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2013 História Medieval Prof. Fabiano Dauwe Prof. Thiago Juliano Sayão Prof. Itamar Siebert Copyright © UNIASSELVI 2013 Elaboração: Prof. Fabiano Dauwe Prof. Thiago Juliano Sayão Prof. Itamar Siebert Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 930 D244h Dauwe, Fabiano História medieval / Fabiano Dauwe; Thiago Juliano Sayão; Itamar Siebert. Indaial : Uniasselvi, 2013. 284 p. : il ISBN 978-85-7830- 717-2 1. História do mundo antigo. 2. História medieval. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. III apresentação Prezado(a) acadêmico(a)! Nesta disciplina, vamos estudar a Idade Média. É um período histórico fascinante, que nos “transporta” facilmente a um mundo fantástico, repleto de guerreiros bárbaros, servos feudais, cavaleiros em armaduras, cruzados e sarracenos. Esse parece ser um mundo tão distante do nosso e, ao mesmo tempo, tão familiar que mexe profundamente com a nossa imaginação, como comprova a enorme quantidade de livros, seriados, contos de fadas e filmes que existem sobre a Idade Média; para completar, o período parece (especialmente há alguns anos) “estar na moda”. O objetivo deste Caderno de Estudos, além de transmitir a você alguns conhecimentos sobre os acontecimentos que são tradicionalmente estudados nesse período - e que realmente são importantes -, é quebrar em parte a visão tradicional e limitada sobre esse período de mil anos. Ao contrário do que acredita o senso comum, a Idade Média foi um período repleto de inovações tecnológicas, mudanças sociais, econômicas e demográficas profundas e constantes, intensas trocas culturais e uma economia comercial fortemente globalizada, em que a cultura letrada foi preservada e, em determinadas partes do mundo, floresceu como nunca havia acontecido antes. Se toda essa imagem nova parece estranha, considerando o que sabemos sobre a Idade Média na Europa, isso ficará claro quando observarmos esse período a partir de uma perspectiva diferente. Não apenas vamos repensar o que ocorreu na própria Europa (e como isso ocorreu), mas também veremos a história de outras regiões muito mais dinâmicas, naquela época, do que a sociedade agrária, fechada e beligerante que surgiu com o fim do Império Romano do Ocidente. Há muito mais na Idade Média do que a Europa, e desfazer essa imagem eurocêntrica é fundamental para entendermos não apenas o período que desejamos estudar como o próprio período histórico em que vivemos. Hoje, não é mais possível olharmos para o mundo simplesmente a partir de um predomínio dos países tradicionalmente poderosos: o mundo está fragmentado demais, geopoliticamente falando, para que isso seja suficiente. O caderno que você tem em mãos é uma reformulação da edição original. Nesta versão, algumas discussões foram ampliadas, outras foram inseridas. A estrutura do caderno foi ligeiramente alterada, mas manteve-se uma organização baseada, na medida do possível, em critérios cronológicos. A primeira unidade deste caderno trata dos primórdios da Idade Média; inicialmente, uma discussão teórica e historiográfica sobre o seu significado, seguida dos eventos fundantes desse período: a queda do Império IV Romano, a política e a religião nos primeiros séculos, tanto na Europa quanto no novo mundo muçulmano. A segunda unidade concentra-se nas grandes civilizações da época e suas realizações: Império Romano do Oriente (Bizantino), mundo islâmico e Europa feudal. A terceira unidade trata dos eventos que transformaram a sociedade feudal e deram origem ao mundo moderno que será objeto de estudos futuros: as Cruzadas, o avanço mongólico e a chamada Baixa Idade Média. A intenção deste caderno não é esgotar o tema, mas dar a você uma visão muito resumida do que um professor de História precisa saber para ensinar Idade Média aos seus alunos em sala de aula. Alguns dos temas aqui abordados talvez não estejam no currículo tradicional das escolas. No entanto, é fundamental que você tenha em mente, o tempo todo, que, se deseja ser um bom professor, terá que conhecer muito bem o assunto que ensinará, o que significa, no mínimo, conhecer mais do que o material que utilizará em sala de aula. Este caderno não pode, nem pretende apresentar tudo: em vez disso, o objetivo é trazer uma visão diferente sobre aquela história contada, para que você possa observar os livros de História com um olhar mais crítico. Portanto, não cometa o erro de ler pouco sobre algum tema ou de achar que algumas páginas (ou alguns tópicos resumidos) dirão tudo o que você precisa saber sobre um assunto. Não pare e tenha sempre em mente as razões que levaram você a desejar saber o suficiente sobre isso para ser capaz de ensinar outras pessoas. Bons estudos! Fabiano Dauwe Thiago Juliano Sayão Itamar Siebert V UNI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII UNIDADE 1 - AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA ........................................................................... 1 TÓPICO 1 - INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA ................................. 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 SOBRE O CONCEITO DE IDADE MÉDIA ................................................................................... 4 2.1 A IDADE MÉDIA E O SENSO COMUM .................................................................................... 4 2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA .................................................................................... 6 2.2.1 Imaginando ................................................................................................................................6 2.2.2 O problema em julgar o passado ............................................................................................ 6 2.2.3 Evitando o anacronismo .......................................................................................................... 7 2.2.4 O conceito de “idade média” é anacrônico! .......................................................................... 8 3 O CONCEITO DE IDADE MÉDIA APÓS O RENASCIMENTO .............................................. 9 3.1 NA REFORMA RELIGIOSA ......................................................................................................... 9 3.2 NO ILUMINISMO .......................................................................................................................... 9 3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA ..................................................................................... 10 3.4 A PERSPECTIVA LIBERAL ........................................................................................................... 11 3.5 A PERSPECTIVA MARXISTA ....................................................................................................... 12 4 CONCEITOS MODERNOS ............................................................................................................... 12 5 FAZ SENTIDO FALAR EM “UMA” IDADE MÉDIA? ................................................................. 13 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 15 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 17 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 18 TÓPICO 2 - A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA .............................................................. 19 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 19 2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA IDADE MÉDIA ....................................................................... 20 2.1 A IDADE MÉDIA E A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO ....................................................... 20 2.1.1 Os contemporâneos: Vegécio e Salviano ............................................................................... 20 2.1.2 Uma visão Iluminista: Gibbon e a “decadência moral” ...................................................... 21 2.1.3 Os grandes sistemas civilizadores: Toynbee ......................................................................... 22 2.2 A TEORIA DOS MÚLTIPLOS FATORES .................................................................................... 22 2.3 TEORIAS DO COLAPSO AMBIENTAL ...................................................................................... 24 2.4 TEORIAS DA TRANSFORMAÇÃO ............................................................................................ 25 3 TEORIAS SOBRE O FINAL DA IDADE MÉDIA ......................................................................... 27 3.1 A TEORIA CLÁSSICA ................................................................................................................... 27 3.2 A EXPLICAÇÃO A PARTIR DAS PERIODIZAÇÕES ............................................................... 28 3.3 JACQUES LE GOFF E A “LONGUÍSSIMA IDADE MÉDIA” .................................................. 29 3.4 QUAL PERIODIZAÇÃO ADOTAR? .......................................................................................... 30 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 31 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 34 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 35 TÓPICO 3 - ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA ....................................................... 37 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 37 suMário VIII 2 O AUGE E A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO ............................................................. 37 2.1 POR QUE A DECADÊNCIA? ....................................................................................................... 39 2.1.1 O fim das conquistas militares ................................................................................................ 39 2.1.2 A crise do século III .................................................................................................................. 40 2.2 OS REFORMADORES: DIOCLECIANO E CONSTANTINO .................................................. 43 2.3 AS ORIGENS REMOTAS DO FEUDALISMO ............................................................................ 45 3 OS BÁRBAROS NO IMPÉRIO DO OCIDENTE .......................................................................... 47 3.1 OS HUNOS ...................................................................................................................................... 48 3.2 A QUEDA DE ROMA .................................................................................................................... 50 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 51 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 54 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 55 TÓPICO 4 - O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA ............................................................ 57 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 57 2 OS REINOS BÁRBAROS ................................................................................................................... 57 3 O REINO FRANCO ............................................................................................................................. 60 3.1 O REINADO DE CARLOS MAGNO ........................................................................................... 62 3.1.1 O Renascimento Carolíngio ..................................................................................................... 63 3.1.2 A divisão do Império ................................................................................................................ 63 3.2 NOVOS INVASORES ..................................................................................................................... 64 4 A IGREJA NA ALTA IDADE MÉDIA ............................................................................................. 65 4.1 SANTO AGOSTINHO .................................................................................................................. 65 4.2 O ARIANISMO ............................................................................................................................... 66 4.3 OS BÁRBAROS E A IGREJA ......................................................................................................... 67 4.4 A REGRA DE SÃO BENTO ........................................................................................................... 68 LEITURA COMPLEMENTAR ..............................................................................................................70 RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 73 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 74 TÓPICO 5 - AS ORIGENS DO ISLAMISMO ................................................................................... 75 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 75 2 UMA NOVA FÉ: O ISLAMISMO ..................................................................................................... 76 2.1 OS PRIMÓRDIOS: A ARÁBIA DO SÉCULO VII ....................................................................... 77 2.2 MAOMÉ E A CRIAÇÃO DO ISLAMISMO ................................................................................ 78 2.3 MORTE E SUCESSÃO DE MAOMÉ ............................................................................................ 79 3 OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DO ISLAMISMO ............................................................................. 80 3.1 OS CINCO PILARES DO ISLÃ ..................................................................................................... 82 3.2 O ALCORÃO ................................................................................................................................... 83 3.3 O DIREITO ISLÂMICO: OS HADITHS, AS SUNAS E A SHARIA ......................................... 85 3.3.1 As escolas de interpretação da lei ........................................................................................... 86 3.4 O MODELO DE CONDUTA DO PROFETA .............................................................................. 87 3.5 O MISTICISMO ISLÂMICO: O SUFISMO .................................................................................. 87 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 89 RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 92 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 93 UNIDADE 2 - O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS ............................................... 95 TÓPICO 1 - A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL ........................................... 97 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 97 2 AS ORIGENS DO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE ............................................................. 98 2.1 A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO NA PERSPECTIVA ORIENTAL .................................. 98 IX 2.2 A PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA BIZANTINA .................................................................... 99 2.3 O REINADO DE JUSTINIANO .................................................................................................... 100 2.3.1 A revolta de Nika ...................................................................................................................... 101 2.3.2 As reformas de Justiniano ........................................................................................................ 102 2.4 A TRANSFORMAÇÃO DO IMPÉRIO ........................................................................................ 103 2.5 AS PERDAS BIZANTINAS NA ÁFRICA .................................................................................... 104 3 CONSTANTINOPLA .......................................................................................................................... 105 3.1 A CIDADE ........................................................................................................................................ 107 3.2 MÉSIA, A PRINCIPAL AVENIDA DE CONSTANTINOPLA ................................................. 108 3.3 O HIPÓDROMO ............................................................................................................................. 111 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 113 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 115 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 116 TÓPICO 2 - RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL ...................... 117 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 117 2 AS CONTROVÉRSIAS RELIGIOSAS BIZANTINAS ................................................................. 117 2.1 O NESTORIANISMO ..................................................................................................................... 117 2.2 A ICONOCLASTIA ........................................................................................................................ 118 2.2.1 A justificativa teológica do conflito ........................................................................................ 119 2.2.2 As motivações sociais do conflito ........................................................................................... 121 2.3 O GRANDE CISMA ....................................................................................................................... 122 3 O AUGE DO IMPÉRIO DO ORIENTE: A DINASTIA MACEDÔNICA ................................. 125 3.1 A CRISTIANIZAÇÃO DA RÚSSIA ............................................................................................. 126 4 A DECADÊNCIA ................................................................................................................................. 128 4.1 MOTIVOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS DO DECLÍNIO DE CONSTANTINOPLA ..................................................................................................................... 128 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 132 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 135 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 136 TÓPICO 3 - A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO ..................................................................................................................... 137 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 137 2 O AVANÇO MUÇULMANO ............................................................................................................. 137 2.1 O CALIFADO RASHIDUN ........................................................................................................... 139 2.2 O CALIFADO OMÍADA ................................................................................................................ 140 2.3 O CALIFADO ABÁSSIDA ............................................................................................................. 142 2.4 A PAX ISLAMICA E A QUEBRA DA UNIDADE ...................................................................... 143 3 MAIS POVOS SE UNEM AO ISLÃ .................................................................................................144 3.1 A CONQUISTA DO MAGREBE E DE AL- ANDALUS ............................................................ 144 3.2 OS TURCOS E OS MONGÓIS ...................................................................................................... 146 3.3 A AMPLITUDE DOS DOMÍNIOS MUÇULMANOS: DA ÁFRICA À CHINA .................... 147 4 A CULTURA MUÇULMANA ............................................................................................................ 148 4.1 AS ARTES ........................................................................................................................................ 148 4.1.1 Os arabescos .............................................................................................................................. 148 4.1.2 A caligrafia ................................................................................................................................. 149 4.1.3 A arquitetura ............................................................................................................................. 150 4.1.4 Literatura .................................................................................................................................... 151 4.1.5 Outras artes ................................................................................................................................ 152 4.2 A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS ..................................................................................................... 152 4.2.1 A Educação ................................................................................................................................ 152 X 4.2.2 A Filosofia .................................................................................................................................. 152 4.2.3 As ciências ................................................................................................................................. 153 4.3 AS MULHERES E O ISLAMISMO ............................................................................................... 154 4.4 O ISLÃ E OS “INFIÉIS” ................................................................................................................. 156 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 157 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 159 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 160 TÓPICO 4 - O FEUDALISMO .............................................................................................................. 161 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 161 2 SOBRE O CONCEITO DE FEUDALISMO .................................................................................... 161 2.1 AS ORIGENS DO CONCEITO DE FEUDALISMO ................................................................... 162 2.2 CRÍTICAS AO CONCEITO DE FEUDALISMO ......................................................................... 163 2.3 OS FEUDALISMOS: LOMBARDIA, GRÃ-BRETANHA E OUTROS LUGARES ........................................................................................................................................ 164 3 OS MODELOS DE FEUDALISMO .................................................................................................. 165 3.1 O MODELO CLÁSSICO DE FEUDALISMO .............................................................................. 165 3.1.1 A homenagem ........................................................................................................................... 165 3.1.2 O feudo ....................................................................................................................................... 166 3.1.3 As obrigações servis ................................................................................................................. 167 3.2 A PERSPECTIVA MARXISTA ....................................................................................................... 167 4 AS ORIGENS DO FEUDALISMO ................................................................................................... 169 4.1 A FRAGMENTAÇÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO ................................................................ 169 4.2 OUTROS FATORES ........................................................................................................................ 169 4.3 EM RESUMO ................................................................................................................................... 171 5 FUGINDO AO ESQUEMA ................................................................................................................ 171 5.1 REVENDO CONCEITOS ............................................................................................................... 172 5.2 AS COMUNICAÇÕES ................................................................................................................... 172 5.3 A ECONOMIA ................................................................................................................................ 173 5.4 A NATUREZA E O TEMPO MEDIEVAIS ................................................................................... 174 6 O AUGE DO FEUDALISMO ............................................................................................................. 174 6.1 O FIM DAS INVASÕES BÁRBARAS ........................................................................................... 176 6.2 A PRIMOGENITURA ..................................................................................................................... 176 6.3 A PRESSÃO ECONÔMICA ........................................................................................................... 178 6.4 A EXPANSÃO INTERNA DA SOCIEDADE .............................................................................. 178 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 180 RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 182 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 184 UNIDADE 3 - A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES .................................................... 185 TÓPICO 1 - AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS .............................. 187 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 187 2 AS ORIGENS HISTÓRICAS DAS CRUZADAS .......................................................................... 187 2.1 O SÉCULO XI, PERÍODO DE CONQUISTAS ............................................................................ 187 2.1.1 Os turcos seljúcidas .................................................................................................................. 187 2.1.2 Os primeiros tempos da reconquista ibérica ........................................................................ 188 2.1.3 As conquistas normandas ........................................................................................................ 189 2.2 A CRISE NA IGREJA NO SÉCULO XI ........................................................................................ 190 2.3 A ECONOMIA EUROPEIA NO SÉCULOXI ............................................................................. 191 2.4 O CONCÍLIO DE CLERMONT .................................................................................................... 191 3 AS MOTIVAÇÕES PARA AS CRUZADAS ................................................................................... 191 XI 3.1 MOTIVAÇÕES ECONÔMICAS ................................................................................................... 191 3.2 MOTIVAÇÕES RELIGIOSAS ........................................................................................................ 192 3.3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS .......................................................................................................... 192 4 AS CRUZADAS .................................................................................................................................... 193 4.1 OUTRAS CRUZADAS ................................................................................................................... 195 4.2 O FIM DAS CRUZADAS ............................................................................................................... 195 4.3 AS CRUZADAS VISTAS PELOS ÁRABES ................................................................................. 196 4.4 AS PERSEGUIÇÕES AOS JUDEUS NAS CRUZADAS ............................................................. 200 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 201 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 203 TÓPICO 2 - AS CONQUISTAS MONGÓLICAS ............................................................................. 205 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 205 2 A ÁSIA CENTRAL ANTES DE GENGIS KHAN .......................................................................... 206 2.1 A CHINA DA DINASTIA TANG ................................................................................................. 206 2.2 A ROTA DA SEDA ......................................................................................................................... 208 3 GENGIS KHAN E AS CONQUISTAS MONGÓLICAS .............................................................. 210 3.1 A EXPANSÃO MONGOL .............................................................................................................. 211 3.2 SOB DOMÍNIO MONGÓLICO ................................................................................................... 212 3.3 A PAX MONGOLICA .................................................................................................................... 213 4 CONSEQUÊNCIAS DAS INVASÕES MONGÓLICAS .............................................................. 214 4.1 NA CHINA ...................................................................................................................................... 214 4.2 NO MUNDO MUÇULMANO ...................................................................................................... 215 4.3 NA EUROPA ................................................................................................................................... 216 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 218 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 219 TÓPICO 3 - A IGREJA E A CULTURA NA IDADE MÉDIA ......................................................... 221 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 221 2 A REFORMA ECLESIÁSTICA DO SÉCULO XI ........................................................................... 221 2.1 O QUE SIGNIFICAVAM “REFORMA” E “IGREJA”? ............................................................... 222 2.2 A IGREJA NO SÉCULO XI ............................................................................................................ 222 2.3 O MOVIMENTO REFORMISTA .................................................................................................. 223 2.3.1 O celibato clerical ...................................................................................................................... 223 2.3.2 O Monasticismo ........................................................................................................................ 224 2.3.3 Os cátaros e a Inquisição .......................................................................................................... 226 3 AS UNIVERSIDADES ........................................................................................................................ 227 4 O RENASCIMENTO DO SÉCULO XII ........................................................................................... 231 4.1 A CONTRIBUIÇÃO GRECO-ÁRABE ......................................................................................... 231 4.2 A REDESCOBERTA DOS CLÁSSICOS NOS ÁRABES ............................................................. 232 4.3 A ESCOLÁSTICA ............................................................................................................................ 234 LEITURA COMPLEMENTAR 1 ........................................................................................................... 236 LEITURA COMPLEMENTAR 2 ........................................................................................................... 237 LEITURA COMPLEMENTAR 3 ........................................................................................................... 237 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 239 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 240 TÓPICO 4 - O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO ...................................................... 241 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 241 2 A ERA DO PREDOMÍNIO ISLÂMICO DO COMÉRCIO .......................................................... 241 2.1 O EFEITO DAS CONQUISTAS MONGÓLICAS ....................................................................... 243 3 O COMÉRCIO NA EUROPA ............................................................................................................ 244 XII 3.1 AS FEIRAS MEDIEVAIS ................................................................................................................ 245 3.2 A FORMAÇÃO DOS BURGOS ..................................................................................................... 246 4 A VIDA URBANA NA BAIXA IDADE MÉDIA ............................................................................ 247 4.1 DEMOGRAFIA E URBANISMO .................................................................................................. 247 4.2 O SISTEMA CORPORATIVO ....................................................................................................... 249 4.3 A FORMAÇÃO DA BURGUESIA ................................................................................................ 251 5 O MOVIMENTO COMUNAL E AS CIDADES LIVRES ............................................................. 253 LEITURA COMPLEMENTAR 1 ...........................................................................................................256 LEITURA COMPLEMENTAR 2 ........................................................................................................... 257 RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 259 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 261 TÓPICO 5 - AS CORTES MEDIEVAIS .............................................................................................. 263 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 263 2 AS PRIMEIRAS FORMAS DE REINTEGRAÇÃO POLÍTICA .................................................. 263 2.1 OS EFEITOS DO COMÉRCIO ....................................................................................................... 264 2.2 OS TIPOS DE NOBREZA FEUDAL ............................................................................................. 264 3 AS DISPUTAS ENTRE PODERES PARTICULARES E UNIVERSAIS .................................... 266 4 A GUERRA DOS CEM ANOS E O NASCIMENTO DA MONARQUIA ABSOLUTISTA .................................................................................................................................... 268 5 AS MULHERES E A SOCIEDADE ................................................................................................... 270 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 271 RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 272 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 273 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................ 275 1 UNIDADE 1 AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS Esta unidade tem por objetivos: • compreender os conceitos de Idade Média formulados por historiadores ao longo dos tempos; • identificar os principais fatores que levaram à queda do Império Romano do Ocidente; • conhecer o processo de formação dos reinos bárbaros; • perceber o papel que a religião desempenhou na constituição do mundo feudal; • caracterizar a religião e a sociedade muçulmanas, compreendendo sua formação histórica. Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles você encontrará atividades que o(a) ajudarão a refletir e fixar os conhecimentos abordados. TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA TÓPICO 2 – A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA TÓPICO 3 – ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA TÓPICO 4 – O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA TÓPICO 5 – AS ORIGENS DO ISLAMISMO Assista ao vídeo desta unidade. 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA 1 INTRODUÇÃO Prezado(a) acadêmico(a), estamos iniciando nossos estudos sobre a Idade Média. É um período que você certamente já viu, muitas vezes, representado no cinema, em livros, na televisão e na imaginação das pessoas. Os contos de fadas, as histórias do Rei Arthur, os filmes e seriados sobre cavaleiros, todos parecem representar uma época com características muito particulares e sobre a qual pensamos que sabemos muito. No entanto, essa é uma sensação perigosa. Estamos tão acostumados a ver uma certa representação da Idade Média e tão acostumados a pensar o período como a era do feudalismo, do predomínio da Igreja e dos cavaleiros, que nem nos damos conta de que pode haver muito mais para observar. Até mesmo em nossos estudos no colégio, quando estudamos alguma coisa sobre as invasões bárbaras, o feudalismo, as Cruzadas e o renascimento urbano, acreditamos que isso dá conta de explicar o início, o desenvolvimento e o final da Idade Média. Isso, claro, para não falar do rótulo “medieval” que as piores coisas recebem: fala-se em “condições de tratamento medievais”, “instrumentos de tortura medievais”, “mentalidades medievais” e “técnicas de produção medievais”. Nesses casos, a palavra medieval significa, respectivamente: “atroz”, “cruéis”, “retrógradas” e “rudimentares”. Essas descrições, além de historicamente incorretas, traduzem uma falta de cuidado tremenda com as palavras e reforçam estereótipos absurdos. Ao mesmo tempo, existe outra questão fundamental que precisa ser levada em consideração. A história da Idade Média, como a estudamos, padece de um vício muito grave de eurocentrismo. Ou seja, está completamente focada na história da Europa,- mais especificamente da Europa Ocidental: França, Alemanha, Inglaterra -, e ignora completamente outras regiões, como o mundo muçulmano, onde uma cultura, muito distinta, estava em seu auge. Este Caderno de Estudos tem uma dupla finalidade: ao mesmo tempo pretende transmitir a você informações essenciais sobre essas características da Idade Média e provocar em você o questionamento dessa visão tão unilateral e eurocêntrica. UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 4 Quando isso acontecer, você verá uma época completamente diferente: dinâmica, inovadora e vibrante, simplesmente o oposto da tradicional e injusta imagem de “Idade das Trevas”. 2 SOBRE O CONCEITO DE IDADE MÉDIA Antes de iniciarmos os estudos sobre a Idade Média, é importante discutir os significados desse conceito. Como você vai perceber, não falaremos ainda neste tópico o que a Idade Média foi, nem como surgiu, caracterizou-se ou terminou. Teremos muito tempo para isso neste caderno. Este tópico servirá para discutirmos o próprio sentido do termo Idade Média e os cuidados que devemos ter ao analisá- lo. Vamos, por enquanto, apenas supor que você tem uma noção do que signifique Idade Média, que você aprendeu no Ensino Médio e talvez tenha complementado com algumas leituras próprias. É exatamente essa visão que nos interessa por enquanto, porque essa é, provavelmente, a visão que seus futuros alunos terão quando começarem a ter aulas sobre o assunto. 2.1 A IDADE MÉDIA E O SENSO COMUM Dificilmente vamos encontrar algum período histórico tão carregado de imagens errôneas e caricaturais quanto a Idade Média. Você conhece muito bem várias delas: encontra essas imagens com frequência na televisão, no cinema e em outros meios de comunicação e na fala das pessoas. É muito provável que você mesmo carregue vários desses preconceitos e nem saiba. Mas, para estudarmos adequadamente a Idade Média, precisamos antes tomar consciência disso. AUTOATIVIDADE Prezado(a) acadêmico(a), vamos fazer uma pesquisa? Entreviste dez ou mais pessoas que você conhece, de preferência de diferentes idades e origens sociais, fazendo-lhes as seguintes perguntas: “O que você sabe sobre a Idade Média?” e “Como você sabe disso?” Ah! Não se esqueça de também responder às perguntas VOCÊ MESMO, de preferência ANTES de seguir adiante em suas leituras e de entrevistar os seus conhecidos! TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA 5 As respostas provavelmente vão girar em torno de diversas ideias preconcebidas e clichês, como o cavaleiro andante salvando uma donzela presa na torre do castelo, matando dragões ou derrubando os adversários com sua lança nos torneios; a Inquisição e seus cruéis métodos de tortura, Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda, os servos explorados pelos senhores feudais e pela Igreja; bárbaros saqueando tudo o que viam pela frente, nobres vestidos em roupas de couro rudimentar e armaduras de metal prestando homenagens uns aos outros e forjando alianças militares,padres obesos e beberrões e dezenas de outros estereótipos. Provavelmente, ninguém (a menos que você entreviste um estudioso do assunto) descreverá a Idade Média como uma época de inovações tecnológicas e filosóficas; do surgimento de culturas inovadoras, da invenção do amor cortês e de alguns dos nossos costumes de higiene mais básicos. No entanto, a Idade Média real geralmente está mais próxima disso do que dos clichês do senso comum, que, às vezes, são pura ficção, como no caso do Rei Arthur e seus cavaleiros, dos dragões e, também, das donzelas nas torres. Prezado(a) acadêmico(a), se você já é, ou quando se tornar professor, que tal solicitar aos alunos uma pesquisa sobre algum evento histórico da época ocorrido fora da Europa durante esse período. Mas, provavelmente, o clichê (ou, antes, o chavão) mais comum será o apelido de Idade das Trevas, que esse período histórico ganhou há muito tempo e do qual ainda não foi possível livrá-lo. Cabe a nós, como historiadores e professores de História, tentar mudar a ideia que as pessoas têm sobre a Idade Média, criticando as imagens que são difundidas por nossa cultura e demonstrando a importância crucial desses mil anos, para que nos tornássemos o que somos hoje. SUGESTÃO DE LEITURAS Caro(a) acadêmico(a), veja aqui uma lista de livros dedicados a desmistificar a Idade Média: PERNOUD, Régine. O Mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1977. DUBY, Georges. A Europa e a Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980. UNI DICAS UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 6 2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA Agora que já tomamos consciência do nosso desconhecimento sobre a Idade Média, trataremos de entender o seu significado. 2.2.1 Imaginando IMAGINE! Prezado(a) acadêmco(a)! Antes de começar, vamos fazer um exercício de ficção! Vamos imaginar que, por algum fenômeno misterioso, chegasse às nossas mãos um livro de História escrito daqui a mil anos. Esse livro contaria toda a história do III Milênio, desde o ano 2000 até o final do século XXX. E vamos imaginar que o mundo em que ele foi escrito fosse completamente diferente do nosso. Talvez uma grande crise, uma catástrofe ambiental ou mesmo uma transformação gradual do mundo que conhecemos criasse uma sociedade completamente diferente da atual. Imaginemos que a maioria das coisas que hoje nos parecem importantes não exista mais daqui a mil anos, ou não sejam mais úteis, ou tenham mudado completamente de sentido. Neste nosso exercício de ficção, vamos imaginar, também, que os estudiosos do século XXXI considerem que nós vivemos hoje o momento em que a sociedade anterior, que eles entenderiam como organizada, começou a entrar em decadência, e que muita coisa ruim teria acontecido nos séculos seguintes por causa dos nossos preconceitos, nossos defeitos morais, das nossas escolhas erradas, ou da nossa inexperiência. Para completar, vamos imaginar que muitas invenções essenciais à vida nesse futuro só teriam sido inventadas lá pela metade do III Milênio. 2.2.2 O problema em julgar o passado Agora, pense sobre o que você acharia de um historiador do futuro que descrevesse a época em que vivemos como uma era de ignorância, porque acreditávamos em coisas que ele considerava absurdas, fazíamos coisas que ele considerava ridículas, submetíamos-nos a autoridades que ele considera inaceitáveis, não conhecíamos muitas coisas essenciais à vida no ano 3000 e nos preocupávamos com coisas que, na opinião dele, eram erradas ou pouco importantes. E que isso tudo, para ele, é prova de que os homens do início do século XXI eram primitivos, ignorantes e supersticiosos, estúpidos, e que vivíamos em uma época de decadência. Que a época em que ele estivesse escrevendo deixou UNI TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA 7 2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA para trás. E que, por isso, ele resolvesse chamar a nossa época de Idade das Trevas, um longo período de ignorância, superstição, estupidez generalizada e decadência. A principal queixa que poderíamos fazer seria: Ei, não é justo você nos julgar por coisas que nós não podemos saber como serão um dia! Nós vivemos agora, não no futuro, e nossas preocupações são as que fazem sentido para nós hoje. Se você se preocupasse em entender como vivemos, compreenderia por que pensamos dessa forma e por que fazemos essas coisas. Você não está nos estudando, está só nos chamando de ignorantes por não sermos como você! AUTOATIVIDADE ANÁLISE Tente pensar em outras argumentações que poderíamos fazer para discordar de uma visão tão parcial e tão inadequada sobre nós e nosso tempo. Em sua opinião, esse tipo de perspectiva revela mais sobre o período que está sendo discutido ou sobre quem está criticando? O que levaria alguém a tratar dessa forma uma cultura passada? Foi exatamente isso o que fizeram os primeiros estudiosos que se preocuparam em descrever o período que hoje conhecemos por Idade Média! Entusiasmados por um enorme otimismo em relação ao mundo em que viviam, olharam para o milênio anterior e só conseguiram ver ignorância, superstição, decadência. Não que esse período que estudavam de fato fosse assim; simplesmente foi assim que esses estudiosos o entenderam. Tratando com desprezo essa “longa noite de mil anos”, chamaram-na de Idade das Trevas ou de Idade Média, um longo hiato entre a Idade Antiga (a época de glória de uma cultura que eles consideravam superior) e a sua própria, que chamaram de Renascimento, quando aqueles valores antigos, supostamente perdidos na ignorância anterior, foram recuperados 2.2.3 Evitando o anacronismo De volta ao nosso historiador do futuro: se você fosse descrever a nossa época, você diria que nós vivemos hoje em um período de decadência e ignorância? Pode ser até que você discorde de muita coisa que existe hoje, mas provavelmente não chamaria o século XXI de Idade das Trevas. Muito menos diria que esse período é simplesmente uma preparação para um tempo no futuro em que as pessoas serão realmente felizes, por pensarem de uma maneira que nós nem sabemos ainda qual é, ou por terem tecnologias que ainda nem foram inventadas. Como você poderia saber o que vai acontecer no futuro? UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 8 É como imaginar alguém reclamando, lá por 1820: “Puxa vida! Seria muito mais fácil descobrir informações se já tivessem inventado o computador!” Antes de alguma coisa como essa ter sido inventada, dá para imaginar alguém se lamentando que ela não existisse? Prezado(a) acadêmico(a)! Esse tipo de atitude é um anacronismo: é atribuir a uma certa época características de outra diferente. Nesse caso, uma retroprojeção: supor que o passado tem, ou deveria ter, características parecidas com o presente. Isso é uma característica das histórias ou das ficções históricas mal escritas, e é muito mais comum do que se imagina. Tente perceber alguns exemplos disso em livros de História, filmes e no senso comum! Quem sabe, até em frases que você mesmo já tenha ouvido ou dito... Essa retroprojeção traz, ainda, um esnobismo cronológico: achar que, uma vez que no passado não existiam algumas coisas que consideramos óbvias (porque são soluções que hoje nós conhecemos), as pessoas que viviam naquela época seriam estúpidas. Por esse motivo, fizemos a brincadeira com uma era que veria a nossa época como de ignorância... 2.2.4 O conceito de “idade média” é anacrônico! É claro que as pessoas que viveram na Idade Média não se referiam ao seu próprio tempo como “Idade Média”, muito menos como “Idade das Trevas”! Acredita-se que o termo Idade das Trevas tenha sido criado por Francesco Petrarca (1304-1374) por volta da década de 1330, ou seja, nos primeirosinstantes da renovação cultural renascentista. Por ser da região da Toscana, na atual Itália, e um representante do período florentino do Renascimento, Petrarca entendia que a queda de Roma teria trazido a decadência da cultura clássica, com o surgimento de uma nova raça de homens violentos, analfabetos e incultos: os bárbaros. Assim, do ponto de vista da cultura, um véu de escuridão teria se colocado sobre o mundo neste período, o que justificaria entender o período anterior como uma Idade das Trevas. Perceba que Petrarca viveu no século XIV – durante, portanto, o período histórico tradicionalmente considerado como Idade Média, que só se encerraria em 1453. De acordo com as periodizações históricas mais comuns, portanto, Petrarca era um ‘homem medieval’. Ora, se um “homem medieval” critica os “tempos medievais” anteriores e louva a sua própria época como diferente disso, não lhe parece que a divisão tradicional é, pelo menos, uma simplificação exagerada? NOTA UNI TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA 9 Prezado(a) acadêmico(a), ficou claro por que não devemos julgar o passado? Mesmo quando dispomos de muitas fontes, sabemos tão pouco sobre o passado que não somos capazes de compreendê-lo razoavelmente. E mesmo se pudéssemos, que direito teríamos de supor que somos melhores do que os que vieram antes de nós? Lembre-se sempre disso, pois é tentador criticar os hábitos e as decisões das pessoas do passado. Os historiadores não têm o direito de fazer isso e têm o dever de chamar a atenção de quem faz. 3 O CONCEITO DE IDADE MÉDIA APÓS O RENASCIMENTO 3.1 NA REFORMA RELIGIOSA Durante a Reforma Religiosa (século XVI), a Idade Média foi vista como um momento de corrupção da Igreja Católica, quando a Igreja detinha um poder político e econômico enorme e os padres eram pecadores. Sendo assim, os reformadores podiam se apresentar como restauradores da moralidade na religião, como representantes de uma fé mais pura e mais simples, mais semelhante à Igreja primitiva. Inversamente, a Reforma Católica difundiu uma imagem da Idade Média como um período de harmonia religiosa, como seria de se esperar em um momento em que a Europa inteira seguia a “única verdadeira fé”. Não lhe parece que a visão de Idade Média que os reformadores protestantes e católicos criaram dizia muito mais sobre o que eles próprios pensavam a respeito da Igreja Católica da época em que viviam do que sobre a Idade Média em si? 3.2 NO ILUMINISMO Durante o Iluminismo (século XVIII), a Razão passou a ser entendida como a única forma de se alcançar um conhecimento verdadeiro. A Fé, nesse momento, passou a ser entendida como um sinal de tudo o que era atrasado e que deveria ser destruído, o que incluía o poder político da Igreja. Entendendo a Idade Média como a Idade da Fé, os iluministas tinham uma visão bastante negativa do período, reforçando as visões anteriores de decadência. O historiador inglês Edward Gibbon, um dos grandes representantes dessa perspectiva, foi categórico em atribuir o “declínio e queda do Império Romano” (título de sua grande obra) ao “triunfo da barbárie e da religião”. NOTA IMPORTANT E UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 10 3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA O Romantismo surgiu no final do século XVIII e ganhou força no século seguinte como um movimento ideologicamente oposto ao Iluminismo. Os românticos inverteram o sentido que os iluministas haviam dado para a Idade Média. Passaram a vê-la como um momento idílico, do auge da religiosidade, de grandes feitos de cavalaria e de exaltação dos sentimentos mais puros da humanidade, em oposição ao frio racionalismo e anticlericalismo dos iluministas e dos excessos da Revolução Francesa. Os nacionalistas foram buscar na Idade Média, especialmente nos últimos séculos, a origem de seus países, e os burgueses viam no período as origens de seu poder. Ao fazerem isso, criaram “ficções históricas” perigosas, como a ideia de que os países europeus foram formados por grupos étnicos coesos e que habitavam aquelas regiões havia muitos séculos: ideia que, no início do século XX, descambaria para a ideologia nazifascista. Dentre os principais “ideólogos” dessa verdadeira “Era de Ouro Medieval” encontram-se: o francês Jules Michelet e o holandês Jacob Burckhardt. Perceba como, em todas as visões da Idade Média, do Renascimento ao Romantismo, o período foi analisado a partir de preconceitos dos estudiosos, motivados pelo momento histórico em que viviam, com isso servindo a propósitos políticos muito bem determinados. Ou seja, os estudiosos ‘usaram’ a Idade Média como arma política ou ideológica para demonstrar que seus próprios objetivos mereciam ser perseguidos. LEITURA! Caro(a) acadêmico(a), para saber mais sobre a evolução do conceito de Idade Média, leia o texto “A Idade Média de Jacques Le Goff”, publicado em: LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. IMPORTANT E DICAS TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA 11 3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA 3.4 A PERSPECTIVA LIBERAL Há uma corrente historiográfica bastante influente, de caráter liberal, que pautou grande parte das interpretações sobre a Idade Média que surgiram no século XIX e século XX. Essa historiografia, surgida entre os intelectuais ligados ao partido Whig (Liberal) inglês, entende a História como a narrativa dos eventos e circunstâncias que levaram a sociedade a atingir, na época atual, o que se considera o ponto culminante da civilização. Essa visão histórica extremamente otimista tem, contudo, graves problemas metodológicos: É teleológica: considera que existe um “caminho” a ser percorrido pela “civilização”, e cada cultura está em um ponto determinado dele e deverá seguir atingindo os demais um por um. É unívoca: considera que o caminho que foi percorrido pela civilização ocidental é o único possível e que todas as “civilizações” um dia trilharão esse mesmo caminho. Portanto, despreza tudo o que não tiver perdurado até hoje como sendo uma “relíquia” sem utilidade. É naturalizante: considera que existem noções inquestionáveis, como se surgidas da natureza – “progresso”, “civilização” etc. É eurocêntrica – ou, antes, anglocêntrica ou francocêntrica: considera que a Europa é o grande centro de civilização e, como tal, a única região digna de ser estudada, ou concentra-se ainda mais, conforme o estudioso, na Idade Média inglesa ou francesa. É personalista: considera que os “grandes homens”, e muito raramente grandes mulheres, são os responsáveis, com sua iniciativa e habilidade, pela movimentação da História, sempre na direção “correta”, a do “progresso”. Isto é, para eles, o triunfo do liberalismo, ou então, com sua resiliência, tentam barrar esse avanço. É maniqueísta: identifica com o “lado certo” os “grandes homens” que contribuíram para tornar a civilização o que ela é hoje, e com o “lado errado” aqueles que supostamente tentaram opor-se a essa “torrente irresistível”. Uma análise liberal da Idade Média perceberia, então, as mudanças ocorrendo pela iniciativa de pessoas como: Constantino, Justiniano, Carlos Magno, as Cruzadas, o Rei Ricardo Coração de Leão, dentre outros. E, sobretudo, pelos “burgueses”, que promoveram, com seus interesses particulares, a quebra do sistema feudal e sua substituição pelo sistema capitalista. UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 12 Em oposição a essas mudanças estariam perfilados os sarracenos, os senhores feudais resistentes ao capitalismo e a Igreja Católica, entre outros. Prezado(a) acadêmico(a), essa perspectiva liberal não lhe parece, ao mesmo tempo, excessivamente simplista (além de preconceituosa) e perturbadoramente familiar? Esta é, a grosso modo, a interpretação da história quese apresenta em grande parte dos livros de História de nível escolar! Fora dessa perspectiva, os livros costumam trazer apenas breves descrições sobre os modos de produção feudal e capitalista, baseadas no pensamento marxista (ver a seguir), sem, contudo, tecer qualquer consideração sobre os aspectos críticos do marxismo. 3.5 A PERSPECTIVA MARXISTA O marxismo entende a luta de classes como sendo a força que movimenta a História. Para esta perspectiva, é - a partir da tomada de consciência das classes sociais desfavorecidas que as revoluções acontecem e que os modos de produção são transformados. Os estudos marxistas sobre a Idade Média concentram-se, geralmente, na análise do feudalismo como modo de produção com características específicas e, em certa medida, opostas às do capitalismo que o sucedeu. A análise marxista tradicional não se aprofunda nas origens do feudalismo, tomando-o como uma realidade unívoca. Estudos marxistas mais recentes fogem a essa simplificação. 4 CONCEITOS MODERNOS Você se lembra do nosso historiador do futuro, aquele que falou tão mal da época em que vivemos? Já reclamamos de sua parcialidade. Outra objeção a ele poderia ser: Além do mais, nós e você não somos assim tão diferentes. Somos todos seres humanos e temos as mesmas necessidades. O que muda é a forma de satisfazer essas necessidades e as complicações que nós inventamos para satisfazê-las ou impedir que isso aconteça. Sem falar que você é nosso descendente, o seu mundo surgiu a partir do nosso, e tudo o que você considera importante apareceu, um dia, a partir do que nós tínhamos em nossa época. É em uma linha de argumentação mais próxima a essa que a historiografia entende a Idade Média atualmente: em vez de tentarem fazer juízos de valor ou “romantizar” o período, colocando os seus preconceitos e a sua visão de mundo nos estudos sobre a época, os historiadores preferem, hoje em dia, entender a Idade Média a partir do que ela realmente teria sido. NOTA TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA 13 Ou, então, do que podemos descobrir a partir das fontes disponíveis, desvendando as práticas, as mentalidades e a visão de mundo dos homens e mulheres medievais. Isso permite um entendimento mais adequado e mais fiel sobre o período, em vez de simplesmente ‘usar-se’ a Idade Média para finalidades indevidas, como uma propaganda política ou ideológica. Ao fazerem isso, os historiadores vêm descobrindo uma Idade Média extremamente complexa, original e carregada de inovações tecnológicas e culturais, em uma imagem muito diferente daquela que a maioria das pessoas tem como verdadeira. Cabe a nós, historiadores e professores de História, a transmissão dessa nova ideia e, aos poucos, a mudança do senso comum a respeito deste período tão longo, tão importante e tão fascinante da história do Ocidente. Jacques Le Goff é um historiador filiado à chamada Ecole des Annales, movimento historiográfico francês surgido no início do século XX a partir das obras de Marc Bloch e Lucien Febvre, que contou com os trabalhos de historiadores como Fernand Braudel, Georges Duby e outros. Na perspectiva dos Annales, o historiador deve buscar fazer uma “história total”. Ou seja, compreender a história da forma mais ampla possível, levando em consideração muito mais do que a economia ou a política: categorias como mentalidades, imaginário e representações tornam-se importantes. A perspectiva de Le Goff sobre a Idade Média é tributária dessa abordagem. A Idade Média foi uma época de inúmeras inovações tecnológicas. Para saber mais a respeito, sugerimos a leitura de: BARK, William Carroll. Origens da Idade Média. Riao de Janeiro: Zahar, 1979, p. 125-140, ou o artigo de Ênio José Toniolo, “O progresso técnico na Idade Média”, disponível em:<http://www. lepanto.com.br/EstPrgIdM.html>. 5 FAZ SENTIDO FALAR EM “UMA” IDADE MÉDIA? A imagem simplista que temos da Idade Média não consegue dar conta de descrever praticamente nada desse período. Na verdade, a imagem de cavaleiros andantes e senhores feudais, além de ser uma ficção que simplifica exageradamente essa época - só corresponderia ao período final da Idade Média da Europa Ocidental, e, mesmo assim, representa melhor algumas regiões europeias do que outras. Todo o período inicial, entre a queda de Roma e a consolidação do feudalismo – que é o período tratado nesta Unidade 1 –, exige uma descrição muito diferente dessa. Da mesma forma, o sistema feudal que vai existir nessa região (e só entre os séculos NOTA DICAS UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 14 X a XIII, aproximadamente) é muito diferente do formato muito mais brando, que vigorou no Império Bizantino, e absolutamente distinto do modo de vida dos muçulmanos nos primeiros séculos do Islã – que serão vistos na Unidade 2. Além disso, o feudalismo da Europa Ocidental muito diferente em cada região. Foi mais “típico”, digamos assim, na França e na Alemanha do que na Itália e em Portugal. E como teria sido na Rússia? Na Suécia? No norte da Espanha? Na Polônia? E isso para nem mencionarmos o Egito, a África ao sul do Saara, a China, as estepes da Mongólia, o Sudeste Asiático, o Japão... Muito menos o continente americano! Como você pôde perceber, o conceito de Idade Média foi criado por estudiosos europeus para explicar a história de suas regiões de origem – sem levar em consideração se as características de outras regiões, como o mundo islâmico ou o Império Bizantino, eram ou não semelhantes a essas. Ou seja, o conceito de Idade Média é eurocêntrico! Precisamos questionar esse eurocentrismo e buscar interpretações sobre o mundo mais globais. Por que é que nós, no Brasil do século XXI, contamos a história da forma como os europeus a viam no século XIX e esquecemos que existia muita coisa no mundo fora de lá? Em resumo, temos que ter cuidado ao estudar a Idade Média, para não cairmos numa simplificação exagerada, que termina por prejudicar a nossa compreensão sobre o período. Pior ainda, se generalizarmos as características da Idade Média, transformando-a em uma “idade do feudalismo”, estaremos falseando a verdade, ignorando aspectos essenciais dessa própria história ou, mesmo, apresentando os elementos “externos” a ela (como os muçulmanos) sob um ponto de vista maniqueísta, como as grandes ameaças (felizmente malsucedidas) à “nossa” cultura. Ou seja, estaremos recaindo nos mesmos preconceitos e supersimplificações que desejamos e precisamos combater. Maniqueísmo é quando se pressupõe que existem apenas dois lados possíveis em uma determinada questão, um deles identificado com o “bem” e o outro com o “mal”. Caro(a) acadêmico(a)! Régine Pernoud (1909-1998), historiadora e arquivista francesa, foi uma grande especialista em Idade Média, e deu muito destaque à presença feminina nesse período. Apresentamos aqui um trecho de seu livro Pour en finir avec le Moyen Age (traduzido em Portugal como “O mito da Idade UNI NOTA TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA 15 Média”), no qual ela se dedica a atacar os preconceitos comuns sobre o tema. Neste trecho, Pernoud fala sobre as origens do feudalismo e sobre o choque de culturas na época. Um poder centralizado ao último ponto, o do Império Romano, desmorona- se no decurso do século V. Na confusão que se segue, os poderes locais manifestam- se; é por vezes um chefe de grupo que reúne à sua volta os seus companheiros de aventuras; outras vezes, também o senhor dum domínio que tenta assegurar à sua sociedade e a si próprio uma segurança que o Estado já não garante. Com efeito, as trocas tornam-se difíceis, pois o exército já lá não está para conservar nem fiscalizar as estradas; por isso, mais do que nunca, a terra é a única fonte de riqueza. Essa terra é preciso protegê-la. Não se vê nascer hoje em alguns países,onde os pacíficos habitantes se consideram ameaçados pelo aumento da delinquência, polícias semelhantes? Isso pode fazer compreender o que se produziu então; um pequeno cultivador, impotente para assegurar sozinho a sua segurança e a da sua família, dirige-se a um vizinho poderoso que tem a possibilidade de manter homens armados, este consente em defendê-lo, em troca do que este lhe dará uma parte das suas colheitas. Um beneficiará duma garantia, o outro, o senhor, senior, o ancião, o patrão ao qual se dirigiu, achar-se-á mais rico, mais poderoso e, portanto, mais capaz de exercer a proteção que se espera dele. Finalmente, mesmo que se trate da pior das hipóteses, imposta pelas circunstâncias difíceis, em princípio, o mercado aproveitará tanto de um como de outro. É um acto de homem para homem, um contrato mútuo que a autoridade superior não sanciona, e não sem motivo, mas que se conclui sob juramento, numa altura em que o juramento, sacramentum, acto sagrado, tem um valor religioso. Tal é, em geral, o esquema das relações que se criam nos séculos V e VI; certamente que as modalidades são muito diversas, segundo as circunstâncias de tempo e de lugar; elas conduzem, em definitivo, a esse estado que se chama, muito justamente, feudal. Baseia-se, com efeito, no fief, feodum. O termo, de origem germânica ou celta, designa o direito que se desfruta sobre qualquer bem, geralmente uma terra: não se trata duma propriedade, mas dum usufruto, dum direito de uso. A evolução precipita-se devido à mistura de populações que se faz na época. O movimento de migração, que se chama as grandes invasões, nos séculos V e VI, nem sempre teve o aspecto de conquista violenta que lhe supõem; muitos povos — pensemos, por exemplo, no dos Burgúndios — instalaram-se nas terras na qualidade de trabalhadores agrícolas. LEITURA COMPLEMENTAR UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 16 Dentro de um milhar de anos, com o recuo do tempo, o historiador que estudar o século XX não deixará de estabelecer comparações com a Alta Idade Média. Não conhece o nosso século movimentos de migração que fazem que, em França, por exemplo, mais de três milhões e meio de trabalhadores sejam algerianos, marroquinos, espanhóis e portugueses, que se encontrem na Holanda e na Alemanha turcos, jugoslavos?... A única diferença está nas facilidades de transporte, que a Alta Idade Média não conheceu. Em consequência disso, uma vez fixado, era, em princípio, para toda a vida que o trabalhador estrangeiro se estabelecia com a mulher e os filhos na quinta que o proprietário, que se chamava «galo-romano», não queria trabalhar. O movimento não se processava sem trazer problemas, que foram resolvidos de forma muito mais liberal da que se seria levado a crer. Assim, a primeira pergunta a fazer àquele que, perseguido por um delito, comparecia perante um tribunal é: «Qual é a tua lei?» Com efeito, ele é julgado segundo a sua lei, e não sob a da região em que se encontra. Daí a extrema complexidade desse Estado feudal e a diversidade dos costumes que aí se instauram. Aos historiadores instruídos no direito romano, com as suas bases uniformes e uniformemente aplicáveis, isso pode parecer o cúmulo do arbitrário; na época as distorções são certamente muito grandes duma região para a outra, mas, aí ainda, nós aproximamo-nos dessas concepções, pois hoje compreendemos melhor que a justiça, a verdade, consiste em julgar cada um segundo a sua lei. FONTE: PERNOUD, Régine. O mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1979, p. 58-60. 17 Neste tópico, você viu que: O conceito de Idade Média continua sujeito a uma série de preconceitos e simplificações que nos impedem de compreender a importância deste período. Durante muito tempo, as interpretações que se fizeram sobre a Idade Média eram parciais e serviam de arma política ou ideológica para os seus criadores. Foi assim, no Renascimento e no Iluminismo, que a viam como uma Idade das Trevas, e no Romantismo, que inverteu essa visão. O termo “Idade Média” é uma simplificação exagerada, que esconde as variações regionais e as transformações sociais ao longo de todo esse tempo. Para estudar a Idade Média ou qualquer outro período histórico, devemos evitar os perigos do julgamento do passado, do anacronismo e do eurocentrismo. Atualmente, a preocupação dos historiadores é compreender a Idade Média a partir dos registros da própria época, que revelam uma Idade Média muito rica e muito complexa, totalmente afastada da ideia de “Idade das Trevas”. RESUMO DO TÓPICO 1 18 1 Identifique, em um livro didático qualquer de Ensino Médio, no capítulo (ou capítulos) correspondente(s) à Idade Média: a) Qual é a perspectiva, dentre as que analisamos nos itens 3 e 4 deste tópico, que melhor descreve a forma como a Idade Média é tratada pelo(s) autor(es) do livro? b) Qual o nível de profundidade com que civilizações como a bizantina e a muçulmana são tratados? c) Pelo que você pôde perceber, o tema da Idade Média foi tratado de forma adequada? Que complementações você sente que precisaria fazer em sala de aula para melhorá-lo? AUTOATIVIDADE 19 TÓPICO 2 A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Se desejarmos estudar e ensinar Idade Média de forma adequada, precisaremos ir além do que o senso comum fala a respeito desse período e estudar as interpretações feitas pelos historiadores do assunto. Mas isso não significa, apenas, conhecer os “fatos” que contribuíram para a transição da Antiguidade para o mundo medieval. Estudar História é interpretar, é questionar a validade das teorias, dos conceitos e das interpretações, tentando sempre compreender como surgiram, ou seja, situá-las em um contexto histórico. Para um historiador, esse procedimento é ainda mais importante do que o conhecimento dos “fatos” ou “eventos” históricos. Afinal, fatos e eventos não existem soltos por aí. Só existem quando um historiador estabelece a sua validade. Por isso, antes de determinarmos que “acontecimentos” levaram à dissolução do Império Romano e ao surgimento do período medieval, precisamos saber o que foi essa transição, se houve efetivamente uma transição (até mesmo, em alguns casos, o que se entende por “transição”) e que características teve. Só assim seremos capazes de selecionar adequadamente os “fatos” que compõem a história que vamos contar. É por esse motivo que discutiremos as interpretações dos estudiosos (a historiografia) neste tópico. Antes, portanto, dos “fatos” que são tradicionalmente considerados como explicativos da crise do mundo antigo. No tópico anterior discutimos algumas questões teóricas relevantes quando se tenta compreender um período histórico tão complexo como a Idade Média. Este tópico aprofundará algumas questões, discutindo-as mais diretamente do ponto de vista da produção dos historiadores sobre o período. Em resumo, no tópico anterior aprendemos a questionar as “verdades recebidas” sobre a Idade Média. Neste tópico vamos aprender como fazer isso! UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA 20 2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA IDADE MÉDIA Diversas teorias foram propostas por estudiosos, ao longo do tempo, para explicar as origens desse período histórico que se denomina Idade Média. Alguns estudiosos formularam teorias elaboradas a respeito, de caráter moral ou econômico, e outros procuraram manter-se mais atentos à enorme complexidade do processo. É importante conhecermos algumas delas, sempre considerando que essas teorias carregam elementos da época em que foram criadas. Inicialmente, porém, é interessante nos questionarmos até que ponto existe uma vinculação automática entre os fenômenos históricos que denominamos a “queda do Império Romano” e o “surgimento da Idade Média”. Essa vinculação nos parece óbvia, por estarmos habituados
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