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PRODUÇÃO DE RECURSOS DIDÁTICOS EM HISTÓRIA AULA 3 Prof. Antonio Fontoura 2 CONVERSA INICIAL A produção de livros didáticos de história O livro didático de história é a ferramenta de trabalho mais comum no cotidiano de historiadoras e historiadores. Além disso, é a publicação histórica mais socialmente compartilhada e, sem dúvidas, a que mais influencia as ideias que a sociedade constrói a respeito da história e do trabalho histórico. Apesar de toda essa importância, trata-se de uma produção intelectual pouco analisada e pesquisada nas instituições de ensino superior. Por sua importância e significados, usaremos dois momentos para discutir os aspectos intelectuais, teóricos e sociais envolvidos com a produção do livro didático. TEMA 1 – LIVROS DIDÁTICOS E SEU SIGNIFICADO No Brasil: Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Guilherme Mota, Ronaldo Vainfas; fora do Brasil: Lynn Hunt, Bonnie Smith, E. P. Thompson, Margaret Jacob. Todos têm, em comum, o fato de serem historiadores reconhecidos pela alta qualidade acadêmica de suas produções e, também, por serem autores de materiais didáticos, do ensino fundamental ao superior. Se fôssemos expandir para outras disciplinas próximas, poderíamos incluir ainda a filósofa Marilena Chauí, e mesmo o linguista Ferdinand de Saussure: seu Curso de linguística geral, ainda que publicado com base em notas de seus alunos1, transformou-se em uma das mais influentes obras das ciências humanas do século XX; uma obra que nada mais é que a coleção das lições que elaborou para seus alunos. Infelizmente se faz necessária tal introdução a uma discussão sobre a produção de livros didáticos em história. Uma introdução que é, ao mesmo tempo, quase uma defesa. Pois, de todas as produções intelectuais de historiadoras e historiadores, uma das mais desprezadas – senão a mais desprezada – pelo meio acadêmico são os livros didáticos: obras que são, em geral, consideradas menores e mesmo “indignas” do trabalho intelectual de professores universitários e pesquisadores (Bittencourt, 2004, p. 479). Quase um subproduto das produções luminares dos acadêmicos. 1 Ferdinand de Saussure (1857-1913), um dos pensadores mais influentes no desenvolvimento do estruturalismo, não produziu suas aulas com o intuito de publicá-las. A publicação foi feita por alguns de seus alunos, com base em suas notas. 3 Trata-se de mero preconceito, que toma um nível significativo no meio intelectual brasileiro. Mas um preconceito formado – como o são, aliás, todos os preconceitos – do desconhecimento e da ignorância. Em primeiro lugar, porque os livros didáticos de história mantêm uma importante relação com a história produzida nas universidades, mas não se confundem com ela. É indispensável que os livros didáticos acompanhem a produção intelectual acadêmica, porém, um livro didático não é uma “história acadêmica para crianças” nem uma “história acadêmica simplificada”. Os livros didáticos, assim como as próprias aulas de história, têm objetivos diferentes que os da formação de historiadoras e historiadores. Suas metas são mais amplas, como já discutidas anteriormente: relacionam-se com a concepção de sociedade, dialogam com os objetivos fundamentais da educação, têm em meta a construção mais ampla de cidadãos e cidadãs. Além disso, os livros didáticos e paradidáticos influenciam a sociedade de forma mais abrangente e profunda que a enorme maioria dos trabalhos de historiadores profissionais. Pela sua difusão social, e pelo tempo que permanece sob os olhos e atenção de alunos, o conteúdo dos livros didáticos é um dos maiores responsáveis pela percepção que a sociedade como um todo tem da história e da prática da pesquisa histórica. Influência que, na atualidade, rivaliza com os grandes produtos de mídia, notadamente os filmes e os jogos de computador. Quando são criadas leis; quando são organizados currículos; quando são definidas verbas; quando são apresentados na televisão ou cinema; quando é referenciada, enfim, de alguma forma por não profissionais, é muito provável que a concepção de história invocada seja a das aulas e dos livros didáticos escolares. Sem sombra de dúvidas, os livros didáticos são, além disso, a principal ferramenta de trabalho da grande maioria dos historiadores e historiadoras formadas pelos cursos superiores em todo o país. Sabe-se que, em primeiro lugar, o grande mercado de trabalho desses profissionais será a sala de aula. Porém, mesmo outros campos de atuação estão ligados, de alguma forma, à educação e aos livros didáticos: autores, editores de conteúdo, produtores de materiais para diferentes empresas, avaliadores de materiais, consultores etc. Nesse sentido, cursos superiores que não se dediquem a discutir os fundamentos dos livros didáticos de história apresentam uma brutal 4 dissociação cognitiva: seria como formar médicos sem jamais lhes apresentar um real corpo humano. Além disso, os livros didáticos de história apresentam uma contribuição específica, e bastante instrutiva, aos estudos acadêmicos. Pelo seu caráter didático, e pela necessidade de construírem um gradual aprofundamento dos conteúdos históricos, bons livros didáticos devem explicitar os fundamentos do conhecimento histórico, e deixá-los evidentes a seus leitores. Blocos básicos que, muitas vezes, escapam à própria produção intelectual de educação superior. Na explicitação e no ensino do básico e do fundamental estão tanto a dificuldade de escrita quanto a maior contribuição intelectual dos livros didáticos à disciplina histórica. TEMA 2 – O TEMPO HISTÓRICO Seguindo um ponto de vista estritamente pedagógico, seria fundamental que os currículos em história, do ensino fundamental I ao ensino médio, estivessem em sincronia. Dessa forma, a construção de conceitos complexos, como o de tempo histórico, poderia ser feita gradativamente, partindo de uma perspectiva mais concreta, alcançando formulações mais abstratas. Pois, por vezes, podemos nos esquecer o quão abstrato é o conceito de “passado”, por exemplo. Crianças mais novas, mesmo nos anos finais do ensino fundamental I, podem ter dificuldade em conceituar a relação entre presente e passado; quem dirá a importância de passados mais distantes. Não sem motivo, muitos alunos, ao iniciarem o sexto ano, têm dificuldade em construir formulações sobre passados tão distantes e de realidades tão diferentes, como a história de assírios, sumérios, egípcios etc. A famosa e temida questão “Professor, para que serve a história?” tem suas raízes nessa incompreensão. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não apresenta uma efetiva continuidade de conteúdos históricos do ensino fundamental I ao ensino médio. Os objetivos e os métodos de cada um desses níveis foram concebidos como instâncias separadas da formação dos estudantes, embora se admita um aprofundamento e uma maior abstração com o avançar dos anos2. Assim, quando se começa a organizar uma coleção de livros didáticos, deve-se 2 É bom sabermos que essa disjunção não foi criada pela BNCC. Uma concepção curricular mais antiga que a BNCC a solidificou como norma legal. 5 considerar o estágio dos alunos em relação ao conceito de tempo histórico, os objetivos a serem atingidos conforme a idade e os passos a serem seguidos para construir esses conceitos. As concepções abstratas sobre passado, passagem do tempo e a relação entre presente e passado devem ser estabelecidas concreta e gradualmente com os alunos de ensino fundamental I, com base em experiências próximas: a própria idade, a idade de pais e avós, os conceitos de ontem-hoje-amanhã para, gradualmente, ampliar essas noções a temporalidades mais amplas e distantes. Apenas com esses fundamentosos alunos terão condições de abstrair noções ainda mais complexas, como a ideia da realidade de passados distantes, as concepções de mudança e permanência, a possibilidade de construir recortes temporais, os significados de sincronia e diacronia (ainda que esses termos não sejam utilizados), além das diferentes relações culturais que as sociedades estabelecem com a própria noção de temporalidade. Idealmente, com a continuidade dos estudos históricos no ensino fundamental II e ensino médio, deveria ocorrer um aprofundamento e uma maior problematização das noções de temporalidade. Mas, muitas vezes, submetidos à pressão do “conteúdo” (uma entidade fantástica de fatos que muitos profissionais da educação tomam como dado estabelecido3), alguns livros didáticos se reaproximam do modelo de ensino do século XIX e transformam o ensino de história em uma relação linear e contínua de fatos. Tome-se, por exemplo, a seguinte linha do tempo, semelhante a tantas que podem ser encontradas em livros de história – geralmente em livros de 6º ano e do primeiro ano do ensino médio4 –, mesmo nos dias de hoje. 3 Discutiremos o significado e a escolha dos conteúdos mais adiante neste material. 4 Quando a maioria dos autores e autoras discute o conceito da disciplina de história e algumas de suas concepções gerais. 6 Figura 1 – Modelo tradicional de linha do tempo Fonte: Taras Dubov; Rocket400 Studio; Cigdem; Yosuke Hasegawa; Kittyvectors/Shutterstock. Uma linha do tempo como essa sintetiza as concepções sobre temporalidade que estarão presentes na coleção de livros didáticos, com todos os seus problemas. Em primeiro lugar, apresenta a já muito superada diferenciação entre pré-história e história. Porém, há outros problemas, ainda mais graves. A “história” é apresentada dividida em Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea, com determinados anos associados a essas significativas mudanças. O que tal modelo não informa, porém, é que tais anos não representam uma mudança drástica entre um período e outro; que essas datas se referem sobretudo à história europeia; mas, especialmente, que esse modelo de divisão histórica foi criado na França do século XIX, e relaciona-se a uma compreensão francesa de seu próprio passado, sendo adotado no Brasil pela influência que a cultura desse país desempenhava (e desempenha) no Brasil5. Não é uma divisão natural, não é aceita por historiadores de todos os países, e está longe de ser imparcial. Trata-se de uma opção, de um recorte, de uma escolha apresentada como fato consumado aos alunos. Revela-se, por meio dessas linhas do tempo, que os materiais didáticos de história podem simplificar a temporalidade histórica a ponto de distorcê-la. O 5 Será visto, futuramente, que os livros didáticos de história do Brasil foram inspirados no modelo francês; e que a influência da compreensão francesa de história, importada inicialmente no século XIX, ainda se faz sentir muito fortemente nos currículos de história (inclusive na BNCC) e nos livros didáticos da atualidade. 7 tempo histórico é apresentado, porque concebido, de forma linear: os fatos históricos simplesmente se seguem, da “Pré-História” à Idade Contemporânea. Além disso, tal organização de conteúdo apresenta o desenvolvimento histórico como se necessariamente a história caminhasse em uma determinada direção, de forma inexorável. Repare que se retorna, aqui, a uma concepção de história do século XIX, em que os fatos do passado se seguem de maneira linear e necessária, e cabe aos alunos apenas decorar o que ocorreu. Quando os processos históricos são apresentados dessa forma, eles se tornam absolutamente desconectados da realidade do aluno. Consequência: “Professor, para que serve a história?” Os conteúdos não são dados prontos, da mesma forma que os recortes temporais não foram estabelecidos naturalmente, nem acima de qualquer dúvida, tampouco são aceitos por todos. TEMA 3 – ESTRUTURA DOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA Como os livros didáticos participam da construção do conhecimento histórico? Em primeiro lugar, salientamos que os livros participam da construção do conhecimento histórico, mas não o constroem sozinhos. Livros são ferramentas úteis apenas quando atuam em conjunto com professores e alunos. Trata-se de uma relação que diz muito das formas pelas quais compreendemos o processo educativo na atualidade; mas, também, ecoa as próprias formas de compreensão da história. Repare na aparência geral de um livro de história de 1905. Você não vai conseguir ler o texto, mas não se preocupe. O objetivo é que você tenha uma noção da distribuição do conteúdo, como era apresentado aos alunos no início do século XX. 8 Figura 2 – Exemplo de livro de história do início do século XX Fonte: Macedo, 1905, p. 13-16. O texto principal da lição – no caso, um capítulo sobre o descobrimento do Brasil – é seguido pelo item “Explicações”, com informações adicionais sobre significados de palavras ou a localização geográfica de certas regiões. O capítulo é finalizado com “Perguntas”, que procuram avaliar a apreensão do conteúdo pelos alunos. “Que houve em Lisboa no dia 8 de março de 1500? Quem dirigia a primeira caravela que entrou em Porto Seguro? Que gente encontrou Cabral em Porto Seguro?” (Macedo, 1905, p. 16) A proeminente presença do texto principal revela a autoridade do conhecimento histórico do autor. Pois, para a história, não seria algo sobre o que se poderia debater, e sim um dado pronto que deveríamos apenas assimilar. Concepção reforçada pelas perguntas, que não estimulam a reflexão. Para uma concepção de história que se fundamenta em documentos exclusivamente escritos, a presença de imagens seria um contrassenso. Os livros de história atualmente são bastante diferentes. Em uma primeira comparação, destacam-se as imagens e as cores que, apesar de possuírem também função mercadológica e servirem de descanso visual, estão associadas às concepções de história da atualidade. 9 Figura 3 – Exemplo de livro de história moderno Fonte: Macedo, 1905, p. 13-16. O texto principal – que seria a “voz” da autora ou do autor – não desaparece, mas diminui em importância. A presença de imagens de diferentes tipos procura, por um lado, reproduzir a multiplicidade de documentos históricos que fazem parte das pesquisas históricas na atualidade; por outro, permitir que a construção do raciocínio histórico se dê com múltiplas perspectivas. A grande presença de imagens é um dos elementos mais característicos dos livros didáticos de história da atualidade. Dentro das possibilidades desses materiais, as imagens procuram incorporar fontes primárias em conjunto com o texto, além de tornar mais concretos os ambientes, personagens, vestígios associados aos períodos e eventos históricos estudados. Mapas e infográficos procuram construir determinada visualidade das informações, contribuindo para o entendimento dos temas. As diferentes cores – característica também marcante dos materiais didáticos da atualidade – usualmente estão associadas a diferentes seções que tendem a se repetir ao longo de uma determinada coleção. Por exemplo: análise de imagens, discussão de documentos, reflexão sobre temas contemporâneos, sugestão de materiais complementares, indicação de aprofundamento de temas. Ainda que a voz da autoria – ou seja, o texto principal – não desapareça dos livros didáticos, há a tendência à sua redução, em benefício a textos, atividades e materiais que estimulem a construção do conhecimento por parte dos próprios alunos. 10 TEMA 4 – O CONTEÚDO Na maioria dos casos, o trabalho de autor ou autora de livros envolverá a produção de uma coleçãocompleta, e não de um único livro. Isso significa que você deverá planejar os temas, recursos, documentos e atividades, seja para quatro livros do ensino fundamental I ou II, seja para três livros do ensino médio. Tais coleções devem ter continuidade, aprofundamento, além de determinada padronização de linguagem, método de abordagem e identidade visual. E no fundamento do planejamento de sua coleção, estão os “conteúdos”. Para o ensino fundamental II, os temas estão mais detalhados pela BNCC e, para o fundamental I e ensino médio, mais panorâmicos. Já discutimos que a definição temática não implica em imposição de conteúdo: a perspectiva a ser adotada, bem como o método de abordagem, dependerá de suas escolhas. Mas como fazer isso em livros didáticos? Como definir, precisamente, quais são os “conteúdos” a serem abordados? A ideia de que existem conteúdos que todos os livros e professores de história devem abordar é uma crença que vem das aulas tradicionais de história, e que ainda influenciam a produção de livros didáticos. Porém, ao contrário do que era então defendido, tais conteúdos não são óbvios, muito menos “naturais”. São fruto de escolhas, que devem ser bem fundamentadas e coerentes com o projeto pedagógico e com a concepção de história. Há uma determinada historicidade relacionada a esses conteúdos. De que maneira selecionar os conteúdos? Lynn Hunt afirma que, para os livros didáticos que ela escreve, seleciona os elementos mais importantes de cada período histórico para, assim, destacá-los. Por exemplo, ainda que fosse possível uma abordagem econômica, o iluminismo é mais compreendido pelos alunos como perspectiva cultural – e essa é a abordagem que ela adota em seu material6. Outra possibilidade de seleção dos conteúdos é a partir do presente (Fontoura, 2007), com questões significativas da atualidade. De que forma o passado pode melhor orientar os alunos na compreensão de sua própria realidade? É possível (e, na verdade, nada incomum no mercado de livros didáticos) que você adote uma única perspectiva para seu material: 6 Comercializado tanto para o nível high school quanto universitário (Hunt, 2009). 11 fundamentalmente cultural, ou econômica, ou social. E mesmo hoje ainda existem livros didáticos que adotam a perspectiva tradicional de apresentação de um amontoado de fatos como verdades absolutas, sendo responsabilidade dos alunos apreendê-los e repeti-los. Tal perspectiva, no entanto, tende a desaparecer, ainda que gradualmente. Na análise do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD)7, realizada por professores universitários contratados pelo Governo Federal, esse modelo de abordagem não apenas tradicional, mas ultrapassado, de concepção da história pode ser motivo para excluir uma coleção. Observe, na Tabela 1, um trecho dos critérios de análise adotados pelo Governo Federal para escolher os livros didáticos de história destinados a escolas públicas. Tabela 1 – Critérios de análise do PNLD Fonte: MEC, 2014. p. 141. Apresentar um conteúdo plural, com base em diferentes perspectivas, e estimular a participação dos alunos enquanto coautores do conhecimento é exigência dos processos de escolha de livros didáticos no PNLD. Ou seja, os temas e suas abordagens não devem ignorar a contextualização temporal, construir uma narrativa de “heróis”, tampouco apresentar os conteúdos como dados prontos e inquestionáveis sobre o passado. A seleção dos conteúdos 7 Livros e materiais didáticos adquiridos pelo Governo Federal e distribuídos gratuitamente às escolas públicas em todo o país. 12 deve, assim, permitir que os alunos compreendam as inúmeras possibilidades de passado, o que implicará em um entendimento de que o próprio presente é mutável e em permanente construção. Mas não se deve ignorar que existe um motivo bastante forte para que o mercado de livros didáticos de história ainda apresente materiais com conteúdos fundados no fato e na “verdade histórica”. Trata-se, particularmente, das provas de vestibulares e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Em um país com limitadas oportunidades educacionais como o Brasil, a aprovação em tais provas não apenas abre as portas ao ensino superior para muitos alunos, mas à possibilidade de mobilidade social. A disparidade entre número de vagas e pretendentes, especialmente nas instituições públicas de ensino superior, torna altamente acirrada a disputa. E tais provas, por mais que tentem modernizar a apresentação dos conteúdos aos alunos, ainda exigem muito da memorização de eventos e processos históricos. Tal pressão, que é social além de educacional, influencia também a produção de livros didáticos, que acabam produzindo textos factuais, como demandam certos nichos do mercado educacional. TEMA 5 – AS QUESTÕES E AS ATIVIDADES Presentes em todos os livros didáticos, as questões, atividades, exercícios e projetos propostos revelam, mais do que qualquer outro elemento desses materiais, os pressupostos que sustentam um livro ou uma coleção de história. Não é difícil encontrar materiais que, ainda que advoguem pela construção do conhecimento histórico pelos alunos, e mesmo que condenem as metodologias da história escolar tradicional, acabam, nas atividades, construindo questões que não visam nada além de uma repetição dos conteúdos presentes no texto principal. Ou seja, a medida do “aprender história” é dada pela repetição dos saberes tidos como definitivos. Questões e atividades desse tipo, que visam o treinamento e não o aprendizado, contradizem qualquer proposta de construção do conhecimento histórico. Alunos não são consumidores de conteúdo; devem ser seus coautores. Observe, a seguir, as questões presentes ao final do capítulo “O descobrimento do Brasil”, de um livro didático de 1928. 13 Figura 4 – Exemplo de questionário de história da primeira metade do século XX Fonte: Andrade, 1928, p. 25. Tais atividades, que exigiam apenas a memorização, estimulavam a construção de um conhecimento enciclopédico, e deram a fama de “decoreba” à disciplina; ao menos faziam sentido à concepção de história do período. Quando, porém, se pretende construir um livro didático que busque estimular a construção do conhecimento histórico, a permanência de tais abordagens é incompreensível. Um livro didático de história apresentará um incontável número de questões e atividades, de diferentes tipos. Seções específicas poderão estimular questões reflexivas; outras poderão sugerir debates. E, da mesma forma, não é inadequada a presença de atividades que exijam respostas mais objetivas. Em geral, autoras e autores podem construir questões desse tipo, visando objetivos mais amplos: orientar os alunos na compreensão dos pressupostos relacionados a um evento ou processo; chamando a atenção para as informações presentes (ou ausentes) em um documento; questionando sobre as implicações de determinada ação, ou sobre relações entre eventos e processos históricos. Em qualquer caso, as questões devem ser construídas em função dos objetivos que o capítulo pretende atingir. Pois as questões e atividades – e isso é bastante importante – não devem ser consideradas um processo à parte, mas sim integradas à construção do conteúdo. Não deve existir dissociação entre “conteúdo” e “atividades”, como a que explicitamente se revela no livro de 1928 apresentado. Textos, seções, imagens, ícones, gráficos, mapas, linhas do 14 tempo e questões são todos elementos que fazem parte da construção do “conteúdo”. Ou, mais amplamente, da construção do saber histórico. Lembro-me de um curioso diálogo numa antiga revista em quadrinhos, em que o personagem da Disney, Pateta, fazia o papel do Dr. Frankenstein (2011). Durante a narrativa,Mickey, assustado com as experiências do Pateta- Frankenstein, exige: “quero algumas respostas, e quero já”. Nisso, Pateta rapidamente rabiscou em um quadro-negro: “1942 – Nenhuma delas – Albuquerque – É falso”. A discussão entre Mickey e Pateta é esclarecedora: Mickey: “O que é isso?” Pateta: “Algumas respostas. Você pediu e aí estão elas. E acho que me saí muito bem, já que não sabia as perguntas!” Os livros didáticos que seguiam a história tradicional, como aquele de 1928, faziam algo semelhante ao que fez Pateta: apresentavam determinadas respostas históricas, sem terem eles mesmos (e muito menos os alunos) a noção de quais seriam as perguntas. E muitos deviam achar, também, que haviam se saído muito bem (Fontoura, 2016, p. 160). Afinal, para eles, a história era um conjunto estabelecido e imutável de fatos, e que bastava repeti- los. Desde a incorporação, pelos estudos históricos no Brasil, dos fundamentos teóricos construídos pela Escola dos Annales, adotou-se a prática de compreender o passado não como um dado pronto e absoluto, mas como consequência de questões que se lançam aos documentos. Esse procedimento – de abordar o passado com perguntas – não serve apenas à pesquisa acadêmica, mas é indispensável também à história escolar. Compreendidas dessa forma, as questões não visam avaliar o conteúdo; apenas dirigem a atenção dos alunos à compreensão do passado. E é dessa maneira que devem ser construídas. Quais objetivos pretendemos atingir com aquele conteúdo? Que respostas pretendemos obter? Que objetivos, enfim, pretendemos atingir? Sem esse procedimento, agiremos como o Pateta dos quadrinhos: escreveremos capítulos com muitas respostas, sem noção de quais perguntas estamos tentando responder. Não é à toa, aliás, que existem livros didáticos na atualidade que iniciam cada capítulo com questões. Isso evidencia aos alunos que o texto não tentará explicar “toda a história”, mas responder a determinadas dúvidas e questionamentos bastante específicos. Incorpora à própria estrutura do livro 15 didático, portanto, aquela concepção mais famosamente defendida por Marc Bloch, de que o passado se deve abordar apenas por meio de questões. NA PRÁTICA Uma forma bastante fácil e instrutiva de compreender a atualidade do mercado de livros didáticos do país é por meio da análise do Guia do livro didático. Essa publicação do Governo Federal divulga, aos professores das escolas públicas, uma pequena resenha dos livros didáticos aprovados no PNLD que serão distribuídos aos alunos em todo o país. Para encontrar esses guias pela internet, basta procurar “Guia do livro didático – PNLD” em algum site de busca. Você terá acesso a guias de diferentes anos, que tratam de livros de diferentes níveis educacionais. FINALIZANDO A realidade da produção de livros didáticos é complexa. Porém, nós, como profissionais da história, não podemos nos deixar influenciar pelo ambiente acadêmico, que considera tais obras como produções intelectuais inferiores. Os livros didáticos, na verdade, influenciam a sociedade muito mais do que praticamente toda e qualquer obra produzida em nível superior. Deve- se ter isso em mente quando estiver diante da folha em branco. Ensinar aos alunos uma adequada formação histórica significa imprimir, nos livros, a atualidade das concepções sobre a história e, portanto, atuar decisivamente na construção de cidadãos autônomos, que utilizam também o raciocínio histórico para conhecer a realidade. 16 REFERÊNCIAS ANDRADE, M. História do Brazil. São Paulo: Typ. Siqueira, 1928. BITTENCOURT, C. M. F. Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910). Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, set./dez. 2004. FONTOURA, A. História: 1ª a 4ª série. São Paulo: Ibep, 2007. _____. Teorias da história. Curitiba: Fael, 2016. HUNT, L. et al. The Making of the West. New York; Boston: Bedford, 2009. MACEDO, J. M. Lições de história do Brasil. Rio de Janeiro: Garnier, 1905. MEC – Ministério da Educação. Guia do livro didático. Brasília, DF: MEC, 2014. PATETA faz história. São Paulo: Abril, 2011. Primeira edição de 1979.
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