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Resumo completo de Vigiar e Punir (parte I e II): suplício e 
punição 
 
Este texto pretende servir como guia para quem ainda não leu ou procura orientação a 
respeito do que tratam cada item e capítulo da obra Vigiar e Punir, escrita por Michel 
Foucault e publicada, em 1975, com o título original (em francês) de Surveiller et Punir: 
Naissance de la prison. Eis que na página 23 podemos ler o propósito da obra segundo 
seu autor: “Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um 
novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o 
poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos 
e mascara sua exorbitante singularidade” (1999, p. 23). Deve-se compreender que, 
pelo termo “alma”, o filósofo não se refere ao objeto metafísico corrente no senso 
comum, porém o que poderíamos designar igualmente por “psique”, “subjetividade”, 
“personalidade”, “consciência”. 
 
Primeira parte: o suplício 
 
I. O corpo dos condenados. O autor inicia este capítulo expondo dois documentos que 
explicitam dois estilos penais diferentes. O primeiro documento é a descrição de um 
suplício, um espetáculo público bastante violento [“Finalmente foi esquartejado. Essa 
última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à 
tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não 
bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e 
retalhar-lhe as juntas” (p. 09)]; já o segundo documento descreve alguns artigos do 
código de execução penal, com toda a sua utilização fragmentária do tempo e sua 
sutileza punitiva [“Art. 17. – O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no 
inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove horas por dia em 
qualquer estação. Duas horas por dia serão consagradas ao ensino. O trabalho e o dia 
terminarão às nove horas no inverno, às oito horas no verão” (p. 10)]. Entre eles há 
um hiato surpreendente de apenas três décadas (do final do século 18 e início do século 
19). Para alguns relatos da época (e também atuais), o desaparecimento do suplício 
tem a ver com a “tomada de consciência” dos contemporâneos em prol de uma 
“humanização” das penas. Mas a mudança talvez se deva mais ao fato de que o 
assassino e o juiz trocavam de papeis no momento do suplício, o que gerava revolta e 
fomentava a violência social. Era como se a execução pública fosse “uma fornalha em 
que se acende a violência” (p. 13). Sendo assim, necessário seria criar dispositivos de 
punição através dos quais o corpo do supliciado pudesse ser escondido, escamoteado; 
excluindo-se do castigo a encenação da dor. A guilhotina já representa um avanço 
neste sentido, pois faz com que aquele que pune não encoste no corpo do que é punido. 
A partir da segunda metade do séc. 19, na mudança do suplício para a prisão, embora 
o corpo ainda estivesse presente nesta última (por ex: redução alimentar, privação 
sexual, expiação física, masmorra), é a um outro objeto principal que a punição se 
dirige, não mais ao corpo, e sim à alma. “A expiação que tripudia sobre o corpo deve 
suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, 
as disposições” (p. 18). Mesmo que não haja grande variação acerca do que proibido e 
permitido nesse período, o objeto do crime modificou-se sensivelmente. Não só o ato 
é julgado, mas todo um histórico do criminoso, “quais são as relações entre ele, seu 
passado e seu crime, e o que esperar dele no futuro” (p. 19). Assim, saberes médicos 
se acumulam aos jurídicos para justificar os mecanismos de poder não sobre o ato em 
si, mas sobre o indivíduo, sobre o que ele é. A justiça criminal se ampara em saberes 
que não são exatamente os seus e cria uma rede microfísica para se legitimar. 
 
 
II. A ostentação dos suplícios. O capítulo se inicia com a exposição de discursos oficiais 
que regiam as práticas penais de 1670 até a Revolução (Francesa, em 1789). 
Execuções eram raras, só em 10% dos casos. Mas a maioria das penas vinha 
acompanhada do suplício (pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz). O suplício 
deve marcar o condenado e por isso tem níveis e hierarquias. A morte (execução), por 
exemplo, é um suplício em que se atinge o grau máximo de sofrimento (por esta razão 
chamada de “mil mortes”). É um ritual, uma arte de fazer sofrer. E deve ser assistida 
por todos, constatada como triunfo da justiça. A determinação do grau de punição 
variava não somente conforme o crime praticado, mas também de acordo com a 
natureza das provas. Por mais grave que um crime fosse, senão houvesse provas 
contundentes, o suplício era mais brando do que aquele em que o crime era menos 
grave, mas que, por outro lado, dispunha de provas integrais sobre o delito. 
Semelhante a literatura de Kafka, o processo era feito sem o processado saber. Tal 
sigilo garantia sobretudo que a multidão não tumultuasse ou aclamasse a execução. 
Desta forma o rei mostrava que “força soberana” não pertencia à multidão, tendo em 
vista que o crime ataca, além da vítima, também o soberano. Quanto à participação do 
povo nessas cerimônias, ela era ambígua. Muitas vezes era preciso proteger o criminoso 
da ira do povo. O rei permitia um instante de violência, mas sem excessos, 
principalmente para não dar a ideia de privilégio a massa. Por outro lado, em algumas 
ocasiões o povo conseguiu até mudar a situação do suplício e suspender o poder 
soberano; em casos semelhantes, havia revolta contra sentenças de crimes menos 
graves; ou comparecia simplesmente para ouvir aquele que não tinha nada a perder 
maldizer os juízes, as leis, o poder e a religião (uma espécie de carnaval de papeis 
invertidos, em que os poderes eram ridicularizados e criminosos viravam heróis). 
 
Segunda parte: a punição 
 
I. A punição generalizada. Neste item, Foucault aborda a mudança da punição. Na 
segunda metade do séc. 18, o suplício passa a ser visto pelos reformadores com um 
perigo ao poder soberano, porque a tirania leva à revolta. Entende-se a necessidade 
de se respeitar no assassino, o mínimo, sua “humanidade”. Antes de tal mudança de 
concepção, ocorre uma transformação na qualidade dos crimes, que passam do sangue 
(agressões e homicídios) à fraude e contra a propriedade (roubos, invasões, etc.). Isto 
tem a ver, obviamente, com o processo social (econômico) que corre paralelo desde o 
século 17 (desenvolvimento da produção, aumento de riquezas, valorização moral e 
legal das propriedades privadas, novos métodos de vigilância, policiamento mais 
estreito). Então não é meramente uma questão de respeito à “humanidade” que fez 
mudar os dispositivos de punição, mas de adequação de penas aos delitos. Por 
exemplo, a justiça fica mais rigorosa em alguns casos, antecipando os crimes. O 
objetivo da reforma não é fundar um novo direito de punir mais equitativo, porém 
estabelecer uma nova distribuição para que este não fosse descontínuo ou excessivo e 
flexível em alguns pontos. A reforma não vem somente de fora, parte também de 
dentro do sistema judiciário, é certo que ela vem de filósofos, mas também de 
magistrados. Na história da França, a reforma se consolidou após a Revolução porque 
insidia diretamente sobre os pobres. Inauguram-se aí duas objetivações, do criminoso 
e do crime: o criminoso como homem da natureza que precisa de cultura, o “anormal”, 
o louco, o doente, o monstro; e a organização de campo de prevenção, constituição de 
certeza e verdade, codificação, definição dos papeis, regras de procedimento. 
 
II. A mitigação das penas. A reforma do sistema punitivo caminha em direção à noção 
de que a punição deve participar de uma mecânica perfeita em que a vantagem do 
crime se anule na desvantagem da pena; desestimulando, assim, futuros 
contraventores e, principalmente, eliminando a reincidência. Neste sentido, a punição 
não deve aparecer mais como efeito da arbitrariedadede um poder humano, mas tão 
somente consequência natural da prática criminosa. Nesse novo mecanismo, o poder 
que pune se esconde; funciona como uma tentativa de diminuir o desejo que torna o 
crime algo atraente. Por isso as penas não podem durar para sempre, elas precisam 
terminar, mostrar sua eficácia, tornando o criminoso virtuoso. É verdade que existem 
os incorrigíveis e estes devem ser eliminados, mas, para os demais, as penas só 
funcionam caso terminem. Além disso, a pena serve não apenas para o criminoso, 
porém para todos os outros; é importante que seu discurso (de eficácia) possa circular 
socialmente, se legitimando. E para que o criminoso não vire um herói como outrora, 
“só se propagarão os sinais-obstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio 
calculado do castigo” (p. 93), não mais a glória ou esperteza do contraventor. Trata-se 
de dispositivos voltados para o futuro. De agora em diante, se pune para transformar 
um culpado, não para apagar o crime. 
 
Resumo completo de Vigiar e Punir (parte III e IV): disciplina e 
prisão 
Dando continuidade ao texto anterior, este post pretende servir como guia para quem 
ainda não leu ou procura orientação a respeito do que tratam cada item e capítulo da 
obra Vigiar e Punir, escrita por Michel Foucault e publicada, em 1975, com o título 
original (em francês) de Surveiller et Punir: Naissance de la prison. 
 
Terceira parte: a disciplina 
 
I. Os corpos dóceis. Neste capítulo, talvez um dos mais conhecidos da obra, Foucault 
descreve toda a maquinaria (ou microfísica) do poder, constituída por detalhes sutis e 
invisíveis, presente nos séculos 17 e 18. Tal microfísica serve à produção de 
individualidades, ou melhor, de indivíduos que possam cumprir funções úteis, 
ajustando-se a um determinado tipo de sociedade emergente. Por exemplo, antes deste 
período, os soldados eram aqueles que já possuíam de antemão um corpo 
adequadamente predisposto para exercer seu ofício (isto é, conforme uma certa 
exigência física), agora não necessariamente. É que a partir de então o corpo torna-se 
o local de investimento de várias técnicas e mecanismos que pretendem docilizá-lo; 
tornando, assim, as pessoas tão mais úteis quanto mais obedientes e vice-versa. Para 
o autor, o homem objetificado (aquele do humanismo) pode ser inventado graças à 
descoberta da maleabilidade do corpo. Estas relações de poder seguem o mesmo 
modelo e são exercidas em diversas instituições: na escola, no hospital, na fábrica, no 
quartel; embora tenham nascido, anteriormente, nas igrejas (sobretudo em células 
monásticas). Ainda que haja um esquecimento sobre este projeto social, é possível 
compreender que ao lado do sonho de uma sociedade perfeita, utópica, saída da pena 
de filósofos e juristas, estava também, nesta época, o sonho de uma sociedade 
disciplinar. O que Foucault faz, no livro todo, é descrever este modelo e seus 
mecanismos, suas engrenagens, seus discursos e práticas, sem necessariamente 
afirmar que eles foram eficazes e que não havia resistência dos sujeitos (como alguns 
de seus críticos argumentaram); haja vista que uma sociedade disciplinar não é o 
mesmo que uma sociedade disciplinada, como aponta Vieira (2008, p. 11). 
 
II. Recursos para o bom adestramento. O capítulo aborda os dispositivos que se 
encarregariam da eficácia do projeto disciplinar na sociedade moderna. Entre eles está 
o modelo do acampamento militar, que é aplicado à extensão da sociedade e suas 
instituições para constituir um grande observatório, garantindo uma vigilância múltipla 
em que as técnicas de ver objetivam, na verdade, efeitos de poder sobre aqueles que 
são vistos e em que “os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre 
http://tempossafados.blogspot.com.br/2014/07/resumo-completo-de-vigiar-e-punir-parte.html
quem se aplicam” (1999, p. 143). Para a atuação de tais dispositivos de poder, há toda 
uma modificação da arquitetura, que passa a ser construída não mais para ser vista, 
mas para permitir um controle daqueles que nela estão localizados, tornando-os 
visíveis. “O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento – do muro 
espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair – começa a ser substituído 
pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das 
transparências” (p. 144). Neste cálculo de adestramento, a distribuição de tarefas de 
vigilância e a fiscalização dos funcionários que cuidam da própria instituição são partes 
importantes de um sistema que se auto-sustenta. Isto é, por mais que a instituição 
tenha um chefe ou um diretor, é o aparelho mesmo em seu funcionamento que faz 
circular o poder, incidindo de cima para baixo, mas também de baixo para cima. Além 
disso, a disciplina cria um sistema de recompensas e penalidades contínuas para 
individualizar e classificar as condutas. Este separa o mau do bom, hierarquizando os 
indivíduos. Mas seu intuito é homogeneizar, ou seja, fazer com que todos se pareçam, 
constituindo uma normalização. O funcionamento jurídico-antropológico moderno 
nasce destes mecanismos da sanção normalizadora; o poder da norma nada mais é do 
que produto das disciplinas que funcionam nas instituições deste período. Também 
integrando o conjunto de mecanismos de adestramento (a maioria ainda atuante, por 
exemplo, em escolas dos dias atuais), “o exame” reúne o saber e o poder num só 
dispositivo de maneira bastante clara, pois permite normatizar e constituir saber sobre 
o objeto. O exame possibilita escrever o indivíduo, torná-lo visível para as ciências 
clínicas. “Essa nova descritibilidade é ainda mais marcada, porquanto é estrito o 
enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão, cada 
vez mais facilmente a partir do século 18 e segundo uma via que é a dos mecanismos 
de disciplina, objeto de descrições individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição 
por escrito das existências reais não é mais um processo de heroificação; funciona 
como processo de objetivação e de sujeição. A vida cuidadosamente estudada dos 
doentes mentais ou dos delinqüentes se origina, como a crônica dos reis ou a epopéia 
dos grandes bandidos populares, de uma certa função política da escrita, mas numa 
técnica de poder totalmente diversa” (p. 159). 
 
III. O panoptismo. Este capítulo se inicia descrevendo as prescrições para uma cidade, 
do século 18, quando havia declaração de peste em seu território. Uma quarentena se 
montava: indivíduos trancados em suas casas, intendentes e “síndicos” vigiando, 
produção contínua de relatórios escritos e orais. Nesse sistema de exceção, a cada 
habitante é dada uma função, anota-se “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de 
condição” [...] “tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças, 
reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados” 
(p. 163). Se o modelo gerado pela lepra foi o Fechamento (como Foucault apresenta 
em História da Loucura na Idade Clássica), o da peste é a sociedade disciplinar. Um 
coletiviza e agrupa, outro individualiza e recorta. A figura arquitetural dessa 
composição é o “panóptico” de Jeremy Bentham. Este consiste em um anel na periferia, 
dividido em celas que, por sua vez, possuem janelas interna e externa onde a luz entra; 
e uma torre no centro, para observar as “individualidades” e fazê-las acreditarem que 
estão sendo observadas todo tempo. Tal mecanismo visa assegurar um funcionamento 
automático do poder. É interessante ressaltar que este laboratório de experiências com 
seres humanos torna o local de poder, também, uma instância de saber. Isto se aplica 
a toda a sociedade. O panóptico tem como objetivo se difundir por todo o corpo social. 
E há motivos contextuais para tal: multiplicidade dos indivíduos na explosão 
demográfica, crescimento do aparelho de produção, resposta ao sistema representativo 
(um “lócus” em meio à despersonalização do poder), formação do saber e majoraçãodo poder em processo circular do séc. 18 (por ex: hospital, escola, oficina deram 
possibilidade do surgimento da medicina clínica, psiquiatria, psicologia da criança, 
psicopedagogia, racionalização do trabalho, etc.). 
 
Quarta parte: a prisão 
 
I. Instituições completas e austeras. Aqui Foucault resume a tese principal de seu livro 
ao mostrar que antes da prisão ser inaugurada como peça das punições, ela já havia 
sido gestada na sociedade a partir do momento em que os mecanismos de poder 
repartiam, fixavam, classificavam, extraíam forças, treinavam corpos, codificavam 
comportamentos, mantinham sob visibilidade plena, constituíam sobre eles um saber 
que se acumulava e se centralizava sobre os indivíduos (p. 195). Por isso a prisão surge 
como algo inevitável, por mais que existissem outros projetos de punição de 
reformadores, por mais que ela recebesse críticas sobre sua ineficácia e seu perigo – 
desde seu nascimento. Esta instituição penal surge para ser a coação de uma educação 
total, para possuir uma disciplina onipresente a fim de transformar o indivíduo 
pervertido. Suas técnicas de poder passam principalmente pelo “isolamento” 
(sobretudo nos modelos americanos que eram baseados nos monastérios), logo, a 
“solidão”, a tentativa de “autorregulação pela reflexão” e o “trabalho” (sendo que este 
último gerou controvérsias entre os operários da época; contudo, é preciso ressaltar 
que o mesmo não visava lucro e sim o efeito sobre os corpos e as almas dos presos). 
Neste sentido, a pena é feita para ser regulada por ela mesma durante o processo de 
transformação, não havendo uma relação necessariamente direta entre crime e castigo. 
O processo de ascensão e consolidação do sistema prisional produz uma diferenciação, 
essencial, entre infrator e delinquente. Ao contrário do primeiro, este último está ligado 
ao seu crime por um feixe de relações prévias, instintos, histórico, comportamento, 
classe e etc. Embora o correlativo da justiça penal seja o infrator, o do aparelho 
penitenciário é o delinquente – unidade biográfica, núcleo de periculosidade, 
representante de um tipo de anomalia (p. 213); pode-se dizer que ele, o delinquente, 
é uma invenção do sistema penal. Aquele não existe antes deste. 
 
II. Ilegalidade e delinquência. Ainda na primeira metade do século 19, na França, a 
cadeia se misturava com a prática do suplício. A cadeia era, na verdade, um carro que 
seguia por diversas cidades levando o condenado atrelado a instrumentos de tortura. 
A multidão participava desta “festa do suplicio”, gritando e xingando, podia ser contra 
o criminoso ou contra o excesso da punição. Ao mesmo tempo em que era repudiado, 
o criminoso participava também da festa, ganhava ares de notoriedade, uma vez que 
os jornais contavam seu nome e sua história antes dele chegar à cidade. Essa festa 
reservava prazeres que nem a liberdade concedia, por exemplo, cânticos coletivos de 
uma estranha inversão do código moral (exaltação do criminoso, rebaixamento dos 
poderes constituídos). Devido a tal fato, o carro-cadeia foi substituído pela carroça 
celular, que imitava um panóptico ambulante. Pouco tempo, este deu lugar à prisão 
mais ou menos no formato em que a conhecemos hoje. Foucault ressalta que a prisão 
já apareceu cercada por críticas e desconfianças: ela não diminuía a taxa de 
criminalidade, mas aumentava; provocava reincidência (inicialmente 38% e 
aumentando); fabricava delinquentes, sobretudo por não tratá-los como seres 
humanos e abusar do poder, assim, tornando-os coléricos; havia corrupção, medo e 
incapacidade dos guardas, especialmente para manterem sua segurança; exploração 
do trabalho penal, como venda de prisioneiros como escravos; organização do crime, 
solidariedade e hierarquia entre os criminosos; as condições de identificação e vigilância 
dos ex-detentos os levavam a praticar novos crimes. Até hoje as críticas são as 
mesmas: a prisão ao tentar corrigir não pune; a prisão gasta muito para fazer um 
trabalho ineficaz. E a resposta é a mesma também: deve-se fazer exatamente o que 
está no roteiro para que a instituição seja eficaz: principio da correção; da classificação; 
da modulação das penas; do trabalho como obrigação e como direito; da educação 
penitenciária; do controle técnico da detenção; das instituições anexas. “O sistema 
carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos 
e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para 
corrigir a delinquência e mecanismos que solidificam a delinquência. O pretenso 
fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?”, questiona o autor (p. 
225). Tentando perceber algo que não é explicitamente dito, Foucault afirma que há 
uma utilidade nos fenômenos que a crítica à prisão denuncia (isto é, na manutenção 
da delinquência, indução a reincidência, transformação do infrator ocasional em 
delinquente): é que os castigos não objetivam suprimir as infrações, mas distingui-las, 
distribuí-las, utilizá-las; trata-se de uma tática geral das sujeições, visando uma 
dominação, uma administração das infrações e não exatamente um aparelho para 
tornar dóceis os que praticam os crimes. Tendo em vista o tratamento diferenciado 
(tolerância ou intolerância) aos delitos praticados por um indivíduo se pertencente a 
uma classe ou não, ou se possuidor de um determinado tipo de histórico que justificaria 
sua natureza ou não, para Foucault não há uma separação entre ilegalidades e 
legalismo, mas entre ilegalidade e delinquência. O maior objetivo da prisão foi ter 
fabricado a delinquência, fazendo-a legítima, aceita, por isso até hoje a prisão perdura. 
Concomitantemente, os jornais, os noticiários e a literatura constituíam a estética do 
crime que ajudava a legitimar a “produção da delinquência”. Mas, por outro lado, existia 
também um contra-noticiário que jogava com os fatos dos crimes, mostrando a 
devassidão e a miséria espiritual em que viviam os burgueses, colocando culpa na 
sociedade pelos desfalecidos e criminosos das classes populares. Um exemplo é o jornal 
fourierista La Phalange, que Foucault redescreve o diálogo entre um infrator de 13 anos 
e o juiz. Ali o autor quer mostrar as lutas sendo praticadas na sociedade. De alguma 
forma, se o juiz fosse o indivíduo das classes populares estaria ele sofrendo os efeitos 
do poder da classe dominante e o garoto “infrator” ocupando seu lugar. 
 
III. O carcerário. Foucault data a formação completa do sistema carcerário francês em 
1840, ano de inauguração de Mettray (instituição para detenção de jovens infratores 
condenados) ou no dia em que um menino infrator lamentou sua saída da mencionada 
colônia penal (talvez dando a prova da eficácia do sistema disciplinar que lá 
funcionava). “’A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos 
graves é punir muito severamente as mais leves faltas; em Mettray reprime-se 
qualquer palavra inútil’; a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela; 
pois ‘o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças; é aí 
principalmente que a voz da religião, mesmo se nunca houvesse falado a seu coração, 
recebe toda a sua força e emoção’; toda a instituição parapenal, que é feita para não 
ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras: ‘Deus o vê’” 
(p. 243). Este é o princípio essencial do panóptico, sentir-se vigiado mesmo quando 
ninguém está vendo, coagido a fazer o correto e seguir a norma. Em Mettray, os chefes 
e subchefes não agem como pais, juízes, professores, contramestres, mas são um 
pouco de cada um. Na expressão do autor, são ortopedistas da individualidade. 
Interessante notar que para trabalharem no local, os chefes e subchefes precisam 
dominar uma técnica disciplinar que eles apreendem quando são submetidos a um 
treinamento que consiste em fazê-los sofrer coisa semelhante aos infratores. Por fim, 
os chamados efeitos do carceráriosão os seguintes: espraiamento de poderes 
disciplinares no corpo social; recrutamento dos grandes delinqüentes e a produção 
destes; criação da legitimidade de punir e disciplinar; invenção de uma relação íntima 
entre natureza e lei, a norma; criação de um saber que objetiva o comportamento 
humano, através da observação contínua via panóptico (e de sua relação com as 
ciências humanas); isso explica sua continuidade sólida diante do pretenso fracasso da 
prisão. Contudo, e apesar de toda esta maquinaria descrita, Foucault encerra o livro 
com um texto anônimo publicado no jornal La Phalange, de 1836, para mostrar que 
estes mecanismos apresentados em Vigiar e Punir não são o funcionamento unitário de 
um aparelho (finalizado e vencedor), mas são estratégias postas em uma batalha que 
até hoje não cessou. 
 
Referências: 
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. Tradução Raquel 
Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. 
VIEIRA, P. P. Pensar diferentemente a história: o olhar genealógico de Michel 
Foucault em “Vigiar e punir”. Campinas-SP: [s.n.], 2008.