Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Indaial – 2019 Enogastronomia Prof. Carlos Henrique Mayer 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof. Carlos Henrique Mayer Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: M468e Mayer, Carlos Henrique Enogastronomia. / Carlos Henrique Mayer. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 173 p.; il. ISBN 978-85-515-0375-1 1. Enogastronomia. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 641.5 III aprEsEntação Olá, acadêmico! O assunto deste livro é capaz de deixá-lo mais feliz, empolgado e até mesmo poderá ajudá-lo a fazer amigos. Leia sem moderação! Não estamos exagerando ao associar o Livro Didático de Enogastronomia aos mesmos efeitos de uma taça de vinho, bebida que será a personagem principal dos próximos capítulos. Garantimos que a leitura poderá ser realmente embriagante, no melhor dos sentidos! Na Unidade 1 vamos discorrer sobre a História do Vinho, descobrir onde e como ele surgiu, como ele era e como evoluiu com o passar dos séculos. Entenderemos quem e como o consumia. Será possível perceber que, na prática, o vinho sempre existiu, sempre esteve presente em meio à humanidade e que acompanha o homem em sua evolução. Você talvez já tenha ouvido falar que o vinho é uma bebida elitizada, mas nem sempre foi assim. Historicamente, o vinho foi uma bebida de reis, do clero, dos nobres e dos mais afortunados, mas, atualmente, ele está popularizado e devemos brindar a esse fato! Ainda nesta unidade vamos nos deparar com a magia da transformação da uva em vinho, o néctar dos deuses! Conheceremos os diferentes tipos de vinhos, técnicas de cultivo da videira, vinificação, cortes e misturas, barricas de carvalho e, enfim, o terroir (lê-se: terroá). O conhecimento do vinho enquanto bebida e produto de gastronomia teremos ao avançar para a Unidade 2. Abordaremos aspectos do vinho atual, consumido (muito ou pouco) por cada um de nós e cujo conhecimento jamais deve ser desdenhado por qualquer aspirante a cozinheiro, chef, ou apreciador da boa gastronomia. Unindo as sensações obtidas nesses três momentos temos um vinho a ser descrito: um produto com suas características destrinchadas, relacionadas, numeradas e medidas. A apresentação deste resultado deverá ser a exata expressão de como é o vinho. Será na Unidade 3 que direcionaremos nossos estudos a respeito da união do vinho com a comida: a Enogastronomia. Abordaremos a análise sensorial dos alimentos, ou seja, a possibilidade de descrever as sensações que temos ao comê-los. O sal, a suculência, o sabor, a textura e tudo mais que venha a interferir na escolha do vinho correto para acompanhar determinado prato. Evoluindo no conhecimento do vinho e do alimento apresentaremos técnicas e regras para a harmonização. Entenderemos as dificuldades que poderemos encontrar ao tentarmos fazer uma harmonização: os diversos sabores que compõe um mesmo prato, a individualidade do paladar etc. Não concluiremos nossos estudos antes de tratar das harmonizações clássicas, ou seja, harmonizações entre vinhos e comidas que são reconhecidamente bem- sucedidas. Algumas tão específicas ao ponto de nomear o produtor, uva, terroir e até mesmo a safra do vinho, combinando-o da mesma forma com IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA uma comida de igual característica exclusiva de algum local. Por exemplo: um prato catalão de coelho em vinho e ervas que combina perfeitamente com um típico tinto amadurecido da uva também espanhola, a Tempranillo. Caro acadêmico, fazê-lo decorar pareamentos gastronômicos entre vinho e comida não é a finalidade deste livro, mas sim, conhecê-los, entendê- los e trazê-los para “nossa vida real”, no qual harmonizamos vinhos e alimentos que consumimos em nossos dia a dia, como uma bela pizza de mozzarella e calabresa acompanhado de um Cabernet Sauvignon jovem e fresco da prateleira de baixo do supermercado do nosso bairro. Saúde e boa leitura! Prof. Carlos Henrique Mayer V VI VII UNIDADE 1 – VINHO: CONHECENDO A BEBIDA ....................................................................1 TÓPICO 1 – A HISTÓRIA DO VINHO ............................................................................................3 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................3 2 O SURGIMENTO DO VINHO E OS PRIMEIROS GOLES ......................................................4 3 O VINHO NA IDADE MODERNA ................................................................................................8 3.1 HISTÓRIA DO VINHO NO BRASIL ..........................................................................................15 3.2 O VINHO DE HOJE ......................................................................................................................17 4 HISTÓRIA DA ENOGASTRONOMIA ................................................................................19 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................20 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................22 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................24 TÓPICO 2 – TERROIR E A GEOGRAFIA DO VINHO .................................................................25 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................25 2 TERROIR ..............................................................................................................................................26 3 VELHO MUNDO ................................................................................................................................31 3.1 FRANÇA .........................................................................................................................................31 3.2 ITÁLIA .............................................................................................................................................33 3.3 ESPANHA .......................................................................................................................................35 3.4 PORTUGAL ....................................................................................................................................373.5 ALEMANHA ..................................................................................................................................41 4 NOVO MUNDO .................................................................................................................................44 4.1 EUA ..................................................................................................................................................44 4.2 CHILE ..............................................................................................................................................45 4.3 ARGENTINA ..................................................................................................................................47 4.4 AUSTRÁLIA ...................................................................................................................................48 5 TERROIR DO BRASIL ......................................................................................................................50 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................52 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................53 TÓPICO 3 – FABRICAÇÃO DO VINHO..........................................................................................55 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................55 2 COMEÇANDO PELO PRINCIPAL: A UVA ..................................................................................55 3 PRINCIPAIS TIPOS DE UVAS VINÍFERAS ................................................................................59 4 TRANSFORMANDO A UVA EM VINHO ....................................................................................61 5 TIPOS DE VINHOS ...........................................................................................................................63 5.1 VINHOS ESPUMANTES .............................................................................................................63 5.2 VINHOS LICOROSOS ..................................................................................................................63 5.3 VINHOS FORTIFICADOS ............................................................................................................64 6 CICLO DE VIDA DO VINHO .........................................................................................................65 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................67 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................69 sumário VIII UNIDADE 2 – ANÁLISE SENSORIAL DE VINHOS ....................................................................71 TÓPICO 1 – ANÁLISE VISUAL DO VINHO ..................................................................................73 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................73 2 OLHANDO PARA O VINHO ..........................................................................................................74 3 O VISUAL DO VINHO BRANCO ..................................................................................................75 4 O VISUAL DO VINHO TINTO .......................................................................................................76 5 O VISUAL DO VINHO ROSÉ .........................................................................................................77 6 O VISUAL DO VINHO ESPUMANTE ..........................................................................................78 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................81 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................82 TÓPICO 2 – ANÁLISE OLFATIVA DO VINHO .............................................................................83 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................83 2 DE ONDE VÊM OS AROMAS DO VINHO? ...............................................................................84 3 CLASSIFICAÇÃO DOS AROMAS DO VINHO .........................................................................86 4 MEMÓRIA OLFATIVA ......................................................................................................................89 5 TÉCNICAS NA ANÁLISE OLFATIVA ...........................................................................................91 6 O QUE PERCEBER NA ANÁLISE OLFATIVA? ...........................................................................93 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................99 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................100 TÓPICO 3 – ANÁLISE GUSTATIVA DO VINHO ..........................................................................101 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................101 2 TÉCNICAS NA ANÁLISE GUSTATIVA DO VINHO ................................................................101 3 O QUE PERCEBER NA ANÁLISE GUSTATIVA? ........................................................................103 4 AS SENSAÇÕES TÁTEIS DO VINHO ..........................................................................................104 5 A MADEIRA NO VINHO .................................................................................................................107 6 O SERVIÇO DO VINHO ..................................................................................................................110 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................118 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................122 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................123 UNIDADE 3 – ENOGASTRONOMIA: HARMONIZANDO VINHOS E ALIMENTOS .......125 TÓPICO 1 – GOSTO E VINHO ..........................................................................................................127 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................127 2 DOCE .....................................................................................................................................................127 3 ÁCIDO ..................................................................................................................................................130 4 SALGADO ...........................................................................................................................................131 5 AMARGO .............................................................................................................................................133 6 UMAMI .................................................................................................................................................134 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................135 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................137TÓPICO 2 – TÉCNICAS DE HARMONIZAÇÃO ...........................................................................139 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................139 2 HARMONIZAÇÃO POR SIMILARIDADE ..................................................................................140 3 HARMONIZAÇÃO POR CONTRASTE ........................................................................................141 4 HARMONIZAÇÃO POR REGIONALISMO ................................................................................142 5 INGREDIENTES COMPLICADOS ................................................................................................143 6 FICHAS DE DEGUSTAÇÃO ............................................................................................................145 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................148 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................150 IX TÓPICO 3 – HARMONIZAÇÃO ENTRE O VINHO E A COMIDA ..........................................151 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................151 2 SALADAS E FRUTAS ........................................................................................................................151 3 CARNES ...............................................................................................................................................153 4 QUEIJOS ...............................................................................................................................................158 5 DOCES E SOBREMESAS ..................................................................................................................160 6 HARMONIZAÇÕES CLÁSSICAS ..................................................................................................162 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................165 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................166 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................169 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................171 X 1 UNIDADE 1 VINHO: CONHECENDO A BEBIDA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer a evolução histórica do vinho desde sua descoberta, as primeiras interações do homem com o vinho até os dias atuais; • compreender o significado do terroir e sua importância para o mundo dos vinhos; • entender o motivo pelo qual a história do vinho se divide em Velho e Novo Mundo e a importância disso nos dias atuais; • conhecer o terroir do Brasil; • identificar as uvas vinífera, como são cultivadas, principais variedades e como os vinhos são produzidos a partir dela; • diferenciar os principais tipos de vinhos; • entender como funciona o ciclo de vida do vinho e por que ele melhora (ou não) com o passar do tempo. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 - A HISTÓRIA DO VINHO TÓPICO 2 - TERROIR E A GEOGRAFIA DO VINHO TÓPICO 3 - FABRICAÇÃO DO VINHO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A HISTÓRIA DO VINHO 1 INTRODUÇÃO A história do vinho, há pelo menos 10 mil anos, confunde-se com a história da humanidade. Sendo o vinho uma bebida simples, resultado de uma única matéria-prima que é a uva, antes mesmo deste período ele já existia. Precisando, então, apenas ser descoberto. Podemos comparar a descoberta do vinho a outras tão importantes para o homem, como a roda ou mesmo o fogo. Um tronco ou pedra roliços presentes na natureza sempre estiveram à nossa volta. Foi preciso apenas ligar os pontos e entender como um objeto de formato redondo poderia ser útil. O fogo, também presente, precisou ser dominado pelo homem. O calor do Sol que incendiava o pasto seco, uma faísca do bater das pedras ou um relâmpago vindo do céu são elementos naturais que até hoje podem nos causar espanto. Com o vinho não é diferente. Para se ter vinho é preciso apenas uva e a natureza faz o resto. Um cacho de uva que cai ao solo, amassado libera um líquido, como que sozinho, com o tempo fermenta. Surge o álcool, temos nosso vinho! Hoje, esse processo é conhecido, sabemos que para que a fermentação ocorra é preciso a ajuda de micro-organismos, mas que, de qualquer forma, já estão lá, na própria uva. Com este pensamento, o vinho existe desde que existe a uva, um está no outro. Creio que este tempo não pode ser medido. Para contar a história do vinho, neste Tópico 1 daremos passos largos. Iniciaremos com os primeiros sinais do vinho produzido propositalmente, e na sequência, alguns tópicos que provocaram mudanças significativas no vinho. Tais mudanças podem ter origem em novas técnicas de produção, novas descobertas, hábitos de consumo, mudanças econômicas, sociais e ambientais. Ao discorrer da história, observaremos que o tempo passa mais rápido nos dias atuais. O vinho tal qual bebemos hoje é uma bebida um tanto quanto recente, se comparado aos milênios que o antecedem. As grandes mudanças ocorrem nos últimos séculos. Ainda dentro da Unidade 1, finalizaremos com a História da Enogastronomia. Aqui já há um cenário moderno, uma divisão clara do momento em que a gastronomia passou a ser pensada e o vinho torna-se um coadjuvante de primeira linha ou mesmo um ator principal nas altas rodas gastronômicas. A Enogastronomia, hoje, está em evidência. Mas nunca será um modismo, pois a moda é passageira. Muitos se preocupam em escolher o vinho UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 4 certo para harmonizar com a refeição que será servida, pensando que isso é algo importante apenas para os dias de hoje. Mas, acredite, as harmonizações entre bebida e comida sempre existiram. Vamos começar! 2 O SURGIMENTO DO VINHO E OS PRIMEIROS GOLES Arqueólogos e historiadores, em escavações realizadas na região do Cáucaso que se estende por países hoje conhecidos como a Turquia, Síria, Líbano e Jordânia, encontraram caroços de uvas aglomerados, que datam de aproximadamente 8000 a.C. Esses estudiosos, segundo Johnson (2009), aceitam esses vestígios como uma possível prova das primeiras fabricações de vinho. Com datas de alguns séculos para frente, algo entre 7000 a.C. e 5000 a.C., são encontradas também sementes de uvas, mas desta vez, uvas comprovadamente cultivadas. Essas sementes nos têm a dizer, além da idade, que o homem passou a domesticar a videira. Nessa época, então, conclui-se a transição entre as videiras selvagens para as cultivadas para algum fim. No caso, a fabricação de vinho. A fim de fazer um paralelo entre outros acontecimentos e entendermos o quão antigo é o vinho, Johnson (2009) nos lembra que a domesticação da videira é contemporânea ao momento em que o homem deixa de lado a vida nômade para a vida sedentária, passando a caçar e a plantar. A comunicação entre os homens passa, então, a ser feita através da fala, mesmo que pouco desenvolvida. Utensílios de pedra começaram a ser substituídos por cobre e cerâmica. Que o vinho atual é uma bebida fantástica nós já sabemos pela prática e os mais adeptos são suspeitos a se pronunciar. Mas, uma pergunta intrigante é o motivo pelo qual o vinho permaneceu como uma bebida apreciada por todos, por tanto tempo e, tão logo seu surgimento, destinada a classes mais privilegiadas em qualquer tempo.Hoje, quando bebemos um vinho, identificamos aromas e sabores diversos que nos impressionam. Mas é certo que não foi essa a característica que levou os homens a beberem mais e mais vinhos. A grande qualidade percebida no vinho recém-descoberto era a capacidade mágica desta bebida de aliviar tensões, alegrar pessoas, aumentar o prazer, de relaxar, de aprofundar o sono, de diminuir a dor, aumentar a coragem e de aproximar os homens dos seus deuses, independentemente de quais sejam e de onde estejam. No século IV a.C., segundo Standage (2005), o vinho também era utilizado na Grécia em reuniões festivas e competitivas, denominadas de Symposia. Nesses eventos, competições intelectuais regadas a vinho mediam a capacidade dos competidores em retórica e artes como música e poesia. Logo, podemos deduzir que na época acreditava-se que o vinho, inclusive, ajudava no pensamento e na inteligência. Hoje sabemos que não é bem assim. TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 5 Além de achados históricos, documentos escritos também comprovam a antiguidade do vinho. A começar pela história bíblica de Noé no livro de Gênesis: “Noé, que era agricultor, foi o primeiro a plantar uma vinha. Bebeu do vinho, embriagou-se e ficou nu dentro da sua tenda” (Gênesis, 9: 20-21). Além da simples citação do vinho, o contexto histórico dessa passagem bíblica também traz algumas informações bem interessantes. Segundo os relatos bíblicos, a arca de Noé teria encalhado após o dilúvio nas montanhas de Ararat. Por coincidência ou não, essas montanhas são o ápice dos montes caucasianos localizados na Turquia. Percebe-se, então, que a Bíblia concorda com os achados históricos que descrevemos logo no primeiro parágrafo (JOHNSON, 2009). A Bíblia Sagrada dos cristãos viria a contribuir ainda mais para a disseminação do vinho. Já no Novo Testamento, percebe-se o vinho ainda mais presente na sociedade da época, até que Jesus, o Cristo, na passagem denominada de “a última ceia”, declara o vinho, assim como o pão, sagrados (Mateus, 26: 26-28). Essa declaração faria com que ambos, pão e vinho, permanecessem presentes numa sociedade que, a partir dessa época e dos acontecimentos que se sucederam, se tornaria cristã. O cristianismo passa a exercer tamanha força e influência no povo por onde era pregado, assim como em seus governantes. O vinho ganha lugar de destaque entre governantes, clero e em momentos especiais de uma grande parte da população mundial, até os dias de hoje. Caro acadêmico, já percebemos que o vinho é uma bebida realmente antiga e entendemos um pouco dos motivos que levaram o homem a consumi-lo até os dias de hoje. Mas, como se deu o surgimento do vinho? Infelizmente, não sabemos ao certo. Todavia, há lendas contadas pelos povos antigos que apresentam uma história interessante, que se repete em versos parecidos entre diversos povos. Segundo Johnson (2009) a versão persa, considerada a mais popular, conta que, como de costume, as uvas eram armazenadas em ânforas de barro para ser consumidas fora de época. Era comum que após algum tempo armazenadas, as uvas soltassem algum líquido, espumassem e exalassem cheiro forte. As ânforas que eram encontradas em tal condição eram imediatamente descartadas, pois, por tais características, eram uvas consideradas impróprias para o consumo e possivelmente venenosas. Certa vez, uma donzela do povo em questão, passando por problemas de fundo nervoso e com horríveis dores de cabeça, decidiu tirar sua própria vida bebendo do líquido de dentro da ânfora. Ao invés de encontrar a morte, a donzela encontrou o alívio dos males que a atormentava, alegria e um sono revigorante. A partir daí a notícia se espalhou pelo povo e o rei ordenou que mais da bebida descoberta fosse produzida, para o bem-estar de toda a população. Historiadores costumam levar a sério lendas e histórias contadas pelas pessoas, pois sabem que normalmente possuem algum fundo de verdade. Logo, não é difícil imaginar que esse enredo tenha realmente ocorrido. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 6 FIGURA 1 – FABRICAÇÃO DE VINHO NO EGITO FONTE: <http://enoviti-hanumangirl.blogspot.com/2017/07/ancient-documentation-of- winemaking.html.> Acesso em: 13 mar. 2019. Os egípcios foram um dos primeiros povos a cultivar a vinha para produzir vinhos e muito bem registraram esse fato em diversos painéis, jarros e ânforas utilizados para esse fim. Na imagem anterior observamos um exemplo. Aprofundando um pouco mais no que diz respeito ao vinho cristão, há inúmeros relatos que acabam por demonstrar como o vinho era importante para a época. Talvez o mais importante deles seja a já mencionada passagem da última ceia. [...] o Senhor Jesus, da mesma noite em que foi traído, pegou o pão e, enquanto o partia, agradeceu dizendo: Tomai e comei, pois este é o meu corpo, que será sacrificado por vós: fazei isso em minha memória. Da mesma maneira, tomou o cálice de vinho em suas mãos e disse: este é o meu sangue: todas as vezes que o beberdes, fazei isso em minha memória (Mateus, 26: 26-28). Essa passagem fez com que o vinho permanecesse vinculado ao sistema cristão que conhecemos com a eucaristia. Um ritual comemorado até os dias de hoje. Jesus tem sua vida narrada no primeiro testamento bíblico e seu primeiro milagre também está associado ao vinho, o que traz certo orgulho para os apaixonados por essa bebida, assim como uma bela desculpa para bebê-lo sem culpa. Trata-se da transformação da água em vinho (João, 2: 1-11). Jesus teria feito tal façanha em um banquete de casamento. No meio da festa, quando o vinho acaba, Jesus ordena que sejam tirados seis baldes de água do poço. Ao ser servida aos convidados, a água havia se transformado em vinho. Não se deixa de relatar ainda que este vinho, transformado da água, seria ainda de melhor qualidade do que o vinho inicialmente oferecido pelo noivo. Além de uma demonstração do poder, foi uma pequena quebra de protocolo da época, pois a tradição era sempre servir o melhor vinho por primeiro, já que devido às grandes quantidades consumidas nessas épocas, não se percebia o prejuízo de qualidade dos vinhos servidos ao final da festa. TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 7 O livro de João, capítulo 15, traz uma bela aula sobre algumas questões vinícolas: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que, estando em mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto ele poda, para que dê mais fruto ainda”. A lição continua. Referimo-nos exclusivamente à lição de manutenção da vinha, já que este diz respeito ao nosso estudo, na qual ramos ruins são cortados e ramos bons são podados para que deem ainda mais frutos. Uma regra simples, básica e conhecida por qualquer vinhateiro. Paramos aqui com as referências bíblicas, que são tantas que poderíamos escrever um terceiro testamento para comentar tantas passagens. O vinho já se tornara importante bebida para muitos povos. Mas, além de ser festivo ou não, também era necessário para matar a sede de muitos. Nas grandes cidades da época, os sistemas sanitários eram precários e as grandes massas populacionais acabavam por poluir e degradar o ambiente em que viviam. Um problema ainda atual que tem sua origem na época em que o homem deixa a vida nômade para ter uma vida sedentária. Assim, como as pessoas passam a permanecer num mesmo local, seus detritos também (STANDAGE, 2005). Frente a essa realidade, mesmo sem entender muito bem o porquê, logo o homem descobriu que beber vinho, cerveja ou outra bebida alcoólica era mais seguro para a saúde do que beber água. Não se sabia ainda como preservar a água que se bebia e muito menos como tratá-la para torná-la própria para consumo. O vinho era uma bebida de festas, usado para matar a sede, além de ser importante produto econômico e de dominação. Regiões que produziam vinho de boa qualidade logo se destacavam economicamente. Os primeiros séculos após o início do período cristão foram marcados pela expansão do ImpérioRomano, como afirma Johnson (1999). À medida que a expansão geográfica avançava, a cultura romana também se espalhava e, junto dela, o vinho. Sempre que havia um novo avanço, a cidade dominada ou criada passava a ter sedes administrativas, igrejas, quartéis e tudo mais de importante para a manutenção e crescimento do império. O que não costumava faltar eram as vinícolas e vinhedos. Produzir seu próprio vinho dava autonomia e independência para a cidade. Esse processo, caro acadêmico, bem simplificado e resumido nas frases anteriores, representa alguns séculos de história e foi responsável pela formação dos Romanées franceses que até hoje são referência na produção dos melhores e mais cobiçados vinhos, bem como das mais antigas instalações (e empresas) produtoras de vinhos da Europa e, por consequência, do mundo. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 8 FIGURA 2 – DOMAINE DE LA ROMANÉE-CONTI FONTE: <https://revistaadega.uol.com.br/artigo/a-passagem-do-cometa-romanee_5929.html>. Acesso em: 30 ago. 2018. Na figura anterior observamos a foto do muro e do vinhedo da Domaine de La Romanée-Conti. É possível perceber o estilo antigo da construção de pedra, bem como a influência cristã. A garrafa do vinho ilustrada foi produzida por esse romanée. Devido à qualidade e exclusividade, os vinhos da Romanée-Conti costumam estar entre os mais caros do mundo. A França é hoje considerada a nação mãe do vinho. Mas, segundo Johnson (2009), historiadores costumam digladiar-se sobre quem realmente levou as primeiras vinhas para lá. Há quem defenda os povos celtas, outros os romanos, mas há ainda quem defenda que elas sempre estiveram lá e que os primeiros habitantes franceses já fabricavam seu vinho. E como não se sabe quem iniciou as primeiras vindimas francesas, também é vago afirmar qualquer data para que isso tenha ocorrido. 3 O VINHO NA IDADE MODERNA Muito se passou durante toda a Idade Média. A partir da queda do Império Romano, no século V, o mundo e, logicamente, o vinho, sofreram muitas reviravoltas. Os espaços foram ocupados por diversos povos diferentes, alternando-se entre conquistadores e dominados. Saques, mortes, peste negra, nascimentos, reis e imperadores surgiram tão rapidamente como se foram. Cruzados, cristãos, vikings e muçulmanos. Tudo se passou durante esse grande período até que a humanidade começa a apresentar sinais de organização e evolução. Já no século XV, dá-se início à Idade Moderna. Se você, caro acadêmico, acha que agora o homem poderia beber em paz, se engana. As maiores revoluções no vinho ainda estariam por vir (LE GOFF, 2013). Nesse período, a água potável já não era um problema tão grave. Entre os membros mais sortudos da sociedade, pelo menos, já se sabia um pouco como controlar os problemas que poderiam torná-la imprópria para consumo. TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 9 Dessa forma, aos poucos, beber vinho deixava de ser uma necessidade por questões sanitárias, passando aa ser consumido por prazer (JOHNSON, 2009). Para continuar vendendo seus vinhos, os produtores tiveram de conquistar seus consumidores pela qualidade da bebida produzida. Um dos primeiros vinhos a conseguir se diferenciar e conquistar muitos mercados, inclusive o inglês, maior mercado consumidor da época, foi um vinho diferente, que dava a sensação, segundo palavras do seu próprio inventor, de “estar bebendo estrelas”! Tudo aconteceu em 1668, quando Dom Perignon foi nomeado tesoureiro da Abadia de Hautvillers, situada na região de Champagne, na França. O abade deveria administrar os dízimos dos fiéis, que em sua maioria eram pagos em uvas que, posteriormente, eram manufaturadas para a produção de vinho. Os vinhos de Champagne sofriam com uma instabilidade peculiar, com tendência de parar de fermentar no começo do inverno e retomar a fermentação no início da primavera, quando as temperaturas voltavam a subir. Os vinhos brancos e jovens constantemente apresentavam certa efervescência, que por algum tempo tentou-se eliminá-la, mas em 1676 surge a primeira menção ao vinho espumante. Foi quando, segundo Doria (2006), pararam de lutar contra a efervescência e resolveram tirar vantagem dela. Há pesquisas que apontam o vinho espumante sendo bebido na Inglaterra já antes das façanhas de Dom Perignon. Mas os relatos mais concretos corroboram com os registros dos franceses. De qualquer forma, foi a partir de Champagne, na França, que o vinho espumante viria a conquistar o mundo todo, tornando-se símbolo de requinte e desejado por todos. NOTA FIGURA 3 - DOM PERIGNON FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_P%C3%A9rignon>. Acesso em: 31 ago. 2018. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 10 A figura anterior mostra a foto atual da Abadia de Hautvillers, para a qual Dom Perignon foi transferido e desenvolveu os primeiros vinhos espumantes. Também mostra a estátua de Dom Perignon em frente à sede da Moët & Chandon, empresa que atualmente detém o mercado de Champagne que leva o nome de seu inventor. Desde o início da Idade Moderna se intensificaram as navegações pelo mundo, partindo da Europa para as Índias e para as Américas. Nesse período, são trazidas para as Américas do Norte e do Sul as primeiras vinhas europeias, mas essa viagem faremos num capítulo mais à frente. No período das navegações e do intenso comércio entre os países europeus, o vinho ainda era moeda forte. Nações que conseguiam produzir e vender vinhos de boa qualidade costumavam angariar grandes fortunas para os seus. No ano de 1700, Portugal tinha o seu vinho da moda: o vinho do Porto. Ainda não era o vinho fortificado que temos hoje, mas tinha fama, qualidade e conseguia resistir bravamente nos navios que viajavam sobre o Atlântico. Portugal estava passando por um momento próspero, fruto principalmente do ouro e diamantes enviados pelo Brasil, ainda colônia. De acordo com Johnson (1999), não demorou para que comerciantes menos escrupulosos resolvessem se aproveitar do bom vinho do Porto, vendido a preços elevados, e passassem a fabricar vinhos de menor qualidade, desrespeitando regras de produção e procedência, inundando o mercado mundial com vinhos do Porto falsificados e alterados, enquanto os verdadeiros eram muitas vezes contrabandeados diretamente para seus compradores sem recolher os devidos impostos ao governo. Os ingleses, principais compradores do vinho do Porto, assim como os produtores honestos perceberam o problema. A situação deste comércio estava em estado crítico bastante elevado, ruindo em descrença e valor de mercado. O autor também relata que em 1755, um problema ainda maior assolou Portugal e tirou o foco do vinho. A cidade portuguesa de Lisboa foi quase totalmente destruída por um terremoto, provocando a morte de quarenta mil pessoas. Nesse cenário de destruição, surge uma figura que reergueria Portugal e transformaria o comércio do vinho do Porto: Marquês de Pombal. Com o intuito de financiar a reconstrução de Lisboa, Marquês de Pombal cria algumas companhias agrícolas, dentre elas a Companhia Agrícola dos Vinhos do Douro. Através desta companhia, determinou-se que todo o vinho do Douro deveria obrigatoriamente descer pelo rio Douro até as cidades litorâneas do Porto e Vila Nova de Gaia. Nessas cidades, os vinhos seriam devidamente fiscalizados, tributados e vendidos para quem desejasse comprar. Também ficou estabelecido, pela companhia, os locais onde as vinhas deveriam ser plantadas. Esse controle permitiu a produção de um vinho de qualidade padronizada. Marquês de Pombal estava criando o que viria a ser a primeira região vinícola demarcada do mundo. TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 11 FIGURA 4 - BARCO RABELO UTILIZADO PARA TRANSPORTAR O VINHO DO PORTO FONTE: <http://www.douroultratrail.com/2013/10/douro-ultra-trail-o-vinho-do-porto.html>. Acesso em: 30 ago. 2018. Na figura anterior observamos uma ilustração de um rabelo, nome dado ao estilo de barca utilizada para transportar as barricas cheias de vinho produzidona região do Douro até as cidades do Porto e Vila Nova de Gaia, no litoral português. Uma viagem que costuma ser cheia de aventuras, pois o rio Douro não é de fácil navegação em sua extensão percorrida. Denominações de origem se tornaram algo de extrema importância para o mundo do vinho, pois o terroir, conceito que aprofundaremos mais para frente, interfere diretamente na qualidade e nas características do vinho. A partir daí outras regiões vinícolas do mundo passaram a adotar demarcações semelhantes. Hoje há regiões que são sinônimos de grandes vinhos, como a região de Champagne, de Bordeaux e da Borgonha, na França; Douro, Dão, Minho, em Portugal; Piemonte na Itália e diversas outras espalhadas pelo mundo. Pouco mais de cem anos após a descoberta do espumante, e ainda em franco crescimento, a bebida passaria por uma nova revolução, desta vez, proporcionada por uma mulher que se demonstrou à frente de sua época: Nicole-Barbe Clicquot Ponsardin, ou somente Veuve Clicquot. Essa senhora, membro da aristocracia europeia, enviuvou e, contrariando os costumes da época, assumiu os negócios da família em meio a uma sociedade totalmente patriarcal e até mesmo machista (MAZZEO, 2009). Muitos vinhateiros já fabricavam vinhos espumantes na França e no restante da Europa, mas todos enfrentavam um grave problema de turbidez. Devido à sua característica efervescente, filtrá-lo sempre foi uma grande dificuldade e as garrafas acabavam indo para o mercado sempre com algum resíduo sólido em seu conteúdo. Foi Veuve Clicquot quem conseguiu resolver esse entrave. Ela desenvolveu o processo denominado de “remuage”, capaz de limpar o espumante de todo o resíduo sólido, tornando-o límpido e muito mais atrativo para o consumidor. Vale destacar que a importância da Veuve Clicquot para o espumante só pode ser comparada a de seu inventor, Dom Perignon. E o fato de este processo ter ocorrido justo em Champagne só reforça a ideia de que os franceses são merecedores do título de inventores deste produto singular (MAZZEO, 2009). UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 12 FIGURA 5 - VEUVE CLICQUOT FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/Veuve_Clicquot>. Acesso em: 30 ago. 2018. Na figura anterior temos a imagem da tela pintada a óleo (tradição comum na época) da madame Veuve Clicquot e uma garrafa atual do Champagne que leva seu nome. Um produto diferenciado que até hoje conquista os paladares mais refinados. A cor laranja do seu rótulo é inconfundível. Outra personalidade importante na história do vinho é conhecida de muitos, mas nem sempre está relacionada ao vinho: Louis Pasteur. FIGURA 6 - LOUIS PASTEUR FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Pasteur>. Acesso em: 31 ago. 2018. O elegante senhor da figura anterior, Louis Pasteur, era cientista francês e foi contratado pelo governo para descobrir e dar fim aos motivos que levavam os vinhos franceses a estragar rapidamente, muitas vezes mesmo nas garrafas fechadas. Em 1864, Pasteur descobriu que o vinho estragava devido à presença de microrganismos que continuavam vivos dentro das garrafas mesmo após sua vedação e sem a presença de oxigênio. Para inibir a ação desses microrganismos, Pasteur desenvolveu um método que levaria seu nome: a pasteurização. A TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 13 pasteurização consiste no processo de aquecer e resfriar o vinho (ou outra bebida), num curto espaço de tempo. Essa ação estabiliza a atividade dos microrganismos e mantém o vinho estável até que seja novamente aberto Quando falamos em pasteurização, logo lembramos do leite. Apesar do leite ser pasteurizado, bem como sucos e outras bebidas naturais, o processo foi pensado para salvar o vinho nosso de cada dia. NOTA Praticamente no mesmo ano em que Pasteur desenvolve a pasteurização, Macneil (2003) relata que o mundo vitivinícola sofre o maior revés de sua história até hoje: uma praga denominada Filoxera, originária da América, tinha por característica atacar a raiz da videira levando-a à morte. Os vinhedos europeus, em sua totalidade de vitis-viníferas, não eram resistentes à praga, que se espalhou rapidamente por toda a Europa, devastando aproximadamente 4/5 de todos os vinhedos. FIGURA 7 - FILOXERA FONTE: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Filoxera>. Acesso: 03 set. 2018. A solução encontrada, mesmo que tardiamente e já após a tragédia consumada, foi o replantio das vinhas substituindo as videiras francas por variedades enxertadas. Para a base, raiz e parte inferior do caule, ou porta-enxerto, passou a ser utilizada sempre uma cepa de variedade americana, resistente à Filoxera. Sobre o porta-enxerto aplica-se a variedade vinífera que se deseja sem que haja perdas significativas no fruto por ela produzido, ou pelo menos, se houver algum prejuízo, este é, com certeza, menor do que o causado pela praga. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 14 A Filoxera, apesar de controlada, ainda preocupa os viticultores de todo o mundo. Alguns poucos lugares no mundo se arriscam a desenvolver vinhedos com videiras que não sejam enxertadas. O Chile é um destes lugares, visto que sua geografia lhe proporciona barreiras naturais contra a praga, de um lado a Cordilheira dos Andes e do outro o Oceano Pacífico. NOTA Se você gosta de vinho e de história não pode deixar de ler o livro “Vinho & Guerra”, de Petie Kladstrup (Zahar, 2002), que relata as epopeias vividas pelos produtores de vinhos franceses para salvar suas garrafas das pilhagens nazistas durante a Segunda Grande Guerra. DICAS O mundo do vinho se recuperava dos estragos causados pela Filoxera e passava por certa monotonia. Com os controles agrícolas e de produção, os vinhos passam a ser mais bem feitos e se percebeu um salto em sua qualidade como nunca. Por outro lado, a Europa, sempre hegemônica com seus vinhos, viu-se afrontada por novos vinhos que estavam surgindo de outros lugares do mundo, como os da África do Sul, da Austrália e, principalmente, dos Estados Unidos. Taber (2006), relata que no ano de 1976, Steven Spurrier, um britânico negociante de vinhos, percebeu que o mercado de vinhos estava precisando de novidades. Atento aos produzidos em novos terroir, tomou por iniciativa a realização de um concurso para avaliar os vinhos juntamente com os vinhos americanos. O próprio Spurrier foi à Califórnia, principal região vinícola dos Estados Unidos, convidar os produtores e escolher os vinhos para a prova. Em Paris, convidou alguns amigos que também eram importantes pessoas no mundo do vinho, dentre eles um proprietário de vinícola e uma editora de uma revista especializada, das mais conceituadas da França. O resultado da degustação foi que os vinhos californianos ficaram extremamente bem avaliados em relação aos europeus, inclusive, ficando entre eles o melhor vinho da avaliação. TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 15 FIGURA 8 - O JULGAMENTO DE PARIS FONTE: <https://revistaadega.uol.com.br/artigo/a-degustacao-que-abalou-o-mundo_3107.html>. Acesso em: 12 set. 2018. Tal avaliação de vinhos, o Julgamento de Paris, que não tinha grandes pretensões, acabou por ser um marco na história vinícola mundial sendo considerado, segundo Taber (2006), como a principal degustação do século XX. Graças ao Julgamento de Paris, os apreciadores (ou consumidores) de vinhos passaram a respeitar e entender que a geografia do vinho havia mudado. Não mais somente a Europa era detentora dos grandes e bons vinhos, mas sim, que estes poderiam ser produzidos em qualquer parte do globo que oferecesse condições para tal. Hoje, o mundo do vinho é dividido em “Velho Mundo” e “Novo Mundo”. Sendo a Europa o Velho Mundo do vinho e as demais regiões produtoras, o Novo Mundo do vinho. 3.1 HISTÓRIA DO VINHO NO BRASIL A história do vinho no Brasil é um pouco diferente de outros países. As primeiras empreitadas vinícolas daqui não foram tão bem-sucedidas como se pretendia, o que atrasou e modificou a indústria brasileira em relação aos vizinhos americanos, colonizados emmesma época. Mello (2007) relata em seu livro que na caravela de Pedro Álvares Cabral, em determinado momento, estavam alguns tripulantes e dois índios convidados a bordo. Mostraram aos índios um papagaio que demonstraram conhecer, um carneiro que não se interessaram e uma galinha, da qual tiveram medo. Depois ofereceram comida que foi recusada. Ofereceram vinho, deram apenas um pequeno gole e a expressão foi de que nada gostaram. Era a primeira vez que um brasileiro bebia vinho. O vinho servido era um português de Évora, conhecido como Pera Manca, hoje, um vinho muito famoso. Na época, em defesa dos índios, devia ser realmente ruim de beber, principalmente após uma viagem de muitos dias pelo Atlântico abaixo de muito sol e sacolejo do navio. Essa cena aparece retratada no quadro de Oscar Pereira da Silva: A bordo da Nau de Cabral. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 16 FIGURA 9 - QUADRO DE OSCAR PEREIRA DA SILVA: ÍNDIOS A BORDO DA NAU DE CABRAL FONTE: <http://twixar.me/HGY1> Acesso em: 13 mar. 2019. Ao falar sobre vinhos no Brasil o primeiro lugar que nos vem à mente é o Estado do Rio Grande do Sul. Os gaúchos são responsáveis pela maior parte de toda a produção vinícola do nosso país, mas não foi lá que tudo começou. Mello (2007) relata que os primeiros empreendimentos vinícolas ocorreram por iniciativa de Brás Cubas, em 1552, onde hoje é o Estado de São Paulo. Seguiam da encosta da Serra do Mar para o interior onde hoje é a cidade de Cubatão. A indústria vinícola brasileira parecia crescer quando sofreu alguns revezes. Já por volta do ano de 1600, a concorrência da produção do açúcar e a corrida pelo ouro desviam a atenção de todos para esses setores que pareciam mais atrativos, ficando a produção de uva e vinho em segundo plano. No século seguinte, temendo o desenvolvimento da colônia brasileira, Portugal decreta o fim de toda e qualquer manufatura no Brasil, definindo que nada poderia ser produzido em terras brasileiras, mas somente adquirido de Portugal, sua mãe colonizadora. Foi o fim do que um dia tentou ser a indústria vinícola brasileira. Tal decreto português atrasou não só a indústria vinícola, mas praticamente toda a indústria brasileira. Mas em 1808, com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, Dom Pedro I revoga a lei das manufaturas, já que ele residia agora no Brasil e a situação em Portugal não era das melhores devido às investidas napoleônicas. Tudo voltaria e se desenvolver no Brasil, mas o vinho ganharia destaque em outra região: o Sul. Mello (2007) relata que no Brasil já independente de 1822, Dom Pedro I, com o propósito de colonizar e tomar posse de todo o território, autoriza o fluxo migratório para o Sul do Brasil, protegendo essa região dos avanços dos colonizadores espanhóis e argentinos. Os primeiros a chegar foram os alemães, formando a Colônia de São Leopoldo. Em 1870, com a Itália em crise e o Brasil loteando regiões da serra gaúcha, uma verdadeira odisseia passa a ocorrer com os italianos buscando por novas oportunidades de reconstruir suas vidas. Chegam ao Brasil as primeiras famílias que viriam a se tornar as referências vinícolas brasileiras. Plantaram uvas de variedades americanas, como a Isabel e produziram vinhos de qualidade questionável. Muitas destas famílias permanecem estabelecidas até hoje nos primeiros lotes distribuídos (vendidos) pelo governo do Brasil. TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 17 FIGURA 10 - COOPERATIVA AGRÍCOLA GARIBALDI FONTE: <http://www.vinicolagaribaldi.com.br/pt/a-cooperativa/linha-do-tempo/>. Acesso em: 11 set. 2018. A partir desse momento, a vitivinicultura brasileira cresce vertiginosamente. Surgem algumas empresas e muitas cooperativas, a exemplo da Cooperativa Agrícola Garibaldi, criada em 1931 (Figura 10). Mas há dois pontos que merecem destaque até a história recente. O primeiro deles é uma mudança na variedade de uva cultivada, quando em 1920 surgem os primeiros empreendimentos no cultivo de uvas viníferas, que em volume são menos rentáveis, mas que são de melhor qualidade. Essa mudança na produção, e no hábito de consumo do brasileiro, levaria décadas para ser percebida. Frisamos que nos dias atuais essa mudança ainda vem ocorrendo. O segundo ponto é a vinda para o Brasil de empresas multinacionais da Europa e dos Estados Unidos, com grande conhecimento no setor vinícola. Empresas até hoje conhecidas, a exemplo da Chandon, Martini, Seagram e Almadén. A chegada dessas empresas ocorreu entre as décadas de 50 e 60 e foi um marco para a indústria vinícola brasileira, pois trouxe para nós a ideia do vinho como um negócio, como empresa, e não mais somente como uma atividade familiar. 3.2 O VINHO DE HOJE Caro acadêmico, acreditamos que após percorrer as páginas iniciais desse livro, você deva estar ficando cansado das preliminares e a sede de conhecer o vinho como ele é nos dias de hoje já deve estar grande. Vamos lá! O vinho é reconhecido historicamente como a mais gastronômica das bebidas, a que melhor cumpre funções em uma refeição. Para Morano (2017) isso se deve, além das próprias características da bebida, também a questões históricas de elitização, pois o vinho sempre teve acesso facilitado aos salões dos nobres e ao clero e, com isso, acabou por monopolizar esse espaço na alta gastronomia e até hoje exala certa soberba. Felizmente, em países com populações que consomem mais vinho, a exemplo da França, Itália, Espanha e Portugal, o vinho está mais arraigado ao dia a dia das pessoas. Está mais presente nas gôndolas dos supermercados, nos UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 18 armários de cozinha e nas despensas das casas. Apesar de existirem grandes vinhos, muito caros e renomados, também há o vinho de mesa, de todos os momentos. As pessoas o bebem porque gostam, porque faz parte da cultura. Aqui no Brasil, o relacionamento com vinho é bastante diferente. Somente nos últimos anos é que percebemos um significativo aumento na oferta de vinhos. Nos anos 80, 90 e início dos anos 2000, encontrávamos vinho de qualidade duvidosa. Quando bons, eram importados e muito caros. Inacessível para a maioria da população, o consumo de vinho ficou restrito a uma elite privilegiada que, em primeiro lugar, detinha condições financeiras para consumir e, em segundo lugar, detinha uma espécie de monopólio do conhecimento sobre vinhos. Como que se para beber vinho, fosse imprescindível estudá-lo. Nos dias atuais, a indústria nacional está mais evoluída, o acesso aos produtos importados está mais fácil, os vinhos gozam de destaque na maioria das redes de supermercado, além de inúmeras lojas especializadas. Com os preços mais acessíveis, muitos estão se aventurando a conhecer essa bebida que sempre lubrificou os movimentos humanos. Entender de vinho ficou em segundo plano, gostar de vinho gradativamente passa a ser mais importante. Apesar dessas conquistas, ainda há muito por avançar. FIGURA 11 - VINHOS NA GÔNDOLA DO SUPERMERCADO FONTE: <http://apasshow.com.br/blog/index.php/2016/08/22/vinhos-e-queijos-dicas-para- exposicao-eficaz-no-supermercado/>. Acesso em: 19 out. 2018. Assista ao filme chamado “Obsessão Vermelha” (Red Obsession). Trata-se de um documentário sobre a paixão dos chineses pelos vinhos de Bordeaux da França e as diversas mudanças que esse comportamento provocou no mercado de vinhos do mundo. https://video. bonappetit.com/series/red-obsession DICAS TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 19 Mas, e o vinho em si, como está? Uma bebida que por um lado tenta se modernizar sem perder tradição e requinte. Durante muito tempo, procurou-se fazer vinhos cuja principal qualidade era sua longevidade, sua capacidade de melhorar com o tempo. Hoje ainda há essa busca, todavia, com a comunidade mundial cada vez mais impaciente, essa preocupação é facilmente deixada de lado. Fabricam-se, agora, vinhos fáceis e prontos para beber. Vinhos cujas garrafas não precisam permanecer deitadas e podem ficar de pé na gôndola do mercadoou na porta da geladeira. São fechados com tampas metálicas e não há problema de ressecamento da rolha. Em contrapartida, devem ser consumidos logo, pois o tempo é inimigo em sua grande maioria. Brancos raramente se preservam em sua total qualidade por mais de dois ou três anos. Tintos duram cinco ou mais, com alguma sorte. Há uma ideia de consumo, não de guarda. 4 HISTÓRIA DA ENOGASTRONOMIA A enogastronomia muitas vezes é vista como um assunto moderno, mas não é. A enogastronomia é, sim, um assunto em evidência. Desde que surgiram os primeiros estudos mais aprofundados sobre a gastronomia, sendo o vinho normalmente a primeira e principal opção de acompanhamento das refeições, escolher a garrafa correta sempre foi uma preocupação entre os chefes de cozinha. Durante muito tempo, segundo Novakoski (2007), as harmonizações eram realizadas por regionalismos. Vinhos italianos acompanhando a culinária italiana, vinhos franceses com a culinária francesa, e assim por diante. Tanto a comida como o vinho eram pensados para combinarem entre si, e esse moldar de sabores, aromas e paladares se desenvolveu por muitos séculos para chegar ao grau de afinidade ideal. Mas isso começou a mudar a partir do momento em que as pessoas passaram a viajar mais pelo mundo, descobrindo novos ingredientes culinários, conhecendo técnicas, receitas, vinhos e tudo o mais que envolve uma harmonização, promovendo um intercâmbio de sabores, tornando as barreiras geográficas um tanto quanto ultrapassadas. Nesse mundo sem fronteiras, era preciso estudar e desenvolver novas técnicas a fim de escolher os pares entre vinho e comida. Durante muito tempo, ainda segundo Novakoski (2007), utilizou-se da premissa simplista, mas eficiente, de que peixes, frutos do mar e carnes brancas em geral harmonizariam com vinhos brancos, enquanto que carnes vermelhas deveriam ser acompanhadas por vinhos tintos. Ressaltamos que foi uma época feliz para os apreciadores de vinhos e da boa gastronomia. Tudo estava simples e eficiente. Todavia, o aprimoramento de novas técnicas gastronômicas e a oferta crescente de novos estilos de vinhos, novos produtores e regiões, acabou por tornar tudo mais difícil. Não há como negar que o assunto harmonização de vinho e comida passou a ser estudado com mais afinco. Tudo ficou mais científico, mais técnico, mais criativo e artístico. O ganho em riqueza e qualidade foi imensurável. Conforme Simon (2000) a cor do vinho não era mais a principal característica da harmonização; peso, corpo, textura, acidez, aromas e sabores passaram a fazer parte de um grande quebra-cabeça a ser emparelhado com tantas outras características dos alimentos. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 20 CONHEÇA OS VINHOS LARANJAS Saiba como esta curiosa coloração está chamando a atenção do mundo André Logaldi Os que fazem vinhos laranjas preferem que suas bebidas sejam chamadas de âmbar. O termo foi cunhado em 2004 por um importador inglês e foi se sedimentando. O que os define é serem vinhos de cepas brancas tratados como se fossem vinificados para tintos. Ou seja, os sucos das uvas são mantidos por longo tempo em contato com as cascas, adquirindo, desse modo, elementos como polifenóis, alguma cor (alaranjado ou âmbar) e textura rugosa. Alguns deles são melhores descritos por termos como “viscosos” ao invés de “densos” ou “de bom corpo”. Quem trouxe à tona essa metodologia ancestral de vinificação georgiana é o controverso enólogo Josko Gravner. A técnica, que data de 8.000 anos, consiste na colheita de cachos em estado particular de maturação, que são introduzidos inteiros (engaços inclusive) em as ânforas de terracota de forma ovoide chamadas kvevris (ou qvevris), que são revestidas internamente com cera de abelhas (resina) e enterradas sob a terra para que se tenha uma temperatura mais baixa, daí a lentidão do processo. Dependendo da uva ou do recipiente, o tempo que se macera é longo, de algumas semanas até vários meses (em geral, oito ou mais). Terminado esse processo, o líquido é retirado e trasfegado, deixando para trás os sedimentos que ficam no fundo da ânfora, onde permanecem por um período que pode ir de um a oito anos. O aspecto geral tende sempre ao turvo, uma vez que a única forma de clarificação é a decantação espontânea dentro das ânforas e, ao macerar toda a estrutura dos cachos com presença de polpas, engaços e sementes, o nível de resíduos e borras é alto. Isso pode implicar em um traço gustativo frequentemente tomado por defeito: o amargor. Mas lembremos que estamos pisando em outro terreno e certos modelos de degustação clássicos deverão ser reinterpretados, pois, afinal, a eventual presença de amargor é uma consequência do método e não uma falha da vinificação. A melhor maneira de cuidar de tudo é um nível excelente de atenção durante a vinificação e, quando se trata dos “radicais”, os georgianos possuem um grande cuidado e estão aptos a propor vinhos de qualidade gustativa capaz de atender às expectativas ocidentais, praticando prensagens suaves, que geram menos resíduos e que resultam numa melhor experiência sensorial, apesar da pouca intervenção. Em sua abrangência “filosófica” nunca se pôde ter tanta certeza de que são vinhos “transparentes”, pois não são tratados para que satisfaçam um gosto padronizado de modo algum. Portanto, esqueçam as imagens mentais que vêm à mente quando falamos de varietais, pois praticamente todos os parâmetros de análise visual, olfativa e gustativa seriam insatisfatórios para descrevê-los. LEITURA COMPLEMENTAR TÓPICO 1 | A HISTÓRIA DO VINHO 21 Os vinhos são difíceis, não indicados para neófitos, porque exigem boa carga de experiência e paciência para compreender suas infinitas nuances. Como são “brancos feitos com técnica de tintos”, podemos assinalar que tendem a possuir muito dos dois mundos, aliando sobretudo frescor e notas cítricas a texturas incomuns aos brancos convencionais. Podem quase beirar o limite da austeridade, permitindo também uma incomum possibilidade de harmonizações, incluindo pratos mais pesados, à base de carnes, por exemplo. Devemos ter em mente que a humanidade vive momentos de reafirmação de valores e a busca pelo simples é apenas um novo gatilho de um fenômeno de ação- reação. Dentro de sua filosofia introspectiva, os vinhos naturais talvez busquem devolver uma fatia dessa inocência perdida, ainda que desordenadamente e também com conflitos éticos por produtores que fazem marketing enganoso (descobriram que se pode vender vinhos defeituosos sob o epíteto de “vinho de terroir”). O vinho não é uma ferramenta de expressão política, mas pode ser o reflexo exato dos anseios culturais de pequenos grupos sociais que, num mundo fortemente conectado, atrai seguidores. Os “laranjas” já se espalham mundo afora, com exemplos dentro da América do Sul, no Chile, e do Brasil também. Eles não vieram para provar nada a ninguém e não pretendem provar qualquer superioridade em relação aos demais, embora alguns de seus seguidores se comportem como fanáticos. Eles revelam as possibilidades quase infinitas de uma arte humana e dual em essência, cuja maior contribuição é nos possibilitar escolhas, motivo que já lhes permitem obter grande respeito. FONTE: Adaptado de <https://revistaadega.uol.com.br/artigo/o-atavismo-enologico-laranjas_ 10418.html>. Acesso em: 8 nov. 2018. 22 Neste tópico, você aprendeu que: • Os primeiros indícios do surgimento do vinho datam de aproximadamente 8000 a.C. As ferramentas e utensílios mais antigos utilizadas para fabricação de vinho são de 7000 a 5000 a.C. Logo, o vinho é algo bem antigo. • Provavelmente, o que fez o homem continuar consumindo o vinho durante milhares de anos foi a capacidade mágica dele de aliviar tensões, alegrar as pessoas, aumentar o prazer, de relaxar, de aprofundar o sono, de diminuir a dor, aumentar a coragem e de aproximar os homens dos seus deuses. • A Igreja Católica tive participação fundamental no desenvolvimentodo vinho. O consumo e a produção de vinho cresceram juntamente ao movimento cristão. • A expansão do Império Romano contribuiu para a disseminação do consumo do vinho, dos vinhedos e da produção. Nesse período surgem os Romanées na França. • Com o fim da Idade Média, grandes problemas da humanidade são superados e estudos passam a trazer benefícios aos vinhos. O vinho não era mais bebido por necessidade, mas sim, por prazer. Logo, a qualidade do vinho passa a ser crucial para o comércio. • Em 1668, Dom Perignon é nomeado tesoureiro da Abadia de Hautvillers, na região de Champagne. Ele precisou domar as uvas que teimavam em fermentar novamente nas garrafas ao final do inverno. Mas ao invés de eliminar a fermentação fora de época, ele a aprimorou, desenvolvendo o Champagne, um vinho efervescente, borbulhante, que até hoje apaixona a todos. • Em 1755, após um terremoto que destruiu boa parte de Lisboa, em Portugal, o Marquês de Pombal cria uma lei delimitando a região do Douro como a única autorizada na fabricação do vinho fortificado. O vinho deveria descer pelo rio Douro até a cidade do Porto, onde seria negociado e seus impostos recolhidos a fim de ajudar na reconstrução da cidade. Estava criada a primeira região demarcada de vinhos do mundo. • Veuve Clicquot Posardin desenvolveu o sistema de remuage. Este sistema permitia filtrar os espumantes que até então eram bastante turvos. A dificuldade em filtrá-lo era devido ao gás da bebida. • Em 1864, Louis Pasteur desenvolveu o processo que hoje chamamos de pasteurização. Esse processo permite impedir que microrganismos presentes no vinho façam com que ele oxide ou volte a fermentar. RESUMO DO TÓPICO 1 23 • No final do século XIX, a Filoxera devastou 4/5 dos vinhedos europeus. Trata- se de uma praga nativa das Américas levada acidentalmente para a Europa. Após imensos prejuízos, somente com enxertia entre videiras americanas e europeias é que o problema foi solucionado. • O Julgamento de Paris foi uma degustação às cegas entre vinhos europeus e californianos, na qual os californianos ficaram melhor posicionados. Essa degustação expandiu o mercado de vinhos do mundo. • O vinho no Brasil começou sem sucesso no interior do Estado de São Paulo e alguns séculos depois ganhou força no Rio Grande do Sul, com a imigração italiana. Uvas viníferas europeias não se adaptaram ao solo e os vinhos foram feitos a partir de uvas americanas. Até hoje temos essa herança cultural. • A enogastronomia não é um assunto novo, mas está em evidência nos últimos anos. De grandes chefes de cozinha, donas de casa e cozinheiros de final de semana, todos se preocupam em combinar vinho e comida. 24 1 Quais os motivos que levaram o homem, historicamente, a continuar produzindo e consumindo o vinho após a sua descoberta? 2 Cite três personalidades importantes na história do vinho. 3 O que foi a Filoxera e como ela interferiu no mundo do vinho? 4 Como aconteciam as primeiras harmonizações entre comida e vinho? AUTOATIVIDADE 25 TÓPICO 2 TERROIR E A GEOGRAFIA DO VINHO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, o vinho é uma bebida bairrista! Ele mantém sempre, em suas expressões, características que entregam de onde ele vem. É mais ou menos como o catarinense que não consegue deixar de falar ligeiro e cantado, o gaúcho que não esquece do “tchê!”, o carioca que não deixa de usar o “x” no lugar do “s” nas frases. São regionalismos que parecem ficar conosco mesmo quando vamos morar em outros lugares. Está no jeito de cada um. Nascemos com isso, está no sangue, no terroir! Como já foi pincelado nos tópicos sobre a história do vinho, tudo começou na Europa, mas após a famosa degustação do século XX que ficou conhecida como o Julgamento de Paris, todos os apreciadores de vinhos precisaram retornar às salas de aula para estudar um pouco mais de geografia. Em verdade, estudar muita geografia! Se antes estavam preocupados apenas com a Europa, agora deveriam atentar a todo o mundo. Novas fronteiras vinícolas surgiram e continuam surgindo desde então. Principalmente nos últimos anos, lugares em que nunca se pensou serem propícios para o cultivo da videira, mostram-se bastante propícios quando utilizadas tecnologias adequadas. Voltando à questão do regionalismo, ou melhor, à questão da origem do vinho (termo mais usual para expressar o local onde o vinho foi feito), impressionam a força e, ao mesmo tempo, a sutileza como o vinho se define e assume características do local. A fim de sermos mais didáticos, o que queremos dizer é que ao beber uma taça de vinho, por meio de estudo, conhecimento, prática e experiência, é possível deduzir em qual local do mundo o vinho foi feito, assim como algumas outras características, como a safra e o produtor. Fazer essa análise e posterior dedução só é possível porque cada região do mundo é única e somadas as características de cada produto, a variedade de uva utilizada, o estilo de vinho e outras variáveis diversas, cada vinho é único. Há quem diga que não existe um só vinho igual ao outro. Então, amigo acadêmico, pegue seu atlas, abra o seu aplicativo de mapa no celular e vamos viajar. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 26 2 TERROIR O lugar em que o vinho foi feito aponta tantas coisas diferentes a respeito dele que não há na língua portuguesa (e nem em outra no mundo) alguma palavra original que possa expressar todo o conjunto de fatores capazes de interferir no resultado de um vinho. Assim, o mundo todo acabou por adotar o termo francês “terroir”. Trata-se de um termo tão cheio de significados que nenhum outro idioma ousou tentar traduzi-lo. Apesar de poder ser utilizado para outros elementos, parece que a palavra terroir nasceu com o vinho, a associação é automática. Não fuja da leitura, tudo se esclarecerá! Começaremos com as definições de terroir. A OIV (Organização Internacional do Vinho) publicou um documento em 2010 que buscava criar um consenso a respeito do assunto e indicava que conceito remete a um espaço no qual está se desenvolvendo um conhecimento coletivo, resultado das interações entre o ambiente físico, biológico e das práticas enológicas aplicadas. Esta soma de fatores é o que proporcionada características distintas aos produtos originários de determinado espaço. A OIV segue complementando que o solo, a topografia, o clima, as características da paisagem e da biodiversidade local também somam ao terroir. Uma definição um pouco mais poética é dada por Marc (2012) e pode ser encontrada no Guia Larousse do Vinho: Terroir é uma palavra francesa sem tradução em nenhum outro idioma. Significa a relação mais íntima entre o solo e o microclima particular, que concebe o nascimento de um tipo de uva, que expressa livremente sua qualidade, tipicidade e identidade em um grande vinho, sem que ninguém consiga explicar o porquê (MARC, 2012, p 28). FIGURA 12 - TERROIR VALE DOS VINHEDOS - VINÍCOLA MIOLO FONTE: < https://www.miolo.com.br/>. Acesso em: 19 out. 2018. Na figura anterior observamos uma paisagem da região do Vale dos Vinhedos no Estado do Rio Grande de Sul com a Vinícola Miolo ao fundo, uma das pioneiras do vale. A imagem pode parecer um simples cartão postal, todavia, nela é possível observar características peculiares aquele terroir, como inclinações, formação das montanhas, alguma tecnologia aplicada ao vinhedo, entre outras TÓPICO 2 | TERROIR E A GEOGRAFIA DO VINHO 27 coisas. Agora, para compreender como o terroir age sobre o vinho, precisamos analisá-lo, desmembrá-lo em cada um dos seus campos de ação. Começaremos dividindo-o em três grandes grupos: clima, terreno e cultura. Todos nós temos uma ideia do que é o clima. Sentimos na pele as consequências da chuva, do calor, da umidade do ar, da temperatura e de tantos outros fenômenos da natureza. Se você, caro acadêmico, sente-as, as uvas e o vinho também sentirão. Podemos garantir que as uvas costumam ser bem mais sensíveis que nós, independentemente do nossosigno no zodíaco! A influência das chuvas sobre a videira é imensa. Para Pacheco (2005) se a própria irrigação do solo o deixar muito encharcado, poderá trazer fungos e doenças para as plantas. Chuvas em época de colheita também não costumam ser bem-vindas, pois os frutos absorvem a água, tornando-os mais aguados e menos doces. Neblinas, névoas, nevoeiros e muita umidade do ar, também poderão trazer fungos indesejados. Por outro lado, ventos secos e na moderação correta secam a planta, proporcionando mais saúde. Muito vento, granizo, geada ou outra intempérie da natureza podem estressar a planta, derrubar floradas, danificar o bago da uva, prejudicando sua qualidade ou mesmo diminuindo o volume de produção. Pacheco (2005) também menciona o clima: lembra que a temperatura afeta a produção da uva. A videira é uma planta que possui um ciclo de desenvolvimento bem definido e para que esse ciclo aconteça corretamente e que a uva se desenvolva bem, a temperatura precisa ser favorável. Durante o inverno a videira está em dormência, ela seca e perde a maioria de suas folhas, dando a impressão de que está morta, um galho seco fincado ao solo. Nesse período é importante que o frio prevaleça. Na saída do inverno, aos primeiros sinais de aquecimento, a videira entende que é hora de reagir. Como se acordasse de um sono profundo, a seiva volta a escorrer ao ponto de pingar nas extremidades. Poeticamente, os viticultores chamam este momento de o choro da videira. FIGURA 13 - O CHORO DA VIDEIRA FONTE: <https://www.clubevinhosportugueses.pt/vinhos/o-choro-da-videira-prenuncio-de- primavera/>. Acesso em: 15 set. 2018. UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 28 Poesia à parte, em uma situação de inverno não típico em que porventura tenha um período quente antecipado, a videira pode entender que o inverno se findou e iniciar seu despertar, soltando as primeiras ramas e flores. Essa situação pode antecipar a safra, obrigando a realização da colheita num período não adequado e causar um estresse na videira, caso o frio retorne após o período de calor. Pode matar ou agredir a florada, comprometendo a qualidade e a quantidade da safra que está por vir. Aí, quem chora são os viticultores. Após a florada, que acontece durante a primavera, até a chegada do verão, as videiras estão ricas em folhas vigorosas e já há a presença dos cachos de uvas bem definidos. Durante o verão, há formação total dos cachos e, por final, a maturação, que ocorre no verão e início do outono. O interessante é que os períodos do ciclo da videira podem variar bastante, dependendo do lugar (terroir), da variedade da uva e do manejo utilizado para o cultivo. No Sudeste brasileiro ele é invertido apenas com manejo de poda e a colheita acontece no inverno. Já no Nordeste, é possível trabalhar para que a colheita aconteça em qualquer época do ano, proporcionando até duas safras e meia, por meio do encurtamento desse ciclo devido à poda e irrigação. NOTA Um cenário ideal de temperatura é aquele com estações bem marcadas e definidas com invernos frios, verões quentes e suas transições (outono e primavera) regulares. Para frutos melhores para a vinicultura, é desejável que mesmo no verão haja uma amplitude térmica considerável durante os dias. Ou seja, que os dias sejam quentes o suficiente para amadurecer a uva e que as noites sejam mais refrescantes, proporcionando estrutura, mantendo a acidez e a qualidade da uva em geral, conforme relata Skinner (2008). Até aqui apresentamos de forma um pouco mais detalhada a influência das chuvas e da temperatura dentro do quesito clima. Mas como você bem sabe, há muito mais coisas que o compõem, por exemplo, a influência dos rios e oceanos, a flora local, umidade, ventos etc. Avançaremos agora para outro item do terroir que também exerce influência direta sobre o clima: o terreno. Em relação ao terreno, Johnson e Robinson (2008) sugerem que tenhamos duas visões: sobre ele e abaixo dele. Ao olharmos sobre o terreno, observamos a sua posição a começar por onde ele está no globo terrestre. Quais suas coordenadas geográficas: latitude, longitude e altitude? Regiões mais próximas à linha do Equador tendem a ser mais quentes. Em contrapartida, o clima se torna mais ameno e frio quanto mais afastadas estão. Algo semelhante ocorre em relação às regiões de maior altitude onde ocorrem grandes amplitudes térmicas: quentes durante o dia e frias durante a noite, o que é bom para a videira e para a uva. TÓPICO 2 | TERROIR E A GEOGRAFIA DO VINHO 29 Algumas regiões desérticas do mundo apresentam características interessantes para o cultivo da videira. Possuem estações bem regulares, são quentes e frias ao mesmo tempo. Alguns exemplos são a região de Mendoza, na Argentina, o sertão nordestino brasileiro e o deserto de Gobi, na China. NOTA Em um terreno também observamos sua inclinação ou posição em uma colina, montanha etc. Um terreno em declive tende a ser mais enxuto quando está mais acima e a acumular mais água quando mais abaixo. Dependendo do grau da inclinação, pode dificultar o cultivo da videira ou sua mecanização, tornando tudo mais trabalhoso. Um terreno plano torna tudo mais simples, seja o trabalho manual ou mecanizado. Por outro lado, dependendo da sua composição, pode acumular água. Como é a incidência solar desse terreno? Há cadeias de montanhas em volta que formam sombra em algum período do dia? No caso de terrenos inclinados, ele pode ter mais ou menos incidência solar, dependendo da sua direção. Se tem sua face voltada para o leste, receberá mais sol da manhã; se para oeste, o sol da tarde será mais forte. Dizer que há uma definição do que é melhor para a videira e para a uva é sempre arriscado, vale-se muito da experiência e conhecimento dos produtores para descobrir qual a melhor variedade para determinado terreno e o tipo de vinho a ser produzido (JOHNSON; ROBINSON, 2008). Neste ponto, vamos observar o mapa mundial por uma perspectiva diferente. Vejamos: FIGURA 14 - MAPA MUNDIAL: PARALELOS PRODUTORES DE VINHOS FONTE: <http://nossovinho.com/regioes/>. Acesso em: 19 set. 2018. No mapa mundial da figura anterior, foram marcadas duas faixas que atravessam o globo. Elas estão entre os paralelos 30° e 50°, tanto no Hemisfério Sul quanto no Norte e, por essa razão, possuem condições climáticas semelhantes entre si UNIDADE 1 | VINHO: CONHECENDO A BEBIDA 30 em diversos aspectos. Dentro dessas duas faixas estão localizados os principais países produtores de vinhos do mundo. É possível observar que estão nas faixas quase a totalidade do continente europeu, dos Estados Unidos, uma parte do Canadá, Norte da China, Norte do Continente Africano, Chile e Argentina em sua quase totalidade, Sul do Brasil, África do Sul, Sul da Austrália e a Nova Zelândia. Conforme observado por Johnson e Robinson (2008), todos países e regiões com alguma tradição vinícola. Apesar das faixas definirem as regiões mais propícias para o cultivo da videira, não significa que seja impossível produzir vinho fora dela. Atualmente, produz-se vinhos de boa qualidade em quase todos os países do mundo. Talvez haja dificuldade maior fora das faixas, mas com alguma tecnologia é possível corrigir alguma carência no terroir. Para usar exemplos brasileiros, produz-se vinhos de grande qualidade fora dessa faixa, compensando o deslocamento para a Linha do Equador com altitude. Já no Nordeste brasileiro, os parreirais são cultivados totalmente com irrigação artificial, marcando com água e poda o ciclo da videira. Sobre o conceito de terroir, já abordamos o clima e o terreno. Passaremos agora para a última etapa deste assunto tão amplo: o fator cultural do terroir. Macneil (2003) indica que o fator cultural está ligado ao ser humano, que também faz parte do conjunto da natureza local. Através da evolução e aprendizado de anos, o homem avançou até o estágio atual produzindo vinhos de forma diferenciada em cada local do globo terrestre. Apesar do conhecimento
Compartilhar