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AULA 2 DIDÁTICA DO ENSINO E AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM LÍNGUA PORTUGUESA Profª Mariana Trautwein CONVERSA INICIAL A nossa segunda aula vai se embasar nos conceitos vistos anteriormente para entendermos melhor o contexto atual do ensino de Língua Portuguesa no Brasil. Em seguida, no Tema 2, veremos a importância da LP para a participação na cidadania e, no Tema 3, como a Sociolinguística pode influenciar em sala de aula e nos aproxima dessa meta. Os dois últimos temas tratarão mais especificamente do papel do professor no ensino de LP, de seus objetivos e desafios, e da relação entre ensino de língua e ensino de gramática e suas consequências para o desenvolvimento linguístico do aluno. CONTEXTUALIZANDO Antes de entrarmos, especificamente, nos processos didáticos voltados aos quatro eixos da LP (oralidade, leitura, escrita e gramática e aquisição linguística), precisamos refletir sobre o contexto em que esses processos estão inseridos. Precisamos entender o contexto social escolar e os desafios que ele apresenta para os processos de ensino-aprendizagem, como a LP tornou-se um instrumento para a cidadania e como o acesso às variedades privilegiadas é fundamental para o desenvolvimento social e cidadão de nossos alunos. Além dessas questões, precisamos refletir sobre o papel do professor de LP no desenvolvimento linguístico dos alunos de forma eficiente e real, sem o tratamento tradicional e histórico somente prescritivo e gramatical. Eis o que discutiremos nesta aula, buscando o entendimento desse contexto que é extremamente relevante na escolha didático-metodológica para o trabalho com a língua. TEMA 1 – CONTEXTO E DESAFIOS DA ESCOLA ATUAL A nossa sociedade se estabelece valendo-se de relações entre indivíduos em diferentes espaços, um desses espaços é a escola. As pessoas se relacionam no ambiente familiar e nos ambientes institucionalizados. Como uma instituição, a escola não existe de forma isolada e sofre influências externas da economia, da religião, da política e dos diferentes ideais das diversas sociedades. Vivemos em um mundo globalizado, em que somos diretamente afetados por alterações no mercado, na indústria e na tecnologia que vão além das 03 fronteiras sociais em que estamos inseridos. Nesse contexto, a escola sofre influências diretas de três pontos: a realidade econômica e social de sua população escolar; a realidade social de seu país/estado/município; a realidade das políticas públicas que ditam as diretrizes e investimentos na educação. O primeiro ponto engloba a cultura e as ações da comunidade escolar, composta dos administradores, professores, alunos e pais. É nesse ponto que residem desafios como: i) a falta de estrutura familiar - casos de abandono infantil, abuso físico e psicológico, falta de comprometimendo familiar com a aprendizagem, excesso de faltas; ii) a falta de condições básicas - alunos que têm sua principal, e às vezes única, refeição na escola, epidemias de doenças causadas por falta de higiene e/ou saneamento básico; iii) a diversidade cultural presente na sala de aula - questões culturais, econômicas e/ou religiosas que influenciam nas escolhas feitas em sala de aula. O segundo ponto é mais abrangente, pois engloba questões sociais além da comunidade escolar. Nesse escopo, os desafios que afetam diretamente no dia a dia escolar podem ser de origem: i) de segurança ao bem estar - momentos de guerra, conflitos entre comunidades, casos como a greve da polícia no ES em 2016 e dos tiroteios constantes no RJ em 2017. ii) política: como manifestações públicas em busca de melhores condições de trabalho como paralizações no transporte público, paralizações nas escolas da parte administrativa ou dos professores. iii) comunicativa: compartilhamento de informações escolares para além dessa comunidade - compartilhamento de dados pessoais em redes sociais -, compartilhamento de informações falsas ou ainda não esclarecidas com a equipe escolar e com a família - casos de grupos de professores ou de pais em redes sociais que já deliberam veredito de culpa sem consultar a veracidade da informação - e o excesso de exposição de alunos, professores e funcionários. Já no terceiro ponto, os desafios são causados pelas políticas públicas, quando: i) promete-se um orçamento que não é repassado, não permitindo assim que a escola tenha infra estrutura, segurança e condições dignas para o trabalho. 04 ii) não destinam investimentos ou formas de incentivo à formação continuada e ao reconhecimento de seus professores.1 iii) mudam as diretrizes que orientam a educação básica sem consultar a comunidade escolar ou sem dar o suporte e preparo necessário para a realização das mudanças - caso da mudança do EF para 9 anos e caso da mudança de estrutura do EM. Fica claro que a influência externa no contexto escolar é enorme. Assim, apesar de todos os problemas, a escola é uma instituição marcada pela superação de seus agentes, que, muitas vezes, fazem o milagre de construir aprendizagem sem recursos. É importante comentar que a rede pública sofre uma maior influência dessas condições da sociedade do que a rede privada, porém isto não anula os desafios, em diferentes níveis, enfrentados pela escola particular que sofre uma maior pressão por se tratar também de uma instituição econômica capitalista. Além dessas questões de contexto, a escola enfrenta desafios diários para conseguir aproximar-se de seus alunos e fornecer contextos apropriados para a aprendizagem. Os objetivos do ponto de vista da escola e dos alunos parecem não estar mais em sintonia. A escola ainda tenta manter uma relação tradicional com o conhecimento, mas o aluno necessita de outros níveis, formas e estilos de aprendizagem, pois está inserido em uma realidade de liberdade para buscar informações de seu interesse e ainda escolher de que forma quer analisá-las - se por texto, vídeo, áudio, música, entre outros. A tecnologia já transformou o processo de formação dos nossos alunos, mas ainda não conseguiu transformar o processo de ensino formal. Cabe à escola, em seu nível administrativo e docente, a busca constante por formas de incorporar temas e ações tecnológicas com que os alunos se identifiquem, o que, com certeza, trará resultados exponenciais para o processo de ensino-aprendizagem. Nas próximas aulas, falaremos um pouco mais sobre a tecnologia na aprendizagem. Podemos concordar, enfim, que a equipe pedagógica e o professor têm diversas questões para considerar em seu planejamento e que cada escola, dependendo de sua localização e do momento histórico-social, enfrenta desafios diferentes, em níveis diferentes. 1 Estes dois primeiros itens estão relacionados à realidade exclusiva das escolas públicas. 05 TEMA 2 – A LÍNGUA PORTUGUESA E A CIDADANIA Além de refletir sobre a realidade escolar apresentada acima e como esta influencia no processo de ensino-aprendizagem, também cabe considerar o papel do ensino de LP na formação de cidadãos conscientes, partindo do conceito de Escola Cidadã. Um dos grandes desafios para isso consiste em construir uma política didático pedagógica para o ensino de LP que alcance os objetivos de uma escola cidadã, o que depende da dedicação que deve ser empreendida pelos envolvidos: escola, professor, aluno e comunidade. Não podemos esquecer que a disciplina de LP é a mais intimamente relacionada à vida pessoal e social de cada um de nós, pois tem como objeto o nosso instrumento de comunicação dentro e fora de sala de aula: a língua. Diferentemente das outras disciplinas que tratam de conceitos nem sempre presentes em nossa realidade cotidiana. A língua portuguesa é o veículo principal de apropriação de conteúdos e conceitos das outras áreas do conhecimento,tendo, assim, um escopo muito abrangente na realidade do aluno. Desde o processo de aquisição de linguagem, o ato de falar não é simplesmente um meio de passar informações, mas também, uma habilidade de produzir reações em nossos interlocutores. Por isso vamos descobrindo, desde muito cedo, como devemos falar para conseguirmos o efeito desejado (tome como exemplo as “birras” feitas pelas crianças quando querem algo ou quando pedem as coisas “com jeitinho e carinho” na tentativa de garantir o resultado esperado). Esse é o efeito natural da língua portuguesa sendo usada como veículo de participação na sociedade, mesmo que na infância essa sociedade ainda gire em torno da família. É na escola que o processo se oficializa e que o trabalho com a língua materna deve oferecer alicerces para uma efetiva participação na sociedade em níveis mais amplos, o que é previsto nos PCN e outros documentos de diretrizes oficiais. Para que esse processo de fato se concretize, é necessária uma reavaliação do senso comum que o brasileiro tem ao pensar em sua língua e em suas capacidades linguísticas. Primeiramente, temos que nos despir da ideia de que o brasileiro “não sabe falar português”, de que falamos uma outra língua, que é parecida com o 06 português e que continua sendo chamada dessa forma ironicamente. Essa concepção vem desde a época colonial e pauta-se num mito de que a Língua Portuguesa seria aquela descrita nas gramáticas normativas e que, de fato, não é a língua utilizada pela grande maioria da população. Durante esse Período Colonial, do Império e do começo da República, a condição de cidadania estava diretamente ligada à posição social das pessoas e a como elas faziam uso da linguagem. Era uma forma simples de separar os privilegiados, considerados cidadãos – que apresentavam domínio das regras da norma padrão – e os populares que não tinham direito à participação política e social – e usavam outras variedades da língua. Essa inter-relação do uso da língua com o patamar social e o acesso a oportunidades ainda se mantém na atualidade, apesar de já termos avançado muito nesta questão devido à Sociolinguística, como veremos a seguir. Entende- se hoje que um importante passo para se exercer nosso papel cidadão é o respeito às outras variedades linguísticas, o que não quer dizer que não continuaremos a buscar o acesso e ensino da variedade-padrão da língua que garantirá essa cidadania de forma ainda mais eficaz e efetiva, além de proporcionar um leque mais amplo de oportunidades sociais e profissionais para nossos alunos, elevando sua qualidade de vida e sua participação na sociedade. TEMA 3 – A SOCIOLINGUÍSTICA EM SALA DE AULA A Sociolinguística, vertente dos estudos linguísticos que se foca no uso real da língua, vem há décadas descrevendo as diversas variedades linguísticas de nosso país e militando para a redução do preconceito linguístico, na tentativa de possibilitar aos brasileiros falantes de variedades linguísticas estigmatizadas a chance de lutar por sua representatividade e cidadania. A diversidade linguística brasileira está diretamente relacionada à pluralidade cultural do nosso país. O Brasil é um país de enormes proporções, e com regiões tão diferentes entre si que poderiam ser consideradas “países diferentes”. Como esperar, então, que todos os mais de 200 milhões de brasileiros se expressem de uma mesma forma linguística? Como vimos na aula anterior, a língua é um objeto vivo que serve às necessidades de seus usuários e convenhamos, as necessidades linguísticas do povo brasileiro são bem diferentes de uma região para outra, de uma classe social para a outra, ou de um polo urbano para um polo rural, por exemplo. Diante disso, deveria ser óbvia 07 a impossibilidade de existir apenas uma variedade do português adotada por todos, apesar de muitos ainda acreditarem neste mito2. O estudo de LP e o acesso à cultura letrada de variedades mais formais da língua permitem que os indivíduos estejam preparados para diferentes e, muitas vezes, melhores oportunidades, visto que ainda existe preconceito linguístico em diversos setores de nossa sociedade. O ensino da norma-padrão e de uma variedade linguística mais privilegiada permitirá que os alunos lutem por um futuro melhor e desenvolvam- se com mais facilidade nas áreas do conhecimento que escolherem para o futuro. Porém é importante que esses alunos entendam que aprender o português culto ou portugués-padrão, não implica na anulação de sua variedade de origem e nem em sua estigmatização, ela ainda continuará sendo sua primeira escolha nos momentos informais, mas em momentos mais formais será substituída por uma variedade mais adequada à situação sociocomunicativa. Esse necessário respeito pela realidade comunicativa do aluno é que vem pautando, aos poucos, diversas mudanças de comportamento docente que partem principalmente da não disseminação do preconceito linguístico em sala de aula e do não julgamento de uma variedade como melhor ou pior e, sim, como mais ou menos adequada a uma situação comunicativa. Essa foi uma das grandes contribuições da Sociolinguística e, ao mesmo tempo, uma das mais polêmicas: a não aceitação do termo “erro”, por ser considerado pelos pesquisadores uma expressão inadequada e preconceituosa. Para a sociolinguística, os “erros” no uso da língua são, na verdade, diferenças entre variedades linguísticas, que representam, na maioria das vezes, as variedades utilizadas no domínio do lar, permeado por sua cultura oral e de informalidade. Apesar de polêmico, o conceito de inadequação vem sendo mais aceito e apresentado inclusive em alguns materiais didáticos. Bortoni-Ricardo (2004, p. 37) afirma que: Nas últimas duas décadas, os educadores brasileiros, com destaque especial para os linguistas – seguindo uma corrente que nasceu na polêmica entre a postura que considera o “erro” uma deficiência do aluno e a postura que vê os chamados “erros” como uma simples diferença entre duas variedades -, têm feito um trabalho importante, mostrando que é pedagogicamente incorreto usar a incidência do erro do educando como uma oportunidade para humilhá-lo. [...] Na prática, contudo, esse comportamento é ainda problemático para os 2 Para saber mais sobre os mitos sobre o uso da linguagem, consulte Bagno (1999). 08 professores, que ficam inseguros, sem saber se devem corrigir ou não, que erros devem corrigir ou até mesmo se podem falar de erros. A autora ainda levanta que a intervenção é importante, mas depende basicamente do tipo de evento em que o uso de regras não-padrão ocorrem. Por exemplo, na oralidade informal do aluno, em momentos de recreio ou brincadeiras, nem sempre cabe essa intervenção, mas em uma atividade oral de sala de aula ela é adequada, desde que feita de forma a demonstrar como a variedade padrão trataria algo dito “erroneamente” pelo aluno. Às vezes é preferível adiar uma intervenção para que uma ideia ou um raciocínio não sejam interrompidos e, mais tarde, através de reflexões direcionadas trazer novamente exemplos daquele tipo de uso e demonstrar sua variedade padrão. Também é importante levar em consideração que para que o aluno possa começar a monitorar seu próprio estilo durante seu desenvolvimento linguístico, além da identificação da inadequação do aluno ao usar alguma regra não- padrão, o professor deve trazer à discussão a conscientização dessa diferença e, quando possível, trazer detalhes sobre aquele uso, especialmente ao tratar de assuntos mais complexos do desenvolvimento linguístico como colocação pronominal, regência e concordância. A variedade linguística faz parte da identidade dos alunos, por isso deve ser respeitada, mas o acesso à variedade padrão e à cultura letrada permitem a chance de lutar pelasua cidadania com os mesmos instrumentos linguísticos que os falantes das variedades mais privilegiadas. Uma mesma pessoa pode dominar mais de uma variedade linguística e isto permite que ela se adeque às diversas situações comunicativas que encontrará ao longo de sua vida. TEMA 4 – O PAPEL DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA O professor de língua materna, no nosso caso a Língua Portuguesa, já encontra, desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, um fator facilitador para seu processo de ensino-aprendizagem, que é também um fator de dificuldade: seu aluno já possui domínio de sua variedade linguística, já reconhece os padrões da língua e já a usa para compreender o mundo. Esse conhecimento prévio, se é que assim podemos o chamar, pode trazer a curiosidade de se querer aprender mais e entender melhor seu meio linguístico, através da leitura, escrita e oralidade, ou se transformar em uma barreira para o processo, uma rejeição às diferentes modalidades e variedades da língua 09 apresentadas e cobradas em sala de aula, seja por motivos sociais, econômicos e, até mesmo, emocionais. Essa barreira parece se solidificar em virtude da insistência nas práticas pedagógicas de repasse de conteúdos gramaticais de forma descontextualizada e fragmentada aliada a uma concepção de linguagem meramente prescritiva e metalinguística que não representa o uso real vivenciado pelos alunos. Travaglia já fez essa observação há quase duas décadas, ao afirmar que: Observa-se uma concentração muito grande no uso de uma metalinguagem no ensino de gramática teórica para identificação e classificação de categorias, relações e funções dos elementos linguísticos, o que caracterizaria um ensino descritivo, embora baseado, com frequência, em descrições de qualidade questionável. (1998, p. 101) Parece estranho que essa realidade ainda se mantenha mesmo com os avanços dos estudos linguísticos das últimas décadas, sua inclusão nos cursos de Licenciatura em Letras, e das diretrizes oficiais de ensino de LP, que claramente são contra esse tipo de prática em suas orientações, mas essa ainda é a realidade em muitas escolas brasileiras. Cabe ao professor ser o primeiro a romper com essa tradição para que os conhecimentos trabalhados na disciplina de LP façam sentido para o aluno e ajudem-no a alcançar um domínio efetivo das funções comunicativas em seus diferentes contextos sociointeracionais. 4.1 Professor: os desafios, os alunos e a sociedade Os desafios do professor na sala de aula envolvem sua relação com o aluno, com sua formação e com a sociedade, além dos desafios escolares de realidade social e econômica listados anteriormente no Tema 1. O relacionamento entre professor e aluno é tema de diversas discussões, especialmente na atualidade, em que a figura do professor parece perder, a cada dia, seu prestígio e posição hierárquica frente ao aluno e à comunidade escolar. São cada vez mais comuns histórias de alunos enfrentando professores, e de pais, ou até mesmo da própria instituição escolar, pressionando esses profissionais para agir de acordo com suas expectativas para um ou outro aluno, histórias que nem sempre condizem com a realidade. É claro que existe, e sempre existiu, uma tensão entre as duas figuras centrais do processo de ensino-aprendizagem, mas em tempos modernos, em que os alunos têm acesso às redes sociais e a diferentes formas de construção de conhecimento e que os 010 professores querem manter uma relação hierárquica ultrapassada para o funcionamento da sociedade atual, as tensões parecem estar aumentando. Uma outra questão que dificulta essa relação é que professor e aluno parecem não concordar quanto aos objetivos da disciplina de LP. Qual o objetivo de estudar LP? Passar no vestibular? Conseguir uma posição melhor no mercado de trabalho? Desenvolver as capacidades comunicativas para um melhor entendimento de mundo? Ainda existem professores que acreditam que a função predominante do ensino de LP é prover que os alunos saibam tudo sobre nossa língua, dos detalhes mais simples aos mais complexos – conhecimento esse impossível em uma concepção de língua viva e variável. Ao que parece, os objetivos nunca se encontram e por isso as estratégias escolhidas pelo professor muitas vezes não atingem o aluno. Outro desafio encontrado pelo professor é a sua formação ainda pautada nas tradições coloniais do magistério. Enquanto aluno, falta ao professor liberdade de considerar outros vieses de ensino além do tradicional e de romper o purismo linguístico ainda presente nas universidades. Ao falarmos da atuação desse profissional, também é necessário envolver questões mais amplas sobre o magistério em si, como posto profissional e/ou campo de estudo acadêmico, e sobre a experiência social dessa formação. A falta de estímulo e reconhecimento da sociedade e as condições de trabalho muitas vezes precárias, sem nem mesmo existir estrutura física para sua atuação, ao longo do tempo tornam-se barreiras para uma prática pedagógica adequada. Para agravar mais essa situação, existe uma certa ingenuidade em se acreditar que a transformação do ensino brasileiro se concentra na ação pedagógica. Para uma real transformação e uma elevada qualidade de ensino são necessários investimentos financeiros para melhoria de infraestrutura e dos materiais de sala de aula, para promover ações sociais para a comunidade escolar e para o aprimoramento constante dos professores. A maioria das questões da realidade escolar que vimos nos temas anteriores representam desafios para o professor e, infelizmente, não existe uma fórmula mágica para superá-los. É nesse momento que a falta de experiência e de orientação, especialmente dos novos professores, pode levá-los a acreditar que o ensino nada mais é do que o “despejamento” de conteúdos em um estilo “aprenda quem puder”. Uma verdade que cabe a qualquer professor é a 011 importância de rever seus métodos com frequência, questionar-se quanto aos seus conhecimentos e práticas de ensino. Moacyr Scliar (1995), ao falar do ensino literário, cita duas possíveis posturas que um professor pode ter: ser como um guardião da esfinge, aquele que determina o conhecimento que será passado para seu aluno, ou ser seu mediador emocional permitindo que as experiências e escolhas do aluno sejam consideradas no processo de ensino. Claramente, Scliar referia-se às escolhas literárias feitas por um professor, mas é possível levar essa reflexão às demais áreas do conhecimento. Quando pautamos nossas escolhas apenas em nossas experiências como professores, perdemos uma oportunidade de enriquecer o aprendizado dos alunos, e o nosso mesmo: afinal, o professor sempre tem algo a mais para aprender. TEMA 5 – ENSINO DE LÍNGUA X ENSINO DE GRAMÁTICA Primeiramente, cabe esclarecer que ao utilizarmos aqui o termo “gramática” estamos nos referindo às regras da norma-padrão que se encontram publicadas de forma prescritiva, com preferência às variedades mais privilegiadas sem levar em consideração o uso real da língua, e não ao conjunto de regras e processos de pensamento que regulam as estruturas da língua, a gramática vista dentro dos estudos linguísticos. Como mencionado na aula anterior, o estudo de gramática em sua forma normativa foi o foco norteador da disciplina de LP por muito tempo. Essa gramática não abarca toda a realidade de língua, já que contempla apenas os usos privilegiados historicamente e socialmente. Nessa perspectiva, o ensino de língua se focava em nomenclaturas e exercícios de repetição que visavam à memorização das descrições e regras ali representadas. O único parâmetro de avaliação era o seguimento dessas exatas regras e qualquer desvio da norma seria considerado um erro. Não estamos afirmando que o ensino das normas gramaticais não é importante, mas é importante que fiqueclaro a você, professor, que essas normas não abrangem a realidade comunicativa da língua, por isso não são suficientes para proporcionar o desenvolvimento linguístico dos alunos. Por exemplo, a gramática normativa ainda apresenta o pronome vós como se estivesse ainda sua época de glória, o coloca de igual para igual com os outros pronomes pessoais; porém, como sabemos, esse pronome já está em processo 012 de desuso e extinção, mantendo-se apenas em discursos religiosos ou poéticos. Um outro exemplo é o fato de a gramática ainda apresentar e considerar a colocação pronominal de mesóclise, que só persiste em discursos políticos e de grupos elitizados, especialmente na escrita, pois na oralidade é cada vez mais raro ouvirmos essa construção. Pelos motivos descritos acima, fica claro que apenas as normas gramaticais não podem representar o amplo universo linguístico. É nessa hora que a linguística traz sua influência, ao considerar a língua em seu uso real, sem se preocupar centralmente com erros e acertos, nem com julgamentos estéticos ou morais, e traçar padrões e relações que vão além da gramática normativa. Onde a gramática vê um erro, a linguística vê uma diferença que cabe ser explorada. Onde a gramática exige memorização, dos tipos de oração subordinada por exemplo, a linguística demanda um entendimento dos processos e das relações entre palavras e frases. Por essas questões, é importante que o professor, e a comunidade escolar como um todo, vejam que a língua vai muito além de erros e acertos de gramática e suas terminologias, e as mudanças linguísticas não se tratam de erros e sim de processos de variação da língua que existe para a comunicação humana e se adequa às suas necessidades, pois: Cada língua é um retrato do mundo, tomado de um ponto de vista diferente, e que revela algo não tanto sobre o próprio mundo, mas sobre a mente do ser humano. Cada língua ilustra uma das infinitas maneiras que o homem pode encontrar e entender a realidade. (Perini, 2002, p. 52). Com essa visão de língua consolidada, o ensino passa a ter um escopo mais amplo, possibilitando a compreensão das reais condições linguísticas da população escolar brasileira. Em nossa última aula, sobre o eixo Gramática e Aquisição Linguística, veremos mais detalhadamente a importância de um trabalho de gramática a favor do enriquecimento das relações linguísticas de sentido dentro do texto, quais são os principais equívocos ao se trabalhar a gramática na escola e algumas orientações para esse trabalho. O professor, em sua função educativa, não assume posição nem de gramático nem de linguista, ele é professor. É ele que sumariza, organiza e navega em ambos os territórios para potencializar a experiência de uso de linguagem, seja oral ou escrita, de seu aluno. Mas, dependendo de quais forem 013 as maiores influências em sua formação, o professor pode mostrar-se mais adepto da corrente linguística ou gramatical, no sentido normativo. Sobre a disputa gramática x uso real da língua, objeto de estudo da linguística, Antunes (2008, p.159), em tom poético, afirma que as áreas não são uma rima, mas podem ser uma solução: […] A língua nem cabe na gramática. A gramática é menor, é mais curta, é menos abrangente. Tem menos lições. Portanto, as duas não rimam. […] Língua e gramática não rimam também quando se confunde o estudo da nomenclatura com o estudo da gramática; quando não se vai além da nomenclatura, para encontrar os sentidos que transparecem nos usos reais, concretizados, efetivados. Usos reais. Todos. Não apenas aqueles que são reconhecidos como “cultos” ou prestigiados. […] Mas a língua e a gramática podem ser uma solução: se damos à gramática a função que de fato ela tem; nem mais nem menos; se reconhecemos seus limites; […] se aprendemos a apreciar a recriação da língua cada vez que a gramática varia, cada vez que ela se submete às condições de uso e se deixa levar pelos propósitos de quem a usa; quer dizer, não deixamos que a gramática assuma o comando absoluto de tudo e saia do seu lugar de adjuvante; de companheira […] se não deixarmos que a gramática ofusque o fascínio que a língua pode exercer sobre as pessoas. FINALIZANDO Nesta aula, refletimos um pouco melhor sobre o contexto em que se insere o ensino de Língua Portuguesa na estrutura escolar, em sua influência no exercício da cidadania, no papel do professor e no objeto de ensino (língua x gramática) e suas ramificações no processo de aprendizagem. Com isso, já podemos antecipar alguns pressupostos que a didática e avaliação em Língua Portuguesa deve seguir: considerar a realidade social, cultural e linguística do aluno em seu processo de aprendizagem; e buscar inserir situações de uso real da língua, isto é, situações comunicativas próximas às experiências e temáticas reais da vida dos alunos. Nas próximas aulas veremos como aplicar essa didática em cada um dos eixos de trabalho com a LP em sala de aula: a oralidade, a leitura, a escrita e a gramática e aquisição linguística. Saiba mais Para aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto tratado nesta aula, seguem sugestões de leitura complementar. BAGNO, M. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999. BARRETO, E. Pais interferem em escolas que abordam questão de gênero nos livros e vetam conteúdo. Disponível em: 014 <https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/pais-interferem-em-escolas- que-abordam-questao-de-genero-nos-livros-vetam-conteudo-21644988>. Acesso em: 9 nov. 2017. FREIRE, P; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Cap II. GUEDES, Paulo Coimbra. A língua Portuguesa e a cidadania. Rio grande do Sul: Organon 25 – Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Vol. 25, Ano 11, 1997. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/organon/article/viewFile/29352/18042>. Acesso em: 9 nov. 2017. LUCCHESI, D. A diversidade e a desigualdade linguística no Brasil. Em: BRASIL. Ministério da Educação. Um salto para o futuro - português: um nome muitas línguas. Ano XVIII Boletim 08 - maio de 2008. Disponível em: <http://www.portal.educacao.salvador.ba.gov.br/site/documentos/espaco- virtual/espaco-escola/apoio/Portugues-um-nome-muitas-linguas.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2017. POSSENTI, S. Linguistas na escola. Disponível em: <http://www.cienciahoje.org.br/noticia/v/ler/id/3088/n/linguistas_na_escola>. , Acesso em: 27 jul. 2017. RAUBER, A. L. A formação do professor de Língua Portuguesa: o diálogo entre teoria e prática. In: MAGALHÃES, J. S. de; TRAVAGLIA, L. C. (Org.). Múltiplas perpectivas em linguística. Uberlândia/MG: EDUFU, 2008. v. 1, p. 346-356. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_027.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2018. https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/pais-interferem-em-escolas-que-abordam-questao-de-genero-nos-livros-vetam-conteudo-21644988 https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/pais-interferem-em-escolas-que-abordam-questao-de-genero-nos-livros-vetam-conteudo-21644988 http://www.seer.ufrgs.br/organon/article/viewFile/29352/18042 http://www.portal.educacao.salvador.ba.gov.br/site/documentos/espaco-virtual/espaco-escola/apoio/Portugues-um-nome-muitas-linguas.pdf http://www.portal.educacao.salvador.ba.gov.br/site/documentos/espaco-virtual/espaco-escola/apoio/Portugues-um-nome-muitas-linguas.pdf http://www.cienciahoje.org.br/noticia/v/ler/id/3088/n/linguistas_na_escola 015 REFERÊNCIAS ANTUNES, I. Muito Além da Gramática: por um ensino sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. PERINI, M.A. Sofrendo a gramática. São Paulo: 3. ed: Ática, 2002. SCLIAR, M. A função educativa da leitura. In:. ABREU,M. (Org.). Leituras no Brasil: antologia comemorativa pelo 10º COLE. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 1995.
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