana pelos serviços civis de emergência. Procedimentos de acesso intravascular para a reposição de volume intravascular e escolha dos fluidos de reposição volêmica foram largamente experimentados nos campos de batalha. Tanto que nos anos 1970, muitos dos veteranos de guerra com experiência em atendimentos de saúde em combate foram empregados nos serviços de emergência pré-hospitalar como técnicos paramédicos. Posteriormente, estes profissionais passaram a receber treinamentos diferenciados e classificados de acordo com os seus preparos e habilitações para realização de procedimentos em diversos níveis de complexidade (CHUNG, 2001) • Na sociedade estadunidense, a partir dos anos 1960, as neoplasias e as doenças cardiovasculares passaram a adquirir maior importância no perfil epidemiológico de morbimortalidade, afetando principalmente as populações urbanas. • Em meados dos anos 1960, por iniciativa do governo federal estadunidense foi criada uma comissão científica liderada pelo famoso cirurgião cardíaco Michael DeBakey com intuito de melhorar assistência medica as pessoas acometidas por doenças cardíacas, neoplasias e acidentes vasculares cerebrais. Esta comissão, sensível à importância do atendimento rápido em eventos agudos, elaborou uma série derecomendações que levaram a adoção dos Planos Médicos Regionais que, por sua vez, passaram a regulamentar, entre outros, o funcionamento dos serviços de emergência e de atendimento pré-hospitalar dos Estados Unidos, os chamados Serviços Médicos de Emergência (Emergency Medical Services EMS), existentes até então em algumas cidades, mas sem padronizações ou protocolos (MANISH, 2006). • Em 1966, com o aumento da incidência de acidentes de transporte decorrente da implantação da nova malha rodoviária interestadual de alta velocidade, as "Highways”, o Conselho Nacional de Pesquisa da Academia Nacional de Ciências publicou um estudo chamado Accidental Death ands Disability: The Neglected Disease of Modern Society (Morte e Incapacitação Acidental a Doença Negligenciada pela Sociedade Moderna) no qual faz uma serie de criticas à atuação dos serviços de emergência e de socorro no atendimento dos casos de trauma decorrentes de acidentes de transporte. Esse estudo influenciou a formulação da Lei de Segurança nas Rodovias (Highway Safety Act), que passou a regulamentar as ações dos serviços de atendimento pré hospitalar nas estradas, especificando as ambulâncias, equipamentos, sistema de comunicação e treinamento dos profissionais envolvidos. Um marco importante para o desenvolvimento do APH, tanto nos Estados Unidos como no mundo, foi quando em 1967 o Colégio Americano de Cirurgiões publicou um boletim de autoria do Dr. Farrington, cirurgião ortopedista, com o titulo “Morte em uma Vala (Death in a Ditch)”, no qual é relatada a assistência desastrosa prestada a um casal vitima de acidente automobilístico em um a estrada vicinal de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos. Neste artigo é proposta a necessidade de se adotar cuidados na mobilização e no transporte de pacientes vitimas de acidentes de transporte, para evitar mortes e sequelas, principalmente naqueles acidentes que ocorrem em locais isolados e que implicam transportes demorados e situação de risco. Neste interessante e pioneiro artigo são apresentadas técnicas de abordagem, como retirada do interior dos veículos e cuidados de imobilização para acidentados, utilizados até os dias de hoje pelos serviços do mundo todo (FARRINGTON, 1967). Um dos principais procedimentos associados aos serviços de atendimento pré-hospitalar, a reanimação cardiopulmonar (RCP), surge apenas em 1960 quando Kowenhoven, Jude e Knickerbocker publicam no JAMA, Jornal da Associação Médica Americana, os procedimentos que dariam origem as técnicas de reanimação cardiopulmonar utilizadas até hoje, como a compressão torácica intermitentes, posteriormente, por recomendação em artigo de Peter Safar, é associada à ventilação artificial boca a boca com a inclinação posterior da cabeça com a finalidade de liberar as vias aéreas (GUIMARAES, 2009). É também na década de 1960 que o médico cardiologista irlandês Frank Pantridge adaptou a invenção do cardiologista americano Bernard Lown, o desfibrilador cardíaco de corrente continua, para uma versão "portátil" que utilizava baterias de automóvel, pesava cerca de 70 kg, mas que podia ser colocado em ambulâncias, como ocorreu pela primeira vez no Reino Unido em 1966. Seu principal mérito foi perceber que nos casos de parada cardíaca decorrente de arritmias cardíacas era fundamental que o aparelho desfibrilador chegasse rapidamente até o paciente (PANTRIDGE, 1996). A partir da década de 1960, a historia do atendimento pré-hospitalar nos Estados Unidos e no mundo confunde-se com a história moderna da Medicina de Urgência, passando a incorporar e compartilhar as tecnologias e conhecimentos adquiridos neste campo. É uma característica dos sistemas de APH nos Estados Unidos a utilização rotineira de profissionais não médicos diretamente nos atendimentos, mesmo para a realização de procedimentos invasivos mais complexos. Estas atribuições são delegadas a profissionais técnicos habilitados ou a paramédicos, comumente provenientes da área de enfermagem. A participação médica restringe-se à confecção de protocolos de condutas, orientações feitas a distância com auxilio de recursos de telemedicina e na fiscalização e auditoria dos serviços. A participação do médico diretamente no atendimento pré-hospitalar é excepcional. No entanto, existe uma integração importante das equipes de APH com as das salas de emergência, com canais permanentes de comunicação on-line com as centros hospitalares de referência, assim como a adoção de condutas coerentes e padronizadas (ROBBINS, 2005). ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR NO BRASIL Até a Constituição Federal de 1988, que lançou as bases da criação do Sistema Único de Saúde, não havia um sistema nacional de saúde com acesso universal. Ate então as intervenções de saúde publica levadas pelo Ministério da Saúde estavam voltadas principalmente às ações de saúde coletivas como o controle de endemias e epidemias. Desde 1920, através da Departamento Nacional de Saúde Pública, o Estado Brasileiro, com raras e pontuais exceções, assumia exclusivamente a responsabilidade pelas ações de saúde publica e controle sanitário, como o combate dos vetores de doenças tropicais, a organização de campanhas de vacinação publica e as ações de vigilância e fiscalização sanitárias de portos e fronteiras. Alguns municípios e estados da Federação ofereciam atendimento universal em suas redes de atenção primária, em prontos-socorros isolados para os casos de urgência de baixa complexidade, ou nos centros de saúde, os programas específicos de puericultura e pediatria, pré-natal, controle da tuberculose, da hanseníase e da raiva. Mesmo neste contexto desfavorável no início da década de 1950, foi implantado um serviço de atendimento pré-hospitalar inédito, que se manteria por cerca de 16 anos nas principais cidades brasileiras. Por iniciativa do Ministério do Trabalho, ao qual os Institutos de Aposentadoria e Pensão estavam subordinados, foi criado em 1949 o SAMDU, Serviço de Atendimento Médico Domiciliar de Urgência. Este serviço, mantido pelos institutos e voltado para o trabalhador, estruturava-se através de postos de atendimento de urgência, o equivalente a um serviço de pronto atendimento e de equipes de atendimento domiciliar constituídas por médico, enfermeiro, padioleiro e motorista, que com ambulâncias ou veículos leves (jipes), atendiam as adas de urgência dos beneficiários e de seus dependentes, realizando atendimentos, visitas e transporte dos enfermos se fosse necessário. As solicitações eram feitas por telefone diretamente aos postos do SAMDU, que despachava as equipes com uma lista de chamados a serem atendidos sequencialmente. Este serviço era mantido com recursos dos Institutos e era voltado ao atendimento clinico ou obstétrico, nas residências ou nos postos de trabalho. Em meados da década de 1960, com a unificação dos Institutos, o serviço acabou sendo extinto. Justamente nesta época, os avanços científicos obtidos pela medicina de urgência passaram a expor as limitações e dificuldades de se manter serviços de urgência pouco aparelhados, isolados e desvinculados de hospitais que fossem devidamente equipados com centro cirúrgico, laboratório, banco de sangue e unidades de terapia intensiva, assim como revelaram a importância do fator tempo no atendimento das urgências graves. Em meados dos anos 1970, no Estado de São Paulo, a DERSA Desenvolvimento Rodoviário S/A, empresa de economia mista que administrava algumas das rodovias estaduais paulistas, implantou um sistema de atendimento em estradas, realizado por técnicos, que tripulando ambulâncias básicas, realizavam o transporte de acidentados para os hospitais mais próximos. As intervenções realizadas na cena do acidente eram simples e a prioridade era o transporte rápido dos feridos para os serviços de urgência das cidades mas próximas. No entanto, cuidados especiais como a retirada e mobilização cuidadosa dos feridos já eram uma preocupação, e procedimentos recomendados por , D. Farrington, citado anteriormente,já eram adotados. Sem dúvida, foi um serviço merecedor de reconhecimento por seu pioneirismo na utilização de bases técnicas no atendimento a acidentados em estradas no nosso meio (OKUMURA, 1989). Mesmo após o término do SAMDU em 1966, alguns municípios mantiveram serviços de ambulância cuja finalidade era essencialmente o transporte dos enfermos para os serviços de urgência. As ambulâncias eram tripuladas por técnicos e não era oferecido nenhum tipo de intervenção mais complexa além da administração de oxigênio inalatório, se necessário, e o transporte do enfermo deitado em uma maca. Nas grandes metrópoles, a partir de meados da década de 1970, a companhia telefônica estatal passou a disponibilizar o número 192 para que a população o usasse no acionamento dos serviços de ambulância, assim como o 190 para chamar a policia, e o 193 para chamar os bombeiros. • Após o SAMDU, somente em 1986 é que reaparece na cidade do Rio de Janeiro um serviço de assistência pré- hospitalar organizado para tal. O chamado Grupo de Socorro de Emergência, integrado ao Corpo de Bombeiros, como ocorre em muitos outros países, era mantido com recursos do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Esse serviço optou por adotar médicos bombeiros em suas equipes de atendimento e foi direcionado especialmente aos atendimentos de casos de trauma relacionados com acidentes pessoas e de transportes em vias públicas, ocorrências já atendidas normalmente pelo Corpo de Bombeiros em suas ações de salvamento. • Um grave acidente aéreo ocorrido em março de 1989, envolvendo a queda de uma aeronave de carga Boeing 707 (voo Transbrasil 801) sobre habitações próximas à cabeceira da pista do Aeroporto Internacional de Guarulhos em São Paulo, que provocou a morte de 25 pessoas e causou ferimentos em outras 100, motivou o Governo do Estado de São Paulo a criar o Sistema de Resgate a Acidentados, também vinculado ao Corpo de Bombeiros, mas com a participação e assessoria técnica da Secretaria de Estado da Saúde e da Faculdade de Medicina da USP. • O Sistema tinha por objetivo o atendimento a vítimas de traumatismos em locais públicos e instituiu o atendimento em duas categorias de complexidade: a categoria de suporte básico de vida que seria realizada por bombeiros treinados em técnicas de socorrismo tripulando as Unidades de Resgate, ambulâncias equipadas com materiais de socorro médico básico e de salvamento; e a categoria de suporte avançado, que seria realizada por bombeiros, médicos e enfermeiros que passaram a tripular as viaturas especialmente equipadas do Corpo de Bombeiros, as unidades de suporte avançado (USA) equipadas para a realização de procedimentos cirúrgicos de urgência, cardioversão elétrica e administração de medicamentos de urgência, assim como tripular os helicópteros da Policia Militar, adaptados para o transporte de pacientes de maior gravidade que necessitassem chegar rapidamente a um hospital de maior complexidade. • Na mesma época e com uma estrutura Atendimento ao Trauma e Emergência, também com a participação conjunta do Corpo de Bombeiros e da Secretaria da Saúde, empregando médicos e enfermeiros e criando as primeiras centrais de regulação médica de urgência. Este padrão de atendimento pré-hospitalar adotado em São Paulo e no Paraná acabou sendo adotado pela malo ria dos Corpos de Bombeiros estaduais do pais, acionados através das centrais de bombeiros 193. Este atendimento contava com o financiamento do SUS, que remunera os atendimentos através de sua tabela de procedimentos na categoria preá hospitalar básico (feita por técnicos) e avançado (com a presença de médicos e enfermeiros). Este modelo se mostrou bastante eficiente no parâmetro chamado "tempo resposta", ou seja, a velocidade do envio do recurso após o recebimento da chamada de socorro, pois incorporou as características de prontidão e de rapidez típicas das atividades dos bombeiros. No entanto, no aspecto administrativo e técnico, por ter sido criado em uma instituição não integrada ao Sistema Único de Saúde, distanciou-se e evoluiu independentemente do sistema hospitalar de emergência e da rede de atendimento, sem a desejável integração entre o serviço pré-hospitalar e o hospitalar. • Em 1992, na Cidade de São Paulo, a antiga central municipal de ambulâncias passou a atuar como um serviço pré-hospitalar organizado, adotando técnicas e protocolos de intervenção para as variadas situações de urgência clinicas, traumáticas, obstétricas ou psiquiátricas, com profissionais de enfermagem e médicos. Acionado por uma central 192 distinta, o chamado serviço APH-192 funcionou concomitantemente com o Serviço de Resgate do Corpo de Bombeiros, mas atendendo principalmente as ocorrências de origem não traumática, pacientes em domicilio e doentes crónicos agudizados, não atendidos pelo "Sistema de Resgate" dos bombeiros. A existência de dois serviços públicos de atendimento pre hospitalar concomitantes separados e independentes, com dois números diferentes de acionamento (192 e 193) evidenciou a fragmentação e a desorganização da rede de serviços do sistema nacional de saúde, fenômeno que infelizmente persiste até os dias atuais. Penalizado por essas contradições, coube ao usuário a necessidade de ter que memorizar dos números telefônicos de urgência distintos, além de identificar que tipo de urgência e apropriada para cada um deles ATENDIMENTO PRE-HOSPITALAR NA FRANÇA • Na década de 1990, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil e da França firmaram um convênio na área de urgência e de atendimento pre hospitalar. Através do intercambio de experiências e visitas, técnicos brasileiros da área da saúde, gestores, médicos, enfermeiros e oficiais do Corpo de Bombeiros tiveram a oportunidade de conhecer o funcionamento do sistema de emergência francês, o SAMU (Service d'Aide Médicale Urgente). O serviço francês é parte constituinte do sistema nacional de saúde da França, que padroniza o funcionamento de todos os SAMUs regionais do país. O serviço prioriza a regulação das urgências através de uma central de atendimento (acesso pelo numero 15). • Recebendo os chamados da população nestas centrais, médicos reguladores com formação em emergência entrevistam o solicitante e, com base nas informações obtidas, determinam que tipo de atendimento ou quais orientações serão oferecidas. Para isso, o médico regulador dispõe de várias modalidades de atendimento de complexidades distintas, as utilizando conforme a gravidade e necessidade de cada caso. Ele pode enviar desde carros leves de transporte, uma espécie de táxi sanitário, uma visita médica domiciliar, ambulâncias simples para transporte ate equipes de reanimação com médico e enfermeiro em ambulâncias UTIS, as chamadas unidades de reanimação "SMUR". Além de controlar os serviços de atendimento pré- hospitalar, a central de operações do SAMU também controla as salas de emergência dos hospitais públicos de urgência, com as quais mantém contato e supervisão permanentes. As redes de hospitais públicos também pertencem ao Sistema Nacional de Saúde. Esta estrutura organizacional adotada resultou na racionalização do uso dos recursos disponíveis e em grande eficiência, beneficiando tanto o sistema como o seu usuário. • Curiosamente, ao contrario da experiência brasileira, como verificaremos a seguir, o SAMU francês só realiza com seus recursos próprios os atendimentos pré hospitalares de alta complexidade. Para os atendimentos de menor gravidade e menos complexos, que não necessitam de intervenção de uma equipe médica de reanimação, o SAMU contrata e utiliza os recursos de diversas organizações disponíveis, como o Corpo de Bombeiros, a Cruz Vermelha e empresas privadas prestadoras de serviços. Chamado também de "medicalizado" em oposição aos serviços dos países de língua inglesa, este é o tipo de organização predominante no sistema de saúde da Europa Continental SAMU NACIONAL • Por iniciativa do Ministério da Saúde, em 2002 foi publicada a Portaria GM n. 2048, que teve como objetivo organizaro sistema de atendimento às urgências e emergências no âmbito do SUS e que, para tanto, entre outras medidas, previa a criação de um sistema de atendimento pré-hospitalar em caráter nacional (BRASIL, 2002). • Em 2003, influenciado pela experiência francesa, foi criado o SAMU Nacional Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Genuinamente um serviço de atendimento pré-hospitalar de abrangência universal sem segregação de etiologias ou de origem, sejam clinicas, traumáticas, obstétricas e psiquiátricas, estando em locais públicos ou privados, independentemente de serem em domicílios, comércios, empresas, praças públicas etc. (BRASIL, 2003). • Inicialmente foi um plantado na cidade de São Paulo utilizando a estrutura já existente do serviço municipal denominado até então APH 192, coma previsão de que gradualmente, como realmente ocorreu, se expandisse para todo o território nacional. Inspirado no modelo francês, compreendeu a importância da regulação médica das urgências como um dos componentes fundamentais de um serviço de atendimento. A regulação está baseada na premissa de que os meios disponíveis: ambulâncias, equipes de atendimento e serviços de emergência são limitados e de que devem ser empregados com critérios médicos precisos, fundamentados por princípios éticos e científicos, garantindo que as necessidades maiores e mais urgentes sejam priorizadas e atendidas. • Para a implantação do programa SAMU, o Ministério da Saúde garantiu sem ônus ao município, estado ou consórcio intermunicipal que aderissem ao programa, o fornecimento dos veículos ambulância com seus equipamentos de uso permanente, as orientações e bases técnicas, assessoria permanente e custeio parcial para a implantação e manutenção do serviço baseado no número de ambulâncias operantes. Foi feito um cálculo estimado de custos de manutenção do serviço pelo próprio Ministério, que se dispôs a financiar 50% deste valor mediante a apresentação de planilhas de produtividade. Por sua vez, cabia ao município que adotasse o programa, o custeio da folha de pagamentos, do material de consumo, insumos, da manutenção dos veículos e dos equipamentos, além de dispor das áreas físicas para a instalação da Central de Regulação, e para as bases de atendimento onde as equipes das ambulâncias deveriam permanecer aguardando os chamados de atendimento triados e priorizados pela Central de Regulação. • Segundo previsão do Ministério, o custo adicional não coberto pelo Governo Federal deveria ser dividido entre o Município e o Estado. Percebeu-se que mais do que um programa de distribuição de ambulâncias, o Ministério da Saúde se preocupou em criar um serviço com um bom desfeixo técnico cientifico, inserido e integrado ao Sistema de Saúde, que comprometesse os vários entes federativos (União, estados e municípios) e que não pudesse ser identificado como uma ação politica passageira vinculada a uma determinada administração ou partido politico. • Apesar das boas intenções do Governo Federal diversas dificuldades surgiram na gestão dos vários SAMUs do Brasil, decorrentes de falhas ocorridas na implantação do programa. Chamo a atenção para o fato de que o Ministério da Saúde estimou os custos do programa antes da implantação dos serviços, sem diferenciar as singularidades de cada município e região. Pouco se sabe sobre quais foram os critérios utilizados nesta estimativa. Além disto, o Ministério da Saúde envolveu outros dois entes federativos distintos e autónomos, o Estado e o Município, e determinou de forma autocrática de que forma eles deveriam participar do custeio do programa. • Como já era esperado, coube aos municípios que adotaram a programa SAMU arcar com a maior parte das despesas, muito maiores do que as estimadas inicialmente pelo Governo Federal. Como exemplo, no Estado de São Paulo, o mais rico e populoso do Brasil o governo estadual não apoiou a adoção do programa SAMU e se recusou a participar do custeio com os municípios que o adotaram, possivelmente motivado mais por questões políticas do que por questões técnicas ou financeiras, apesar dos argumentos e justificativas em contrário. Assim os municípios do estado de São Paulo tiveram que bancar sozinhos os custos do programa não cobertos pelo Ministério da Saúde • Mais uma distorção apresentada o correu no calculo do número de equipes de socorro previstas para atender à demanda. O cálculo foi baseado unicamente em quocientes populacional padronizados, sem levar em consideração os estudos de prevalência de morbidades específicos de cada região, equipamentos de saúde instalados, assim como suas características demográficas e geográficas. Utilizou-se, inclusive, o mesmo quociente tanto para as pequenas e medias cidades como para as áreas metropolitanas, ou seja uma unidade de suporte básico de vida para cada 100 a 150 mil habitantes, e uma unidade de suporte avançado de vida para cada 400 a 450 mil habitantes. • As Centrais de Regulação Médica do SAMU 192, por meio do poder de autoridade sanitária delegada aos médicos reguladores, deveriam ser a ferramenta principal na organização e supervisão de todo o sistema de urgência de sua região, assim como ocorre no modelo francês. No entanto, principalmente nos grandes centros urbanos, falhou, pois não dispõe de meios para controlar ou interferir no que ocorre nos serviços de emergência, sejam hospitais ou prontos socorros, apesar da pretensão inicial do programa. • Estes funcionam de forma autónoma, não integrada e sem uma coordenação única efetiva. Compreendem serviços pertencentes ou vinculados a diversas entidades, sejam municipais, estaduais, universitários ou privados, que normalmente respondem apenas às suas chefias e que se apresentam como prestadores autónomos de serviços, em vez de integrantes de um serviço nacional de saúde integrado e hierarquizado, situação recentemente agravada pela tendência de privatização das administrações e pela contratação de serviços privados. Este processo perpetuou a fragmentação e a desorganização dos sistemas de saúde, situação comumente encontrada no Sistema Único de Saúde, e, em especial, na área critica das emergências • Por fim, ao se implantar o programa SAMU, não houve simultaneamente a adequação da rede de serviços que passaria a receber os pacientes levados pelo SAMU. O programa de implantação das Unidades de Pronto Atendimento (UPA), as unidades de atendimento pré-hospitalar fixas previstas na Portaria n. 2.048 de 2002, só viria a ser adotado quase 10 anos de pois da criação do SAMU, mantendo, no entanto, o mesmo modelo de baixa capacidade resolutiva dos antigos prontos-socorros isolados dos anos 1960 e 1970. • Deve-se reconhecer que o programa SAMU teve o mérito de conseguir se expandir rapidamente pelo pais e atende a uma real necessidade, principalmente em locas isolados e com poucos recursos. Assim como são poucos os serviços de emergência médica bem estruturados, também não há serviços de bombeiros em todas as localidades do pais. Nestes casos, o SAMU representa para muitos a única esperança de acesso a algum atendimento médico por meio de um transporte em condições bastante razoáveis. É de conhecimento geral que a rede de emergência que presta serviço ao SUS é subdimensionada, está superlotada de pacientes, e não possui recursos materiais e humanos em quantidade e qualidade suficientes. Trata-se de um modelo de assistência de baixa complexidade e resolutividade, não afinado com os avanços técnicos e científicos da medicina de urgência. Não se pode ignorar que a medicina moderna, sob influencia da indústria de equipamentos diagnósticos, evoluiu para um alto grau de complexidade técnica, associado a um grande aumento de custos e que o sistema nacional de saúde (SUS) com acesso universal, que deve garantir atendimento integral sem limites técnicos definidos, para uma população de mais de 200 milhões de habitantes, mas com um financiamento absolutamente restrito, tem grande dificuldade em satisfazer as expectativas da sociedade
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