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HUMANIZAÇÃO EM SERVIÇOS DE SAÚDE AULA 5 Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL Humanização dos serviços de saúde: ações estratégicas As diretrizes da humanização integram as novas políticas de atenção implantadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os direitos dos pacientes passaram a ser considerados, demonstrando que a visão de saúde e doença ganhava uma dimensão humana. Sob tal aspecto, houve mudanças nas abordagens ao paciente com transtorno mental, ao paciente idoso, ao paciente infantil, à mulher no momento de dar à luz e ao paciente com câncer. Tais detalhes da abordagem serão destacados nesse momento, mas é importante ressaltar que as mudanças implementadas abrangem todos os aspectos que dizem respeito aos direitos dos pacientes e à sua segurança dentro do sistema. O preâmbulo da Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, conhecida como “lei da saúde”, que cria o SUS, define a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado, ao qual cabe, portanto, agir para que as pessoas exerçam seu direito à saúde e a recebam com qualidade – não apenas do ponto de vista tecnológico, mas no que tange a todo o conjunto de atitudes que integram as competências emocionais e sociais dos profissionais de saúde com as pessoas atendidas. TEMA 1 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO AOS PACIENTES IDOSOS O perfil epidemiológico da população brasileira vem sofrendo alterações desde o início dos anos 2000, com o aumento do número de idosos no país. Isso se deve às mudanças sociais e à própria melhoria do sistema de saúde, com o incremento de novas tecnologias disponibilizadas por meio do melhor manejo das doenças crônicas. Por esse motivo, os idosos têm-se tornado a maior clientela demandante da atenção hospitalar. É reconhecida a fragilidade do idoso em seus vários aspectos, sobretudo quando adoece e precisa ser internado, quesito no qual há um marco legal significativo de mudança: a Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003, que institui o Estatuto do Idoso. No que concerne aos direitos à saúde, a lei garante o acesso aos medicamentos, ao atendimento especializado e a ter um acompanhante em caso de internação. 3 A presença de acompanhante para o idoso inovou o sistema hospitalar, , pois ele testemunha os procedimentos realizados no ambiente hospitalar e alivia a angústia da família repassando-lhe informações e preparando-a para a alta hospitalar e cuidados especiais, se necessários. Os serviços que atendem idosos também precisam estar preparados com equipes de abordagem multiprofissional para qualificar o atendimento. Assistentes sociais e psicólogos são de grande valia quando se trata de dar más notícias. É muito importante preparar as famílias para situações de luto ou para enfrentar cuidados especiais, no caso de idosos que sairão com sequelas e em condições de grau de dependência III (pessoa com dependência total de cuidados). Tais momentos podem se caracterizar pela expressão de conflitos familiares, situações de culpa, angústias e mágoas que se estendem por toda a vida e são finalmente externados. Também é direito do idoso em estado de terminalidade não ter seu processo de morte prolongado, caracterizando distanásia, mas, em contrapartida, ter morte digna, com cuidados paliativos, sem dor, respeitando-se suas crenças e seu consolo familiar. TEMA 2 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO À SAÚDE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES O Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, representa uma conquista para crianças e adolescentes de todo o país. Foi revisado em 2016, sobretudo o capítulo que trata dos direitos à saúde. Foram contempladas as ações dos vários pontos da rede de atenção, especialmente no que tange à atenção às adolescentes grávidas e a todas as ações para proteger duas situações de extrema fragilidade: a mãe adolescente e seu concepto. O estatuto também aborda as questões de alta vulnerabilidade, como os casos de violência e sua notificação obrigatória, ponto no qual há de se destacar a importância da integração do setor de saúde com outros, como os de justiça e desenvolvimento social. A complexidade do problema ultrapassa a competência de um único setor, demandando ações integradas de diversos atores, mas é no setor de saúde que o problema se manifesta de forma mais clara, tanto na busca pelo socorro de urgência e emergência quanto na Unidade Básica de Saúde, quando o vínculo de confiança com os profissionais de saúde propicia que o 4 adolescente ou a criança conte que está sendo vítima de violência física, emocional ou sexual. Ademais, o monitoramento das práticas obrigatórias de saúde na atenção primária – vacinação, acompanhamento do peso e dos marcos de desenvolvimento infantil por meio da puericultura, entre outras – permite que os profissionais de saúde observem o padrão de cuidados familiares ofertados à criança, detectando casos de maus-tratos, negligência e outras situações que devem ser relatadas à rede de proteção, preservando o direito das crianças. No momento da internação hospitalar, é assegurado à criança e ao adolescente o direito ao acompanhamento de seus pais ou responsáveis. Em caso de internações prolongadas – tratamentos de câncer, grandes queimaduras, enfim –, é direito da criança receber a continuidade do conteúdo escolar, evitando o prejuízo do ano letivo em curso. Os hospitais infantis costumam abrir espaços para voluntários com diversos programas de lazer e atividades que animem as crianças. Um exemplo disso ocorreu em 2017, em Porto Alegre (RS), quando soldados do Corpo de Bombeiros, fantasiados de super-heróis, desceram de rapel o prédio do Hospital Conceição na ala de pediatria. Da mesma forma, grupos voluntários que trabalham com cães, coelhos e outros animaizinhos, devidamente preparados para adentrar o ambiente hospitalar, levam alegria às crianças e a outros pacientes internados. A alegria melhora a imunidade e favorece a cura. TEMA 3 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO À GESTANTE E AO PARTO A gestação e o parto são marcos biológicos e sociais na vida das mulheres, além de momentos que requerem especial atenção devido aos riscos envolvidos. É importante destacar que o parto é o único ato fisiológico de risco, cujo processo é acompanhado de dor e sofrimento, podendo acarretar desfechos fatais tanto para a mãe quanto para o concepto. Porém, apesar de se saber dessas características inerentes à condição de gestante, nem sempre tal processo foi tratado com o cuidado e o respeito necessários, tanto na assistência pré-natal quanto no parto propriamente dito. As análises da mortalidade materna e infantil no país até o final da década de 1990 demonstram em números a condição da assistência pré-natal e ao parto no país. No ano 2000, o indicador brasileiro mostrava 75 mortes de mulheres por condições relacionadas à gestação, ao parto e ao puerpério a cada cem mil 5 nascidos vivos. Em 2015, chegou-se a 35 mortes, melhorando o indicador, embora a referência aceitável sejam 16 mortes a cada cem mil nascidos vivos. Tais números denotavam a necessidade de se ampliar o acesso ao pré- natal e melhorar a qualificação das ações em questão. Nesse sentido, foi criado o programa Rede Cegonha, que envia recursos financeiros aos estados e municípios a fim de melhorar as ações. Cabem às secretarias estaduais e municipais de Saúde organizar protocolos de ação e monitoramento do pré- natal. Além da organização do acesso e do estabelecimento dos fluxos de atenção, o atendimento à gestante na hora do parto necessitava de mudanças. Por ser um momento de dor e insegurança, sobretudo quando se trata da mulher primigesta, é direito da parturiente ter junto de si alguém de sua confiança, que lhe dê suporte. A prioridade para semelhante momento é seu companheiro, pai da criança, mas podeser qualquer outra pessoa à escolha da parturiente. Os estudos que analisam o momento do parto demonstram que as boas práticas de humanização e suporte à gestante incluem a atenção prestada por doulas (mulheres que dão suporte físico e emocional a outras mulheres durante e após o parto), além da assistência de enfermeiros e médicos obstetras. A Rede Cegonha ainda engloba a assistência ao período puerperal ao binômio mãe-bebê e o acesso ao planejamento familiar. TEMA 4 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL A atenção à saúde mental foi uma das áreas que mais sofreram modificações no setor de saúde. A luta por mudança no modelo de atenção à saúde mental fez parte da pauta da reforma sanitária, na década de 1980, que questionava a imposição das ações de saúde em qualquer área, sobretudo naquelas em que o paciente apresenta maior vulnerabilidade. Considerando todas as fragilidades associadas ao fato de adoecer, nenhuma se compara à doença mental na fase aguda. As doenças mentais, historicamente, são alvo de preconceito e negação de direitos, embora nem todas as doenças mentais tenham o mesmo percurso ou causalidade. As pessoas relutam para admitir que necessitam de tratamento precisamente devido ao preconceito associado à doença, seja um quadro depressivo ou um quadro psicótico agudo. Neste aspecto, é importante ressaltar o papel da Atenção Primária à Saúde (APS) no manejo dos quadros crônicos 6 estáveis. Os pacientes sentem-se mais confortáveis em ser manejados em um ponto de atenção comum a todos os pacientes, sem a especificidade de um serviço para transtornos mentais, mas nem todos os casos podem ser manejados fora da especialidade. Para fomentar uma política de atenção e proteção voltada ao paciente com transtorno mental, foi promulgada a Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial. O objetivo era mudar o modelo manicomial, que institucionalizava os pacientes e os privava de seus direitos de cidadania. Ideias preconceituosas que identificavam o paciente com transtorno mental como extremamente perigoso e que, por isso, precisava ser enclausurado deveriam ser combatidas, entendendo-se o portador de um transtorno mental como tendo qualquer outra doença crônica, que requer cuidados contínuos, dependendo da condição. Tais pacientes respondem bem a tratamentos humanizados, respeitosos, dentro de uma rede de apoio psicossocial. Não se nega a importância do hospital para a estabilização do quadro agudizado, a exemplo de qualquer outra doença, mas a permanência do paciente no hospital não deve exceder o tempo necessário para estabilizar a crise. Outro importante foco a ser trabalhado remete à família do paciente, que frequentemente não se sente fortalecida para manejar as peculiaridades da doença mental – situação agravada quando as condições sociais e econômicas são desfavoráveis, além do fato de que a própria família é alvo do preconceito da sociedade. Na realidade, a família tem importante papel no tratamento e na estabilização da doença mental, sendo o contexto familiar geralmente o fator preponderante no prognóstico do quadro mental. A mudança no manejo da doença mental, o combate ao preconceito, a agregação da família e a reinserção social são os marcos mais importantes a serem sustentados para a abordagem humanizada em saúde mental. TEMA 5 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO AO PACIENTE COM CÂNCER Até a década de 1980, um diagnóstico de câncer correspondia a receber a sentença de morte. Os serviços de atenção eram escassos e os tratamentos, além de pouco acessíveis, eram dolorosos, invasivos e com grande potencial de 7 deixar sequelas. Ademais, pelo fato de não haver uma rede de captação precoce, as pessoas chegavam aos serviços em estágios muito avançados da doença. Por tudo isso, a mortalidade dos pacientes com câncer era muito elevada. Além da gravidade e do sofrimento trazidos pela própria doença, a falta de habilidade humana no manejo dos pacientes era cruel. A expressão “desenganados pelos médicos” aplicava-se com muita frequência a esses pacientes, que sequer eram apoiados para ter seu sofrimento aliviado com analgésicos com potência adequada. Por tudo isso, a cancerologia era um setor muito carente de intervenção no sentido da humanização. Considerando esse quadro, desde o final da década de 1990, normas foram emitidas a fim de melhorar o diagnóstico precoce, mas em 2005 foi lançada a Política Nacional de Atenção Oncológica, envolvendo os diversos pontos de atenção em uma rede que se iniciava na APS, com ações de rastreio na população saudável para o diagnóstico precoce, e culminava com o encaminhamento no menor tempo possível aos hospitais de referência na especialidade. Tal qual o idoso no extremo de sua vida, o paciente com câncer convive com a possibilidade de morte – à diferença de que, na maioria das vezes, são pessoas com potencial de vida, até mesmo crianças. Todos os esforços devem ser empreendidos no sentido de preservar a confiança e a esperança do paciente na cura – que, quando impossível, a equipe deve saber manejar os quadros de terminalidade e preparação para a morte de modo competente, respeitoso e humanizado. Para tanto, os protocolos de cuidados paliativos precisam ser utilizados, com manejo correto da dor, preservando a consciência do paciente ao máximo. A família precisa receber o suporte adequado de uma equipe multiprofissional, mesmo que o paciente receba alta para usufruir seus últimos momentos na companhia dos familiares. Equipes de atendimento domiciliar vinculados aos hospitais de referência e equipes de APS da área devem visitar o paciente, assegurando-lhe a medicação necessária e outros eventuais suportes, bem como apoiar e tranquilizar os familiares, informando-lhes a declaração de óbito quando ocorrer. O atendimento humanizado é a essência da missão dos profissionais de saúde e se traduz em práticas bem estruturadas tecnicamente, mas realizadas 8 com compaixão e solidariedade, com a consciência de que todos nós, um dia, seremos pacientes. NA PRÁTICA Jair, 65 anos, compareceu a uma consulta na UBS Concórdia. Ele queixava-se de dificuldade para engolir e, por isso, não estava se alimentando. Quando tentava comer ou mesmo ingerir líquidos, começava a tossir, como se estivesse engasgado. Referiu emagrecimento nos últimos 15 dias. Estava também muito triste, porque sua filha mais velha havia brigado com seu outro filho e estavam sem se falar. O motivo foi a revelação de que ela era homossexual e viveria com uma companheira. Jair também não havia conseguido “engolir” aquela história e, desde então, não mais engolia os alimentos. Ao realizar os exames, a endoscopia revelou que Jair tinha um câncer de esôfago de classificação invasiva e grave. Jair teve acesso adequado ao tratamento, mas o prognóstico não era bom. Após algum tempo, foi classificado como elegível para cuidados paliativos e retornou para casa. Sua família recebeu o suporte domiciliar do hospital de referência ao câncer e da equipe da UBS. Como os quartos eram pequenos, a sala da casa tornou-se o quarto para abrigar os equipamentos de suporte. Na última visita àquela família, notava-se que o rosto de Jair esboçava um sentimento diferente, como que mais tranquilo, em paz, enfim. Foi-lhe dito o que se observava e ele pediu para a esposa me contar o que havia acontecido. Ela relatou que, no dia anterior, os filhos se reconciliaram, abraçaram-se e pediram perdão um ao outro, por isso todos estavam felizes. No dia seguinte, Jair faleceu. FINALIZANDO A humanização dos processos de trabalho em diversas áreas se traduz no planejamento e na organização das ações. Várias áreas poderiam ser citadas, mas, ao se destacar a atenção aos idosos, àscrianças, à mulher no momento do parto, ao paciente com transtorno mental e ao paciente com câncer, está-se tratando de áreas que tiveram estruturas legais como base e uma mudança intencional em suas práticas. 9 A atenção aos idosos e pacientes com câncer tem uma interface importante quanto aos cuidados paliativos. Trata-se de uma abordagem relativamente nova em nosso país, ainda não totalmente difundida, mas que precisa ser estruturada em todos os serviços, considerando a mudança do perfil epidemiológico da população. Estamos vivendo mais e, por isso, mais sujeitos às doenças degenerativas. A atenção à saúde mental precisa ser gradativamente ampliada, à luz dos princípios de cidadania e humanização, considerando toda a vulnerabilidade do paciente e de sua família. É importante lembrar que, na previsão da Organização Mundial da Saúde (OMS), até 2025, os transtornos mentais comporão a maior parte das condições de saúde do mundo. 10 REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8069.htm>. Acesso em: 1 ago. 2018. _____. Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 abr. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03//LEIS/L EIS_2001/L10216.htm>. Acesso em: 1 ago. 2018. _____. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 out. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/Leis/2003 /L10.741.htm>. Acesso em: 1 ago. 2018. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Série C. Projetos, Programas e Relatórios, n. 20. Brasília, 2001. CARNEIRO, J. D. Mortalidade materna cai no Brasil, mas não atingirá meta da ONU. BBC Brasil, 8 mar. 2015. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150306_mortalidade_mater na_jc_ru>. Acesso em: 1 ago. 2018.