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HISTÓRIA E CONCEITOS DE SAÚDE PÚBLICA W B A 01 22 _v 2. 0 2 Mariana da Silva Castro Vianna Londrina Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2020 HISTÓRIA E CONCEITOS DE SAÚDE PÚBLICA 1ª edição 3 2020 Editora e Distribuidora Educacional S.A. Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza CEP: 86041-100 — Londrina — PR e-mail: editora.educacional@kroton.com.br Homepage: http://www.kroton.com.br/ Presidente Rodrigo Galindo Vice-Presidente de Pós-Graduação e Educação Continuada Paulo de Tarso Pires de Moraes Conselho Acadêmico Carlos Roberto Pagani Junior Camila Braga de Oliveira Higa Carolina Yaly Giani Vendramel de Oliveira Henrique Salustiano Silva Juliana Caramigo Gennarini Mariana Gerardi Mello Nirse Ruscheinsky Breternitz Priscila Pereira Silva Tayra Carolina Nascimento Aleixo Coordenador Camila Braga de Oliveira Higa Revisor Danielle Leite de Lemos Oliveira Editorial Alessandra Cristina Fahl Beatriz Meloni Montefusco Gilvânia Honório dos Santos Mariana de Campos Barroso Paola Andressa Machado Leal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)__________________________________________________________________________________________ Vianna, Mariana da Silva Castro V617h História e conceitos de saúde pública/ Mariana da Silva Castro Vianna, – Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2020. 47 p. ISBN 978-65-5903-082-8 1. Primeira República. 2. Nova República. 3. Sistema Único de Saúde. I. Título. CDD 341.76 ____________________________________________________________________________________________ Raquel Torres – CRB 6/2786 © 2020 por Editora e Distribuidora Educacional S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Editora e Distribuidora Educacional S.A. 4 SUMÁRIO Do Brasil Colônia à Primeira República ______________________________ 05 Da Era Vargas à 4ª República – 1930 a 1964 ________________________ 21 Ditadura militar e Reforma Sanitária Brasileira – 1964 a 1988 ______ 38 Sistema Único de Saúde ____________________________________________ 55 HISTÓRIA E CONCEITOS DE SAÚDE PÚBLICA 5 Do Brasil Colônia à Primeira República Autoria: Mariana S. C. Vianna Leitura crítica: Danielle Leite de Lemos Oliveira Objetivos • Conhecer os principais aspectos do cuidado à saúde no Brasil, desde o início da colonização portuguesa. • Compreender a relação dos fatos históricos com o início das políticas de saúde no Brasil. • Refletir sobre a influência dos eventos históricos nas formas de cuidar da saúde das pessoas. 6 1. Brasil Colônia – 1500 a 1808 Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.(…) Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. (…) Porém, o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (BRASIL, 1500, p. 14) A chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, dá início ao período à colonização brasileira. Como a carta de Pero Vaz de Caminha descreve, já existiam povos que habitavam essas terras e que, embora possuíssem hábitos e cultura diferentes daquelas praticadas na Europa, tinham formas de organização social variadas conforme cada tribo. O encontro entre europeus e indígenas brasileiros trouxe muitos problemas de saúde – para os índios, doenças como sarampo, gripes e varíola causaram a morte de grande parte dos nativos brasileiros, sem defesas imunológicas contra os agentes causadores dessas doenças. Segundo Edler (2018), desde o seu início, a colonização brasileira foi marcada por essa relação entre saúde e doença, havendo poucos (ou nenhum) recursos para o combate aos agravos e às doenças mais comuns nesse período. O período conhecido como Brasil Colônia se inicia com a chegada dos portugueses em 1500 e termina com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. Esse período, de pouco mais de 300 anos, possui vários atores: os índios, os negros escravizados e os portugueses e demais europeus, que vieram para essas terras. Do primeiro contato com os nativos brasileiros até a expansão da colônia, o cuidado à saúde das pessoas (principalmente os europeus) foi baseado em crenças 7 populares e religiosas, próprias ao pouco conhecimento científico existente à época (GURGEL, 2009). Figura 1 – Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500 – óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva (1922) Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Desembarque_de_Pedro_%C3%81lvares_ Cabral_em_Porto_Seguro_em_1500_by_Oscar_Pereira_da_Silva_(1865%E2%80%931939).jpg. Acesso em: 7 jan. 2021. O início da exploração da colônia foi marcado pela extração do pau- brasil, árvore que deu nome à colônia e de onde era extraído um corante vermelho, muito utilizado nas cortes europeias. A colonização das terras, por colonos portugueses, foi iniciada mais de 30 anos após a chegada de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, motivada por pressões políticas de outros reinos europeus e pela necessidade econômica. Com o início da colonização, iniciou-se o cultivo da cana de açúcar e a vinda de negros africanos escravizados para servirem como mão de obra nas plantações. O impacto da colonização portuguesa para a população indígena foi grande: dizimados por doenças, assistiram a diminuição da flora e fauna https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Desembarque_de_Pedro_%C3%81lvares_Cabral_em_Porto_Seguro_em_1500_by_Oscar_Pereira_da_Silva_(1865%E2%80%931939).jpg https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Desembarque_de_Pedro_%C3%81lvares_Cabral_em_Porto_Seguro_em_1500_by_Oscar_Pereira_da_Silva_(1865%E2%80%931939).jpg 8 nativas para permitir o avanço das lavouras de cana de açúcar. De acordo com Gurgel (2009), menos de 100 anos após a chegada de Cabral ao Brasil, a tribo que o recebeu em Porto Seguro já não existia mais. A saúde dos negros cativos que desembarcavam na colônia não era muito melhor do que as condições em que chegavam os seus exploradores. A falta de higiene e a alimentação precária existente nas embarcações, além do confinamento e dos porões de navios abarrotados de escravos, contribuíam para a proliferação de doenças e mortes durante a travessia do mar Atlântico. No caso dos escravos, as condições de moradia, higiene e alimentação não se tornavam muito melhores quando eles já haviam desembarcado. Figura 2 – Negres a fond de calle (Navio Negreiro) – obra de Johann Moritz Rugendas, 1830 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:N%C3%A8gres_a_fond_de_Calle.jpg. Acesso em: 7 jan. 2021. A forte presença da Igreja Católica na colônia, e em Portugal, tornava a relação entre saúde e doença uma relação entre o pecado e a graça divina, onde o corpo doente representava a alma pecadora (EDLER, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:N%C3%A8gres_a_fond_de_Calle.jpg 9 2018). A influência da Igreja Católica, também, pautava o cuidado aos doentes, como uma forma de se praticar a caridade pregada por Cristo. Essa forte ligação entre o cuidado aos doentes e a Igreja Católica também foi representada pelas Santas Casas de Misericórdia. Criada no final século XV em Portugal, segundo Fiocruz (2020), a primeira Santa Casa do Brasil foi fundada em 1543, na vila de São Vicente e cerca de 50 anos mais tarde, foi fundada a Santa Casa do Rio de Janeiro. O propósito dessas instituições, seguindo o mesmo propósito das Santas Casas Portuguesas, era “acolher os presos,alimentar os pobres, curar os doentes, asilar os órfãos, sustentar as viúvas, enfim, para ser a casa a serviço dos mais carentes, desassistidos e abandonados” (FIOCRUZ, 2020, [s.p.]). Até o século XIX, essa foi a única instituição de assistência à saúde existente no Brasil, restrita aos principais centros urbanos da colônia. À Coroa Portuguesa cabia o papel de regulamentar a assistência prestada pelos poucos profissionais existentes na colônia. Os físicos (médicos da época), cirurgiões e boticários assistiam a pouquíssimas pessoas da elite branca, que podiam arcar com os custos dessa assistência. Para o restante da população, de acordo com Edler (2018), havia pajés, curandeiros, barbeiros e quem mais se dispusesse a cuidar e tratar dos doentes. Com o passar dos séculos, a vida na colônia foi se desenvolvendo, surgindo novos povoados, vilarejos e cidades. Assim, epidemias de cólera, varíola e febre amarela eram comuns, fazendo parte do cotidiano das pessoas, sendo a fiscalização da arte de curar a única ação de saúde pública existente (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). 10 2. Brasil Imperial – 1808 a 1888 A chegada da família real portuguesa no Brasil, em 1808, trouxe um grande impacto para a vida das pessoas na colônia brasileira, especialmente para a população da cidade do Rio de Janeiro. Ao transferir a corte portuguesa para o Brasil, algumas mudanças na cidade foram necessárias, como a abertura dos portos ao comércio exterior e a criação da primeira faculdade de medicina brasileira, em Salvador, Bahia. Nesse contexto, a Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro foi criada no mesmo ano (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Em 1809 foi criado o cargo de provedor-mor da saúde da Corte e do Estado do Brasil, com a função de fiscalizar a saúde pública. Além disso, a vacinação contra a varíola foi difundida, através das Juntas Vacínicas criadas em 1811 (GURGEL et al., 2011), embora somente em 1840 sua aplicação passou a ser ampliada – e mesmo assim, apenas para as famílias nobres (GURGEL, 2009). A inspetoria de saúde dos Portos foi criada em 1828, concentrando suas atividades na fiscalização de escravos e tripulantes doentes, buscando evitar novas epidemias (EDLER, 2018). A atividade de controle dos navios que chegavam à costa brasileira já existia desde o século XVII, de acordo com Gurgel (2009), assim como algumas medidas sanitárias isoladas para a contenção de epidemias. Em 1946, sob o reinado de Dom Pedro II foi criado o Instituto Vacínico do Império, com o objetivo de ampliar as ações de vacinação contra a varíola, que passara a ser obrigatória nesse mesmo ano (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012; GURGEL et al., 2011). A assistência aos doentes continuava a cargo das Santas Casas de Misericórdia e de outros hospitais beneficentes, como Beneficência Portuguesa. Na Europa, o movimento higienista passa a transformar as práticas médicas e de cuidado aos enfermos. Diante da situação precária de assistência médica que o Brasil possuía, combinada com as epidemias de varíola e febre amarela e com o aumento populacional incentivado 11 pela cultura do café, surgiram os hospitais de isolamento e a Junta Central de Higiene Pública. Apesar das técnicas de higiene recentemente propagadas, como isolar os doentes e queimar suas roupas para que se evitasse a propagação de doenças, o resultado das medidas de controle e tratamento das principais doenças presentes no século XIX não foi de sucesso. Os hospitais de isolamento serviram para segregar e isolar os doentes, excluindo-os da sociedade. Assim, segundo Gurgel et al. (2011), a falta de conhecimento sobre o agente etiológico das doenças e formas de transmissão não permitia um tratamento adequado dos doentes. As medidas de controle e contenção de doenças durante o período do império foram mais percebidas na capital, Rio de Janeiro. As regiões mais afastadas da capital viram poucas mudanças no cuidado à saúde nesse período (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). 3. República Velha – 1888 a 1930 O final do século XIX assistiu diversas transformações culturais e sociais no mundo ocidental, como o desenvolvimento da microbiologia e uma nova Revolução Industrial. No Brasil, ainda apoiado no cultivo do campo como atividade econômica, a mão de obra escrava foi substituída pela mão de obra de imigrantes e a monarquia em crise deu espaço ao período republicano. Porém, poucas foram as mudanças no cuidado à saúde nesse período. O crescimento das lavouras de café fez surgir uma nova elite aristocrática, sobretudo em São Paulo. Com a promulgação da Constituição em 1891, coube aos municípios e estados a responsabilidade do cuidado à saúde (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). No bojo dessas transformações sociais foi criado o Serviço Sanitário de São Paulo, em 1892, e o Instituto Bacteriológico, em 1893. Acompanhando os novos saberes da microbiologia que vinham da Europa, segundo Almeida (2005), esses serviços foram fundamentais 12 para a introdução dessa ciência no Brasil, influenciando na tomada de decisões sanitárias diante das epidemias que ainda castigavam a população entre o final do século XIX e começo do século XX. À frente desses serviços destacam-se Emílio Ribas como diretor do Serviço Sanitário e Adolpho Lutz, como diretor do Instituto Bacteriológico. Eles contribuíam, também, nomes como Arnaldo Vieira de Carvalho (diretor do Instituto Vacinogênico), Vital Brazil (diretor do Instituto Butantan) e Victor Godinho (diretor da Revista Médica de São Paulo), que, juntos, foram responsáveis por modernizar o saber médico da época, além de coordenarem pesquisas importantes na área da saúde, como no desenvolvimento de soros e vacinas e na descoberta de agentes etiológicos de algumas doenças (ALMEIDA, 2005). Em 1900, na cidade do Rio de Janeiro, foi criado o Instituto Soroterápico Federal (atual Fundação Oswaldo Cruz) em Manguinhos, com o objetivo de desenvolver e produzir soros e vacinas contra as doenças epidêmicas da época, particularmente a peste bubônica (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Em 1902, por sua vez, o médico Oswaldo Cruz assume como diretor responsável pela difusão da microbiologia no cenário sanitário brasileiro. Em 1903, Oswaldo Cruz assumiria a direção dos serviços de saúde da República, equivalente ao cargo de Ministro da Saúde, na Diretoria Geral de Saúde Pública (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). No entanto, ainda, prevalecia no país o combate às epidemias e os cuidados de higiene da população como política pública de saúde. A assistência aos doentes continuava a encargo das entidades filantrópicas e os governantes, ainda, viam as ações públicas de saúde como emergenciais e transitórias, restritas ao combate às crises sanitárias (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). 13 3.1 Campanhas sanitárias A ampliação do conhecimento no campo da microbiologia foi acompanhada de mudanças sociais nos espaços urbanos brasileiros. O aumento desordenado da população nas cidades, as precárias condições de moradia e higiene e pouca infraestrutura urbana contribuíram para o aumento de epidemias e mortalidade da população. Em 1902, segundo Mourelle (2020), o presidente eleito Rodrigues Alves iniciou um processo de reforma e urbanização na cidade do Rio de Janeiro, demolindo cortiços sem oferecer alternativas de moradia para mais de 14 mil pessoas. Para auxiliar o programa de saneamento e combater as epidemias mais frequentes na cidade, Oswaldo Cruz teve grande participação. Por meio de campanhas sanitárias, Oswaldo Cruz procurou combater a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, já como diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública. Para cada uma dessas doenças, havia uma campanha específica, como o isolamento dos doentes e controle dos mosquitos para a febre amarela, extermínio de ratos e aplicação de soro e vacina fabricados em Manguinhos para o combate da peste e aumento das ações de vacinação da população para o combate da varíola (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Um novo surto de varíola no Rio de Janeiro,em 1904, motivou a criação de um projeto de lei para obrigar a todos a se vacinarem e revacinarem contra a varíola, em todo o território nacional. O clima de descontentamento da população com as ações de urbanização da cidade, além de um forte movimento contrário à vacina e à sua obrigatoriedade liderados por deputados de oposição ao governo serviu como motivo para um grande levante popular. Em 9 de novembro de 1904, a população se revoltou contra o governo com atos de violência e de enfrentamento contra a polícia, bombeiros e forças armadas (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012; MOURELLE, 2020). Logo, estava deflagrada a “Revolta da Vacina”, como ficou conhecido o levante. 14 Durante uma semana, a população protestou com violência e destruição, protestando contra o autoritarismo do governo. Nesse contexto, segundo Mourelle (2020), um grupo de políticos e militares aproveitou a rebelião para uma tentativa de golpe de estado, buscando depor o presidente Rodrigues Alves. Os confrontos só tiveram fim após tropas da Marinha bombardearem o local onde os rebeldes estavam entrincheirados (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). A Revolta da Vacina fez com que o governo revogasse a obrigatoriedade da vacina contra a varíola, permanecendo o surgimento de surtos da doença nos anos que se seguiram. As ações de Oswaldo Cruz, entretanto, conseguiram alterar o perfil epidemiológico da capital da República, praticamente eliminando a febre amarela e a peste na primeira década do século XX. Figura 3 – Charge de 1904, retratando a campanha de Oswaldo Cruz– Jornal “O Malho” Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5b/Guerra_Vaccino- Obrigateza%21.jpg. Acesso em: 7 jan. 2021. https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5b/Guerra_Vaccino-Obrigateza%21.jpg https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5b/Guerra_Vaccino-Obrigateza%21.jpg 15 A exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro, as ações de saúde desenvolvidas pelo Estado foram concentradas nas grandes cidades, locais de maior aglomeração urbana. A partir de 1910, diversas expedições para o interior do Brasil foram realizadas, organizadas pelo então Instituto Oswaldo Cruz, com o objetivo de retratar a saúde dos brasileiros. Segundo Tamano (2017), Arthur Neiva e Belisário Penna se destacaram no retrato dessa situação, descrevendo, em 1912, as condições médico-sanitárias e sociais a que a população brasileira estava exposta no interior do país. A realidade exposta por essas expedições fez a classe intelectual da época exigir ações do Estado para ampliar as ações de saúde para a população. Assim, em 1918 foi fundada a Liga Pró-Saneamento do Brasil, dirigida por Belisário Penna. Ainda, em 1918 foi criado o Serviço de Profilaxia Rural e, em 1919, a Diretoria Geral de Saúde Pública se tornou o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), sendo seu primeiro diretor o médico Carlos Chagas (TAMANO, 2017; ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Embora a proposta de criação de um Ministério da Saúde não tenha obtido êxito, diversas alterações na legislação ocorreram, sendo a criação do DNSP a principal delas. Além disso, outros eventos marcaram a sociedade brasileira nesse período, influenciando nas políticas de saúde do Estado. Assim, a primeira greve geral dos trabalhadores (1917) e a epidemia de gripe espanhola (1918) trouxeram para a discussão as condições de vida de grande parte da população urbana brasileira, pressionando a criação de um Ministério da Saúde que centralizasse as políticas públicas de saúde (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). O DNSP, sob a direção de Carlos Chagas, passou a regulamentar a venda de produtos alimentícios no país, normatizar construções rurais, regulamentar as condições de trabalho de mulheres e crianças, fiscalizar produtos farmacêuticos e inspecionar os portos e a saúde dos imigrantes que chegavam ao país. Essas ações foram importantes para 16 a diminuição da mortalidade infantil, controle da doença de Chagas e combate a algumas doenças. Ademais, o DNSP também ampliou a produção de soros, vacinas e de medicamentos para combate das epidemias da época e passou a elaborar estatísticas demográficas e sanitárias em nível nacional (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Figura 4 – Comunicado do Serviço Sanitário para prevenção da gripe espanhola, 1918 Fonte: https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,66-dias-de-terror-e-morte-na-luta-de- sp-contra-a-gripe-espanhola,70003311085,0.htm. Acesso em: 7 jan. 2021. As pesquisas de Carlos Chagas auxiliaram no combate à malária e à outras doenças, mas foi sua pesquisa sobre a tripanosomíase, ou Doenças de Chagas, que foi a mais importante. Por sua vez, seu trabalho é considerado único na história da medicina por ter descoberto e https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,66-dias-de-terror-e-morte-na-luta-de-sp-contra-a-gripe-espanhola,70003311085,0.htm https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,66-dias-de-terror-e-morte-na-luta-de-sp-contra-a-gripe-espanhola,70003311085,0.htm 17 descrito todo o ciclo da doença – desde o seu agente etiológico, ciclo evolutivo, vetores e a própria doença. Figura 5 – Carlos Chagas observando a menina Rita, um dos primeiros casos diagnosticados da doença de chagas – década de 1910 Fonte: http://www.hlog.epsjv.fiocruz.br/upload/d/cap_3.pdf. Acesso em: 7 jan. 2021. Paralelamente ao que acontecia no Rio de Janeiro, em São Paulo, Geraldo Horácio de Paula Souza assume a direção do Serviço Sanitário do estado, em 1923, e a cadeira de Higiene da recente Faculdade de Medicina de São Paulo. Após realizar seu doutorado nos Estados Unidos com bolsa de estudos pela Fundação Rockfeller, Paula Souza buscou promover a educação sanitária na população como forma de se evitar a propagação de doenças (MASCARENHAS, 2006; CORREIA, 2011). Do combate à difteria na cidade de São Paulo à revisão do código sanitário http://www.hlog.epsjv.fiocruz.br/upload/d/cap_3.pdf 18 do estado, segundo Mascarenhas (2006), Paula Souza criou o primeiro Centro de Saúde do Brasil, com atividades de promoção e proteção à saúde. Os eventos ocorridos em São Paulo e no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX foram essenciais para o início de uma organização de cuidado à saúde, que foi deixando de ser exclusivamente beneficente e voltada para atender crises sanitárias emergenciais. Ações de prevenção e de cuidado contínuo começaram a ser implantadas, hábitos e condições de vida começaram a ser questionados e relacionados ao cuidado de doenças e a expansão das pesquisas na área da saúde foi delineando as políticas públicas de saúde nas próximas décadas, influenciando na tomada de decisões políticas por parte de governantes. 3.2 Fundos de pensão – década de 1920 No final da década de 1910 e início da década de 1920, Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) começaram a ser criadas. Com a contribuição dos trabalhadores e empregadores em entidades privadas, cabendo ao poder público o controle externo, quando necessário (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Apesar dos recursos geridos serem previstos para aposentadorias, algumas CAPs começaram a prestar assistência médica para seus trabalhadores. O surgimento das CAPs deu início ao movimento de Saúde Previdenciária, que marca fortemente a assistência à saúde nas décadas seguintes. A Lei Eloy Chaves, de 1923, institui a previdência social no país, regulamentando as CAPs para trabalhadores das empresas ferroviárias. Outros setores produtivos também começaram a criar suas próprias CAPs, chegando a 47 CAPs em 1930, segurando 140 mil trabalhadores (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Como você deve ter percebido, os primeiros 300 anos de história do Brasil não apresentaram políticas públicas de saúde voltadas para a 19 sua população. Enquanto colônia, o papel de Estado cabia à Coroa Portuguesa. Já para os que viviam em solo brasileiro, a raça e status social seriam importantes determinantes para o tipo de cuidado à saúde que teriam acesso. O conhecimento popular, principalmente a sabedoriaindígena sobre plantas e ervas medicinais, seria a base da prática da medicina nesses séculos. O avanço da ciência no mundo coincide com a evolução do Brasil, na sua transição de colônia para nação. O final do século XIX e início do século XX foram épocas de expansão do conhecimento e da prática da medicina brasileira, contribuindo para a evolução das políticas públicas de saúde até os dias de hoje. Referências Bibliográficas ALMEIDA, M. São Paulo na virada do século XX: um laboratório de saúde pública para o Brasil. Tempo, Rio de Janeiro, n. 19, p. 77-89, 2005. Disponível em: https:// www.scielo.br/pdf/tem/v10n19/v10n19a06.pdf. Acesso em: 15 set. 2020. BRASIL. Ministério da Cultura. A carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf. Acesso em: 18 set. 2020. CORREIA, L. C. Instituto de Higiene (1918-1929) no estado de São Paulo – a atuação de Geraldo Horácio de Paula Souza e Mário da Costa Galvão. Cadernos de História da Ciência, São Paulo, v. 7, n. 1, jan./jun. 2011. Disponível em: http://periodicos.ses. sp.bvs.br/scielo.php?script=sci_pdf&pid=S1809-76342011000100005&lng=pt&nrm=i so&tlng=pt. Acesso em: 19 set. 2020. EDLER, F. C. Saúde e Higiene Pública na Ordem Colonial e Joanina. Arquivo Nacional Brasileiro, 22 fev. 2018. Disponível em: http:// www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=5120&Itemid=372. Acesso em: 15 set. 2020. ESCOREL, S.; TEIXEIRA, L. A. História das Políticas de Saúde no Brasil de 1822 a 1923: do império ao desenvolvimento populista. In: GIOVANELLA, L. et al. (Orgs.). Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012. FIOCRUZ. Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Dicionário Histórico- Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930), 15 set. 2020. Disponível 20 em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/stcasarj.htm. Acesso em: 7 jan. 2021. GURGEL, C. B. F. M. et al. A Varíola nos tempos de Dom Pedro II. Cadernos de História da Ciência, São Paulo, v. 7, n. 1, jan./jun. 2011. Disponível em: https://ojs. butantan.gov.br/index.php/chcib/article/view/152. Acesso em: 15 set. 2020. GURGEL, C. B. F. M. Índios, jesuítas e bandeirantes: medicinas e doenças no Brasil dos séculos XVI e XVII. 2009. 194 f. Tese (Doutorado em Clínica Médica) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. MASCARENHAS, R. dos S. História da Saúde Pública no Estado de São Paulo. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 3-19, 2006. Disponível em: https://www. scielo.br/pdf/rsp/v40n1/27108.pdf. Acesso em: 16 set. 2020. MOURELLE, T. Revolta da vacina. Portal de Estudos do Brasil Republicano, 23 jan. 2020. Disponível em: http://querepublicaeessa.an.gov.br/temas/200-revolta-da- vacina.html. Acesso em: 7 jan. 2021. TAMANO, L. T. O. O movimento sanitarista no Brasil: a visão da doença como mal nacional e a saúde como redentora. Khronos, Revista de História da Ciência, São Paulo, n. 4, ago. 2017. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/khronos/article/ view/131909. Acesso em: 16 set. 2020. 21 Da Era Vargas à 4ª República – 1930 a 1964 Autoria: Mariana S. C. Vianna Leitura crítica: Danielle Leite de Lemos Oliveira Objetivos • Compreender os principais fatos históricos desse período. • Compreender as principais políticas de saúde desenvolvidas e seus principais resultados. • Refletir sobre o contexto político e social da época e sua influência nas políticas públicas de saúde. 22 1. A Era Vargas – 1930 a 1945 A Era Vargas iniciou em 1930, com uma revolta armada que contestava os resultados das eleições presidenciais e dava voz a uma insatisfação política e social com a situação do país da época: com o poder político das oligarquias brasileiras, com a corrupção, com a crise econômica mundial de 1929 e com a falta de políticas sociais. Assim, a Era Vargas encerra o período da Primeira República e dá início a um dos períodos mais marcantes da história brasileira. Segundo Hochman (2005), embora o papel do Estado nas políticas públicas de saúde e sociais tenham sido intensificados no início do século XX, é no período de Vargas que esse papel se consolida, aliado a um ideal nacionalista e antiliberal, centralizando no Estado a sua tomada de decisões e o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a população. Além disso, a partir de Vargas se inicia a separação entre a saúde pública, ofertada pelo Estado, e a atenção médica individualizada, promovida pela medicina previdenciária (PONTE et al., 2010). A Lei Eloy Chaves, promulgada em 1923, criou as Caixas de Aposentadoria e Pensão, que passam a ser Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) a partir de 1933, promovidas pela política nacionalista de Vargas que associou trabalho aos direitos de cidadania, vinculando a figura do trabalhador à do novo homem brasileiro (FONSECA, 1993; HOCHMAN, 2005). Os IAPs, por sua vez, passam a organizar a previdência por categoria profissional, não mais por empresas empregadoras (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a publicação da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), outro marco da Era Vargas, influenciaram na criação de IAPs voltadas para categorias profissionais mais organizadas, como: comerciários, bancários, ferroviários e funcionários públicos. Dessa forma, a criação 23 dos IAPs permitia a criação de fundos de pensão e aposentadoria, bem como garantia outros benefícios sociais, entre eles a assistência à saúde. A ampliação dos IAPs fez surgir uma rede de previdência social, com contribuição financeira da União, das empresas e dos trabalhadores. Desse modo, a gestão dos fundos pelo governo federal permitiu a utilização dos recursos arrecadados para a promoção do processo de expansão da industrialização nacional. Nesse sentido, empresas estatais, como a Companhia Siderúrgica Nacional e o Banco do Brasil, receberam parte dos recursos provenientes dos fundos de pensão para o financiamento das suas atividades (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). A seguridade social garantida pelos IAPs, incluída a assistência médica individualizada, protegia apenas algumas categorias de trabalhadores formais, conforme os interesses da política nacionalista do governo. Esse conceito de cidadania regulada, onde os direitos sociais não são universais, excluiu desempregados, trabalhadores rurais e informais da assistência à saúde. A essa parcela excluída da população restavam as entidades filantrópicas de assistência à saúde e as grandes campanhas públicas de saúde desenvolvidas nesse período, com foco no combate a doenças epidêmicas e endêmicas, e na educação sanitária (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). 24 Figura 1 – Obra de Tarsila do Amaral, Os operários–1933 Fonte: http://tarsiladoamaral.com.br/en/obra/social-1933/. Acesso em: 7 jan. 2021. Para Santos (1987 apud ESCOREL; TEIXEIRA, 2012), essa cidadania regulada é fundamental para se entender a base da previdência social brasileira. Logo, aqueles indivíduos que não pertenciam ao processo produtivo eram considerados pré-cidadãos, que se tornariam cidadãos pela regulamentação de novas ocupações e dos direitos sociais a elas atrelados. Para o autor: “a cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupam no processo produtivo, tal como reconhecido por lei” (SANTOS, 1987, p. apud ESCOREL; TEIXEIRA, 2012, [s.p.]). A relação entre a ideologia política de Vargas e a construção de um Estado forte e nacionalista é fundamental para que se compreenda o desenvolvimento das políticas de saúde criadas no seu governo. Nesse contexto, a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), no final de 1930, incorporou o Departamento Nacional de Saúde Pública e o Departamento Nacional de Educação, e atendeu às http://tarsiladoamaral.com.br/en/obra/social-1933/ 25 demandas do movimentosanitarista do início do século XX, defendido por nomes como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, e que reivindicava centralizar as decisões no campo da saúde em um único órgão para todo o território nacional (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Entretanto, poucas foram as políticas de saúde promovias pelo MESP durante os primeiros quatro anos do governo de Vargas – o período conhecido como governo provisório. Foi a partir da gestão de Gustavo Capanema, em julho de 1934, que o MESP passou a alinhar suas ações à política social de Vargas. Em 1935, as campanhas sanitárias, que haviam sido interrompidas, foram retomadas, especialmente no combate à febre amarela. Além disso, segundo Fonseca (1993), foram desenvolvidas políticas de saúde materno-infantil, com o objetivo de moldar o homem brasileiro (ainda na infância) para moldar a nação. Capanema promoveu duas reformas no MESP durante o período em que foi ministro (1934 a 1945). A primeira delas, em 1937, reformulou a estrutura administrativa do Ministério, que passou a ser Ministério da Educação e da Saúde. Essa reforma consolidou o caráter centralizador do ministério e do Estado, com foco na racionalidade administrativa (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Além disso, segundo Hochman (2005), foram criadas delegacias federais de saúde, responsáveis pela coordenação e supervisão de ações de saúde no país, dividas em oito regiões. A partir desse ano, também, foram criadas as Conferências Nacionais de Saúde, um espaço para “articulação entre o governo federal e os estados, viabilizando a sistematização de normas técnicas e administrativas da área da saúde” (HOCHMAN, 2005, p. 133). A segunda reforma, em 1941, criou os Serviços Nacionais, responsáveis por campanhas nacionais e verticalizadas, para o controle de doenças e epidemias (HOCHMAN, 2005), como: tuberculose, malária, febre amarela, lepra e do câncer. Os Serviços Nacionais tinham como objetivo principal o combate a epidemias e ações de prevenção, em parceria com as delegacias de saúde e governos estaduais. Entretanto, de acordo Hochman (2005), com também atendiam ao desejo do governo de 26 ampliar as ações e o controle do Ministério da Educação e Saúde em todo o território nacional. A gestão de Capanema à frente do Ministério da Educação e da Saúde esteve voltada para os ideais varguistas de fortalecimento da figura do Estado nas capitais e no interior do país, com a criação uma rede de serviços de saúde e por um conjunto de legislações “que objetivavam padronizar as atividades dos diversos serviços de saúde nos estados em seus mínimos detalhes, conjugando uma centralização normativa com uma descentralização executiva” (PONTE et al., 2010, p. 139). Essas reformas definiram e consolidaram as ações de saúde pública no país durante o governo de Vargas e nos governos que se seguiram. Por sua vez, o papel centralizador do Estado no planejamento e execução das políticas de saúde durante esse período permaneceu por décadas após Vargas, sendo discutido pelo movimento da Reforma Sanitária Brasileira, na década de 1970, e sendo substituído com a criação do Sistema Único de Saúde. 2. A Fundação Rockefeller e a influência na saúde pública brasileira A aproximação do Brasil com os Estados Unidos, no campo da Saúde Pública, teve início na década de 1920, com bolsas de estudo financiadas pela Fundação Rockefeller a médicos brasileiros. A Fundação, que financiou a criação da Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, influenciou na criação e no modelo de ensino aplicado no Instituto de Higiene de São Paulo, criado em 1918 e berço da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. No Rio de Janeiro, a relação entre pesquisadores e a Fundação permitiu a realização de campanhas sanitárias em parceria (SANTOS; FARIA, 2006). 27 A influência da Fundação Rockfeller na formação de sanitaristas brasileiros, como Geraldo de Paula Souza e Francisco Borges Vieira, também fez surgir um novo serviço de saúde – o Centro de Saúde (CS). De acordo com Mello (2012), criado na Reforma Sanitária paulista de 1925, o CS era o meio para se alcançar a educação sanitária e higienista tão propagada na época. Visto como um serviço essencialmente preventivo e educativo, o CS propunha cuidado centrado na família, dedicação médica integral, cuidado materno-infantil, vacinação, educação e vigilância sanitária, e visitas domiciliares (MELLO, 2012). Com a criação do MESP e a reforma do ensino médico no começo da década de 1930, houve um estímulo na formação de sanitaristas e na disseminação de ações e serviços de saúde voltados para a prática sanitária, como os CS e os postos de higiene. O modelo de ensino e a prática profissional, fundamentados no modelo norte-americano disseminado pela Fundação Rockefeller, estavam alinhados ao projeto político varguista (SANTOS; FARIA, 2006). A participação da Fundação nas pesquisas e campanhas sanitárias de combate à febre amarela no interior do país também contribuiu para a descoberta do ciclo silvestre da doença, além de documentar informações epidemiológicas, sociais e ambientais sobre a doença e seu vetor no Brasil. Além disso, as pesquisas desenvolvidas pela Fundação permitiram o desenvolvimento de uma vacina contra a febre amarela, em 1937 (COSTA et al., 2011). 28 Figura 2 – Provável rota de disseminação da febre amarela no Brasil – 1932 a 1942, Fundação Rockefeller Fonte: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz 2.1 O serviço especial de saúde pública O SESP foi criado no contexto da Segunda Guerra Mundial, como parte do acordo de cooperação firmado entre o Brasil e os Estados Unidos. Os interesses dos Estados Unidos no Brasil eram, sobretudo, militares, com promoção de ações de saúde em regiões com produção de matéria- prima como borracha e minério na região Amazônica e no Vale do Rio Doce (CAMPOS, 2008). O caráter político também exigia o rompimento das relações com a Alemanha e os demais países do Eixo, o que forçou um posicionamento por parte do governo Vargas, que até então não havia declarado oficialmente apoio a nenhum dos lados da guerra. O interesse econômico do governo brasileiro com um acordo desse tipo também foi devido ao financiamento americano de indústrias estatais na 29 época, necessário para a promoção da industrialização pretendida por Vargas. De acordo com Campos (2008), além das ações de saneamento, controle de doenças endêmicas (como a malária) e criação de postos e centros de saúde nessas regiões estratégicas, destaca-se também a educação sanitária, com cursos e treinamentos para médicos, enfermeiros e professoras de escolas primárias. O Ministério da Educação e da Saúde já buscava expandir a formação profissional na saúde, sendo essa uma das diretrizes destacadas pela reforma estrutural de Capanema. Faltavam profissionais qualificados para atuar na assistência direta dos serviços de saúde, como médicos, engenheiros sanitários e enfermeiras. Também eram escassos os profissionais de nível intermediário, como visitadoras sanitárias, guardas sanitários e auxiliares de saneamento (CAMPOS, 2008). O SESP assume, assim, um papel importante na formação desses profissionais, com o financiamento de cursos para médicos, enfermeira e engenheiros sanitários nos Estados Unidos, na Escola de Saúde Pública Johns Hopkins, e com a oferta de cursos rápidos para profissionais intermediários. Assim como a influência que a Fundação Rockefeller teve na década de 1920 sobre a criação do Instituto de Higiene de São Paulo, o SESP também influenciou a criação de escolas de Enfermagem no Brasil. A primeira delas, segundo Campos (2008), tendo mais da metade dos seus custos financiados pelo SESP, foi a Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, em 1943. O fomento a escolas de enfermagem pelo SESP fazia parte do projeto Mais Enfermeiras pelo Brasil, em parceria com a Associação de Hospitais Católicos dos Estados Unidos e as fundações Rockefeller e Kellogg(CAMPOS, 2008). O SESP manteria suas atividades até 1960, quando se torna Fundação Serviço Especial de Saúde existindo até 1991. 30 Figura 3 – Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt, presidente dos Estados Unidos. Rio de Janeiro, 1936 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vargas_e_Roosevelt.jpg. Acesso em: 7 jan. 2021. Embora possa parecer que o desenvolvimento das políticas de saúde no Brasil tenha sido orientado a partir da influência dos Estados Unidos, as ações propostas pelo SESP e pelos acordos de cooperação entre os dois países coincidia com a política populista e nacionalista de Vargas. As políticas de saúde desenvolvidas no seu governo buscaram atender aos interesses políticos do próprio Vargas durante o seu governo ditatorial, com a criação de uma identidade nacionalista e com forte presença do Estado, e também aos interesses e reivindicações de empresários e grupos sindicais, que com interesses diferentes, acabaram por influenciar na criação de políticas de seguridade social e ações de saúde voltadas para os trabalhadores brasileiros (PONTE et al., 2010). A interiorização das ações de saúde pelo Brasil foi necessária para promover o desenvolvimento econômico do país e reafirmar a presença do Estado em regiões mais afastadas dos principais centros urbanos. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vargas_e_Roosevelt.jpg 31 Com o aumento da população urbana brasileira, também, eram necessárias ações de saúde voltadas ao desenvolvimento urbano e apoiadas na educação sanitária. A Era Vargas inicia o processo de estatização e burocratização da saúde pública, que continuaram a ser praticadas mesmo após o fim do seu governo, em 1945. 3. A 4ª República – 1945 a 1964 O aumento do autoritarismo imposto por Vargas durante o seu governo começou a criar um grande descontentamento político. Ações de repressão como a censura e a extinção de partidos políticos, além do envio de tropas brasileiras para combater o nazismo e o fascismo na Europa, abalaram um governo ditatorial e centralizador. A tentativa de convocar novas eleições em 1945 permitiu a recriação de partidos políticos para concorrer à presidência, bem como de manifestações populares a favor da permanência de Getúlio Vargas no poder. A crise política terminou com a deposição de Vargas da presidência e a eleição de Eurico Gaspar Dutra. Durante o período da 4ª República, o Brasil teve nove presidentes, quatro eleitos pelo voto. Nesse período, até mesmo, o próprio Getúlio Vargas retornaria à presidência no período de 1951 a 1954, quando uma crise política o levou a cometer suicídio. No campo da Saúde Pública, a estrutura administrativa do Ministério da Educação e da Saúde não sofre muitas modificações até 1953, quando é criado o Ministério da Saúde. A Guerra Fria e o combate ideológico entre Estados Unidos e União Soviética influenciaram também as decisões políticas na saúde brasileira. 32 Durante o governo de Dutra (1946 – 1951) prevaleceu o “sanitarismo campanhista” (apoiado em grandes campanhas sanitárias e focado em problemas de saúde específicos) nas políticas públicas de saúde, mantendo as campanhas sanitárias da Era Vargas voltadas para doenças específicas, verticalizadas e centralizadas (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Nesse período, também, se acentuaram as discussões a favor da criação de um ministério da saúde independente (que culminaram com a separação do Ministério da Saúde da área da educação), além de críticas às políticas campanhistas – vistas como autoritárias e pouco efetivas para garantir o desenvolvimento econômico dos principais centros urbanos (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012; REIS, 2015). Com a aprovação da nova Constituição Federal de 1946, a previdência social passa a oferecer assistência médica, hospitalar e sanitária, direitos que passam a ser garantidos na legislação trabalhista. As reinvindicações sindicais da época influenciaram no aumento da oferta de benefícios oferecidos pelos IAPs, ainda que de maneira heterogênea. Esse contexto social, aliado ao discurso e às políticas do governo voltadas para o desenvolvimento econômico e industrial do país, contribuiu para a valorização da assistência médica especializada e a assistência à saúde centralizada nos grandes hospitais. Durante o governo de Dutra e o de Vargas (1951 – 1954), houve um aumento significativo de hospitais, a maioria previdenciários, acompanhado de um aumento dos gastos públicos (através da previdência social) com a assistência hospitalar (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). A política econômica de Vargas, dessa vez como presidente eleito por meio do voto, manteve o tom populista e nacionalista presentes em seu outro governo, com franco incentivo à industrialização nacional. Em 1953, mesmo ano em que foi criada a Petrobrás, a criação do novo Ministério da Saúde traz uma nova organização institucional, fortemente influenciada por um movimento contrário ao sanitarismo campanhista que continuava a orientar as ações públicas de saúde (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). 33 Após o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, novas eleições presidenciais foram realizadas em 1955, sendo eleito como presidente Juscelino Kubitscheck, médico cirurgião e urologista, exercendo seu mandato de 1956 a 1961. De origem pobre do interior de Minas Gerais, Juscelino marcou a história brasileira pelas ações do seu governo voltadas para o desenvolvimento econômico do país, com a meta de evoluir “50 anos em 5” e a construção de Brasília. JK, como ficou marcado, defendia a ideia de que os problemas de saúde do país impediam o desenvolvimento necessário para a nação. O governo de JK priorizou políticas de saúde voltadas para as doenças que atingiam grande parte da população brasileira, como a varíola, a lepra e a malária, ainda presente em algumas regiões do país. Segundo Hochman (2009), também estava presente no discurso do presidente a interiorização do país e a necessidade de combater os principais problemas de saúde da população dessas regiões – incluindo o combate à fome e à pobreza. A necessidade de combater e erradicar as doenças endêmicas do interior do país levou à criação do Departamento Nacional de Endemias Rurais, em 1956, órgão que passou a unificar muitos serviços nacionais criados na Era Vargas. No plano de governo de JK, destacavam-se metas para a saúde pública, com objetivos que variavam da assistência a algumas doenças (como o câncer), o combate a outras (poliomielite e tuberculose) e a erradicação de doenças como doença de Chagas e malária (HOCHMAN, 2009). A descoberta de novos recursos para o tratamento e prevenção de muitas dessas enfermidades, como alguns antibióticos e vacinas, permitiu um resultado positivo para alcançar muitas dessas metas estabelecidas. Apesar de parte da política de saúde de Juscelino manter o alinhamento com as grandes campanhas sanitárias realizadas desde o começo do século XX, parte de sua política também começa a incorporar ações voltadas ao combate de doenças crônicas e do câncer – doenças de “país 34 rico” mas que já começavam a aumentar no Brasil, que iniciava uma mudança no seu perfil epidemiológico. As políticas públicas do governo de JK na área de saneamento básico e habitação, além de outras políticas sociais, também deram início a essa mudança. Figura 4 – Foto de Mário Fontenelle–Construção de Brasília Fonte: https://www.metropoles.com/conceicao-freitas/e-um-acervo-da-memoria- brasiliense-mas-e-tambem-uma-historia-de-amor. Acesso em: 7 jan. 2021. O governo de JK manteve a política de previdência social, que continuava a oferecer assistência médica aos trabalhadores segurados. E, assim, permaneciam excluídos aqueles que não tinham acesso a esse benefício, restando como alternativa as entidades filantrópicas. O sucessor de Juscelino Kubitschek assume a presidência em 1961, por um curto período de tempo, Jânio Quadros, eleito com grande maioria dos votos e tendo como lema “varrer a corrupção”. No entanto, ele renunciouao mandato após oito meses no cargo. A polaridade ideológica promovida pela Guerra Fria estava no seu auge e o comportamento contraditório de Jânio Quadros, que ora parecia acenar ao lado soviético, ora parecia acenar ao lado norte-americano, gerou https://www.metropoles.com/conceicao-freitas/e-um-acervo-da-memoria-brasiliense-mas-e-tambem-uma-historia-de-amor https://www.metropoles.com/conceicao-freitas/e-um-acervo-da-memoria-brasiliense-mas-e-tambem-uma-historia-de-amor 35 uma crise política que o levou a renunciar – e que deu início a outra crise que culminaria com o golpe de 1964. João Goulart, vice-presidente de Jânio Quadros, foi impedido de assumir o mandato assim que Jânio renunciou. Durante um curto período de regime parlamentarista, Jango (apelido de João Goulart) assume a presidência em 1963 após um plebiscito aprovando a volta do presidencialismo. A instabilidade política desse período não permitiu que houvesse grandes avanços ou mudanças nas políticas de saúde nacionais. Nesses três anos até o golpe civil-militar de 1964, seis ministros ocuparam o Ministério da Saúde (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Dois eventos se destacam nesse período: O XV Congresso Brasileiro de Higiene em 1962 e a 3ª Conferência Nacional de Saúde, em 1963. O Congresso de Higiene foi marcado pela discussão a respeito de um conceito ampliado de saúde e a busca por uma nova prática sanitária (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). As recomendações aprovadas durante o evento, relacionando saúde às condições de vida da população (especialmente a pobreza), foram utilizadas como argumento para a convocação da 3ª Conferência de Saúde, que tinha como objetivo realizar o Plano Nacional da Saúde (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Portanto, essa Conferência marca a origem da municipalização dos serviços de saúde no Brasil, interrompida pelo golpe de 1964 e retomada após a redemocratização, em 1985 (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Destaca-se da Conferência o discurso de João Goulart na abertura do evento, sobre a necessidade de incorporar os “municípios do país em uma rede básica de serviços médico-sanitários, que forneçam a todos os brasileiros um mínimo indispensável à defesa de sua vida” (BRASIL, 1991 apud ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). O aparente alinhamento ideológico de Jango e suas propostas de reforma para o país aos ideais defendidos pela União Soviética 36 foram o principal disparador para o golpe de 1964. O crescente descontentamento de parte da elite brasileira e de investidores estrangeiros com as ações de João Goulart somou-se à “ameaça comunista” própria da Guerra Fria, levando o país a um período de ditadura militar por 21 anos. 4. Considerações finais Os poucos mais de 30 anos que contemplam a Era Vargas e a 4ª República foram marcantes para a história do país em muitos aspectos, com transformações sociais, políticas e econômicas que ajudaram a definir as políticas de saúde desse período e que, de certa maneira, influenciaram o movimento pela Reforma Sanitária da década de 1970 e a criação do Sistema Único de Saúde na década de 1990. O legado desse período, talvez, sejam os resultados obtidos no combate as muitas doenças que foram controladas ou erradicadas no país, além de conformar um papel assumido pelo Estado na definição e condução de políticas de saúde voltadas para a população brasileira. Referências Bibliográficas CAMPOS, A. L. V. Cooperação internacional em saúde: o serviço especial de saúde pública e seu programa de enfermagem. Ciência & Saúde Coletiva, Niterói, v. 13, n. 3, p. 879-888, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v13n3/10.pdf. Acesso em: 23 set. 2020. COSTA, Z. G. A. et al. Evolução histórica da vigilância epidemiológica e do controle da febre amarela no Brasil. Revista Pan-Amazônica de Saúde, v. 2, n. 1, p. 11-26, 2011. Disponível em: http://scielo.iec.gov.br/pdf/rpas/v2n1/v2n1a02.pdf. Acesso em: 26 set. 2020. ESCOREL, S.; TEIXEIRA, L. A. História das políticas de saúde no Brasil de 1822 a 1963: do império ao desenvolvimento populista. In: GIOVANELLA, L. et al. (Orgs.). Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012. 37 FONSECA, C. M. O. A saúde da criança na política social do primeiro governo Vargas. PHYSIS – Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, 1993. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/physis/v3n2/04.pdf. 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Vianna Leitura crítica: Danielle Leite de Lemos Oliveira Objetivos • Compreender os principais fatos históricos do período entre 1964 a 1988. • Contextualizar a construção da Reforma Sanitária Brasileira. • Refletir sobre os percursos históricos e sociais da criação do Sistema Único de Saúde. 39 1. Ditadura militar – breve história A crise política do governo de João Goulart culminou com o golpe civil- militar em 1964. Em um movimento articulado entre forças armadas, elite econômica e governo norte-americano, o golpe de 1964 depôs o presidente, suspendeu os direitos civis e políticos no país e deu início a um período de repressão, violência e autoritarismo que durou 21 anos. Os argumentos para o golpe estavam relacionados ao contexto político nacional e mundial da época. No auge da Guerra Fria e da polaridade entre capitalismo e comunismo (ou entre Estados Unidos e União Soviética), João Goulart era visto como um simpatizante do bloco comunista, sobretudo por sua ideologia trabalhista e por suas propostas de reforma para o país. Dessa forma, os planos para reforma de base, como reforma agrária, tributária e trabalhista, serviram de principal motivo para que o golpe fosse executado, livrando assim, o país da ameaça comunista. Durante os 21 anos de regime militar, o país foi regido por meio dos Atos Institucionais (AIs) – uma maneira de garantir o poder e centralizar as decisões no poder executivo, governado por militares. O primeiro deles, o AI 1, alterava a constituição vigente (de 1946) para que fosse possível a eleição indireta para presidente, além de cassar mandatos de políticos de oposição e suspender direitos políticos daqueles que fossem considerados uma “ameaça comunista”. O regime militar pode ser dividido em três períodos, conforme algumas características. O primeiro, entre 1964 a 1969, envolveos governos de Humberto Castello Branco (1964-1967) e de Artur Costa e Silva (1967-1969). Esse primeiro período foi marcado pela instituição do regime autoritário por meio dos primeiros AIs (MEMÓRIAS..., 2020), com políticas de austeridade fiscal e arrocho salarial, suspendendo direitos trabalhistas. Com o aumento de movimentos sociais contrários 40 ao golpe e à política econômica, sobretudo movimentos estudantis e greves trabalhistas, a resposta militar veio através do AI 5, em 1968, considerado o ato institucional mais severo da ditadura militar: foram fechados o senado e a assembleia legislativa, com a cassação dos mandatos parlamentares, houve um endurecimento da censura e aumento da repressão aos que se opusessem ao regime militar (ESCOREL, 2012; MEMÓRIAS..., 2020). Por outro lado, o segundo período foi marcado por atos de extrema repressão e perseguição política a todos aqueles que eram considerados contrários ao regime militar. De 1969 a 1979, períodos em que Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979) assumiram a presidência, a repressão promovida pelo Estado utilizou “censura, vigilância, tortura sistemática, prisões ilegais e desaparecimento” (MEMÓRIAS..., 2020, [s.p.]). O agravamento da crise econômica no início da década de 1970, divergências entre os militares e o afastamento dos Estados Unidos (que já não apoiava mais as ditaduras da América do Sul) foram justificativas para o endurecimento das medidas opressoras do regime que, embora estivessem enfrentando forte pressão para a reabertura gradual da democracia, só veio dar sinais dessa mudança com a revogação do AI 5 em 1978, que entrou em vigor em 1979 (MEMÓRIAS..., 2020). Assim, terminava o período “do terror” e começava uma lenta e gradual abertura democrática. 41 Figura 1 – Tropas do exército após a publicação do AI 5 – Rio de Janeiro, 1968 Fonte: http://memorialdademocracia.com.br/card/ai-5-confere-poder-total-aos- militares#card-84. Acesso em: 7 jan. 2021. Os seis anos de mandato de João Batista Figueiredo (1979 a 1985) testemunharam o aumento da pressão popular pelo fim da ditadura, pela realização de eleições diretas para presidente e por uma nova constituinte. Em meio as muitas tensões políticas e um cenário econômico caótico, gradualmente, as normas repressivas foram revogadas e ampliou-se a participação democrática. Em 1979 foi publicada a Lei da Anistia, que permitiu a soltura de presos políticos e o retorno ao país de exilados. Dessa forma, criaram-se novos partidos políticos para eleições diretas de governadores, o que ampliou o debate democrático. A pressão da sociedade pelo fim da ditadura atingiu seu ápice com o movimento das “Diretas Já”, com vários comícios pelo país e a participação popular massiva, que reivindicava eleições diretas para presidente em 1984. Apesar da lei não ter sido aprovada nesse ano, foram eleitos indiretamente para a presidência candidatos de oposição ao regime: Tancredo Neves e José Sarney. Tancredo não chegaria a assumir a presidência devido a problemas de saúde, e morreria em abril de 1985. Segundo Escorel (2012), em março desse mesmo ano, Sarney http://memorialdademocracia.com.br/card/ai-5-confere-poder-total-aos-militares#card-84 http://memorialdademocracia.com.br/card/ai-5-confere-poder-total-aos-militares#card-84 42 assumia a presidência e encerrava o período da ditadura militar no Brasil. 1.1 Ditadura e saúde pública Esse breve histórico dos 21 anos da ditadura militar no Brasil é fundamental para a compreensão dos efeitos que a ditadura trouxe para as políticas públicas de saúde no país e, principalmente, para entender os caminhos percorridos até a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse contexto, muitas das dificuldades encontradas no cotidiano dos serviços de saúde do SUS são heranças desse período. Você já se perguntou sobre a origem dos problemas que você vivencia na sua prática? Há três aspectos precisam ser considerados ao analisarmos a relação entre o regime militar e a área da saúde: os efeitos da repressão política (o que prejudicou o ensino e a pesquisa em Saúde Pública no Brasil); o crescimento da medicina previdenciária e dos planos privados de saúde; e o movimento de contestação à ditadura, que no campo da saúde favoreceu o movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Com a suspensão de direitos civis e políticos, muitos funcionários públicos foram destituídos dos cargos ou foram aposentados compulsoriamente, incluindo pesquisadores e professores universitários da área da Saúde Pública. Nesse período, houve fechamento de universidades e centros de pesquisa, os movimentos estudantis e de classe foram proibidos e qualquer atitude “suspeita” poderia te transformar em um “subversivo”, ou seja, um inimigo do Estado. Nesse contexto, muitos foram presos ou saíram do país para evitar a repressão política e as torturas que a ditadura promovia. Isso causou um apagão de profissionais que interrompeu importantes pesquisas na área, como o que ocorreu na Fundação Oswaldo Cruz em 1970: a suspensão dos direitos políticos de 10 grandes pesquisadores da 43 instituição interrompeu pesquisas reconhecidas internacionalmente, desfez laboratórios e impediu o trabalho de outros profissionais desses laboratórios. Nesse episódio, acervos e materiais de pesquisa foram destruídos. De acordo com Lima (2014), o Massacre de Manguinhos, como ficou conhecido, interrompeu importantes estudos na área da farmacologia, entomologia, bioquímica e imunização. Figura 2 – Pesquisadores da Fiocruz cassados em 1970 e reintegrados em 1985 Fonte: https://portal.fiocruz.br/noticia/ditadura-regime-instituido-pelo-golpe-deixou- marcas-no-campo-da-ciencia. Acesso em: 7 jan. 2021. As discussões sobre o conceito de saúde e a reforma administrativa dos serviços, iniciadas na 3ª Conferência Nacional de Saúde em 1963, também foram interrompidas pelo golpe de 1964 e só seriam retomadas com o movimento da Reforma Sanitária Brasileira (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012). Logo na primeira década do regime militar, as ações de saúde foram ainda mais centralizadas no governo federal, com pouca (ou nenhuma) participação dos estados e municípios. O modelo previdenciário foi fortalecido com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1966, segundo Escorel (2012), consolidando https://portal.fiocruz.br/noticia/ditadura-regime-instituido-pelo-golpe-deixou-marcas-no-campo-da-ciencia https://portal.fiocruz.br/noticia/ditadura-regime-instituido-pelo-golpe-deixou-marcas-no-campo-da-ciencia 44 a lógica de assistência à saúde baseada na assistência médica individual e curativa, através da cobertura previdenciária. A criação do INPS unificou os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) criados na Era Vargas na década de 1930. A integração desses institutos em um único órgão garantiu força administrativa, política e financeira, com verba destinada à assistência à saúde muitas vezes maior do que a verba do Ministério da Saúde. Assim, ampliou-se a compra de serviços privados de saúde pelo INPS, que garantia assistência àqueles que contribuíam para isso – os trabalhadores formais. Dessa forma, quem não contribuía para o INPS dispunha das entidades filantrópicas (assistência hospitalar), serviços privados de saúde (assistência individual, para quem podia comprar o serviço) e de alguns (poucos) postos e centros de saúde, voltados para programas de saúde específicos, como saúde materno-infantil e controle da tuberculose (ESCOREL, 2012). Apesar da assistência previdenciária não ter surgido com o golpe militar, durante a ditadura ela assumiu o protagonismo como política de saúde do Estado (BERTOLOZZI; GRECO, 1996). A unificação dos IAPs, o arrocho salarial e o aumento da concentração de renda para uma pequena parcela da população brasileira garantiram ao INPS o 3º maior orçamento do país no início da década de 1970, influenciando na privatização de serviços médicos e na práticada medicina liberal, assuntos valorizados com a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social, em 1974 (BERTOLOZZI; GRECO, 1996; ESCOREL, 2012). A medicina liberal encontrou espaço através da medicina de grupo a partir de convênios médicos com as empresas, que dessa forma deixavam de contribuir para a previdência social. No entanto, de acordo com Escorel (2012), os dependentes desses convênios continuavam a usar os serviços custeados pela previdência nas situações mais complexas e, portanto, mais onerosas. 45 Paralelamente ao crescimento desses serviços privados, fraudes ao INPS e corrupção dos prestadores de serviços de saúde foram frequentes na ditadura, que forjavam ou adulteravam a prestação de contas de serviços prestados e criaram, de maneira progressiva, um déficit orçamentário no fundo da previdência (ESCOREL, 2012). Segundo Paim (2007), a crise previdenciária resultante desse cenário contribui para que fossem discutidos e propostos novos modelos de atenção à saúde. Em 1975 foi realizada a 5ª Conferência Nacional de Saúde, que orientou a criação do Sistema Nacional de Saúde (SNS), legitimando a diversidade de serviços existentes na época. O SNS também passou a definir as atribuições das instituições, […] cabendo à Previdência Social, a assistência individual e curativa, enquanto que, os cuidados preventivos e de alcance coletivo ficaram sob a responsabilidade do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. (BERTOLOZZI; GRECO, 2012, p. 388) Em 1977, com a criação do Sistema Nacional de Previdência Social, o INPS passou a ser responsável pela concessão de benefícios aos segurados, e a assistência à saúde foi atribuída ao recém-criado Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Com o objetivo de reorganizar os serviços de saúde, eles acabaram levando a uma fragmentação maior das políticas e ações da previdência (BERTOLUZZI; GRECO, 1996). A ditadura militar contribuiu dessa forma para as políticas de saúde no Brasil. Com instrumentos burocráticos e forte apelo liberal na prestação de serviços de saúde, esse período foi caracterizado pelo aumento do setor privado na saúde e por uma assistência individual e hospitalar, vistos pela ditadura como sinal de progresso e de desenvolvimento da nação. De acordo com Escorel (2012), o Ministério da Saúde continuava a promover campanhas sanitárias no interior do país e outras ações de caráter mais preventivo, como campanhas de vacinação. 46 Sob esse pano de fundo surgiu o movimento da Reforma Sanitária Brasileira, onde a repressão política fez surgir novos atores sociais que, na luta contra a ditadura, começaram a reivindicar a democratização da saúde (PAIM, 2007). 2. Reforma sanitária brasileira Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Eu pergunto a você Onde vai se esconder Da enorme euforia Como vai proibir Quando o galo insistir Em cantar Água nova brotando E a gente se amando Sem parar (Apesar de Você, Chico Buarque – 1970). 47 Figura 3 – Comício histórico do movimento “Diretas Já”, que reuniu mais de 1,5 milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo – 1984 Fonte: http://memorialdademocracia.com.br/card/diretas-ja. Acesso em: 7 jan. 2021. O movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) foi um movimento social e uma proposta de reforma social (PAIM, 2007), mobilizando uma parcela da sociedade a discutir e a propor novos olhares sobre o conceito de saúde e sobre as práticas sanitárias, buscando acesso universal à saúde (SOUTO; OLIVEIRA, 2016). Enquanto mobilização política surgiu no interior das universidades, em resposta à exclusão da sociedade nas decisões das políticas de saúde (BERTOLOZZI; GRECO, 1996; ESCOREL, 2012). Segundo Escorel (2012), a participação das universidades nas discussões teóricas e ideológicas da RSB surgiu dentro dos departamentos de Medicina Preventiva, criados em 1968 na reforma do ensino superior realizada pelo regime militar. A Medicina Preventiva propunha uma nova atuação médica e um novo olhar sobre o conceito de saúde e doença (AROUCA, 1975). Essa proposta já vinha sendo discutida e promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Pan- http://memorialdademocracia.com.br/card/diretas-ja 48 Americana de Saúde (OPAS), promovendo debates sobre o tema em vários países (ESCOREL, 2012). Dentro do contexto político, econômico e sanitário que o Brasil enfrentava no início da década de 1970, as ações de saúde do regime militar incorporaram o caráter preventivista dessas discussões e algumas políticas foram desenvolvidas, entre elas o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), em 1976, com o objetivo de criar serviços básicos de saúde e de saneamento nas regiões mais pobres do país (BERTOLOZZI; GRECO, 1996; PAIM, 2007). Além disso, no início da década de 1970 começa a ganhar força em algumas universidades, como Universidade Estadual de Campinas, Universidade de São Paulo e Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o conceito de medicina social, discutindo os determinantes sociais no processo saúde-doença (ESCOREL, 2012). Por fim, essa corrente apoiaria as reivindicações da RSB. Diante da tensão política provocada pelo endurecimento do regime militar e do modelo hospitalar de atenção à saúde, promovido pela medicina previdenciária, vários movimentos sociais foram ressurgindo. Nesse contexto, em 1976 foi criado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) “trazendo para discussão a questão da democratização da saúde e constituindo-se como um intelectual coletivo, capaz de reconstruir o pensamento em saúde” (PAIM, 2007, p. 75). Iniciava-se, assim, o movimento da RSB, aglutinando vários grupos sociais que se orientavam pela medicina social e que buscavam transformar a área da saúde no país (ESCOREL, 2012). O CEBES era (e ainda é) responsável pela editoração da revista “Saúde em Debate”, que logo no editorial do seu segundo número já publicava “que a saúde é um direito de cada um e de todos os brasileiros” (EDITORIAL I apud PAIM, 2007, p. 76). Segundo Paim (2007), pouco tempo depois da criação do CEBES, em 1979, foi criada a Associação 49 Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), que ajudaria a ampliar as discussões e reivindicações desse movimento. Em 1980 é realizada a 7ª Conferência Nacional de Saúde que, diante de participantes indicados pelo governo militar, anunciou o Programa Nacional de Serviços de Saúde, o Prev-Saúde. Diante da crise do regime militar, o Prev-Saúde trazia um discurso democrático-social, que em sua proposta original apresentava como objetivos ampliar a cobertura de serviços básicos de saúde para toda a população, reorganizar o setor com foco na redução de custos e aumento de produtividade e melhorar as condições de moradia e saneamento básico (BERTOLUZZI; GRECO, 1996). No entanto, de acordo com Paim (2007), essa proposta original encontrou forte crítica e resistência em segmentos do governo, que influenciados pelos interesses do setor privado de saúde, enfatizaram a redução dos custos proposta pelo programa. Com a criação, em 1982, do Plano de Reorientação da Assistência à Saúde no Âmbito da Previdência Social (Plano do CONASP – Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária), algumas políticas de saúde foram implementadas, com grande enfoque racionalizador e na assistência à saúde previdenciária. No campo da assistência à saúde, resgatava os objetivos do Prev-Saúde priorizando a atenção primária à saúde e propondo a integração dos serviços de saúde de maneira hierarquizada e regionalizada (PAIM, 2007). Para o movimento da RSB, especificamente para a ABRASCO, de acordo com Paim (2007), essas medidas não consideravam a participação da sociedade na discussão das políticas de saúde e não consideravam os determinantes da saúde brasileira, sendo fortemente orientadas pela lógica e pelos interesses privados e hospitalares. O Plano do CONASPgerou outros projetos e programas, entre eles o Programa de Ações Integradas de Saúde (PAIS). Esse programa criou a pactuação trilateral entre as esferas do governo: municipal, estadual e federal. O PAIS permitiu que estados e municípios firmassem convênio 50 com o INAMPS, que passou a financiar serviços de saúde municipais e estaduais. Com isso, segundo Escorel (2012), dá-se início ao processo de universalização da assistência à saúde no país. Apesar dos interesses contrários ao financiamento de estados e municípios pelo INAMPS, o PAIS evolui de programa para uma estratégia do governo federal para reorientação da política de saúde nacional, em 1984. De acordo com Escorel (2012), denominada como Ações Integradas de Saúde (AIS), essa estratégia privilegiava o setor público de saúde e um planejamento das ações e serviços de saúde voltados para o perfil epidemiológico da população, de maneira hierarquizada, regionalizada e descentralizada, valorizando as ações básicas de saúde, o que permitiria unificar o sistema de saúde. A década de 1980 também testemunha a pressão popular pelo fim da ditadura, exigindo a volta da democracia e do Estado de Direito. A crise do regime militar também se dá pela crise nas relações entre a elite empresarial, investidores estrangeiros e a tecnoburocracia militar e civil, o que ajudou no processo de abertura democrática (ESCOREL, 2012). A campanha das “Diretas Já” amplia as reivindicações e a participação da população nas discussões sociais, inclusive na área da saúde. As discussões atingiriam o seu ápice com a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. A RSB, segundo Paim (2007), ampliava o seu discurso e começava a alcançar o seu propósito enquanto reforma: a democratização da saúde, a democratização do Estado e a democratização da sociedade. 2.1 A 8ª Conferência Nacional de Saúde A 8ª Conferência é um marco para a RSB e para o processo de abertura democrática do país. Pela primeira vez uma conferência de saúde estava aberta à população, que participou ativamente das discussões realizadas nesse evento. A luta pela redemocratização política do país 51 alimentou o desejo popular por reivindicar seus direitos sociais, sendo a saúde um deles. Nos anos que antecederam à 8ª Conferência foram realizados vários eventos para discussão e elaboração de uma política de saúde orientada pela RSB (ESCOREL, 2012; PAIM, 2007). Entre eles, o V Simpósio sobre a Política Nacional de Saúde, realizado em 1984, e o III Encontro Municipal do Setor Saúde. As discussões e as propostas desses eventos serviram de base para a 8ª Conferência e buscaram orientar o governo de transição e a elaboração do plano de governo de Tancredo Neves, já eleito indiretamente para a presidência da república. A ABRASCO teve um papel fundamental no fomento e na orientação das propostas discutidas na 8ª Conferência e nas que se seguiram a ela (PAIM, 2007). Em 1986, o I Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, que teve como tema “A Reforma Sanitária: garantia do direito universal à saúde”. Esse congresso, segundo Paim (2007), gerou a proposta da ABRASCO para a 8ª Conferência: “Pela Reforma Sanitária. Saúde: direito de todos, dever do Estado”, frase utilizada no artigo 196 da Constituição Federal de 1988. A partir desse embasamento ideológico e social, a 8ª Conferência acontece em um contexto de euforia e de vontade popular em fazer valer suas reivindicações. Então, organizou-se em três eixos: “saúde como direito inerente à cidadania, reformulação do sistema nacional de saúde e financiamento do setor saúde” (PAIM, 2007, p. 92). Com a participação de mais de 4000 pessoas, a Conferência debateu e aprovou as propostas que reivindicavam a “unificação do sistema de saúde, o conceito ampliado dessaúde, o direito de cidadania e dever do Estado” além de novo financiamento do sistema e a participação social (ESCOREL, 2012, [s.p.]). 52 Figura 4 – Registro fotográfico da 8ª Conferência Nacional de Saúde – Brasília, 1986 Fonte: https://portal.fiocruz.br/noticia/casa-de-oswaldo-cruz-preserva-memoria-da-oitava- conferencia. Acesso em: 7 jan. 2021. 2.2 A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) Entre a realização da 8ª Conferência e a promulgação da lei orgânica do SUS, em 1990, outros eventos contribuíram para a criação do SUS. Após a Conferência foram criadas a Comissão Nacional da Reforma Sanitária e a Plenária Nacional de Saúde, esta última com papel fundamental na aprovação do capítulo sobre saúde na nova constituinte, algo “inédito na história constitucional, refletindo o pensamento e a luta histórica do movimento sanitário” (ESCOREL, 2012, [s.p.]). Além disso, houve a ampliação das AIS, evoluindo para a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) em 1987, embrião do Sistema Único de Saúde. O SUDS apresentava a proposta de um sistema de saúde organizado por distritos de saúde, buscando vincular os ideais da RSB à democratização da saúde. Apesar de alguns conflitos ideológicos, segundo Paim (2007), https://portal.fiocruz.br/noticia/casa-de-oswaldo-cruz-preserva-memoria-da-oitava-conferencia https://portal.fiocruz.br/noticia/casa-de-oswaldo-cruz-preserva-memoria-da-oitava-conferencia 53 o SUDS permitiu iniciar algumas mudanças no sistema de saúde e preparando-o para a implantação do SUS e para o fim da INAMPS. Para consolidar a RSB, Paim (2007, p. 124) cita três “trincheiras de luta”: a técnico-institucional, onde o SUDS seria um importante ator; a sócio- comunitária, com o fortalecimento da organização da sociedade civil; e a legislativo-parlamentar, representada pela assembleia constituinte e demais assembleias legislativas. Essa última instância, por sua vez, pode ser representada pela Constituição Federal de 1988, que dedica cinco artigos para a saúde, formalizando a “saúde como direito de todos e dever do Estado” (BRASIL, 1988, art. 196), orientando os princípios, o campo de atuação e a organização do novo sistema de saúde. 3. Considerações finais Apesar do período da ditadura militar ter sido marcado por violência, repressão e tortura, é interessante analisarmos que o contra movimento ao regime militar originou o movimento pela RSB e ampliou as discussões sobre a democratização do país para a área da saúde, como o conceito sobre determinantes sociais da doença, saúde como direito e cidadania e a importância de participação popular no processo de tomada de decisão. Após 30 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, muitos desafios encontrados no início da RSB permanecem, como a influência dos interesses privados nas políticas públicas de saúde. Nesse sentido, muitos pesquisadores apontam que o movimento da reforma ainda não foi concluído, sendo necessário manter as discussões da RSB e promovendo a implantação do SUS, que ainda está incompleta. Historicamente, o SUS é muito jovem–e podemos refletir sobre o quanto dos ideais democráticos que originaram a sua criação, como a participação popular e o papel do Estado em garantir saúde a todos, permanecem vivos nas comunidades que nos cercam. 54 Referências Bibliográficas APESAR de você. Compositor: Chico Buarque. São Paulo: Phonogram, 1970. AROUCA, A. S. da S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. 1975. 267 p. Tese (Doutorado em Medicina Preventiva)–Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1975. Disponível em: https://teses.icict.fiocruz.br/pdf/aroucaass.pdf. Acesso em: 7 jan. 2021. BERTOLOZZI, M. R.; GRECO, R. M. As políticas de saúde no Brasil: reconstrução histórica e perspectivas atuais. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 380-98, 1996. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/reeusp/ v30n3/v30n3a04.pdf. Acesso em: 25 set. 2020. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988 . Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
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