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Estudo Bíblico Gênero Apocalíptico Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Anderson Oliveira Lima Revisão Textual: Prof.ª Esp. Kelciane da Rocha Campos Introdução à Apocalíptica • Introdução; • No Princípio era a Profecia; • Os Horizontes se Ampliam. • Introduzir o estudo da literatura bíblica apocalíptica; • Oferecer um panorama histórico para entender o surgimento da apocalíptica; • Discutir questões de gênero estudando as características dos livros proféticos. OBJETIVOS DE APRENDIZADO Introdução à Apocalíptica Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Introdução à Apocalíptica Contextualização Abriremos, com estas páginas, a disciplina Estudos Bíblicos: Gênero Apoca- líptico. A proposta inicial da disciplina (dentro do curso de Teologia) é o estudo da apocalíptica bíblica, isto é, das porções textuais preservadas no cânone cristão que lidam com a tradição apocalíptica. Todavia, se temos a pretensão de estudar o “gênero apocalíptico”, então teremos que ampliar razoavelmente nossos horizontes e dirigir nossos olhos para além da literatura bíblica, passando brevemente por questões sobre a história de Israel e sobre algumas produções textuais apócrifas que são determinantes na compreensão do tema. Convidamos você, nosso(a) leitor(a) e estudante, a empreender sua própria via- gem pelos curiosos estudos da apocalíptica judaico-cristã; esperamos que o mate- rial que vamos oferecer o(a) auxilie nessa aventura. Reservamos as primeiras unidades para as questões introdutórias, para as localiza- ções históricas, para o estudo das características e evolução do gênero, assim como para a apresentação de uma bibliografia básica, que você poderá ler paralelamente (ou após o curso) em busca de informações mais detalhadas. Durante essa curiosa viagem, aproveite o conteúdo e a paisagem, isto é, preste atenção ao texto que escrevemos e às imagens compartilhadas em seu meio. Estas imagens foram produzidas a partir do imaginário apocalíptico e refletem a riqueza dessa antiga tradição para a cultura cristã. De fato, a plurissignificação, que é própria dos obscuros símbolos apocalípticos, impulsionou a imaginação humana, deu motivos à arte cristã e gerou grande número de obras curiosas que ainda nos cativam e encontram relevância. Com tudo isso, esperamos que você aproveite bem a disciplina Estudos Bíblicos: Gênero Apocalíptico. Primeiro para ler melhor sua Bíblia (não apenas o Apocalipse de João, mas muitas outras porções textuais que foram escritas mantendo uma relação estreita com a apocalíptica e que hoje ligam-se a esta tradição intertextualmente). Depois, desejamos que você adquira conhecimento sobre a apocalíptica em geral e possa avaliar a produção cristã subsequente e a marcante influência da apocalíptica antiga na cultura ocidental de todas as épocas. Pode parecer exagero, mas a compreensão da apocalíptica judaica ainda nos oferece ferramentas interessantes para o diálogo com a cultura em geral. 8 9 Introdução A apocalíptica é um termo abrangente que empregamos para nos referir a diferentes coisas: • Há uma literatura apocalíptica, um gênero apocalíptico, um estilo de texto que se tornou comum entre judeus antigos e que nós conhecemos através da Bíblia (especialmente por meio dos livros de Daniel e do Apocalipse de João) e de vários outros textos apócrifos; • Conhecemos também usos mais genéricos para o termo apocalíptica; e le pode ser empregado para tratar de uma visão de mundo, de um imaginário religioso que, sob influência de tradições mitológicas de outros povos do Antigo Oriente, se desenvolveu no meio do judaísmo a partir do período pós- -exílico e formatou consideravelmente a linguagem religiosa e revolucionária dos antigos judeus; • Também falamos (no senso comum) d e apocalíptica quando queremos falar sobre uma coleção de motivos escatológicos que ainda sobrevivem na cultura ocidental através de diferentes manifestações artísticas e religiosas. Neste caso, o uso é mais impreciso; expressões como “é o apocalipse!” devem ser entendidas como “é o fim do mundo!”. Aprofundemo-nos momentaneamente na problemática que envolve essa nomenclatura lendo algumas palavras de John J. Collins: As pesquisas acadêmicas mais recentes abandonaram o uso do termo “apo- calíptica” como um substantivo e fazem distinção entre apocalipse como um gênero literário, apocalipsismo como uma ideologia social e escatologia apocalíptica como um conjunto de ideias e motivos literários que também podem ser encontrados em outros gêneros literários e contextos sociais. (COLLINS, 2010, p. 18) Não seremos, durante este curso, tão rigorosos na aplicação dessas variações; principalmente porque nosso principal interesse se concentrará, ao longo de toda a disciplina, na literatura. A apocalíptica, seja ela entendida como um gênero, como um padrão regulador de certa produção literária ou como visão de mundo, nasceu no seio do judaísmo e foi determinante para o desenvolvimento do cristianismo desde suas origens. De fato, ainda hoje a presença dos elementos apocalípticos é marcante no imaginário cristão e, de maneira recorrente, os encontramos nos livros, nos cânticos, nos filmes, nos quadros, nos vitrais etc., especialmente quando estes tratam de temas como fim do mundo ou juízo final. 9 UNIDADE Introdução à Apocalíptica Paulo A. de Souza Nogueira abriu seu livro de caráter introdutório, O que é Apocalipse, perguntando ao leitor: Quais as imagens que nos vêm à mente quando ouvimos a palavra “apocalip- se”? Imagens de catástrofe, destruição, horror, caos? Mesmo as pessoas não religiosas vão associar a palavra a acontecimentos trágicos, sejam de ordem ecológica, bélica, social, etc. [...] tudo se resume nesta expressão de descon- forto, na sensação de que as coisas caminham para o colapso. Sentimos que vivemos em tempos apocalípticos. (NOGUEIRA, 2008, p. 7-10) Mas, será que esse imaginário pessimista, catastrófico, caótico define bem o que é a tradição apocalíptica? Quanto desse imaginário moderno advém dos documentos bíblicos (e seus contemporâneos não canônicos) e quanto nasceu depois, no cristianismo medieval e na exploração cinematográfica hollywoodianado tema, por exemplo? Por ora, uma informação fundamental precisa ser compartilhada com a finalidade de dirimir dúvidas e evitar futuras confusões: o termo Apocalipse surgiu bem depois que o imaginário apocalíptico foi desenvolvido e os livros que a registraram foram escritos. Provavelmente, os antigos autores que nós chamamos de apocalípticos se denominariam apenas profetas. Foi por influência do livro neotestamentário que chamamos de Apocalipse de João, escrito entre o final do primeiro e início do segundo séculos d.C., que o termo apocalipse passou a nomear todo um gênero e uma cultura religiosa. Apocalipse é a primeira palavra do livro em seu idioma original, o grego (apokálypsis), e significa revelação, motivo pelo qual podemos dizer que a primeira característica dos textos apocalípticos é que eles se apresentam como “escritos de revelação” (NOGUEIRA, 2008, p. 11-13). O Apocalipse de João foi o único texto escrito consistentemente a partir dos padrões bem conhecidos da literatura apocalíptica que foi selecionado para compor o cânone do Novo Testamento (não sem ter gerado inúmeras controvérsias sobre sua aceitação), e isso nos dá uma falsa ideia sobre quão difundido foi o gênero apocalíptico. O leitor da Bíblia costuma vê-lo como um documento único e exótico, pelo menos até descobrir que existiram muitos outros textos semelhantes antes dele (tais como os livros de Enoque, o Apocalipse de Abraão, 4Esdras e A ascenção de Isaías). Todavia, pela repercussão do Apocalipse de João na história do cristianismo, ele se tornou o mais famoso dos livros apocalípticos e suscitou, posteriormente, o interesse dos estudiosos pela literatura apocalíptica extracanônica. 10 11 Figura 1 – Hieronymus Bosch, Last Judgment Triptych, 1504-1508 Fonte: Wikimedia Commons 11 UNIDADE Introdução à Apocalíptica No Princípio era a Profecia Conhecemos a apocalítica como sendo um fenômeno da cultura, da literatura e da religião dos judeus. No entanto, é bastante evidente que essa apocalíptica (em suas múltiplas manifestações) se desenvolveu a partir de sincretismos, do contato entre judeus e outros povos, outras culturas, outras religiões e suas mitologias. Para sermos mais exatos, no Antigo Oriente os judeus fizeram contato (por motivos diversos) com culturas mesopotâmicas, com os persas, com os egípcios, com os helenistas etc., e isso deixou marcas significativas na cultura dos judeus e, como não poderia deixar de ser, na literatura bíblica produzida no período. Importante! O Exílio dos judeus, também chamado de Cativeiro Babilônico, teve início quando o império babilônico, sob comando de Nabucodonosor II, invadiu o Reino de Judá e depor- tou parte da elite dos judeus para a Babilônia em 609 a.C. Uma segunda leva de depor- tados partiu de Jerusalém (cidade que ficou devastada) rumo à Babilônia em 589 a.C. O tempo de Exílio só teve fim quando a Babilônia foi conquistada pelo império persa e seu governante, Ciro, autorizou o retorno voluntário dos judeus para suas terras entre 538 e 537 a.C. É sabido, todavia, que boa parte dos judeus já estava habituado a à vida em terras estrangeiras; muitos deles, nascidos e criados fora de Israel, não quiseram re- tornar às ruínas do antigo reino de Judá. Isso foi um passo significativo no desenvolvi- mento de comunidades judaicas na diáspora, isto é, comunidades que se estabeleceram não só na Babilônia, mas em diversas localidades e preservaram a cultura judaica em diálogo com as culturas locais. Você Sabia? Figura 2 – Profeta Ezequiel, 1886 Fonte: jw.org 12 13 Por algum tempo, os pesquisadores insistiram em vincular a apocalíptica judaica apenas às tradições bíblicas, alegando que bastava descrevê-la como uma espécie de evolução da profecia do Antigo Testamento. Todavia, esse tipo de trabalho se mostrou limitado, fruto de um preconceito teológico que queria vincular os textos apocalípticos à tradição escritural canônica por temer as consequências de se admitir que a apocalíptica descendia de culturas pagãs: Se "apocalítica" é cria da profecia, ela é legítima; se for importação da Pérsia, não é autenticamente bíblica. Essa lógica é patentemente defeituosa. As fontes a partir das quais se desenvolvem ideias não determinam o valor inerente dessas ideias. Muitas das ideias bíblicas centrais, de qualquer modo, foram adaptadas da mitologia dos canaanitas e de outros povos do Oriente Próximo. (COLLINS, 2010, p. 44.) Embora atualmente não se duvide da maciça presença estrangeira na composi- ção do imaginário apocalíptico judaico, não é fácil identificar os elementos da lite- ratura apocalíptica que são oriundos dessas culturas. Quando se examina a heran- ça textual dos mencionados povos, encontram-se muitos manuscritos, fragmentos, excertos..., mas não há um apocalipse propriamente dito. Isso demonstra que os judeus se apropriaram de elementos diversos para compor, partindo de suas próprias tradições literárias e religiosas, o gênero apocalíptico que conhecemos (NISSINEN; SCHIPPER, 2009, p. 318-321). Ou seja, não se trata de uma simples adoção, mas de uma apropriação complexa que se dá através de um processo dialógico, de negociações e criações informes que, ao final de um longo processo, dão origem a uma coisa nova. A apocalíptica, portanto, preserva muitos traços que permitem aos pesquisadores rastrearem suas múltiplas heranças, mas essa clara relação de dependência intertextual não vai além disso, pois ao final será preciso admitir que os apocalipses são produções originais, criação dos judeus. Apesar de tudo o que foi dito, não negaremos que a fonte mais evidente para compreender as origens da apocalíptica judaica é a profecia bíblica. Seria bom poder estudar os fragmentos míticos deixados por cananeus, persas, egípcios etc., mas esse é um trabalho que cabe a especialistas em línguas mortas que se dispõem a manusear (geralmente por toda a vida) antigos documentos epigráficos. De nossa parte, nos contentaremos com algumas poucas observações nesse sentido e nos concentraremos no caminho mais simples, que é o estudo dos materiais do próprio Antigo Testamento. Os textos proféticos mais antigos do cânone bíblico, fragmentos pré-exílicos, preservaram algo do pensamento de homens como Amós, uma espécie de vidente que observava com atenção os rumos da política internacional, os avanços dos grandes impérios, os abusos da monarquia local, as injustiças praticadas dentro de Israel e interpretava todas essas coisas a partir de um olhar teológico (LIMA, 2018, p. 820-824). A profecia, noutras palavras, apresentava os diagnósticos dos profetas, as leituras teológicas dos fatos, as supostas opiniões da divindade sobre os eventos recentes e as expectativas relativas ao futuro da nação. 13 UNIDADE Introdução à Apocalíptica Assumindo o papel de arautos visionários, os profetas explicaram a seu modo o fracasso de Israel como nação e a queda desse povo – que se julgava escolhido de Deus – nas mãos dos poderes estrangeiros e idólatras. Hoje, provavelmente explicaríamos os mesmos eventos usando outros termos: falaríamos do grande poderio militar daqueles impérios emergentes, trataríamos dos interesses ligados às rotas economicamente importantes do comércio entre regiões, falaríamos de alianças políticas internacionais etc. Mas os profetas, de um modo bem apropriado para seu tempo, interpretavam os acontecimentos históricos preferencialmente a partir da fé e das opiniões que tinham sobre o seu Deus, seus valores, seus interesses, seus planos. Observemos que, nas páginas bíblicas, os profetas não costumavam se ocupar de questões pessoais, dos pecados particulares de pessoas comuns, dos erros morais de pequenos camponeses que viviam em suas modestas comunidades agrícolas. O profeta bíblico se ocupava, isto sim, dos erros cujos efeitos eram macroestruturais, pecados que teriam influências sobre os interesses de toda a nação. Engana-nos, neste sentido, a relação dos profetas com os reis de Israel e Judá,que eram observados e julgados moralmente pelos profetas que estavam a seu redor. Entretanto, convém lembrar que o rei era ungido, eleito por Deus para reger a nação, assim os seus pecados não tinham consequências apenas pessoais, mas nacionais. Os profetas eram considerados responsáveis pelo controle religioso, pela erradicação da idolatria, pela intercessão pelo povo... Por isso, eles se preocupavam de maneira especial com a conduta moral de seus monarcas e eram incitados por Deus a chamar-lhes a atenção sempre que necessário, convocando-lhes à imediata conversão. Ex pl or Antes de seguirmos, vale a pena enumerar algumas das características mais marcantes da profecia bíblica típica do período pré-exílico para fins didáticos e para que, depois, compreendamos a dimensão das transformações ocasio- nadas pelo período exílico e pelo surgimento gradual da apocalíptica judaica (LIMA, 2011, p. 83-86): 1. A profecia era essencialmente local: Geralmente trata dos problemas do país em que reside o profeta e quase nunca se ocupa com o destino do planeta, do universo ou da raça humana como um todo. Como escreveu Milton Schwantes, “a profecia tem hora e lugar, não sendo doutrinária ou eternizante, mas concreta e temporal” (SCHWANTES, 1982, p. 115). 2. A profecia nasceu da oralidade: O profeta anunciava as visões e oráculos recebidos misticamente por meio da palavra, isto é, oralmente, e tinha como destinatário um único povo ou um grupo ainda mais específico de pessoas. Se temos parte de discursos proféticos escritos, isso se deve em grande parte à iniciativa de escribas que atuaram após a atuação do profeta, à memória coletiva de pessoas que ficaram comovidas pela mensagem e cuidaram de preservá-la. Noutras palavras, os profetas mais antigos não eram escritores. 14 15 3. A profecia tratava de questões de caráter social, econômico, político e religioso. Isto é, ela lidava com a pobreza, com a violência, com a injustiça, com os impostos, com a idolatria, com as alianças entre reis locais e povos estrangeiros etc. Com base no caráter de Deus (teologicamente concebido), os profetas bíblicos previram suas ações, imaginaram que, diante das circunstâncias, o Senhor interviria na história para alterar o rumo dos acontecimentos e punir os culpados pelos desajustes nacionais. E a profecia foi assim até que o exílio provocou enormes convulsões no modo como os descendentes de Abraão viam as coisas. Jonas prega em Nínive, 1886: http://bit.ly/2U07bYW Ex pl or Os Horizontes se Ampliam No exílio, diante da derrota, da destruição de suas cidades e templos, os judeus precisaram rever suas alternativas, tanto em sentido teológico (para a manutenção da fé), quanto para a própria sobrevivência. Os profetas não desapareceram, eles se adaptaram; e quando tomaram novamente a palavra, o que ofereceram foram novas perspectivas sobre o futuro dos judeus. Aqueles visionários que eram antes acusadores determinados, anunciadores de catástrofes, agora anunciavam a miseri- córdia divina, o fim da opressão estrangeira, o retorno dos exilados para sua terra natal, a reconstrução de seus lugares sagrados, a restauração de sua dignidade e orgulho e a restauração da identidade nacional. A primeira mudança, portanto, foi temática; e isso se deve à necessidade de reconstrução da teologia em conformida- de com as novas circunstâncias empíricas. Importante! O discurso profético sofreu modificações por conta do exílio e um bom número de elementos inéditos passou a caracterizar uma nova fase na história dessa profecia. E aconteceu assim por duas razões: primeiro, porque a profecia, que como vimos tinha os seus pés bem fincados no solo e na história política da nação, precisou adaptar seus temas às novas circunstâncias; e em segundo lugar, a transição se dá porque até mesmo os profetas foram transformados pelas influências advindas das culturas estrangeiras com as quais os judeus foram forçosamente postos em contato. Trocando ideias... 15 UNIDADE Introdução à Apocalíptica Uma das primeiras novidades no pensamento religioso judeu se dá na ampliação dos horizontes abrangidos pela profecia. A partir desse momento, o mundo fica maior e todas as regiões conhecidas do globo, e depois do cosmo, passam a ser alvos dos discursos proféticos. Ou seja, o universo passa a ser o cenário dos eventos. Lembre-se de que, estando agora sob o domínio de grandiosos impérios, o profeta do exílio e pós-exílio não poderia mais ir à frente de um acessível palácio para apontar seu dedo e acusar um monarca local pelos crimes cometidos contra o povo. O opressor/dominador agora habitava um local distante e impenetrável, falava uma língua que não compreendiam, parecia dominar o mundo inteiro e afrontava toda a tradição religiosa judaica por imperar enquanto adorava outros deuses. Para derrubá-lo, Deus teria que agir de modo mais radical, teria que abalar as estruturas de todo o cosmo. Transcreveremos, a seguir, algumas linhas do livro do profeta Isaías, linhas que os estudiosos datam como tendo sido escritas durante ou após o exílio, e que servem como exemplo de que a profecia começava a sofrer mudanças em seus horizontes: (1) Eis que o SENHOR esvazia a terra, e a desola, e transtorna a sua superfície, e dispersa os seus moradores. (2) E o que suceder ao povo sucederá ao sacerdote; ao servo, como ao seu senhor; à serva, como à sua senhora; ao comprador, como ao vendedor; ao que empresta, como ao que toma emprestado; ao que dá usura, como ao que paga usura (3) De todo se esvaziará a terra e de todo será saqueada, porque o SENHOR pronunciou esta palavra. (ISAÍAS 24.1-3) Note-se como o texto bíblico lido não faz distinção entre justos e injustos no que diz respeito às consequências do juízo divino. Veja que o alcance dos atos de Deus se estende por toda a terra, a qual será completamente devastada. Esse traço claramente escatológico não é, definitivamente, algo que possamos atribuir a uma profecia nos termos de Amós e Oséias (tampouco é uma profecia do primeiro Isaías do século VIII a.C.) (LIMA, 2011, p. 87-88). Na apocalíptica, sabemos bem, os astros costumam ser abalados, os elementos se misturam e nesse caos as vidas humanas são ceifadas. Desse modo, pode-se dizer que as transformações que os novos profetas (que depois serão chamados de apocalípticos) anseiam é geral. De certo modo, a esperança abandona a terra, a política, os sacrifícios, a Lei e é transferida à ideia de que haverá uma nova criação (GUNNEWEG, 2005, p. 338). A literatura apocalíptica, portanto, envolverá eventos históricos com expec- tativas escatológicas, relacionará passado, presente e futuro, o mundo de cá e o mundo de lá. É preciso saber fazer distinção entre esses dados para bem avaliar a leitura que, nos apocalipses, se faz dos eventos históricos e poder mensurar a presença de um imaginário religioso e de uma linguagem escatoló- gica que guia as esperanças apocalípticas. 16 17 Figura 3 – Jan van Eyck, Last Judgment, 1420-1425 Fonte: Wikimedia Commons 17 UNIDADE Introdução à Apocalíptica Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros O que é Apocalipse NOGUEIRA, P. O que é apocalipse (Coleção primeiros passos, 333). São Paulo: Brasiliense, 2008. A Imaginação Apocalítica: Uma Introdução à Literatura Apocalíptica Judaica COLLINS, J. J. A Imaginação Apocalítica: Uma Introdução à Literatura Apocalíptica Judaica. São Paulo: Paulus, 2010. O livro é uma produção densa e de muita qualidade, que certamente deve ser apontada como uma das mais significativas sobre o tema dentre as que estão publicadas no Brasil. É, para os interessados, uma obra que precisa fazer parte de sua biblioteca particular. Nesta primeira unidade, recomenda-se a leitura do capítulo 1 (O gênero apocalíptico, p. 17-73). Leitura Breve História da Profecia Bíblica A leitura do artigo completo é nossa primeira indicação àqueles que desejam se aprofundar no conteúdo da unidadee se dispõem a estudar mais para um melhor aproveitamento do curso. Você pode fazer o download do artigo no link abaixo. https://bit.ly/2GWBYkT Oracula O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo possui um periódico especializado em estudos do cristianismo primitivo que, desde 2005, dá ênfase aos estudos ligados à apocalíptica. Trata-se da Revista Orácula, produção do grupo de pesquisas de mesmo nome, coordenado pelo prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira. https://bit.ly/2DN0qo8 18 19 Referências COLLINS, J. J. A Imaginação Apocalítica: Uma Introdução à Literatura Apocalíptica Judaica. São Paulo: Paulus, 2010. GUNNEWEG, A. H. J. Teologia Bíblica do Antigo Testamento: Uma História da Religião de Israel na Perspectiva BÍblico-Teológica. Bão Paulo: Vida Nova, 2005. LIMA, A. O. Breve História da Profecia Bíblica. Ciberteologia, ano VII, n. 33, p. 79-94, 2011. LIMA, A. O. Introdução ao livro de Amós. In: Bíblia Tradução Brasileira – Introduções acadêmicas. São Paulo: Fonte Editorial/Sociedade Bíblica do Brasil. p. 820-824, 2018. NISSINEN, M.; SCHIPPER, B. U. Apocalypses and apocalyptisism - I. Ancient Near East. In. Encyclopedia of the Bible and its reception 2. Berlin/New York: Walter de Gruyter, p. 318-321, 2009. NOGUEIRA, P. O que é Apocalipse (Coleção primeiros passos, 333). São Paulo: Brasiliense, 2008. SCHWANTES, M. Profecia e Estado: Uma Proposta para a Hermenêutica Pro- fética. Estudos Teológicos. Ano 22, n. 2, São Leopoldo: Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, p. 107-145, 1982. 19
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