Prévia do material em texto
A diarreia pode ser definida de forma prática como a eliminação de fezes amolecidas, de consistência líquida, com frequência maior que 3 vezes ao dia e com aumento de massa fecal, geralmente acima de 200g por dia. A diarreia ocorre quando o balanço entre absorção e secreção de fluidos pelos intestinos (delgado e/ou cólon) está prejudicado, por redução da absorção e/ou aumento da secreção. Classificação quanto à magnitude ● Diarreia aguda: com duração menor que duas semanas; ● Diarreia protraída ou persistente: com duração entre 2 e 4 semanas; ● Diarreia crônica: acima de 4 semanas. Classificação quanto à topografia ● Diarreia alta: (proveniente do intestino delgado), os episódios diarreicos são mais volumosos. Nos casos mais graves, a perda líquida pode ultrapassar 10 litros/dia, provocando choque hipovolêmico. E isso porque o cólon saudável só consegue aumentar sua absorção de líquidos para um máximo de 4 litros/dia. Se o volume de fluido proveniente do delgado estiver acima desse valor, o paciente terá diarreia; ● Diarreia baixa: (proveniente do cólon) as evacuações são em pouca quantidade, mas muito frequentes e ainda associadas a tenesmo (desconforto ao evacuar) e urgência fecal, sintomas clássicos de irritação do reto. Se o problema for exclusivo do cólon, o total de líquido eliminado não excede 1,5 litros. Classificação quanto à causa ● Diarreia osmótica Diarreia aparece quando substâncias hidrossolúveis não absorvíveis permanecem na luz intestinal e retêm água. Principais exemplos: ingestão ou clister de sais de magnésio, sais de fosfato, sorbitol, manitol, glicerina, lactulose; deficiência de lactase (intolerância à lactose), forma primária ou secundária às enteropatias (lesão da borda em escova dos enterócitos); diarreia dos antibióticos. A deficiência de lactase é o principal exemplo da “diarreia dos carboidratos”, de mecanismo osmótico. A “diarreia dos antibióticos” geralmente é leve e explicada na maioria das vezes pela redução da flora colônica, prejudicando a metabolização dos carboidratos (que não foram absorvidos no delgado) em ácidos graxos de cadeia curta que seriam prontamente absorvidos pelo cólon. A sobra desses carboidratos provoca um efeito osmótico no lúmen colônico, explicando a diarreia. A diarreia osmótica cessa completamente com o estado de jejum, logo, não há diarreia noturna, ao contrário das diarreias secretórias. A suspensão da substância incriminada – por exemplo: lactose na deficiência de lactase – também melhora rapidamente o quadro. Como a absorção de eletrólitos está intacta nas diarreias osmóticas, a quantidade de sódio e potássio tende a ser reduzida nas fezes. ● Diarreia secretória não invasiva Algum fator, geralmente uma toxina, droga ou substância neuro-hormonal, está estimulando a secreção ou inibindo a absorção hidroeletrolítica pelo epitélio intestinal. Pode ser uma diarreia “alta” ou “baixa”, ou as duas ao mesmo tempo. Principais exemplos: laxativos estimulantes (fenoftaleína, bisacodil), bactérias produtoras de toxinas (cólera), VIPoma, síndrome carcinoide, diarreia dos ácidos biliares e diarreia dos ácidos graxos. Ela não cessa com o jejum, e há uma grande secreção de eletrólitos, ao contrário da diarreia osmótica. ● Diarreia invasiva ou inflamatória Decorrente da liberação de citocinas e mediadores inflamatórios por lesão direta da mucosa intestinal (enterite, colite ou enterocolite), o que estimula a secreção intestinal e o aumento da motilidade. O marco deste tipo de diarreia é a presença de sangue, pus e muco nas fezes, podendo ser chamada de disenteria. Pode ser infecciosa ou não infecciosa (ex.: doença inflamatória intestinal). ● Síndrome disabsortiva; Também conhecido como esteatorreia. A causa dessa diarreia está associada a baixa absorção dos lipídios no intestino delgado, ou seja, pode ser causada também por uma síndrome de má absorção ou por uma síndrome de má digestão. Por exemplo doença celíaca, doença de Crohn, doença de Whipple, giardíase, estrongiloidíase e linfoma intestinal. ● Diarreia funcional. Nesse tipo de diarreia, a absorção e secreção estão normais, porém não há tempo suficiente para ocorrer a absorção desses nutrientes corretamente. É um diagnóstico de exclusão, ou seja, quando há ausência de doença orgânica justificável. Ocorre por hipermotilidade intestinal. Exemplos: síndrome do intestino irritável e diarreia diabética (neuropatia autonômica). Classificação quanto à epidemiologia e os fatores de risco ● Viajantes: infecção bacteriana (E. coli), infestação por protozoários (giardia), espru tropical; ● Epidemia ou surto: infecção viral (rotavírus), infecção bacteriana, toxina alimentar (S. aureus), protozoário (criptosporídeo); ● Diabetes (diarreia crônica): neuropatia autonômica (distúrbio da motilidade), supercrescimento bacteriano, uso de medicações (acarbose, metformina), insuficiência exócrina do pâncreas; ● Pacientes imunodeprimidos: infecções oportunistas (BK, MAC, Criptospora, CMV, Herpes), neoplasia, drogas; ● Pacientes institucionalizados: impactação fecal (estímulo à hipersecreção), drogas, colite pseudomembranosa (uso de antibióticos), doença vascular intestinal. Diarreia aguda Etiologia Quadro clínico O quadro clínico das diarreias agudas é, basicamente, dividido em dois: a inflamatória e a não inflamatória. As diarreias agudas inflamatórias geralmente afetam o cólon, manifestando-se com diarreia de pequeno volume e múltiplos episódios ao dia, além de dor no quadrante inferior esquerdo do abdome, tenesmo e urgência fecal (sinais de “irritação” do retossigmoide). Por outro lado, as diarreias agudas não inflamatórias geralmente afetam o delgado, manifestando-se com diarreia de grande volume, poucos episódios e dor periumbilical, não raro sendo acompanhadas pelos demais sinais e sintomas que constituem a síndrome de gastroenterite aguda. Diagnóstico Em um primeiro momento, é essencial iniciar a abordagem diagnóstica do paciente com diarreia identificando se o quadro se trata de uma diarreia aguda ou crônica. A partir disso, na avaliação do paciente com diarreia, algumas questões são importantes, como: - Tempo de evolução: quadros superiores a 2 semanas já indicam que não se trata de uma diarreia aguda. - Características físicas das evacuações: consistência, presença de sangue ou muco, volume (diarreias secundárias a doenças do delgado costumam ser aquosas e volumosas, com risco maior de desidratação; diarreias secundárias a colites, as fezes são de pequeno volume e podem apresentar sangue e muco, sugerindo infecção), número, presença de gordura (pode indicar doença disabsortiva). - Presença de outros sintomas: febre (indica doença infecciosa), náusea, vômitos (alerta: maior risco de desidratação), dor abdominal; - Dados epidemiológicos: contatos, viagens, uso de medicamentos, refeições em ambientes fora do domicílio, ingestão de alimentos crus Em geral, na investigação de diarreia aguda não inflamatória não é necessário realizar exames para investigação etiológica, porque mais de 90% dos casos se trata de quadros brandos e autolimitados, e a taxa de positividade dos exames diagnósticos é extremamente baixa (inferior a 3%, então não é custo-eficaz solicitá-los), então o tratamento vai se fundamentar principalmente na sintomatologia apresentada. Porém existem algumas situações que justificam pedir os exames diagnósticos com diarreia aguda, porque nesses casos a taxa de positividade costuma variar de 60-75%, então é vantajoso. Dentre os critérios, estão: - Diarreia superior a 7-10 dias; - Piora progressiva; - Mais do que 6 episódios por dia; - Diarreia aquosa profusa, acompanhada de franca desidratação; - Paciente idoso com quadro frágil; - Paciente imunodeprimido; - Diarreia adquirida no hospital; - Sinais de comprometimento sistêmico; - Sinais de diarreia inflamatória: - Febre; - Presença de sangue, pus e muco (o que já caracteriza o quadro como sendo disenteria); - Dor abdominal muitointensa. Os exames a serem pedidos são: - EAF (Elementos Anormais nas Fezes); - Coprocultura; - Pesquisa de toxina do C. difficile; - Testes parasitológicos se: - Diarreia superior a 10 dias; - Região endêmica; - Surto com origem em fonte comum de água; - Infecção pelo HIV; - Prática de sexo anal. Diarreia crônica Etiologia A diarreia crônica também pode ser subdividida, sendo a sanguinolenta e a não sanguinolenta. A sanguinolenta, apesar de poder se secundária a infecções bacterianas por Shigella, Salmonela, C. difficile, E. coli e outras, está, mais provavelmente, relacionada à doença intestinal inflamatória. A não sanguinolenta indica etiologias como G. lamblia e C. difficile. Diagnóstico Alguns sinais de alarme devem ser procurados, como: ● Idade acima de 70 anos; ● Imunodeprimidos; ● Evolução para desidratação ● Presença de febre alta ● Características inflamatórias ● Mais de 6 evacuações diárias ● Dor abdominal intensa em maiores de 50 anos Na anamnese, as perguntas são muito semelhantes aos de diarreia aguda. Assim, pesquisar: ● Volume das evacuações ● Frequência das evacuações ● Sangue, muco ou pus nas fezes ● Características das fezes (coloração, odor, consistência) ● Presença de febre ● Presença de artralgia (doença de Crohn) ● Dor abdominal associada, náuseas, vômitos ou outros sintomas ● Consumo de álcool ● Diarreia após consumo de laticíneos e glúten ● Patologia autoimunes prévias A solicitação de exames complementares vai depender muito de caso a caso. Os exames normalmente solicitados são: ● Hemograma ● Eletrólitos ● Parasitológico de fezes (3 amostras) ● Coprocultura ● Pesquisa de leucócitos fecais, sangue oculto ● Teste quantitativo de gordura fecal ● ASCA: doença de Chron ● p-ANCA: retocolite ulcerativa ● Anticorpos anti-glutaminase, anti-endomísio e anti-gladina: doença celíaca ● Amilase e lipase: pancreatite Tratamento de diarreias agudas e crônicas Num geral, de acordo com o protocolo de manejo do Ministério de Saúde, os pacientes devem ser avaliados e divididos em três grupos principais, e seu tratamento vai depender de qual grupo ele se enquadra. GRUPO A Estado geral bom, alerta, olhos normais, lágrimas presentes, sede normal e não exagerada, sinal da prega negativo, pulso cheio, sem sinais de desidratação: a prevenção da desidratação é feita a domicílio. ● Oferecer ou ingerir mais líquido que o habitual para prevenir a desidratação: ○ O paciente deve tomar líquidos caseiros ou solução de reidratação oral (SRO) após cada evacuação diarreica; ○ Não utilizar refrigerantes e não adoçar o chá ou suco. ● Manter a alimentação habitual para prevenir a desnutrição: ○ Continuar o aleitamento materno; ○ Manter a alimentação habitual para crianças e adultos. ● Se o paciente não melhorar em dois dias ou se apresentar qualquer um dos sinais abaixo, levá-lo imediatamente ao serviço de saúde: ○ Piora na diarreia; ○ Vômitos repetidos; ○ Muita sede; ○ Recusa de alimentos; ○ Sangue nas fezes; ○ Diminuição da diurese; ● Orientar o paciente ou acompanhante para: ○ Reconhecer os sinais de desidratação; ○ Preparar e administrar a SRO; ○ Praticar medidas de higiene pessoal e domiciliar (lavagem adequada de mãos, tratamento da água e higienização dos alimentos). ● Administrar zinco uma vez ao dia, durante 10 a 14 dias: ○ Até 6 meses de idade: 10mg/dia; ○ Maiores de 6 meses: 20mg/dia. ● Plano de reidratação (quantidade de líquido que deve ser ingerida a cada evacuação diarreica): ○ Menores de 1 ano: 50-100mL; ○ De 1 a 10 anos: 100-200mL; ○ Maiores de 10 anos: quantidade que o paciente aceitar. GRUPO B Paciente irritado, intranquilo, com olhos fundos, lágrimas ausentes, sedento, bebe água rápida e avidamente, sinal da prega desaparece lentamente, pulso rápido e fraco. Se ele tiver dois ou mais sinais, já pode ser caracterizado como desidratado, e deve ser manejado na unidade de saúde conforme o seguinte: ● Administrar solução de reidratação oral: ○ A quantidade de solução ingerida dependerá da sede do paciente; ○ A SRO deve ser administrada continuamente, até que desapareçam os sinais de desidratação; ○ Apenas como orientação inicial, o paciente deverá receber de 50 a 100ml/kg para ser administrado no período de 4-6 horas. ● Durante a reidratação, reavaliar o paciente seguindo as etapas do quadro de avaliação do estado de hidratação do paciente: ○ Se desaparecerem os sinais de desidratação, utilize o plano A; ○ Se continuar desidratado, indicar sonda nasogástrica; ○ Se evoluir para desidratação grave, seguir o plano C. ● Durante a permanência do paciente ou acompanhante no serviço de saúde, orientar a: ○ Reconhecer sinais de desidratação; ○ Preparar e administrar a SRO; ○ Praticar medidas de higiene pessoal. GRUPO C Paciente comatoso, hipotônico, com olhos muito fundos e secos, lágrimas ausentes, falta de sede, sinal da prega com desaparecimento maior do que 2 segundos, pulso muito fraco ou ausente. Se o paciente apresentar dois ou mais desses sinais, isso indica desidratação grave, e o paciente deve ser manejado na unidade hospitalar de acordo com o seguinte protocolo, dividido em duas fases: - Fase rápida; - Fase de manutenção e reposição. FASE RÁPIDA - MENORES DE 5 ANOS (fase de expansão) ● Soro fisiológico a 0,9%; ● Iniciar com 20 mL/kg de peso e repetir essa quantidade até que a criança esteja hidratada, reavaliando os sinais clínicos após cada fase de expansão administrada; ● Para RNs e cardiopatas graves, começar com 10 mL/kg; ● O tempo de administração é de 30 minutos. FASE RÁPIDA - MAIORES DE 5 ANOS (fase de expansão) ● 1º: soro fisiológico a 0,9%, a 30 mL/kg por 30 minutos; ● 2º ringer lactato ou solução polieletrolítica, a 70 mL/kg por 2h30min. FASE DE MANUTENÇÃO E REPOSIÇÃO - PARA TODAS AS FAIXAS ETÁRIAS ● Manutenção: soro glicosado a 5% + soro fisiológico a 0,9%, na proporção de 4:1: ○ Até 10kg: 100ml/kg; ○ De 10kg a 20kg: 1000ml + 50ml/kg de peso que exceder 10kg; ○ Peso acima de 20kg: 1500ml + 20ml/kg de peso que exceder 20kg; ○ Administrar também KCl a 10%, 2ml para cada 100ml de solução dessa fase de manutenção. ● Reposição: soro glicosado a 5% + soro fisiológico a 0,9%, na proporção de 1:1: ○ Iniciar com 50ml/kg/dia. Reavaliar esta quantidade de acordo com as perdas do paciente. Com relação ao tratamento farmacológico, o Ministério da Saúde faz as seguintes recomendações: ● Antibióticos: devem ser usados somente para casos de diarreia com sangue (disenteria) e comprometimento do estado geral ou em casos de cólera grave. Em outras condições, os antibióticos são ineficazes e não devem ser prescritos; ● Antiparasitários: devem ser usados somente para: ○ Amebíase, quando o tratamento de disenteria por Shigella sp fracassar, ou em casos em que se identificam nas fezes trofozoítos de Entamoeba histolytica englobando hemácias; ○ Giardíase, quando a diarreia durar 14 dias ou mais, se identificarem cistos ou trofozoítos nas fezes ou no aspirado intestinal. ● Zinco: deve ser administrado, uma vez ao dia, durante 10 a 14 dias: ○ Até seis (6) meses de idade: 10mg/dia; ○ Maiores de seis (6) meses de idade: 20mg/dia. Antidiarreicos e antieméticos, de acordo com o protocolo do Ministério da Saúde, não devem ser usados. Outras fontes trazem que é possível sim fazer a administração de antidiarreicos, mas o médico deve ter certeza de que não se trata de um quadro de diarreia inflamatória. Isso porque o uso de antidiarreicos nas diarreias inflamatórias pode aumentar a chance de complicações, como a síndrome hemolítico-urêmica e o mecacólon tóxico.