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ANGÚSTIA EXISTENCIAL NOS TEMPOS ATUAIS José Paulo Giovanetti FAFICH/UFMG Nesses últimos anos, tem-se falado muito da angústia, pois esse fenômeno está cada vez mais em pauta na vida cotidiana do homem moderno. É necessário ter presente que a angústia é uma experiência fundamental do homem, e que, por isso mesmo, está presente desde os tempos mais longínquos e em todos os lugares, isto é, presente em todos os povos. Mais do que isso, a angústia faz parte da vida do homem, isto é, o homem normal vive ou viverá de uma ou de outra maneira, em uma circunstância mais difícil ou menos difícil, a experiência da angústia. DE GREEFF diz: "A predisposição para a angústia vela sobre o homem, sobre sua existência e também sobre seu EU, e essa capacidade demonstra ser uma das funções biológicas que tem por missão velar pela conservação dos seres". 1 Essa afirmação quer destacar que a angústia faz parte da nossa vida, que ela é algo constitutivo do ser humano e que a sua experiência deve ser vivida, e não negada. A angústia é um elemento de nossa existência que poderá libertar-nos ou destruir-nos na nossa caminhada. Refletir sobre esse fenômeno torna-se uma obrigação do homem, nesse início de novo milênio, para podermos ser senhores de nossa vida. A angústia é um fenômeno que atinge o homem como um todo, e, por isso mesmo, para ser compreendido exige um conjunto de considerações que se devem completar, a fim de termos uma compreensão mais clara do que possa ser essa vivência. Dentre as várias tentativas de elucidação da angústia, podemos destacar considerações filosóficas e psicológicas como as mais significativas nesse final de século, sem, nos esquecermos no entanto, das considerações "médicas". Dentre as mais significativas tentativas de lançar uma luz sobre a angústia, podemos destacar, no campo da Filosofia a descrição fenomenológica e a concepção existencialista, e, no campo da Psicologia, as investigações da psicologia profunda. 1 DE GREEFF, E. Psicología y Psicopatología de la angustia em Estudos sobre La Angustia. Madrid, Ediciones Rialp S.A., 1962, p. 69. 2 Nosso trabalho será dividido em cinco partes. Num primeiro momento, faremos algumas distinções fenomenológicas, tentando explicitar o objeto de nossa reflexão e para isso nada mais significativo do que apresentar a diferenciação entre temor, ansiedade e angústia. Na segunda parte, vamos refletir sobre a dimensão ontológica da angústia, isto é, apresentar o ponto de vista filosófico sobre o nosso objeto de estudo. É a elucidação da angústia metafísica, que quer dizer que a angústia está enraizada na existência humana. Na terceira parte, as considerações sobre a angústia serão feitas a partir do enfoque psicológico e do psicopatológico, isto é, vamos explicitar o que podemos chamar de angústia clínica. A quarta parte tem como objetivo, uma vez feita a reflexão ontológica e antropológica acerca da angústia, dissecar os fatores do mundo atual que a desencadeiam, mostrando como é possível vislumbrar um homem angustiado. Finalmente, na última parte, será necessário explicitar como um trabalho psicoterápico deve encarar esse fenômeno da angústia, destacando a necessidade de uma abordagem antropológica para o tratamento dessa dimensão tão profunda e mobilizadora do homem. I) Distinções fenomenológicas A angústia apresenta-se como uma das vivências humanas mais difíceis de serem precisadas, pois o que a caracteriza, em primeiro lugar, é o seu aspecto difuso. Percebê-la, diretamente, é muito difícil, daí a necessidade de recorrermos a algumas comparações, a fim de nos aproximarmos desse fenômeno. Hoje, os problemas existenciais vividos pelo homem decorrem de questões que atingem a constituição do ser, isto é, a sua razão de ser. O tédio, o vazio, a apatia colocam à luz do dia a questão do significado da existência. Tais problemas sempre existiram, mas aparecem com mais força no mundo atual, onde a perda do sentido se expressa com mais força. O filme de I. Bergman "O sétimo selo" é um retrato desse problema; um cavaleiro medieval volta de uma Cruzada na Terra Santa, e coloca em xeque o sentido de sua vida, por ter ido lutar contra os turcos otomanos. Como a vida perdera o sentido, o que lhe resta é a morte. Justamente para encontrar um sentido de vida antes que a morte venha, o cavaleiro propõe-se jogar uma partida de xadrez com ela, para que, neste interstício, consiga encontrar um novo significado para a vida, e vença, assim, a morte. O que acontece com 3 esse cavaleiro é que ele faz um questionamento de sua vida, a partir do desaparecimento de um grande ideal. De um outro lado, encontramos, no mundo atual, outros tipos de fenômenos, como a depressão, a culpabilidade, em que o que está em jogo é uma relação mais específica com um obstáculo apresentado no decorrer de nossa existência. Por vezes, a culpabilidade é entendida como um sentimento que nos invade, à medida que deixamos de realizar algo ou que realizamos algo e depois nos arrependemos de o tê-lo feito. De modo semelhante, a depressão, surge como sintoma de termos falhado em alguma coisa. Essas são considerações muito simples, se consideramos esses fenômenos extremamente complexos. O que queremos destacar é que são fenômenos acerca dos quais percebemos com mais clareza o aspecto reativo, diante de um obstáculo. A angústia é um fenômeno mais complexo, pois tem um elemento que a aproxima da questão do sentido de vida e, ao mesmo tempo, a Psicologia e a Psicopatologia compreendem-na como uma vivência mais carregada de sensações somáticas e preocupam-se em eliminar ou fazer desaparecer essas sensações que incomodam nossa vida. Num primeiro momento, podemos dizer que a angústia, ao ligar-se aos problemas existenciais, pode apresentar-se como um fenômeno que atinge cada um de nós no fundamento de nossa vida, isto é, como a perda do fundamento pessoal da existência, e, por isso mesmo, como uma perda do sentido da vida. Esta seria uma leitura ontológica da angústia. Outrossim, nós podemos ler - e é o que na maioria das vezes fazem os autores – e reduzir a compreensão da angústia às suas manifestações clínicas e psicopatológicas. Esta seria uma leitura mais psicológica da angústia, dito de outra maneira, seria a leitura nosológica da angústia. A segunda questão que merece nossa atenção é a distinção entre angústia e medo. SCHOTTE, que no seu curso "Angoisse et Existence" segue a obra de M. MANDRUSZKA intitulada "Vocabulário da angústia e da coragem", afirma que, etimologicamente, a palavra angústia "vem-se enxertar sobre o vocabulário de estreiteza formando o caroço do termo para angústia". 2 Isso surge, segundo diz o autor, a partir de uma certa vivência corporal de ser no espaço. Ora, o termo angústia está, assim, 2 SCHOTTE, J. Angoisse et existence. Cours de questions approfondies de Psychologie clinique dado à Universidade católica de Louvain. Mimeografado, p. 17. 4 significando um certo estreitamento da vivência, de onde surge, na linguagem comum, a descrição da vivência da angústia como um certo aperto no peito. A expressão clássica é de um apertamento no peito, sem se ter clareza sobre o que provoca essa sensação. Temos de observar que esse significado, que predomina na literatura psicológica, sofreu uma evolução, pois, num primeiro momento, a noção de medo é que designava um certo estado psicológico que atingia o organismo humano. "Em seguida, o termo angústia, a partir do seu sentido primitivo de estreiteza, vai servir para designar uma forma de medo. Enfim, com a interpretação especulativa da distinção entre medo-angústia, a palavra tomou um sentido próprio e denota o abalo do sujeito". 3 Essa última etapa da evolução do conceito deve-se ao pensamentode KIERKEGAARD, no seu livro, já clássico, "O conceito de Angústia", onde ele introduz a distinção entre angústia e medo. Ora, na vida ordinária, tem-se um certo consenso de que o medo é uma emoção que possui um determinado objeto, enquanto que na angústia, não se tem uma clareza do objeto."... A relação da angústia com o seu objeto - com algo que é nada (a linguagem corrente diz justamente: afligir-se por nada) - fomenta equívocos..." 4 Na nossa vida, a dificuldade de se ter clareza sobre o objeto de angústia fará com que o ser humano permaneça em estado de angústia, pois a não-elucidação do seu objeto nos coloca em estado contínuo de tensão. O medo, por seu lado, torna-se uma vivência de "objetividade", no momento em que consigo dizer claramente que tenho medo de um cão bravo, ou medo de elevador. Assim, ao evitar o cão ou o elevador, a sensação de medo não aparece. Na angústia, a situação é inversa, permaneço angustiado pois não consigo delimitar a realidade que provoca em mim a angústia. A distinção entre medo e angústia é relativamente clara, porém, fica difícil traçar uma linha divisória, quando aparece o termo ansiedade, que, às vezes, tem o mesmo significado que o termo angústia. Em algumas línguas, como alemão, o termo "Angst" significa tanto ansiedade como angústia, mas, em francês e inglês, existem dois termos diferentes, que são, respectivamente angoisse e ansiété, e anguish e anxiety. A dificuldade está em estabelecer a distinção entre ambos. 3 SCHOTTE, idem, p. 19. 4 KIERKEGAARD, S. O conceito de Angústia. Lisboa. Editorial Presença, 1972, p. 59. 5 Do ponto de vista clínico, essa dificuldade aparece, pois tanto ansiedade como angústia expressam a vivência de uma sensação um pouco difusa e vaga. É necessário delimitarmos a abrangência de cada termo, pois no momento, em que fizermos um tratamento terapêutico, as estratégias deverão ser diferentes. Tomando como referência os sintomas psicológicos, ROJAS, em seu livro "Ansiedade", diz que existe entre os dois conceitos, diferentes aspectos tanto qualitativos quanto quantitativos. Dessa maneira, quando explicita os sintomas psicológicos de ambos, diz o seguinte: "Angústia tem sempre manifestações somáticas mais marcadas, ao passo que a ansiedade se desenvolve num nível fundamentalmente psicológico". 5 Isto quer dizer que a angústia revela algo mais profundo do ser humano, enquanto a ansiedade pode revelar dificuldades psicológicas de enfrentar determinados obstáculos. Quanto aos sintomas físicos, talvez possamos ter mais clareza acerca deles. "A angústia produz uma reação astênica, de paralisação, bloqueio ou inibição. Os sintomas somáticos se expressam especialmente na zona precordial e nos territórios gástricos: taquicardia, opressão precordial, dores estomacais, sensações epigástricas vagas e indefinidas, ardores, etc". 6 Por outro lado, a ansiedade "provoca uma reação estênica, de sobressalto, de incitação à fuga, de participação ativa nessa impressão de medos difusos e etéreos: há um certo desafio, que é uma mescla de agitação, preocupação, atividade, tendência a fugir ou a correr; resumindo: impressão subjetiva de não estar quieto". 7 Segundo diz ROJAS, os sintomas mais freqüentes nas pessoas que experimentam a ansiedade são: "sensação de falta de ar e dificuldade de respirar". 8 Essas diferenças clínicas jogam uma certa luz sobre a especificidade de cada uma das vivências. Do ponto de vista antropológico, podemos estabelecer uma distinção que mostre que a angústia revela uma postura de questionamento da existência, daí que quem a sente pode chegar a ter idéias suicidas, enquanto a ansiedade é só uma inquietude diante de um obstáculo de vida. Às vezes, essa inquietação dá-se de forma mais clara, isto é, a sensação dita ansiedade surge quando a pessoa vê quebrada a sua rotina de vida e enfrenta um desafio que não faz parte de sua cotidianeidade. Por ex: alguém que não tem o hábito de falar em público; quando uma ocasião exige essa postura, a pessoa entra em pânico, ou quando, no seu dia-a-dia, enfrenta de maneira não tencionada os clientes que aparecem em 5 ROJAS, E. A ansiedade. São Paulo: Editora Mandarim, 1997, p. 77. 6 Idem, p. 77. 7 Idem, p. 78. 8 Idem, p. 78. 6 seu consultório, até que, em determinado dia, terá de atender o seu professor. Esse fato gera uma certa inquietação acerca da qual dizemos que a pessoa está ansiosa. Ou, ainda, quando um estudante prepara-se durante quatro anos para sua formatura, e, no dia da colação de grau, está nervoso. Dizemos que o estudante está ansioso e não angustiado, que seria uma sensação de questionamento profundo da sua vida. Aqui, ele sente-se inseguro diante do desafio, que é novo e único na sua vida. II) Angústia, Motor da Existência Ao falarmos das várias possibilidades de se pensar a angústia, é necessário distinguir o discurso dos filósofos e o dos psicólogos ou psiquiatras. Temos de ter atenção, para verificar se ambos estão falando da mesma realidade, ou se são discursos que enfocam aspectos diferentes do mesmo homem. A angústia de que falam os filósofos, entre eles especialmente HEIDEGGER, não é a angústia psicológica, mas a angústia ontológica. São dois discursos que se completam, porém destacam aspectos distintos, isto é, a angústia de que falam os psicólogos é da ordem de vivência, e a angústia de que falam os filósofos, é da ordem do ser. Feita esta consideração, vamos refletir sobre o conteúdo do discurso dos filósofos. Quem, no âmbito filosófico, dá destaque ao problema da angústia é o pensador dinamarquês KIERKEGAARD, que, rebelando-se contra o pensamento dominante da época - a dialética hegeliana - destacou a importância do indivíduo, da subjetividade em detrimento do sistema de pensar o mundo. Ele veio explicitar que a angústia é algo próprio do homem, dizendo que é da negatividade do ser que brota a angústia. No estado de inocência, o homem não tem possibilidade de distinção entre o bem e o mal, e "nesse estado, há calma e há repouso; mas há, ao mesmo tempo, outra coisa que, contudo, não é perturbação, nem luta, pois nada existe com que lutar. O que há então? Nada. Mas que efeito produz esse nada? Este nada engendra a angústia. Eis o mistério profundo da inocência: ao mesmo tempo é angústia". 9 A angústia é, assim, entendida como parte da existência, e tanto o homem são como o homem doente do ponto de vista da reflexão 9 KIERKEGAARD, S., op. cit., p. 55. 7 filosófica, possuem a angústia. Ela é constitutiva do ser humano, animal mais alto na esfera da evolução, quando diz "aliás, quanto menos espantos haja, menos angústia haverá". 10 Desde que o homem constitui-se como homem ele possui angústia. Ela faz parte da vida, ela é o motor da existência, o ser humano em desenvolvimento possui a necessidade da angústia para impulsioná-lo para a frente. "A angústia é tão essencial à criança, que ela não quer dispensá-la; mesmo quando inquieta pela angústia, a criança encanta-se com essa doce inquietude. Em todos os povos onde a infância se conserva como uma disposição sonhadora do espírito, existe tal angústia e a sua profundidade é o padrão de medida da profundidade desses povos". 11 A angústia é essa inquietação que brota do meu ser, independente das condições concretas em que vivo. É o estar vivendo a existência. Daí, que a angústia não é entendida como patológica, pois ela está presente na vida de cada homem, é estar vivendo. Algumas pessoas explicitam isso, dizendo que a única razão de sua vida é sentir-se angustiado, e, assim, consegue ir dando os passos pela vida. Ele está falando de forma concreta dessa inquietude que abarca todo o seu ser e que a sua reflexão não é capazde captar e explicitar. A angústia é mobilizadora e não paralisadora. Outro filósofo que destacou a angústia como algo constitutivo do ser humano foi HEIDEGGER, que, na sua obra "Ser e Tempo", refletiu sobre a dimensão ontológica da angústia. Por ser constitutiva do ser, a angústia não está ligada a um perigo ou a uma ameaça (isto seria próprio da angústia na perspectiva psicológica) pois não é uma realidade determinada que provoca a angústia do ponto de vista ontológico no ser humano. Para HEIDEGGER, o homem está ontologicamente angustiado, pois é pelo fato de estar no mundo, isto é, de ser-no-mundo. Como possibilidade global, e não como uma determinada possibilidade, seja ela a saúde ou o status quo, de ser tudo o que possa ser. Para refletir sobre o objeto da angústia, HEIDEGGER começa destacando, do ponto de vista ontológico, e não da perspectiva psicológica, como fizemos acima, neste texto, a distinção entre angústia e temor. Ele diz: "Não há dúvida de que o nexo ontológico entre angústia e temor é ainda obscuro. Mas é claro que, entre ambos, existe um parentesco fenomenal. O indício de parentesco é o fato de que ambos os fenômenos permanecerem, na maior parte da vezes, inseparáveis um do outro e isso a tal ponto que se chama angústia o 10 Idem, p. 59. 11 Idem, p. 59. 8 que é temor e se fala de temor quando o fenômeno possui o caráter de angústia". 12 A distinção feita por HEIDEGGER mostra que o que temos pode ser provocado por um ente concreto como, por exemplo, um animal, ou um acontecimento catastrófico, como uma enchente, enquanto a angústia é de outra natureza. "O com quê da angústia não é, de modo algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer nenhuma conjuntura essencial. A ameaça não possui o caráter de um determinado dano que diria respeito ao ameaçado na perspectiva determinada de um especifico poder-ser de fato. O com quê da angústia é inteiramente indeterminado". 13 Mais à frente completa: "Aquilo com que a angústia se angustia é o "nada" que não se revela em parte alguma. Significa que a angústia se angustia com o mundo como tal". 14 Assim, o que infunde a angústia não é algo determinado. HEIDEGGER ratifica: "Por isso, a angústia também não "vê" um "aqui" e um "ali" determinados, de onde o ameaçador se aproximasse. O que caracteriza o referente da angústia é o fato de o ameaçador não se encontrar em lugar algum". 15 Assim a angústia enfoca-se sobre o estar-no-mundo. "O angustiar-se abre, de maneira originária e direta o mundo como mundo". 16 Assim, o que angustia o homem é a possibilidade do "nada", do não-ser, que seria a morte, mas, aqui, é necessário entender que não é o medo de morrer que provoca a angústia, mas, ontologicamente, é ter de viver, e, no viver, admitir a morte como possibilidade do não-ser, como o nada. Assim se deve entender a afirmação de que o homem é um ser-para-morte, isto é, que o homem carrega, dentro de si, a possibilidade do não-ser, e a angústia é o mover-se para concretizar as possibilidades que podem ser minadas por essa realidade. Essa interpretação ontológico-existencial de HEIDEGGER tem marcado as reflexões psicológicas sobre a angústia, porém, muitas vezes, sua reflexão de caráter ontológico é psicologizada, erro imperdoável para captar-se a riqueza de suas reflexões. 12 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988, 2ª ed., vol. I, p. 249. 13 Idem, p. 250. 14 Idem, p. 250. 15 Idem, p. 250. 16 Idem, p. 251. 9 III) Aspectos clínicos da Angústia A dificuldade de falar da angústia patológica vem do fato de não se ter uma clareza sobre os limites ontológicos e psicológicos na vivência da angústia. A Psicologia e a Psicopatologia têm se esforçado para determinar parâmetros claros para entendermos o que poderíamos chamar de angústia patológica. Os estudiosos parecem ter consenso de que a angústia existencial, analisada no item anterior, é algo que o homem carrega consigo, e que provém de uma certa inquietude da vida, que na maioria das vezes nos deve impulsionar para a frente. O impacto desse componente antropológico na nossa subjetividade varia de extensão em cada um de nós. É a partir da intensidade com que vivo a angústia que os autores a classificam de positiva ou negativa, normal ou patológica. A primeira seria construtiva, e a segunda deveria ser tratada. Segundo ROJAS, o "aumento ou a diminuição da ansiedade (entenda-se, aqui, angústia) tem muito a ver com a elaboração individual da informação que chega a esse indivíduo". 17 Essa maneira de relacionar-se com a realidade é que dará o tom positivo ou negativo da vivência da angústia. O lado normal da angústia é quando ao estado de ânimo é preside o interesse. “A curiosidade, o afã de conhecer e nos aprofundarmos em tantas coisas atraentes e sugestivas que a vida possui". 18 É aquela ressonância que joga a nossa subjetividade para a frente, que nos faz encarar a vida com um certo otimismo, mesmo que tenhamos muitos problemas a resolver. Ser otimista é enfrentar a vida de frente, e não negar as dificuldades. O lado negativo da vivência da angústia é quando um estado de ânimo (tonalidade afetiva) nos coloca "pra baixo", isto é, a angústia é vivida com tal intensidade que ela paralisa a existência e chega a ameaçar a integridade de nossa personalidade. ROJAS explicita da seguinte maneira a angústia patológica: "A postura seria a do homem narcotizado: vulgar, que vegeta, submerso nos assuntos e lugares-comuns, sem interesse por nada. Esse homem se limita a levar uma vida vegetativa: come, dorme, vai e vem, nada de importante penetra na sua intimidade". 19 Há uma quase paralisação da vida. Isso quer dizer que a intensidade da angústia pode tornar-se sufocante, e, com isso, provocar os mais diversos sintomas clínicos. DE WAELHENS, definindo a angústia patológica, exprime que é quando a angústia se volta contra si mesma e, num supremo ardil, transforma-se em 17 ROJAS, E., op. cit., p. 29. 18 Idem, p. 59. 19 Idem, p. 59. 10 angústia por necessidade. 20 Podemos dizer que o homem angustiado é aquele que sente a vida com uma intensidade extraordinária, sendo esta mobilizadora ou paralisadora. De uma maneira geral, podemos dizer, de uma pessoa angustiada, que vive uma angústia patológica e que, na maioria dos casos, essa angústia mórbida vem acompanhada de perturbações bem diversas em sua existência, como, por exemplo, a busca de satisfação no álcool e nas drogas, comportamentos decorrentes da neurotização da personalidade, ou, ainda, a experimentação da angústia é visualizada por meio de sintomas corporais, como, por exemplo, toda atitude hipocôndrica, ou, ainda, no campo do psiquismo, por meio das fobias e obsessões. Este trabalho não tem por objetivo explicitar as diversas formas de manifestação das neuroses. A angústia que está onipresente no campo da clínica, isto é, que está na base de quase todas as neuroses, principalmente para FREUD, mereceria um tratamento maior e mais demorado, que não cabe aqui. De um modo geral, em psiquiatria, o médico pratica a nosografia, isto é, o estudo diferenciado das formas de doença mental, e dá à angústia uma atenção especial, pois, Por baixo de várias doenças psicossomáticas, como gastrite, crise de asma, hipertensão arterial, etc, das fobias, como as fobias traumáticas (viajar de avião, fazer uma prova no vestibular), como as fobias hipocôndricas (a fobia de estar sempre pensando que está com câncer), ou mesmo das obsessões, como, por exemplo, qualquer transtorno obsessivo-compulsivo, a obsessão da pureza corporal, ou, mesmo, a religiosa, encontramos uma certa presença da angústia como o horizonte sobre o qual desenrola-sea "doença". 21 Essa classificação psiquiátrica é uma aproximação do fenômeno da angústia, porém a nosso ver, ela não nos possibilita, em nenhum momento, a compreensão do homem "doente", mas só as características da doença, deixando de fora todo o entendimento do homem como agente de sua vida e do destino de sua existência. Diante desse quadro de caracterização clínica da angústia, o passo seguinte é, agora, interrogar-nos sobre o que desencadeia essa angústia patológica, ou, dito de outro modo, quais são as causas que podem originar os fenômenos ditos angustiantes. A questão é extremamente complexa, e não deve ser, de maneira nenhuma, simples. Ela exige que 20 DE WAELHENS, A., op. cit., p. 64. 21 Para uma compreensão mais sistemática de toda essa sintomatologia o livro de ROJAS, citado no corpo do texto, pode ser útil para uma primeira aproximação do tema, uma vez que o texto é bastante didático e de simples compreensão. 11 tenhamos o cuidado de não reduzir a compreensão do porquê a um único componente, e abrimos o horizonte de nossa reflexão para enumeramos uma gama de aspectos, que, num primeiro momento, podem ser resumidos na busca da contribuição das dimensões biológicas, psíquicas e sociais dos comportamentos angustiantes. A compreensão dos fatores desencadeadores da angústia, na perspectiva psicopatológica, sem cair na simplificação, deve atentar não para encontrar apenas um fator, mas para buscar a combinação de vários elementos que possam trazer à luz uma percepção melhor da vivência da angústia. O primeiro fator que gostaria de elencar é o que os autores designam como biológico. Aqui, vamos usar o termo biológico no seu sentido amplo, isto é, para abarcar o endógeno e as sessões biológicas. Como explicita ROJAS, o primeiro diz respeito ao patrimônio físico herdado pelo indivíduo no momento em que vem no mundo. Não vamos discutir, aqui, qual é a porcentagem, ou se esse é o elemento determinante que influenciará o surgimento da vivência da angústia. Queremos, somente, chamar a atenção para a necessidade de não se neglicenciar o fator endógeno. O segundo componente que o termo biológico abarca são as lesões corporais, que, aqui, significam as muitas enfermidades a que o ser humano está sujeito e que podem desencadear, na pessoa, a vivência da angústia. Como exemplo, o diagnóstico de uma enfermidade grave pode gerar tal preocupação com o que provocará de reviravolta na sua vida, que a pessoa se angustia. Segundo diz ROJAS, essa situação peculiar pode fazer com que a angústia 22 apareça "como um sintoma a mais dessa doença, o que é relativamente freqüente nas de muita gravidade: cânceres de tipo distinto, doenças vasculares sérias, vício de heroina, Aids". 23 É provável que essas pessoas sejam médicos, psicólogos ou enfermeiras, que trabalham nos centros de terapia intensiva, defrontam-se com regularidade com doentes que, justamente, no período pós-operatório de uma enfermidade experienciam o desencadeamento da angústia. Quanto ao componente psíquico como desencadeador da angústia, aqui, a gama de variedades é quase infinita, pois ele inscreve-se na história de vida da pessoa. Todo caminhar tem seus obstáculos e, por isso, mesmo sofrimento. O problema está em que o 22 O autor utiliza o termo ansiedade, porém, aqui, nesta parte do seu trabalho, o termo ansiedade está sendo usado para explicitar a vivência da ansiedade e a da angústia. Nós, porém, queremos expressá-lo no sentido de angústia. Gostaríamos, também, de fazer uma outra observação. O biológico não é sinônimo de vital. Para nós, o vital ultrapassa o biológico no sentido estrito. Ele quer significar tudo aquilo que é essencial para o ser humano, seja no seu nível, biológico, psicológico, e espiritual. Vital é aquele aspecto sem que o homem não pode passar, senão sua constituição como sujeito fica comprometida. 23 ROJAS, E., op. cit., p. 40. 12 sofrimento torna-se um elemento que se vem somar a outros elementos e passa a ser vivido pela pessoa como uma eterna enfermidade. Normalmente, podemos dizer que o que condiciona o surgimento da angústia são "experiências amargas que deixaram um grande impacto em sua personalidade e que, ao serem recordadas, dão margem a estados de inquietude, desassossego, desastre interior. Toda viagem em busca da própria vida é sempre dolorosa" 24 Os traumas não digeridos, isto é, os sofrimentos não assumidos tornam-nos frágeis e, por isso mesmo, vulneráveis à angústia patológica, tornando-nos neuróticos. O componente espiritual 25 é o nível mais profundo na estruturação da personalidade, e caracteriza-se pela especificidade da reflexibilidade. É por meio da reflexão sobre nós mesmo que nós podemos tomar nossas vidas nas mãos, pois é nesse nível que estabelecemos o sentido de nossa vida. FRANKL, em toda a sua obra, luta por elaborar um tipo de terapia que trabalhe nesse nível do ser humano, e é por isso que vai nomear as enfermidades decorrentes dessa esfera como "noogênicas". Na maioria dos estudos psiquiátricos tradicionais, essa dimensão do ser humano não é levada em consideração, pois muitos estudiosos pensam que é papel do filósofo falar sobre essa dimensão. Pelo contrário, o psicólogo tem de abrir-se a estudar a especificidade do nível "noético" do ser humano, e verificar toda a sua imbricação com os outros níveis. Como exemplo, a perda de sentido da vida, quando ocorre por causa de algum acontecimento traumático, pode desencadear, das mais diversas maneiras a vivência da angústia patológica. Aqui, é necessário distinguirmos, de um lado, que a angústia existencial responsável pela sensação de inquietude pode e deve acionar, na vida humana, a busca do sentido da vida. Todos nós, mais cedo ou mais tarde, temos de colocar-nos o problema do sentido da vida, senão os outros vão colocar para nós esse sentido, e aí teremos sérios problemas de integração pessoal. A vida sem sentido é um caos, e dar um significado profundo à existência é uma exigência interna do ser humano. De outro lado, quando não vivenciamos essa situação, ou quando, nos sentimos, por um revés da vida, questionados no mais profundo de nós mesmos, e temos de refazer o significado último da vida, e não sabemos como sair dessa situação, a angústia patológica pode aparecer, e, assim, o nível espiritual ser um deflagrador da angústia. 24 Idem, p. 42. 25 Espiritual, aqui, não tem nenhum sentido religioso. Quer, somente, referir-se à estrutura superior do ser humano, responsável pela reflexão sobre a vida, e pela hierarquização dos valores. 13 O último elemento provocador da angústia é a dimensão social, 26 que hoje, tem muito mais impacto do que no início do século. Nesta parte do trabalho, quero restringir o social só às relações mais interpessoais, deixando para a parte seguinte a análise dos elementos macrossociais como responsáveis pela vivência da angústia. Desse modo, as transformações da sociedade têm provocado muito impacto na maneira de o homem viver a intimidade, isto é, no modo de ele experienciar as relações intersubjetivas. Crises que provocam rompimentos dolorosos de nossas relações podem ser responsáveis pelo desencadeamento da angústia patológica. O rompimento de uma relação de intimidade, ao desestabilizar o ser humano, e ao colocá-lo numa situação em que é exigido acima de sua capacidade, em outras áreas de sua vida, desencadeará uma crise que o mobilizará a sair da situação dada, e com isso, o aspecto paralisante da angústia prevalecerá sobre o aspecto mobilizante e passaremos, de uma angústia existencial a uma angústia patológica. Vale lembrar, porém, que, embora a angústia patológica possa ser desencadeada por qualquer uma dasdimensões por nós analisadas, ou por meio a conjugação de duas ou mais dessas dimensões, a angústia atinge o homem na sua totalidade. Não é um aspecto do homem que vive a angústia, mas é o homem angustiado que paralisa a atualização ou o crescimento das suas dimensões. IV) Angústia e Existência A literatura filosófica, psiquiátrica e psicopatológica, da qual destacamos alguns representantes nos tópicos anteriores, tem crescido muito nas últimas décadas, colocando em destaque o tema da angústia. Assim, o fenômeno tem ocupado o centro de interrogações sobre os problemas mais significativos da vida humana, e provocado reflexões bastante reveladoras da condição humana. GEBSATTEL, porém, adverte de que necessitamos ter um olhar crítico sobre a apreciação do fenômeno. "O que chama atenção acerca desse fenômeno nos escritos sobre os mesmos é uma tendência precipitada, supostamente suspeita, em equiparar e angustiar 26 Estamos tomando social no sentido mais amplo possível, englobando toda a organização da sociedade no seu aspecto macro, como também todas as relações interpessoais que estabelecem o universo micro do ser humano. 14 com a enfermidade". 27 Talvez essa tendência tenha-se acentuado mais a partir das análises psicanalíticas em que a angústia é vista como um sintoma de enfermidade. Esse autor chama a atenção para o fato de que nem todo estado de sofrimento é uma enfermidade. É necessário separarmos as duas coisas. O ser humano sofre, muitas vezes, quando enfrenta certas dificuldades no seu caminhar, mas nem por isso ele está enfermo. Essa separação já nos coloca uma visão nova, na qual a angústia não é vista como um objeto da patologia. A reflexão dos filósofos apresentadas antes possibilita-nos ver o lado positivo da angústia, e perceber nela, uma força de construção da realidade humana. GEBSATTEL, comentando esta atitude extremamente positiva, diz o seguinte: "Só quem compreendeu o papel positivo da angústia no devir da antropogênese do indivíduo, está capacitado para distinguir entre a angústia como fenômeno patológico e sua função necessária na organização total do homem". 28 O autor também observa, mais à frente que justamente devido à dificuldade de se perceber o caráter patológico e a dimensão integradora da angústia, o limite entre o "ainda são" e o "quase enfermo" é uma das fronteiras mais flutuantes e difíceis de serem precisadas. Isto porém não impede que nos debrucemos sobre a natureza ambígua da angústia. Esse caráter do significado da angústia para a vida do homem é percebido só em considerações antropológicas. Ele escapa da leitura causal ou operacional feita pelas abordagens biologizantes. CONDRAU, ao explicitar o que é uma abordagem antropológica, diz que são "aquelas orientações da psicologia clínica que, num ponto de partida e impulso filosófico essencialmente novo, intentam retroceder para além do suposto filosófico, a maioria das vezes ingênuo e impreciso, das ciências naturais; a saber, a chamada objetividade num intento de volta à subjetividade da vivência humana, da própria existência humana". 29 A volta à dimensão mais profunda da constituição do ser humano. A essa abordagem de penetrar nas estruturas humanas mais profundas é que alguns estudiosos dão o nome de antropologia clínica, “que visa a elucidar as estruturas e dimensões da 27 GEBSATTEL, V. Imago hominis. Contribuiciones a una antropología de la personalidad. Madrid: Editorial Gredos, 1969, p. 112. 28 GEBSATTEL, V., op. cit., p. 112. 29 CONDRAU, G. Angustia y culpa, problemas fundamentales de la psicoterapia. Madrid, Editorial Gredos, 1968, p. 70. 15 condição humana, a partir do conjunto presumido de suas modificações patológicas". 30 Nessa perspectiva, a Psiquiatria deixa de ser uma mera classificação dos estados mórbidos da vida humana, e passa a procurar captar a unidade problemática do homem. Deixa de estudar a doença, e passa a buscar entender o homem doente. Esta seria o que poderíamos nomear uma psiquiatria antropológica que seria já um primeiro passo para a concretização de uma antropologia clínica. Todos os discursos apresentados sobre a angústia, como o foram o da filosofia existencial e o da psicologia clínica, juntamente com outras considerações, como da Sociologia, da Teologia, etc, devem fornecer material para a abordagem antropológica que "deverá dar uma interpretação da essência da angústia do homem, tomando a seu serviço os resultados das diversas ciências, e unificando-as, tendo em conta o homem total". 31 Dessa maneira, podemos aproximar-nos do significado da angústia para a vida humana, isto é, descobrimos como que a vivência da angústia contribui para a constituição do sujeito. Dentro dessa perspectiva antropológica, a "angústia é o barômetro que mede a atração do nada, que possibilita o descobrimento dos poderes autodestrutivos, que paralisa o ato de auto-realização do sujeito, e que, sob a forma de uma angústia indeterminada, ameaça a atração do abismo. Assim o que o homem descobre na angústia não é um conteúdo determinado, como nós o temos. Somente coisas vagas lhe vêm ao encontro, de qualquer modo, de uma forma ameaçadora e hostil". 32 Essa reflexão constitutiva do ser humano, porém, tem de que ser canalizada como uma aliada no desenvolvimento da vida, pois ela pode arrastar o homem para a destruição de si mesmo. Este é o significado do abismo. O estado de angústia deve ser suportado pelo homem, para que ele consiga realizar suas coisas, pois a desestabilização do fundamento do homem é o risco de desintegração. "O comportamento próprio perde o ponto de apoio, de centro, da razão da existência pessoal, a partir dos quais se poderia colocar em movimento a vida. Assim, o vazio cheio de inquietude de todas as relações com a existência caracteriza o âmbito da angústia". 33 A teoria antropológica define a angústia na perda da integridade dos atos básicos. Ela mina a sua liberdade, a responsabilidade e o conjunto de determinações próprias. Esse "nada da 30 SCHOTTE, J., op. cit., p. 14. 31 GEBSATTEL, V., op. cit., p. 113. 32 Idem, op. cit., p. 116. 33 Idem, op. cit, p. 117. 16 angústia é um acontecimento que põe em questão a consistência básica do homem". 34 A angústia faz parte da existência e representa, às vezes, uma vivência insuportável, que tem de ser vivida. O que acontece é que algumas pessoas são movidas por essa constante inquietude de que não se mobilizarem, acabariam no nada. Outras pessoas passam um pouco ao largo dessa vivência, e a angústia vital atinge-as com menos intensidade. É a história pessoal de cada um com suas marcas e dificuldades, que faz com que os homens vivam de forma diferente a angústia. CONDRAU define, de forma lapidar, a angústia existencial, dizendo: "A angústia corresponde a um estado de ânimo possível do homem e depende de sua disposição anímica geral, de sua constituição permanente própria ou da dependência de estar entregue a uma ameaça exterior". 35 Essa definição leva-nos a entender a vivência do sentimento de angústia como uma maneira de ser do homem no mundo. Tais considerações mostram-nos que a angústia faz parte da constituição do homem, e, por isso mesmo, acompanha-o desde o nascimento até a sua morte, sendo que, em alguns momentos da existência, ela aparece com mais força, e, em outras fases, sua presença é mais discreta, porém ela está sempre presente. Fica, agora, a interrogação sobre que fatores conjunturais ou circunstanciais fizeram da angústia um tema da existência neste século XX, e mais do que isto, o tema por excelência dessas últimas décadas, que só agora no final do milênio, perde lugar para o tema da depressão, quetalvez venha a ser, o tema das próximas décadas do início do milênio. Podemos buscar encontrar muitas razões para a atenção dada ao tema, na nossa civilização, que talvez não esteja tão presente no mundo oriental. O Ocidente, a partir do século XVI, elegeu a subjetividade como um dos eixos estruturantes da sua civilização, e, como decorrência disso, os estudos foram dando atenção à interioridade do ser humano e à sua estrutura. Foi nessa preocupação em desvendar as forças constitutivas do homem, principalmente do final do século XIX e início do XX, que a reflexão sobre a angústia ganhou espaço. Evidentemente poderíamos acrescentar razões sociais, como a deflagração das duas Guerras Mundiais, que geraram muito sofrimento e angústia no ser humano, porém, devemos dar atenção à razão dos filósofos quando dizem: nunca, como hoje, "a 34 CONDRAU, G., op. cit., p. 72. 35 Idem, p. 80. 17 existência humana vê-se ameaçada pela dispersão, está exposta ao perigo de perder seu ser por sua total conexão com o ser particular". 36 A agitação da vida afasta-nos de nós mesmos, faz-nos estranhar-nos, daí o surgimento da angústia. No nosso dia-a-dia, o que faz surgir a angústia? O que da vida do homem moderno faz brotar a angústia? O ser humano busca auto-realizar-se, o ser humano busca a sua autonomia. A existência é um modo de estar no mundo e a busca de sua própria expansão e desenvolvimento é o movimento por meio do qual se manifesta ao aspecto primordial do homem. Na sociedade atual, buscar as concretizações dos desejos passou a ser a norma absoluta. A frustração é algo que não entra na vida das pessoas. Viver sem nenhuma frustração é a norma máxima da vida. Qualquer impedimento à realização de um desejo deve ser evitada. Assim, o grau de dificuldade que brota de qualquer acontecimento, já é motivo para o desencadear da angústia. A primeira fonte de angústia do homem moderno é o surgimento de um impedimento à busca de autonomia. GARTMAN é extremamente taxativo quando diz: "A angústia surge sempre que é posta em questão, no sentido mais amplo, a auto-realização; sempre que faz impossível uma realização, mesmo que trata-se nesta da continuação da vida, da satisfação de um instinto importante, da consumação de uma tarefa imposta, de uma realização interna ou de qualquer superação do próprio eu". 37 A segunda fonte de angústia " origina-se da desconfiança do homem moderno. A integridade o transpõe na angústia, pois o homem precisa da segurança para sua vida". 38 De um lado, os filósofos têm falado de segurança ontológica, isto é, que para o homem estruturar-se ele precisa fazer despertar em si a vivência de que ele é o fundamento dele mesmo. O homem deve encontrar o fundamento da sua vida nele mesmo, e não fora dele. Traduzindo em termos simples, o sentido de sua vida deve fundar-se nele, e não no outro. O que pode acontecer é viver o meu fundamento com o outro, mas jamais o meu fundamento pode estar no outro. De outro lado, os psicólogos e psiquiatras têm mostrado que, para que o homem adquira a segurança, é necessária a vivência de experiência da confiança básica: GIDDENS define essa confiança básica assim: "a confiança básica é um mecanismo de 36 DE WAELHENS, A., op. cit., p. 41. 37 GARTMAN, H. Über die Angst beim Fliegen", citado por CONDRAU, G., op. cit., p. 87. 18 ocultação em relação a riscos e perigos nos cenários circundantes da ação e da interação. É o principal apoio emocional de uma carapaça defensiva ou o casulo protetor que todos os indivíduos normais carregam consigo, como meio pelo qual são capazes de prosseguir com os assuntos do dia-a-dia". 39 Sobre a importância dessa confiança básica para toda a construção da vida humana, ERIKSON e WINNICOTT explicitam que é a partir dela que emerge uma orientação emotivo-cognitiva suficiente forte para dar bases sólidas a uma maneira de viver. "A experiência da confiança básica é o núcleo dessa esperança específica de que fala BLOCH, e está na origem do que TILLICH chama a coragem de ser". Desenvolvida por meio das atuações carinhosas dos encarregados de educação nos primeiros tempos de vida, a confiança básica liga fatalmente a auto-identidade ao apreço pelos outros". 40 Assim, é por meio da vivência dessa experiência de confiança, vivida na relação com o outro, o pequeno ser humano, isto é, o bebê que ainda não é um ser pleno, pode dar os seus primeiros passos em direção à autonomia. O outro tem como tarefa, uma vez que colocou no mundo um novo ser humano, ajudá-lo a experimentar a confiança em- si, condição necessária para levar à frente a tarefa de existir. GIDDENS completa: "a confiança em si, pela sua natureza, é, em certo sentido, criativa, porque implica um compromisso que é um "salto para o desconhecido", o que significa uma preparação para abraçar experiências novas". 41 Viver a confiança básica é a condição, ou trampolim, para a elaboração da auto-identidade, que é a explicitação, em termos concretos e existenciais, da segurança ontológica. V) Terapêutica da Angústia Nesta parte do nosso trabalho, não vamos discutir o procedimento especifico mais adequado para abordarmos o problema da angústia, isto é discutir se a Psicoterapia Existencial é melhor do que a Psicanálise de FREUD para o tratamento do problema, ou se as técnicas de hipnose ou sugestão são mais eficazes para o tratamento da angústia. O que queremos tratar, aqui, é de uma orientação básica, ou melhor, que tipo de olhar deve ter o terapeuta que procura entender a questão da angústia como um problema humano. 38 CONDRAU, G., op. cit., p. 89. 39 GIDDENS, A. Modernidade e Identidade Pessoal. Oeiras (Portugal), Celta Editora, 1997, 2ª ed., p. 37. 40 Idem, op. cit., p. 36. 41 Idem, op. cit., p. 38. 19 A complexidade do fenômeno da angústia exige um certo cuidado na maneira de encarar um tratamento. Como é uma vivência que atinge o homem todo, isto é, não atinge somente a sua dimensão biológica ou psicológica, mas envolve o ser humano, atingindo-o no seu mais profundo ser, falar de tratamento, de uma intervenção que visa a ajudar uma pessoa a superar determinada enfermidade, significa que estamos falando, aqui, de angústia patológica. Assim, a primeira observação é de que o quadro exige intervenções em diversos níveis. Não vamos fazer, aqui, um estudo das diversas maneiras de como a angústia pode manifestar-se por maio das doenças psicossomáticas, as fobias, etc. Vamos tomá-la no seu conjunto. De um modo geral, nos casos mais graves, talvez seja necessária uma medicação , isto é, uma intervenção medicamentosa, seguida de uma psicoterapia, que buscará ajudar a pessoa a reorganizar-se na sua maneira de encarar a vida, e finalmente , talvez, alguma intervenção em nível social, na qual alguns fatores externos que possam ter contribuído para deflagrar a angústia sejam amenizados, e com isso, o tratamento da angústia patológica tenha sucesso. Contudo, as reflexões apresentadas ao longo do texto exigem, na nossa consideração de cunho psicológico, algumas observações sobre que tipo de tratamento mais adequado seria melhor para encararmos de frente a vivência da angústia. Como o fenômeno atinge o homem na sua totalidade, a abordagem psicoterapêutica não deve ser limitativa, isto é, ela deve ser uma intervenção psicológica, porém com abertura para outras considerações no tratamento do problema. Antes de respondermos a esta questão, tornam-se necessárias algumas ponderações sobre o tipo de trabalho psicológico mais eficiente a ser desenvolvido. O primeiro ponto para se teruma compreensão mais penetrante da angústia, é que a abordagem tenha como objetivo entender não as manifestações sintomáticas da angústia, mas estarmos atentos ao fenômeno, àquilo que dá sentido ao que estamos presenciando. Prestar atenção ao fenômeno, e não ao sintoma, é o ponto capital nessa nossa perspectiva, pois, o fenômeno tem o caráter de referência do DASEIN. “Enquanto uma alucinação corporal ou cinestésica tomada como sintoma pode conduzir-me erroneamente a buscar alterações da sensibilidade, ou, no melhor dos casos, do chamado esquema corporal, quer como fenômeno, situa-se de imediato no campo das perturbações da corporalidade, no 20 sentido da perda da transparência ou transitividade, e me abre o passo para uma compreensão do projeto de mundo, com a conseqüente da estrutura de ser-com-o-outro”. 42 Essa virada de perspectiva é essencial para termos uma visão bastante diferente do olhar tradicional sobre a angústia. A partir dessa virada intelectual da maneira de encarar a angústia, temos, também, de perguntar-nos sobre qual o tipo de psicoterapia adequada a essa visão de realidade. BOSS é bastante claro ao afirmar: “ Os psicoterapeutas que pensam de modo técnico- científico-cultural, através das assim chamadas cadeias causais dinâmicas, não sabem nada a respeito de sentido e meta, já que, no mundo deles só existem conexões funcionais e causais, de sentido independentes, calculáveis e preestabelecidos”. 43 O que interessa, aqui, é percebermos não a causa da angústia, mas o significado, o sentido da angústia na vida da pessoa. Os distúrbios funcionais são conseqüências da maneira como eu organizo a minha vida pessoal. É necessário penetrarmos no modo de ser do doente. A conseqüência imediata dessa visão é que entendemos a psicoterapia como um tratar do homem, e não de um sintoma que esse homem apresenta. O mais importante é a captação do sentido que a angústia tem para a vida do cliente. Isso significa substituir o conceito de psiquê pela imagem de um sujeito. Ora, estamos tratando é de um homem, e não de sua dimensão psicológica. Essa dimensão é um lugar no qual o homem expressa a sua existência, o seu direcionamento, o seu posicionamento diante da vida. Estamos, assim, afirmando que um caminho possível para ajudar o ser humano a entender e a viver a sua angústia é uma abordagem fenomenológico-antropológica do fenômeno. Dizer qual é a construção e quais são os passos do referido método é inviável, aqui, neste espaço, e mais, não é nosso objetivo. Queremos somente refletir sobre a essência da angústia. A guisa de conclusão, as reflexões a seguir servem como um fechamento das idéias colocadas anteriormente e como estímulo para desenvolvermos, no futuro, novas reflexões. A angústia é um tema que preocupa o homem, pois faz parte intrínseca de sua existência. Não abordá-la é passar longe da compreensão do ser humano. Temos é de cuidar de diferenciar os diversos fenômenos que denominamos com a mesma palavra, como a 42 DORR, O. , Psiquiatria Antopologica, Santiago do Chile, Editorial Universitária, 1977,2ª ed., p51 21 categoria angústia. De um modo geral, podemos distinguir que quando o filósofo está falando de angústia, ele está falando dessa disposição inerente do ser humano de se inquietar diante das possibilidades que terá de concretizar, ao longo de sua vida. A essa sensação de inquietude chamamos angústia existencial, ou angústia metafísica, enraigada na existência, e seu entendimento leva-nos à compreensão do que seja esse animal extraordinário denominado homem. Se, porém, o homem admite a possibilidade de uma abertura ao transcendente e esbarra com algo que o transcende e o funda, isto é, com um ser que dê sentido à sua vida, e que, na linguagem comum denominamos Deus, a sua postura de vida pode, diante desse mistério, sofrer uma inquietação jamais experimentada em toda a sua existência. Esse fenômeno é o que comumente denominamos angústia religiosa. O discurso teológico pode, também, acrescentar algo à compreensão da inquietude humana, e, nessa perspectiva, a angústia religiosa será entendida como a problematização da perda do fundamento último do ser. O que foi objeto de nossa reflexão, o que nos prendeu a atenção, ao longo destas páginas foram explicitações do que denominamos angústia patológica, que pode ser definida como a exacerbação da inquietude, por meio da história pessoal e que gera uma atitude paralisante diante da vida. Essa postura de inibição do desenvolvimento, do crescimento pessoal, e que está por baixo de vários sintomas que a clínica classifica de perturbações psicossomáticas e psicológicas, é aquilo a que chamamos angústia patológica, pois, ela nos bloqueia o crescimento. Uma é mobilizadora, a angústia existencial, outra é paralisante, a angústia patológica. Nesse conjunto de fenômenos que explicitam essa inquietude básica, procuramos distinguir a angústia da ansiedade, dizendo que, em termos mais gerais, a angústia é um estado latente de inquietude diante da vida, e que a ansiedade é um estado mais pontual de inquietude diante de um fato que, aparentemente, não deveria gerar desassossego. É nessa perspectiva que alguns autores têm confundido essas duas expressões de inquietude, não fazendo as devidas distinções entre ambas, distinção extremamente difícil, que pode elucidar-se não olhando às vezes para o sintoma, mas para a postura do homem diante da existência. 43 BOSS., M. ,Angústia, Culpa e Libertação, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1981, 3 ª ed., p 21 22 Essa inquietude foi muito freqüente nesse final de século. Temos de considerar que, no início do século, as duas Guerras Mundiais provocaram, com mais intensidade, a sensação de insegurança geradora da angústia. Na segunda metade do século, a ansiedade dominou a cena, no sentido de que a insegurança de uma nova catástrofe deu lugar a sensações que traduziam problematizações de vida. Agora, nesse final de milênio, a ansiedade cede lugar a um novo problema que toma conta da vida do homem, que é a questão da depressão, um problema que expressa a queda do estado de ânimo do homem ocidental. Nossa atenção para esse novo mal-estar da civilização merecerá, num futuro bem mais próximo do que imaginamos, um cuidado todo especial. Bibliografia BOSS, M., Angústia, Culpa e Libertação, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1981,3ª ed. CONDRAU, G., Angustia y Culpa. Problemas fundamentales de la Psioterapia, Madrid, Editorial Gredos, 1968 DE WAELHENS, A ., Estudios sobre la Angustia, Madrid, Ediciones Rialp, 1962 HEIDEGGER, M., Ser e Tempo, Petrópolis, Vozes, 1988, 2ª ed. DORR., O., Psiquiatria Antropológica, Santiago do Chile, Editorial Universitaria, 1997, 2ª ed. GEBSATTEL, V., Imago Hominis – Contribuiciones a uma antropología de la personalidad, Madrid, Editorial Gredos, 1969 GIDDENS, A., Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras ( Portugal), Celta Editora, 1997,2ª ed. KIERKEGAARD, S., O conceito de angústia, Lisboa, Editorial Presença, 1972 ROJAS, E., A Ansiedade, São Paulo, Editora Mandarim, 1997 SCHOTTTE, J., Angoisse et Existence, Approche d’une anthropologie clinique, cours de questions approfondies de Psychologie Clinique, Université Catholique de Louvain, 1979, mimeo
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