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RESPONSABILIDADE CIVIL Luciana Tramontin Bonho Dano: conceito e modalidades Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Conceituar dano. Definir os requisitos para um dano ser indenizável. Analisar as espécies ou modalidades de danos. Introdução A responsabilidade civil se origina de uma conduta voluntária que acarreta o dever de reparação do dano causado à vítima. Dessa forma, o dano é um requisito indispensável à responsabilidade civil, sendo o valor da indenização calculado conforme a proporção do dano. Neste capítulo, você estudará sobre o pressuposto da responsabili- dade civil conhecido como dano. Você aprenderá o conceito de dano, os requisitos para que ele seja indenizável e conhecerá as suas modalidades ou espécies. Conceito de dano Desde a Lex Aquilia, o principal elemento da responsabilidade civil é a culpa. Contudo, a partir de meados do século XX, começaram a se esboçar as pri- meiras noções de responsabilidade objetiva, na qual a culpa deixou de ser o elemento central. A Idade Moderna, por sua vez, foi marcada pela mudança de paradigma no fundamento da responsabilidade civil, que passou a se situar na quebra do equilíbrio patrimonial causado pelo dano. Houve, então, uma transferência do enfoque da culpa como fenômeno centralizador da indeni- zação para o dano (VENOSA, 2010, p. 17). Hoje, o principal pressuposto da responsabilidade civil é esse elemento, uma vez que não se fala em obrigação de reparação caso não haja dano, dada a sua importância. C08_Dano.indd 1 17/04/2018 13:45:47 A mudança de paradigma aconteceu principalmente em razão de certos fatores, apontados por Gonçalves (2017, p. 21) como o surto do progresso, a industrialização e o aumento dos danos, que levaram ao surgimento de novas teorias dentro da responsabilidade civil capazes de propiciar mais segurança às vítimas. É nesse ponto da história que se dá o surgimento e a estabilização da teoria do risco. Analisada por um viés objetivo, essa teoria versa que, quando alguém sofre um dano, quem se beneficia da atividade perigosa deve repará-lo, independentemente da existência de culpa. Justo (2000) traça parte da história do Direito romano ao apresentar a Lei das Doze Tábuas, originalmente chamada de Lex Duodecim Tabularum ou apenas Duodecim Tabulae. Ela estabelecia determinadas ações em casos isolados de damnum iniuria datum (em tradução livre do latim: “dano produzido pela injúria”) (JUSTO, 2000, p. 130): Actio de pauperie — era a ação em razão do prejuízo ou dano causado, que punia o dominus de um animal que causasse dano em objeto alheio. A vítima optava entre o ressarcimento do dano ou a entrega do animal ao lesado. Actio de pastu pecoris — responsabilizava o dominus de um animal pelo dano resultante da pastagem em fundus alheio. Assim como na ação anterior, o lesado podia optar entre o ressarcimento do dano ou a entrega do animal. Actio de arboribus succisis — era a ação relativa às árvores cortadas, concedida contra quem cortasse abusivamente árvores alheias. Ela incorria na indenização de 25 asses (antiga moeda romana) por árvore. Posteriormente, a Lex Aquilia também fez referência ao damnum iniuria datum. Moreira Alves (1991, p. 280) descreve os três requisitos necessários para que se configurasse o damnum in iuria datum: Iniuria — o dano deveria decorrer de ato contrário ao Direito. Portanto, não come- tia damnum iniuria datum quem causasse dano a coisa alheia por estar exercendo direito próprio, por agir em legítima defesa ou por se encontrar em estado de necessidade. Culpa — o dano necessitava resultar de ato positivo do agente e não simplesmente de omissão. Ele deveria ser praticado com dolo ou culpa em sentido restrito; Damnum — o objeto precisava sofrer lesão em virtude de ação direta do agente exercida materialmente contra si. Desde a Modernidade até os dias atuais, o conceito de dano passou por diversas mudanças, cada uma a espelhar a ideologia dominante da época da sua formulação. Esse aspecto é o que veremos a seguir. Dano: conceito e modalidades2 C08_Dano.indd 2 17/04/2018 13:45:47 Na Modernidade, a noção de dano estava intimamente relacionada à viola- ção de um direito subjetivo absoluto, como o direito de propriedade. Justamente pelo direito de propriedade ser a forma de apropriação dos bens é que a tutela, em termos de responsabilidade, também fora reduzida à categoria de direito subjetivo absoluto. Ele era tutelado erga omne, com base em um sistema de tipicidade de danos, entendido como a previsão expressa na norma de direitos subjetivos de relevância peculiar e cuja violação ensejaria o dever de indenizar. Por direito subjetivo, entende-se: [...] a posição do respectivo titular [que] traduz-se no poder de exigir ou pre- tender de outra pessoa um determinado comportamento positivo ou negativo — uma dada acção ( facere) ou uma dada abstenção (non facere) (ANDRADE, 1992, p. 10). Já no século XX, com o seu totalitarismo estatal, econômico e científico, houve a contrapartida da afirmação do valor da pessoa como titular da sua própria esfera de personalidade, encontrando fundamento no princípio da dig- nidade humana. Ao informar a noção de personalidade, esse princípio não se ateve apenas à sua esfera patrimonial, mas também à sua dimensão existencial (MARTINS-COSTA, 2000, p. 160-161). Segundo Gonçalves (2017, p. 421): [...] essa opinião sintetiza bem o assunto, pois, enquanto o conceito clássico de dano é o de que constitui ele uma “diminuição do patrimônio”, alguns autores o definem como a diminuição ou subtração de um “bem jurídico”, para abranger não só o patrimônio, mas a honra, a saúde, a vida, suscetíveis de proteção. O jurista Cavalieri Filho (2010, p. 73) assim define dano: Conceitua-se, então, o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, que se trate de um bem pa- trimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral. Para Diniz (2012, p. 60), “[...] o dano pode ser definido como a lesão (diminui- ção ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral”. Já na perspectiva de Stoco (2007, p. 128), o termo dano “[...] diz respeito às consequências negativas concretas, sejam físicas ou morais, suportadas pela vítima em decorrência de uma conduta nociva praticada por outrem, não abarcando, conforme dito, a mera ameaça de provocar desvantagem”. 3Dano: conceito e modalidades C08_Dano.indd 3 17/04/2018 13:45:48 Assim, o dano é entendido como lesão de interesse juridicamente protegido, sendo possível contemplar hipóteses que obrigam o ressarcimento de danos frente a novas formas de condutas lesivas. Além disso, nada impede que condutas lícitas causem danos passíveis de ressarcimento, revelando-se de extrema importância abandonar a análise da configuração da ilicitude do ato/ conduta ou mesmo do fato ao se tratar de responsabilidade objetiva. Ao invés disso, favorece-se a análise da justificação e não a do dano sofrido. Requisitos para indenização do dano A lesão de bem protegido pelo ordenamento jurídico é pressuposto para que determinado dano seja reparável. De acordo com Noronha (2010, p. 501), esse pressuposto: Será o exame da norma jurídica que foi violada, [...] que esclarecerá quais são os valores e interesses tutelados, quais são em especial os danos que podem ser reparados e quais são as pessoas que a norma intenta proteger. A ação de reparação de danos deve ser reservada às pessoas que a norma violada visa proteger e deve ter por objeto apenas os danos visados pelas normas. Portanto, o exame da norma jurídica é a circunstância que norteiaa repa- ração dos danos a todas e quaisquer pessoas que tenham sofrido lesão de um bem jurídico protegido pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, indenizar significa reparar integralmente o dano causado à vítima. Quando possível, deve-se restaurar o statu quo ante, isto é, restituir o estado em que a vítima se encontrava antes da ocorrência do ato ilícito. Todavia, como na maioria dos casos se torna impossível tal hipótese, busca-se a compensação na forma do pagamento de indenização monetária. Assim, sendo impossível devolver a vida à vítima de um crime de homicídio, a lei procura remediar a situação ao impor ao homicida a obrigação de pagar uma pensão mensal a quem o falecido sustentava, além das despesas de tratamento da vítima, do seu funeral e do luto da família, por exemplo (GONÇALVES, 2017, p. 422). Assim, ao suceder um dano, deve-se necessariamente ressarcir o patrimônio da vítima de modo a que ela volte a ser o que era antes, ação denominada reparação. Caso não seja viável a reparação em espécie, ela será feita em Dano: conceito e modalidades4 C08_Dano.indd 4 17/04/2018 13:45:48 dinheiro, que é um bem fungível. No dizer de Gomes (1998), ele é um de- nominador comum capaz de substituir todo e qualquer bem. Isso se aplica à lesão de caráter patrimonial, mas não às lesões de caráter extrapatrimonial. Quando um bem material é danificado, sabe-se o seu valor ou, minimamente, há meios de estimá-lo. Porém, tratando-se de dano moral, o mesmo não ocorre. Segundo Gomes (1998, p. 271-272): Observe-se, porém, que esse dano não é propriamente indenizável, visto como indenização significa eliminação do prejuízo e das consequências, o que não é possível quando se trata de dano extrapatrimonial. Prefere-se dizer que é compensável. Trata-se de compensação, e não de ressarcimento. Em relação ao dano, Martins da Silva (2005, p. 31), apresenta três requisitos para a configuração da obrigação de indenizar, quais sejam: [...] a) a existência do elemento objetivo ou material, que é justamente o dano; b) a existência do elemento subjetivo, que se biparte nas figuras dos sujeito ativo (quem causou o dano ou é o responsável por sua reparação sem ter culpa) e passivo (a vítima que sofreu lesão em um dos seus direi- tos) e; c) nexo causal, que deve vincular os sujeitos ativo e passivo ao dano efetivamente ocorrido. Aguiar Dias (1944, p. 284-285) relata que existem danos não previstos como indenizáveis pelo ordenamento jurídico: Como, para nós, é possível, como já insinuamos, exigir-se que a noção de dano se restrinja à ideia de prejuízo, isto é, o resultado da lesão, só por isso mostra mais adequada do que a de Carnelutti a definição de Fischer que considera o dano nas suas duas acepções: a) a vulgar, de prejuízo que alguém sofre, na sua alma, no seu corpo ou seus bens, sem indagação de quem seja o autor da lesão de que resulta; b) a jurídica, que, embora partindo da mesma concepção fundamental, é delimitada pela sua condição de pena ou de dever de indenizar, e vem a ser o prejuízo sofrido pelo sujeito de direitos em consequência da violação destes por fato alheio. Assim, a lesão que o indivíduo irrogue a si mesmo produz dano, em sentido vulgar. Mas tal dano não interessa ao direito. O suicídio, por exemplo, não é punido pelas leis penais, apesar do seu caráter público. Tem-se a impressão, contudo, de que a não punição do suicídio não é, como aí se afirma, efeito do desinteresse do legislador penal, mas efeito da impossibilidade de efetivá-la. 5Dano: conceito e modalidades C08_Dano.indd 5 17/04/2018 13:45:48 Para ser passível de indenização, não basta que seja qualquer dano, visto que ele deve ser também atual e certo. A dizer, nem todo dano é ressarcível, mas somente aquele que preencher os requisitos de certeza e atualidade (GONÇALVES, 2017, p. 422). No que tange ao tipo de indenização, é importante referir que, enquanto no dano patrimonial se busca a plena indenização do ofendido com a recondução do seu patrimônio ao estado que se encontrava no momento precedente ao fato danoso (operando-se, pois, o ressarcimento do dano material), a reparação do dano moral não se resolve em indenização propriamente dita, porquanto o conceito de indenização abarca a semântica da eliminação do prejuízo e das suas consequências. Na reparação do dano moral, o que se tem em mente é a compensação, não o ressarcimento, impondo-se ao causador do dano a obrigação de pagar uma quantia certa em dinheiro em favor do lesado, significando que ao mesmo tempo em que agrava o patrimônio do causador proporciona ao ofendido uma compensação satisfativa (CAHALI, 2011, p. 38). Além disso, os danos devem ser provados por quem os alega. Nesse sentido, são fartas as manifestações no sentido de que não se pode reparar o dano hipotético ou eventual. Em algumas situações até se admite o dano presumido (damnum in re ipsa), mas o que normalmente ocorre é o fato de o autor da demanda ter contra si o ônus de demonstrá-lo, nos termos do art. 333, I, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), na categoria de danos emergentes e lucros cessantes. A prova, de acordo com o Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002), não se refere apenas à existência do dano, mas também à sua extensão (art. 944), a fim de que o aplicador do direito fixe o quantum indenitário. Nesse sentido, os critérios da indenização estão previstos no Código Civil de 2002 nos arts. 944 a 954 (BRASIL, 2002). O art. 944 é categórico ao afirmar que “A indenização se mede pela extensão do dano” (BRA- SIL, 2002). Porém, o seu parágrafo único prevê que o juiz poderá reduzir, equitativamente a indenização, se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano. Assim, a ressarcibilidade ou não de um determinado dano está coligada, portanto, à ideia de justiça que se tem na sociedade em que este se insere e no momento histórico a que se está referido. Dano: conceito e modalidades6 C08_Dano.indd 6 17/04/2018 13:45:48 Sobre a sanção do dano pelo ordenamento jurífico, Montenegro (2005, p. 7-8) explicita que: Para que o dano venha a ser sancionado pelo ordenamento jurídico, vale dizer, autorize aquele que o sofreu a exigir do responsável uma indenização, indispensável se faz a presença de dois elementos: um de fato e outro de direito. O primeiro se manifesta no prejuízo e o segundo, na lesão jurídica. Nem todo prejuízo, portanto, rende azo à indenização. Preciso é que a vítima demonstre também que o prejuízo constitui um fato violador de um interesse juridicamente tutelado do qual seja ele o titular. [...] Partindo-se da análise dessas ideias, costuma-se dizer que, a rigor, a antijuridicidade é que vem a caracterizar o dano ressarcível (MONTENEGRO, 2005, p. 7-8). Espécies ou modalidades de danos Os danos podem ser divididos em duas categorias principais: patrimoniais ou materiais; extrapatrimoniais ou morais. O primeiro grupo afeta somente o patrimônio do ofendido, enquanto o segundo ofende o devedor como ser humano, não atingindo o seu patrimônio (GONÇALVES, 2017, p. 424). Cavalieri Filho (2010, p. 73) leciona que o dano patrimonial “[...] atinge os bens integrantes do patrimônio da vítima, entendendo-se como tal o con- junto de relações jurídicas de uma pessoa apreciáveis economicamente”. O critério para ressarcir esse tipo de dano se encontra no art. 402 do Código Civil (BRASIL, 2002), que assim dispõe: “Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidos ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”. As perdas e os danos compreendem, pois, o dano emergente e o lucro cessante, e devem cobrir todo o dano material experimentado pela vítima. Dano emergente é o efetivo prejuízo, a diminuição patrimonial sofrida pela vítima. É, por exem- plo, o que o dono de um veículo danificado por outro indivíduo desembolsa para consertar a sua propriedade. Assim, ele representa a diferença entre o7Dano: conceito e modalidades C08_Dano.indd 7 17/04/2018 13:45:48 patrimônio que a vítima tinha antes do ato ilícito e o que passou a ter depois (GONÇALVES, 2017, p. 428-429). Dessa forma, dano emergente é tudo aquilo que se perdeu, importando “[...] efetiva e imediata diminuição no patrimônio da vítima [...]”, devendo a indenização “[...] ser suficiente para a restitutio in integrum” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 98). Ele não se compõe necessariamente apenas dos prejuízos sofridos diretamente com a ação danosa, mas inclui também tudo que a vítima despendeu com vistas a evitar a lesão ou o seu agravamento, bem como outras eventuais despesas relacionadas ao dano sofrido. Conforme explicitado no art. 402 (BRASIL, 2002), lucro cessante é o que razoavelmente se deixou de lucrar. Assim, razoável, na definição de Cavalieri Filho (2010, p. 98), “[...] é aquilo que o bom senso diz que o credor lucraria, apurado segundo um juízo de probabilidade, de acordo com o normal desenrolar dos fatos”. Podemos considerar que lucro cessante é a frustração da expectativa de lucro, a perda de um ganho esperado. Com relação à responsabilidade civil contratual, há casos em que a in- denização já vem estimada no contrato, como acontece quando se pactua a cláusula penal compensatória (GONÇALVES, 2017, p. 428-429). Diniz (2012, p. 85) explica que: Dano positivo ou emergente, que consiste num déficit real e efetivo no patri- mônio do lesado, isto é, numa concreta diminuição em sua fortuna, seja porque se depreciou o ativo, seja porque aumentou o passivo, sendo, pois, impres- cindível que a vítima tenha, efetivamente, experimentado um real prejuízo, visto que não são passiveis de indenização danos eventuais ou potenciais, a não ser que sejam consequência necessária, certa, inevitável e previsível da ação. Tais prejuízos se traduzem num empobrecimento do patrimônio atual do lesado pela destruição, deterioração, privação do uso e gozo etc. de seus bens existentes no momento do evento danoso e pelos gastos que, em razão da lesão, teve de realizar. Para Venosa (2010, p. 45), o lucro cessante se configura na execução legal, no que a vítima razoavelmente deixou de lucrar. Trata-se de uma projeção contábil nem sempre muito fácil de avaliar. Nessa hipótese, deve-se consi- derar o que a vítima receberia caso não houvesse ocorrido o dano. Na lei, o termo “razoavelmente” lembra, mais uma vez, que a indenização não deve se converter em instrumento de lucro. Dano: conceito e modalidades8 C08_Dano.indd 8 17/04/2018 13:45:48 O Código Civil de 1916, de caráter eminentemente patrimonial, tutelava apenas a violação de bens materiais, não havendo a possibilidade de reparação de dano extrapatrimonial. Com a promulgação da Constituição Federal brasi- leira (BRASIL, 1988), houve expressa previsão da possibilidade de reparação do dano moral, pois ela consagrou a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem dos cidadãos, prevendo indenização por dano moral decorrente da sua violação. Ademais, no seu art. 186, o Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002) as- segurou o cabimento do dano moral em relação à reparação decorrente de tal violação, superando a natureza patrimonial do antigo sistema brasileiro. Dessa forma, a questão do reconhecimento do dano moral está pacificada e não resta questionamento acerca da sua existência, possuindo previsão tanto no âmbito constitucional como no infraconstitucional. Assim, o dano moral como reparação extrapatrimonial é aplicado por toda a jurisprudência. Diferentemente do dano patrimonial, o dano moral não é palpável e, por- tanto, é de difícil aferição, pois não possui valor econômico próprio. Assim, o conceito de dano moral pode ser extraído por meio de um raciocínio lógico, no qual esse tipo de dano constitui os direitos de cunho não econômico, ine- rentes ao indivíduo, chamados de direitos da personalidade. Entretanto, não é qualquer aborrecimento que deve ser considerado como dano moral. Nas palavras de Cavalieri Filho (2010, p. 98): A dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, inter- fira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborre- cimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Juntamente com a doutrina, a jurisprudência também se preocupa em distinguir o que constitui dano moral e o que não passa de mero transtorno ou aborrecimento, fato que gera pedidos descabidos em inúmeros casos. 9Dano: conceito e modalidades C08_Dano.indd 9 17/04/2018 13:45:48 Para você compreender melhor como funciona a aplicação do dano moral na jurisprudência e como ele se diferencia de mero dissabor, analisemos os seguintes exemplos (BRASIL, 2017, 2018): DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL CUMULADA COM DEVOLUÇÃO DE QUANTIA PAGA E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. ABANDONO DA OBRA POR PARTE DA CONSTRUTORA. CONSEQUENTE AUSÊN- CIA DE ENTREGA DA UNIDADE IMOBILIÁRIA. DANO MORAL CONFIGURADO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. SIMILITUDE FÁTICA NÃO DEMONSTRADA. 1. Ação ajuizada em 19/08/2015. Recurso especial concluso ao gabinete em 12/05/2017. Julgamento: Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC)/2015. 2. O propósito recursal é determinar se o abandono da obra de unidade imobiliária, objeto de contrato de compra e venda firmado entre as partes, gera danos morais à recorrida. 3. Com o abandono da obra por parte da construtora, é perceptível o completo descaso desta para com aquela que adquiriu - e pagou devidamente - pelo imóvel, ressaltando-se a ausência de justificativa legal para tanto. 4. De fato, o abandono da construção por parte da recorrente e a con- sequente ausência de entrega da unidade imobiliária ultrapassam o simples descumprimento contratual, fazendo prevalecer os sentimen- tos de injustiça e de impotência diante da situação, assim como os de angústia e sofrimento. 5. A frustração com a empreitada mostra-se inegável, de modo que o não recebimento do imóvel após o devido pagamento das parcelas acordadas não pode ser caracterizado como mero dissabor, evidenciando prejuízo de ordem moral à recorrida. 6. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas. 7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido, com majoração de honorários. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ATRASO NA ENTREGA DE OBRA. DANO MORAL. CARACTERIZAÇÃO. INSUFICIENTE. INDENI- ZAÇÃO AFASTADA. DECISÃO MANTIDA. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STJ) é firme no sentido de que o mero atraso na entrega de obra não é suficiente para caracterizar ilícito indenizável. Dano: conceito e modalidades10 C08_Dano.indd 10 17/04/2018 13:45:48 Para Gomes (1998, p. 332): [...] a expressão “dano moral” deve ser reservada exclusivamente para designar o agravo que não produz qualquer efeito patrimonial. Se há consequências de ordem patrimonial, ainda que mediante repercussão, o dano deixa de ser extrapatrimonial. Dessa forma, conforme comenta Zannoni (1982, p. 239-240), pode-se considerar ainda que o dano moral direto consiste na lesão a um interesse que visa a satisfação ou o gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personalidade, como a vida, a integridade corporal, a liberdade, a honra, o decoro, a intimidade, os sentimentos afetivos, a própria imagem, etc. O dano moral direto também pode recair sobre os atributos da pessoa, como o nome, a capacidade, o estado de família, dentre outros. O dano moral indireto consiste na lesão a um interesse tendenteà satis- fação ou ao gozo de bens jurídicos patrimoniais que produz descrédito a um bem extrapatrimonial. Ele causa prejuízo a qualquer interesse não patrimonial devido à lesão a um bem patrimonial da vítima. Deriva, portanto, do fato lesivo a um interesse patrimonial. É a hipótese, por exemplo, da perda de um objeto de valor afetivo Outra espécie de dano é o dano estético. De acordo com Lopez (1980, p. 18), o dano estético é “[...] qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência externa da pessoa, modificação essa acarretando-lhe ‘enfeamento’ que por sua vez causa humilhação e desgostos, originando portanto uma dor moral”. Para a autora, essa modalidade de dano representa um sofrimento moral motivado por ofensa à integridade física, que é o ponto principal do conceito de dano estético, pois caracteriza lesão a um direito de personalidade. Lopez (1980, p. 24) refere, ainda, que esse dano é, por outro lado, relativo e depende da idade, do sexo, da posição social do ofendido etc. Embora esteja compreendido entre os danos morais, o dano estético se diferencia, pois está vinculado ao sofrimento pela deformação com seque- las permanentes, facilmente percebidas, materializadas na aparência física 2. No caso dos autos, contrariando o entendimento desta Corte, o Tribunal de origem fundamentou a condenação aos danos morais tão somente na entrega fora do prazo estabelecido, por considerar que tal fato teria suplantado o conceito de aborrecimentos e dissabores inerentes à vida em sociedade. 3. Agravo interno a que se nega provimento. 11Dano: conceito e modalidades C08_Dano.indd 11 17/04/2018 13:45:49 da vítima. Já o dano moral se relaciona ao sofrimento e a todas as demais consequências presentes no íntimo da vítima. Ressaltemos que o STJ aceita a distinção estabelecida entre dano moral e dano estético, conforme prevê a Súmula nº. 387 (BRASIL, 2009): “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”. Segundo Gonçalves (2017, p. 424), o dano também pode se dividir em: direto e indireto ou reflexo. O dano indireto ou reflexo também é por vezes denominado dano em ricochete e se configura quando uma pessoa sofre o reflexo de um dano causado a outrem. É o que acontece, por exemplo, quando o ex-marido, que deve à ex-esposa ou aos filhos pensão alimentícia, fica incapacitado para prestá-la em consequência de um dano que sofreu. Nesse caso, o prejudicado tem ação contra o causador do dano, embora não seja ele diretamente o atingido, porque existe a certeza do prejuízo. ALVES, J. C. M. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1991. v. 1. ANDRADE, M. A. D. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1992. v. 1. BRASIL. AgInt. Resp. 958.095/SE Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 2016/0.197.392- 7. Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira. 14 nov. 2017. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 14 dez. 2016. BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 14 dez. 2016. BRASIL. Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105. htm>. Acesso em: 14 dez. 2016. BRASIL. Resp. 1.704.552/PE Recurso Especial 2017/0.091.882-1. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. 09 fev. 2018. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ — Súmula 387. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/sumula-organizada,stj-sumula-387,24928. html>. Acesso em: 15 abr. 2018. CAHALI, Y. S. Dano moral e sua reparação civil. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Dano: conceito e modalidades12 C08_Dano.indd 12 17/04/2018 13:45:49 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105. http://www.conteudojuridico.com.br/sumula-organizada CAVALIERI FILHO, S. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. DIAS, J. A. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1944. t. II. DINIZ, M. H. Curso de direito civil brasileiro. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. GOMES, O. Obrigações. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. JUSTO, A. S. Direito privado romano I: parte geral. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. LOPEZ, T. A. O dano estético: responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. 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