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Estudos Bíblicos: Pentateuco Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Paulo Roberto Pedrozo Rocha Revisão Textual: Profa. Ms. Natalia Conti O Pentateuco e sua História • Introdução • Como o Pentateuco Surgiu • Da Antiguidade até os Dias de Hoje: Uma História do Texto • Tradição Oral e Trabalho Escrito • A Pré-História do Texto · Apresentar o universo do Pentateuco, suas técnicas redacionais e desafios históricos para sua compreensão. O aluno é também levado a uma reflexão crítica sobre a produção do texto antigo sendo desafiado a considerar aspectos que normalmente não são mais relevantes na produção literária atual, como por exemplo, a tradição oral. OBJETIVO DE APRENDIZADO O Pentateuco e sua História Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja uma maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como o seu “momento do estudo”. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo. No material de cada Unidade, há leituras indicadas. Entre elas: artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados. Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discussão, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar, lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE O Pentateuco e sua História Introdução Seja bem-vindo(a)! Começamos aqui uma jornada muito interessante e produtiva. Na verdade, será um mergulho na história e no pensamento de gerações inteiras que compuseram uma parte significativa da teologia judaica que, anos mais tarde, influenciou muito a teologia cristã. Trata-se da história do Pentateuco. Os cinco primeiros livros da Bíblia Judaica, também da Bíblia Cristã, foram originalmente chamados de Torah, palavra hebraica que significa Lei. A palavra grega Pentateuco passou a ser usada nos primeiros séculos da Era Cristã. Os nomes de cada um dos livros do Pentateuco correspondem às palavras hebraicas que iniciam os textos. Ao contrário do que acontecia na literatura grega, em que os nomes dos textos faziam referência ao conteúdo exposto no livro, os escritos hebraicos tomavam a primeira palavra da redação como título. Veja o quadro abaixo: Tabela 1 Hebraico Latim Português Ideia Central Beresit Génesis Gênesis Começo Weelleh semot Éxodos Êxodo Êxodo, Saída Wayyqra Leuitikón Levíticos Lei Levítica Bemidbar Numeri Números Censo do Povo Elleh haddebarim Deuteronómion Deuteronômio Segunda Lei A história do Pentateuco pode ser sintetizada em algumas fases, a saber, a narrativa da criação do mundo e a história das primeiras civilizações. Neste ponto há uma centralidade no personagem de Abraão – considerado Patriarca do povo Hebreu -, para em seguida acompanhar os passos de seus descendentes, principalmente Isaque e Jacó. A escravidão no Egito e a consequente libertação do povo Hebreu, sua peregrinação no deserto e a entrada na “terra prometida” marcam a parte final da coleção dos cinco primeiros livros da Bíblia, sugerindo até mesmo que o livro de Josué pudesse ser incorporado aos livros da Lei uma vez que nele encontramos a posse definitiva da terra de Canaã. Há estudos que sugerem a existência de um Hexateuco – Gênesis a Josué; Heptateuco – Gênesis a Juízes; Octateuco – Gênesis a Samuel, e até mesmo um Eneateuco – Gênesis a Reis. 8 9 Como o Pentateuco Surgiu A princípio os livros do Pentateuco tiveram sua autoria atribuída a Moisés, líder do povo hebreu em sua escalada de libertação do Egito. Temos relato desta tradição desde o século V a.C., conforme podemos ler em textos como Malaquias 3: 22, Esdras 3: 2 e 7:6, II Crônicas 25: 4 entre outros. Na época do Novo Testamento, isto é, na formação da comunidade cristã, parece não haver dúvida que Moisés era de fato o autor dos livros de Gênesis a Deuteronômio. Assim atestam os testemunhos de Mateus 19: 7, Marcos 12: 26, João 5: 46, Atos 15: 21, Romanos 10: 5 e muitos outros textos que na Bíblia Cristã fazem referência à Lei Mosaica. Ao que parece, até o recente século XVII, a autoria de Moisés foi pouco questionada. Há registros de que Pais da Igreja, como foi o caso de Orígenes, tiveram que rebater possíveis críticas a este respeito. Também na Idade Média surgiram questionamentos, sem, contudo, apresentar grande profundidade teórica. O avanço da crítica bíblica permite saber hoje que o Pentateuco é uma obra anônima que não apresenta informação direta sobre a origem mosaica de todo o seu conteúdo. O que lemos nos livros de Gênesis a Deuteronômio dá mais ênfase ao conteúdo do que à origem dos textos. Alguns estudiosos dizem que há algumas passagens que podem ser atribuídas a Moi- sés, sem garantir completa exatidão no reconhecimento desta autoria. Dentre as pos- síveis passagens que são, com certo grau de certeza, atribuídas a Moisés se destacam: O Relato das Batalhas contra os Amalequitas – Êxodo 17: 14 O Código da Aliança – Êxodo 24: 4 O Decálogo Cultual – Êxodo 34: 27 A Lista dos Sítios dos Acampamentos – Números 33: 2 O Deuteronômio – Deuteronômio 1: 4; 4: 45; 31: 9 – 24) O Cântico de Moisés – Deuteronômio 31: 30 Como dissemos acima, a partir do século XVIII uma séria de pesquisas mostra que a maioria dos textos do Pentateuco são posteriores a Moisés. Apenas a título de curiosidade, conheça alguns destes argumentos: a) Em Gênesis 40: 15 a região de Canãa é chamada de terra dos hebreus e todas as referências geográficas são feitas a partir de quem se encontra a oeste do Rio Jordão, localização dos já assentados na terra. Neste ponto podemos conferir os textos de Gênesis 50: 10; Números 22: 1 e Deuteronômio 1: 1 a 5. 9 UNIDADE O Pentateuco e sua História b) Outro dado interessante é que alguns textos nos apresentam um autor distanciado da época de Moisés. Expressões como “até o dia de hoje” (Deuteronômio 3: 14 e 34: 6) e “não se levantou mais em Israel profeta semelhante a Moisés” (Deuteronômio 34: 10) evidenciam este distanciamento. c) Há ainda indicações de conhecimento do que aconteceria no futuro, tais como as passagens “antes que os Filhos de Israel tivessem rei” (Gênesis 36: 31), referências aos Juízes (Gênesis 14: 14 e Deuteronômio 34: 1) e até uma lei relativa à monarquia (Deuteronômio 17: 14). Figura 1 − Mapa da Palestina na Época Bíblica Fonte: jw.org O trabalho de identificação da autoria pode ser exaustivo. Para estabelecer com exatidão quem de fato escreveu uma passagem em literatura antiga precisamos considerar diversos aspectos, não somente os dados literários. É preciso levar em conta a história, as múltiplas narrativas sobre o mesmo acontecimento, os interesses e objetivos que estavam em jogo na época da redação e também aqueles interesses que guiaram a preservaçãoda tradição até os dias de hoje. Como responder então à questão da autoria? Quem teria sido o autor dos livros iniciais das versão judaico-cristã da Bíblia? Esta temática será melhor explorada a partir da Unidade III de nossa disciplina, contudo é possível adiantar que um número considerável de estudiosos do Antigo Testamento atesta a existência de Fontes originárias, espécies de coleções de manuscritos que se identificam por seu estilo, gramática e provável época de composição. 10 11 A rigor são aceitas quatro coleções distintas: Eloísta (E), Javista (J), Sacerdotal (P) e Deuteronomista (D). O que chamamos hoje de Pentateuco seria o resultado da compilação dos documentos produzidos nestas quatro coleções, chamadas de Fontes. A ordem cronológica de seu aparecimento, bem como e as características de cada uma serão estudadas a partir da terceira unidade de nossa disciplina. A estes fatores todos ainda se deve incluir um dado fundamental: a temática da inspiração dos livros sagrados. Religiosos de todas as épocas têm sido unânimes em dar grande importância a este tópico. Para eles, os textos canônicos foram inspirados por Deus, o que se constitui na principal fonte de autoridade destes mesmos textos. Contudo, a temática da inspiração é um atributo da fé. Não se trata de um dado objetivo que podemos afirmar ou tampouco contestar. Quem trabalha com a hipótese da inspiração está calcado em um dado de fé, pois se crê ou não que o próprio Deus ordenou a redação de um escrito. Infelizmente não podemos lidar com esta discussão no espaço desta disciplina. As considerações históricas que faremos no curso deste estudo em nada diminuem o atributo da fé. Quando por exemplo se afirma que a autoria do Pentateuco não pode ser indiscriminadamente atribuída a Moisés não se está negando a impor- tância deste ou a relevância sagrada do texto. O que a crítica bíblica faz é pôr em relevo aspectos objetivos que nos permitem conhecer melhor a história do texto, suas condições de composição que possibilitarão uma melhor compreensão do tema estudado. E você? O que pensa disto? O estudo científico do texto atrapalha de alguma forma sua fé na inspiração? Uma fonte de estudos muito importante neste tema pode ser encontrada em SELLIN- FOHRER. Introdução ao Antigo Testamento. Volume I. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.Ex pl or Da Antiguidade até os Dias de Hoje: Uma História do Texto Existem muitas teorias que pretendem dar conta do surgimento do texto do Pentateuco. No entanto, elas não podem ser vistas separadamente, mas sim como complemento umas das outras. Há três métodos que nos permitem considerar o surgimento do texto tal como o conhecemos na atualidade. São eles: método das adições, método complementar e o método das composições. 11 UNIDADE O Pentateuco e sua História Método das Adições Segundo este método, diferentes narrativas de um mesmo fato foram justapostas até conseguirmos o texto como temos hoje. Por exemplo, a narrativa do Dilúvio em sua composição atual, como consta em Gênesis 6 e 7), é o produto de duas narra- tivas diferentes que foram reunidas num só documento, no caso o livro do Gênesis. Como fazemos para reconhecer a existência de duas ou mais Fontes na compo- sição do mesmo texto? São observados os seguintes passos: 1. Um determinado número de textos e/ou fragmentos aparecem duas ou mais vezes com alguma alteração. Note a repetição do anúncio do Dilúvio feito em Gênesis 6: 5 a 9 e depois também no versículo 17. Há ainda um corte na história de José, pois o capítulo 37 de Gênesis começa o relato, é interrompido por referências de outro tema no capítulo 38, o tema é retomado entre 39 e 48 para ser novamente interrompido em 49 antes de sua conclusão no capítulo 50. 2. Os fragmentos paralelos apresentam algumas diferenças e até contradições, o que pode indicar que tenham origens distintas. Podemos analisar as duas histórias da Criação – Gênesis 1: 1 – 2: 4ª e 2: 4b – 25). Nelas, o estado primitivo é descrito como um mar caótico (Gênesis 1) e como uma estepe (Gênesis 2). No texto do primeiro capítulo a ordem apresentada é: plantas, animais, homem – já no segundo, a ordem observada é: homem, plantas, animais. Ainda no primeiro relato há a criação simultânea do homem e da mulher, ao passo que no segundo texto, a criação é primeiro do homem e depois da mulher. 3. Outro dado relevante para a identificação de Fontes distintas é o nome atribuído a Deus. Os escritos que são atribuídos à Fonte Javista (J) desde o início tratam a figura divina como Javé (Yahweh), apesar da designação só ser oficializada na revelação de Deus a Moisés em Êxodo 3. Já os textos derivados das Fontes Eloísta (E) e Sacerdotal (P) usam o nome Elohim (Eloim) e ainda Shadai – principalmente em P. 4. Por último, é relevante dizer que há maneiras diversas de se considerar os fatos nos textos do Pentateuco. Veja alguns exemplos. » A lista de povos de Gênesis 9: 20 a 27 se limita à região da Síria e da Palestina. Quando as duas listas são unidas em Gênesis 10 cobrem uma região mais ampla. » A distância entre Deus e o homem é vista de forma diferente. Na história de Agar (Gênesis 16) o anjo de Deus se encontra na terra, ao passo que em Gênesis 21 ele a chama do céu. Quando Abraão decide mentir sobre seu parentesco com Sara, o texto de Gênesis 12: 10, simplesmente declara a mentira de Abraão segundo a qual Sara era sua irmã. Já em Gênesis 20 esta mesma mentira é “justificada” com a explicação de que Sara era em parte irmã de Abraão. 12 13 Diante de tudo isto, a pesquisa bíblica do Pentateuco nos permite afirmar que o texto tal como hoje dispomos é o produto da elaboração de Fontes distintas e não a obra de um único redator. É ainda razoável supor que estes estratos fontes tenham sido reunidos em diversas etapas e só tardiamente tenham chegado a um resultado final. Método Complementar Além da justaposição referida na alínea anterior, precisamos considerar o chamado Método Complementar, segundo o qual as redações de um mesmo documento foram sendo paulatinamente ampliadas até se chegar à forma atual. Segundo este método, não podemos apenas considerar que o Pentateuco tenha sido fruto de uma coleção de Fontes distintas, mas também levar em conta que uma mesma Fonte, um único documento, recebeu diversas formas redacionais até alcançar seu formato literário contemporâneo. Método das Composições O terceiro e último dos métodos a ser considerado é o chamado Método das Composições, segundo o qual o processo de composição chegou ao fim, seja pelas adições de documentos diversos, seja pela ampliação de um mesmo documento como descrito acima. Qual foi o papel do redator? Como é possível estabelecer uma relação clara entre o redator da obra e o conteúdo de sua composição? É preciso não perder de vista o mencionado acerca do critério da revelação divina. Contudo, o teólogo também deve ter no horizonte a informação de que o texto escriturístico tem uma dimensão humana, e por isso racional. No que se refere especificamente ao Pentateuco, podemos afirmar que nos estratos de sua composição podem ser encontrados elementos antigos de origem popular, materiais que têm registro escrito e muitos outros oriundos da tradição oral – como veremos a seguir -, e até mesmo grandes conjuntos de sagas e demais gêneros literários. Cabe a seguir uma breve discussão a respeito da contribuição da oralidade no processo formativo do Pentateuco. Tradição Oral e Trabalho Escrito Quando falamos em textos antigos temos que levar em conta que as condições de produção destes textos se encontram bem distantes daquilo que hoje conhecemos no mundo editorial. É preciso considerar que houve grande influência da tradição oral na produção final. E isto não é um mero detalhe. Este fato causou grandes influências naquilo que consideramos o texto final. 13 UNIDADE O Pentateuco e sua História O Pentateuco, em sua origem, também sofreu esta sorte de influências. Um dadoimportante é que a tradição oral, ou seja, a transmissão feita num processo doméstico, das histórias que constituiriam mais tarde o texto do Pentateuco, continuou sua influência mesmo depois de iniciado o processo de produção literária. Alguns dados são importantes. O estudioso do Antigo Testamento Ernest Sellin observa que o oriental, de um modo geral, possui uma memória extraordinária e que mesmo na Antiguidade há registros de sua capacidade em guardar de cor trechos enormes e reproduzi-los mesmo muitos anos depois. É inegável que este dado colaborou para uma forte presença da tradição oral. Contudo, o que se pode garantir em termos de exatidão desta transmissão está somente na passagem para o texto escrito. Até então, a transmissão de uma história pode ter sido contaminada por diversos fatores, tais como domínio de vocabulário, intenções pré-estabelecidas por parte de quem contava a história e até mesmo circunstâncias da vida cotidiana que podem ter sim influenciado o processo. Um dado curioso é que no próprio texto de um dos livros que compõem o Pentateuco, o livro de Números, é possível encontrar no capítulo 21, versículo 27, uma referência à existência de narradores e cantores que divulgavam as tradições orais: “...é por esse motivo que costumam dizer os poetas...” Estes poetas eram homens e mulheres que recitavam cânticos fúnebres e transmitiam a outras pessoas os seus conhecimentos. Outra prática é ilustrativa da existência também de uma tradição literária. Na Antiguidade, havia arquivos localizados em residências privadas na Palestina, havia ainda aqueles guardados em templos mesopotâmicos. Neles, tabuinhas contendo os textos eram arrumadas por seções e por séries, em estantes de madeira ou, até mesmo, conservadas em jarros de barro. Estas tábuas eram registradas em catálogos. Assim, conviviam as tradições da oralidade e literária a um só tempo. Tudo isto pode parecer muito desafiador para um leitor dos dias atuais. Nos dias de hoje, quando alguém decide escrever um texto, como este que você está lendo, simplesmente toma assento a frente de um computador e, em uma coletânea de informações e uma ordenação de juízos, organiza o que quer dizer. O autor contemporâneo tem todas as condições de dar unicidade a seu texto e responde, de forma unívoca, pelas informações nele prestadas. Estamos insistin- do neste aspecto porque ele fará diferença em nossa compreensão do Pentateuco. Como assinalamos desde o início desta Unidade, o problema da autoria, atribuída a Moisés pela tradição, se coloca como um dos primeiros obstáculos a serem vencidos. Você pode se perguntar: por que a questão da autoria é um obstáculo a ser superado? Simplesmente porque se ajustarmos desde o início que o Pentateuco é o resultado da convivência de fontes diversas e tradições orais e escritas, teremos por certo que não devemos cobrar coerência como critério de verdade em sua composição. 14 15 Veja. Uma mesma história pode aparecer repetidas vezes e ser contada de forma diversa. O exemplo já comentado aqui é a narrativa da criação do mundo, repetida abertamente nos dois primeiros capítulos de Gênesis. Nestas histórias não há concordância de detalhes, formas textuais, nem mesmo ênfase nos mesmos aspectos redacionais. Estas duas narrativas não sobreviveriam aos critérios contemporâneos de redação. Contudo, quando tomamos por certo que os textos tiveram uma pré-história guarda- da na tradição oral, na transmissão falada de histórias e fatos, podemos entender com mais facilidade estas diferenças e não as considerar como contradições impeditivas. A Pré-História do Texto Feitas todas estas observações sobre a origem do Pentateuco, e antes de entrarmos em outros aspectos redacionais e históricos, como o faremos posteriormente, cremos serem oportunas algumas observações históricas acerca do contexto em que floresceu o texto da Torah como até aqui vimos expondo. A princípio, o lugar. A referência geográfica que aparece na quase totalidade dos textos do Pentateuco como “terra de Canãa”, é identificado pelos geógrafos como Palestina, palavra que significa “terra dos Filisteus”. Trata-se, na verdade, de uma pequena extensão de um grande conjunto geográfico, em forma de meia-lua que recebeu o nome de “Crescente Fértil”. Figura 2 Fonte: Wikimedia Commons 15 UNIDADE O Pentateuco e sua História Como se pode observar na representação acima, esta região tem a forma de um arco cujo centro se situa no deserto da Síria e ao norte do deserto da Arábia. Trata- -se de uma região irrigada por rios importantes, tais como Tigre, Eufrates, Oronte, Litani e Jordão. Segundo alguns estudiosos do período, a esta região devemos acrescentar o Vale do Rio Nilo que, embora não pertença especificamente ao território do Crescente, funciona como uma espécie de seu prolongamento. Desnecessário dizer que, numa terra cercada de desertos, uma região que possuía uma irrigação tão presente era alvo de disputa. Nesta localidade viveram importantes populações e se desenvolveram também civilizações marcantes. O Crescente Fértil não era uma civilização fechada em si mesma. A partir de suas rotas havia comunicação com a Arábia na qual era possível chegar por Damasco, com a África, através do Egito, com a Índia através da região em que hoje está o Irã e até mesmo com o Ocidente em rotas que levavam ao Chipre, Creta, Ilhas Gregas, Jônia e toda Magna Grécia. As populações que ocupam a região são em tudo heterogêneas. Trata-se de um corredor importante para o comércio e a sobrevida regional, mas os grupos étnicos que ocupam a área tendem ao isolamento a partir de sua localização. Os principais são: • Faixa Costeira: como o litoral mediterrâneo é estreito e pouco disponível para a construção de portos, observa-se uma cadeia de colunas cortadas por pequenas planícies; • Cadeia Central: região elevada, cerca de 1.000 metros, na qual se estabelecem três territórios regionais, a saber, Judéia, Samaria e Galileia; • Depressão do Vale da Galileia: ocupada pelo Vale do Jordão, o Lago da Galileia e o Mar Morto. Curioso notar que esta depressão prolonga as falhas geológicas dos grandes lagos africanos, se tornando o fosso continental mais profundo de toda a Terra. Só para se ter uma ideia, o Mar Morto está 390 metros abaixo do nível do Mediterrâneo; • Planalto Transjordaniano: se prolonga do Jordão e do Mar Morto ao sul até encontrar a região de Hermom e o caminho do Líbano ao norte. Algumas destas regiões contavam com chuvas periódicas, o que facilitava o cultivo de hortaliças e a vida animal. Quando lemos nos textos do Pentateuco referências a uma “região que mana leite e mel”, certamente há um exagero nesta designação. É que em comparação com as cidadelas desérticas do perímetro, as maiores cidades eram de fato oásis naquela paisagem. Contudo, os recursos não podiam abrigar um número muito grande de pessoas. Historiadores do período imaginam que as maiores cidades, como são os casos de Jerusalém e Samaria, dificilmente abrigavam mais do que 30.000 pessoas mesmo em seu auge. 16 17 No que diz respeito à sua origem, é difícil estabelecer dados concretos sobre o povo de Israel, que mais tarde terá nos escritos do Pentateuco a descrição de seus costumes e cultura. A hipótese mais provável dá conta de que os israelitas provavelmente são descendentes dos semitas seminômades, criadores de ovelhas, que circulavam pelo Crescente Fértil durante todo o segundo milênio. Dentre os grupos de seminômades há dois que são bem conhecidos e podem ser tomados como possíveis origens do povo hebreu. São eles os Amorreus ou Emoritas que se fixam na Mesopotâmia, na Palestina e na Síria por volta do ano 2.000 a.C., e os Arameus que se estabelecem na Síria por volta do ano 1400 a.C. O período que mais nos interessa especificamente se relaciona com o nascimento do povo de Israel. De acordo com os relatos do Pentateuco, isto se deu provavelmente a partir de 1250 a.C. durante o reinado do FaraóRamsés II. Há registros em documentos egípcios de que grupos semitas estabelecidos no Egito, que estavam submetidos a regimes de escravidão, conseguem fugir liderados por Moisés que os reagrupou ao redor do Sinai, estabelecendo traços culturais e religiosos, dentre os quais a ideia do monoteísmo. O próprio texto do Êxodo, destinado em sua maior parte a contar esta história, dá grande ênfase a este gesto fundador. Há três momentos distintos e importantes na narrativa. São eles: • A partida do Egito, conforme Êxodo capítulos 7 a 12. • A passagem do Mar, conforme Êxodo capítulos 14 e 15. • O encontro de Israel com seu Deus no Sinai, conforme Êxodo capítulos 19 a 24. A entrada das tribos na região da Palestina se dá de forma difusa. Al- gumas o fazem pelo Sul, outras pelo Leste. Em boa parte, são transposi- ções pacíficas em regiões pouco ha- bitadas. Contudo, há a necessidade de guerrear contra cidades Cananeias em alguns casos. Nesta invasão, Jo- sué, líder da tribo de Efraim desem- penhou um papel muito relevante na condição de sucessor de Moisés. Em termos escriturísticos, o livro de Jo- sué segue imediatamente os escritos do Pentateuco, como uma espécie de complemento deste. Figura 3 Fonte: Wikimedia Commons 17 UNIDADE O Pentateuco e sua História No mapa acima podemos notar a divisão territorial ocupada pelas 12 tribos de Israel, mais tarde constituintes da nação. Como foi dito acima, o território ocupado é basicamente o território do Crescente Fértil. A federação das tribos que consistirá no que chamamos de povo de Israel, aos poucos toma consistência porque precisava resistir a diversas ameaças: assaltantes nômades, reinos da Transjordânia e outras cidades cananeias. A maior ameaça vinha dos filisteus que começaram a chegar na costa da Palestina por volta do século XII a.C. Eles se apresentavam como o mais sério concorrente de Israel na posse das terras. Foi justamente a preocupação com a defesa de grupos como os filisteus que levou os líderes israelitas a cogitar a monarquia, processo que sofreu severas críticas por parte dos juízes tribais, em especial Samuel, mas que acabou vingando sob a unção de um primeiro rei, chefe de guerra, Saul. A referência à monarquia, embora esteja fora dos limites do Pentateuco é importante uma vez que a Torah não prevê o estado monárquico, fato este que irá representar uma superação de seu modelo, superação esta reconhecível em alguns aspectos redacionais, conforme veremos nas unidades seguintes. 18 19 Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Argonautas do Deserto: Análise Estrutural da Bíblia Hebraica WAJDENBAUM. Philippe. Argonautas do Deserto: análise estrutural da Bíblia Hebraica. Tradução de Elizangela A. Soares. São Paulo: Paulus, 2015. Leitura A Teoria Documentária do Pentateuco ARTUSO, Vicente. A Teoria Documentária do Pentateuco. In Atualidade Teológica (Ano XVI n.º 41). Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), 2012. https://goo.gl/mRRw8r Uma Análise Literária da Teologia do Antigo Testamento segundo Milton Schwantes: Uma Construção Literária da Torá RÍPOLI, Fernando. Uma Análise Literária da Teologia do Antigo Testamento segundo Milton Schwantes: uma construção literária da Torá. In Revista Vértices n.º 16 (2014). São Paulo: Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), 2014. https://goo.gl/oVmTgg A Torá: Uma Leitura Inovadora SIQUEIRA, Tércio Machado. A Torá: uma leitura inovadora. In Revista Caminhando (v. 17, n.º 2). São Bernardo do Campo: Departamento de Ciências da Religião, 2012. https://goo.gl/MEVQEM 19 UNIDADE O Pentateuco e sua História Referências SELLIN, Ernst. Introdução ao Antigo Testamento. Volume I. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. Tradução Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Edições Loyola. 20