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O herói n´Os Lusíadas

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O herói n´Os Lusíadas 
 
Em Os Lusíadas, de Camões, temos três possibilidades heróicas que 
podemos dispor numa relação dialética. A primeira é a tese que se refere ao 
herói oficial, Vasco da Gama, representante do povo (?) português mas 
também dos reis e eminências consagradas da História de Portugal. (…) 
O herói formal Vasco da Gama é o porta-voz hierático da ideologia 
expansionista. Como os heróis homéricos, ele procede da classe aristocrática 
dominante e assume o comando em nome dela. No entanto, diferentemente 
de Aquiles, não está tomado de paixão. Segundo Costa Marques, há no texto 
português um novo conceito de heroísmo, não militar, assentado na 
consciência de um dever cívico coletivo centrado nos valores civilizatórios da 
cultura ocidental cristã. Esta leitura lembra a religião cívica da polis grega em 
que o elemento religioso se aliou ao político, garantindo ao povo uma 
identidade própria dada pelo seu antepassado heróico. Efetivamente no herói 
Vasco da Gama há a fusão de uma missão religiosa – a expansão da Fé 
cristã – com um projeto político – a expansão marítima. Vasco vai servir 
como emblema pátrio, o que explica em parte a sua psicologia rudimentar ao 
longo do Poema. 
A segunda possibilidade de heroísmo, antítese da primeira, se 
manifesta em alguns dos mais comentados momentos do Poema: os episódios 
do Velho do Restelo, de Adamastor e da Ilha dos Amores. Já disse Eduardo 
Loureço que Os Lusíadas são simultaneamente Sinfonia e Réquiem de um 
Império querendo dizer que lá encontramos o elogio da política expansionista 
mas também a sua lamentação fúnebre. O Velho do Restelo é uma contradição 
clássica em vista de sua postura na praia, na saída das naus para as Índias, a 
clamar: “Ó glória de mandar, o vã cobiça, Desta vaidade a que chamamos 
Fama”. Como um sábio, ele adverte sobre a inconveniência da empresa, 
mostrando que o seu móvel é a cobiça e a vontade de poder, dissimulados 
ambos sob o desejo legítimo de Fama que, por sua vez, é pura vaidade. O 
velho encarna o modelo do sábio que , ao lado do herói e do santo, 
constituem, para Curtius, os três tipos de ideal humano. É como pregar no 
deserto, pois no confronto entre os dois pontos de vista, quem vence é Vasco, 
partindo as naus em direção às Índias. (…) 
O outro episódio que contradiz o heroísmo oficial é o de Adamastor. 
Também aqui se dá a vitória do herói oficial, pois ao final do diálogo com um 
Vasco intemerato, surge um infeliz Adamastor que se fragiliza, permitindo a 
passagem da frota que assim ultrapassa a antiga dificuldade - o Cabo das 
Tormentas - símbolo de todos os obstáculos em direção ao Desconhecido. 
Antes disso, no entanto, um primeiro e ameaçador Adamastor lança as 
profecias de uma história nada gloriosa, trágico-marítima feita de “naufrágios, 
perdições de toda sorte, [em]Que o menor mal de todos [será] a morte!”. 
Naquelas costas se perderão vidas ilustres entre as quais a do infeliz 
Sepúlveda que, diante da morte de mulher e filhos, embrenha-se na mata para 
nunca mais voltar. As profecias são uma advertência para o alto custo humano 
da empresa imperial, fazendo eco às palavras do Velho do Restelo. (…) 
Na alegoria da Ilha dos Amores tem-se uma nova proposta de heroísmo 
baseada na utopia da justiça, da paz e da fartura. Quando concebe o prêmio de 
Vênus, deusa do Amor, aos varões, Camões marca a diferença destes 
navegadores em relação aos outros portugueses que eles reencontrarão na 
pátria, “metida no gosto da cobiça e na rudeza/ d’ uma austera, apagada e vil 
tristeza”. Idealizando a tripulação de Vasco, o Poeta os torna pais, juntamente 
com as ninfas formosas, de uma nova raça de homens, segundo outro modelo. 
Que modelo é este? Não fica claro. Mas certamente se assemelha ao heroísmo 
clássico, cujo objetivo maior era o próprio combate e o prêmio era a 
imortalidade, não o vil metal. 
Finalmente, podemos chegar ao terceiro termo, ao herói que é o próprio 
poeta. Proclamando “Braços às armas dado, mente às musas dada”, Camões 
realiza, como diz Eduardo Lourenço, a “invenção heróica de si mesmo”. 
Expressando sua própria voz na Epopéia, o Poeta se ajusta ao modelo 
renascentista de herói que consiste em aliar a virtude guerreira aos dotes 
intelectuais, celebrando a junção “armas e letras” como ideal da sua época. 
Não podemos esquecer que Camões foi soldado e guerreiro, homem de ação, 
portanto; mas também, - diferentemente do seu rei D. Sebastião que se fechou 
numa castidade patológica – foi um ser amoroso. Para ele o Amor 
representava uma porta de entrada na Verdade, seguindo, pois, de perto, o 
modelo platônico. Apesar das agruras do Amor, Camões eleva o Amor à 
condição de sentimento superior capaz de criar uma utopia – a Ilha – onde 
reinam a paz, a justiça e a concórdia. Daí a importância do episódio final d’ Os 
Lusíadas onde, além de recompensar os varões esforçados em “perigos e 
guerras” mais do que prometia a força humana”, coloca em pauta as 
excelências do Amor como caminho para a virtude que qualifica o herói ideal. 
Se o principal herói do Poema é o próprio Poeta, temos que reconhecer 
também a sua subjetividade marcada pela dúvida, pela contradição, pelo 
espírito maneirista. A princípio o vemos pactuado com a ideologia 
expansionista, com o projeto imperialista, com a ação violenta e sanguinária 
sobre terras e povos, dedicado a cantar “As armas e os barões assinalados, 
[...] as memórias gloriosas dos Reis que foram dilatando a Fé e o Império”, que 
“andaram devastando” áfricas e ásias. Depois o entrevemos como a figura do 
intelectual profundamente desgostoso com tais princípios, levantando a 
bandeira de uma outra heroicidade, a dele. (…) 
Diz Hernani Cidade que os heróis do texto só não têm vida interior porque 
estão voltados para a ação, justificando assim a sua subjetividade 
esquemática. Realmente, a vida emocional do Poema está reservada, não aos 
heróis, mas aos deuses, às alegorias, à Natureza personificada, às mulheres. 
(…) Apesar de não chorarem, alguns têm forte vida emocional, como o próprio 
Camões, que se lamenta, e o Velho do Restelo, que vocifera. Mais 
radicalmente, Saraiva diz que não encontra heróis no Texto, mas somente 
figuras extáticas ou marionetes nas mãos dos deuses, o que corrobora a idéia 
de que o Autor é o maior genuíno herói do Poema, produto síntese de um 
mundo maneirista que já tantas vezes foi detectado na obra lírica do Poeta. 
A Literatura é a contraface da história oficial que, desde Camões, desfaz a 
aura em torno do herói. Embora tenhamos ficado ao longo dos tempos 
impregnado pelo tom ufanista dos Lusíadas é preciso relê-lo com mais 
atenção, verificando o quanto a figura heróica e simultaneamente anti-heróica 
do poeta dobra as personagens históricas de que trata. Assim, por exemplo, 
quando Camões se mostra cansado, deprimido, triste, derrotado, ele desfaz o 
lugar heróico e imaculado que para si mesmo criou. Apesar de bradar “braço 
às armas feito, mente às musas dada”, inventando-se heroicamente, o Poeta 
lamenta-se, faz-se humanamente compreensível. Não é à toa que o 
Adamastor é o episódio nuclear da Epopéia, colocado no centro do Poema, 
exatamente no meio do Canto V que, por sua vez é o meio da epopéia. Esta 
deliberada arquitetura faz da relação entre Vasco e o mostrengo a chave do 
Poema, numa contraposição figurada entre o hieratismo de Vasco e a 
humanidade condoída do pobre Adamastor. Ali Camões já põe em cheque a 
inverossímil heroicidade de Vasco, assim como faz o contraponto trágico-
marítimo ao caráter oficial ufanista do Poema. 
 
Referência: 
OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire. Revirando casa e mundo: representações 
literárias do herói e da família; um estudo do romance português 
contemporâneo. Niterói: EDUFF, 2011, pp. 48-51.