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Design de som Unidade 1 - A arte sonora em diferentes plataformas Autor: Lucas de Almeida Paes Leme Revisor técnico: Fábio Carneiro Leão Iniciar Introdução Um grande desa�o que transpassa a experiência de um pro�ssional de som em produções audiovisuais é ser invisível, da pré à pós produção. Em set, por exemplo, enquanto os departamentos de elétrica, iluminação, arte e fotogra�a trabalham com tempo razoável para realizarem suas tarefas, setores “invisíveis” nem sempre desfrutam da mesma tranquilidade. O camarim raramente está desocupado, sempre um cabelo a arrumar para a próxima cena, um terno para passar de novo, tudo precisa estar pronto como em um passe de mágica. Após a preparação de todo o arcabouço físico e artístico, perguntam se os atores estão microfonados. Quando existe colaboração do setor de �gurino, o microfonista pode habitar o camarim e adiantar seu trabalho. Tal colaboração é estruturalmente atrapalhada, pois, em geral, há interesses con�itantes entre as diversas equipes em set. Um vestido que imprime melhor na imagem pode produzir mais ruído nos lapelas escondidos, um colar, que o departamento de �gurino considera essencial, di�culta imensamente o trabalho do microfonista. O operador de microfone direcional tem dois objetivos principais: captar o som o mais próximo possível da fonte emissora e não sujar a imagem com seu microfone, sob pena de anular o trabalho de todas as outras equipes e dos atores, com um boom, aparecendo na imagem. A experiência de som do cinema comercial é a mesma para o espectador. Enquanto a imagem de um alienígena pode espantar o público por sua aparência, o som que ele emitirá soará natural ao espectador, por mais medonho ou selvagem. Um designer de som sabe muito bem o quanto uma cena parece sem vida antes que se adicione uma trilha de som ambiente. Assim que esta camada sonora arti�cial (ou seja, gravada em espaço-tempo diferente da cena �lmada) entra na pista de montagem, a cena toda parece mais natural, o que permite que a realidade fílmica se estabeleça e a atenção do espectador possa se direcionar ao que se propõe a narrativa. Se em uma cena, no entanto, o designer de som �zer uma escolha de ambiente que produza contraste, dividimos as consequências em dois caminhos: em um deles, pretendia-se naturalidade e a adição deste elemento atmosférico destoante causa estranhamento, impressão de erro ou amadorismo; o caminho da esquerda leva à uma produção de sentido intencional que busca adicionar uma camada de complexidade ao personagem, ao discurso do �lme ou inúmeras outras possibilidades. Apesar da segunda opção ser dialeticamente mais prolí�ca, a transparência das narrativas ainda é o que domina a cultura consumida pela maioria das pessoas. Por outro lado, ainda, produzir um som transparente (CHION, 2008) é tecnicamente muito mais difícil do que o seu oposto. Ambos os caminhos oferecem seus próprios desa�os. Propor metáforas sonoras em ambientes, aumento ou diminuição da frequência natural de um objeto, supressão da emissão sonora natural de determinado personagem ou objeto e substituição premeditada, adição de camada musical, utilizar-se dessas incontáveis possíveis ferramentas, de modo a engajar o espectador, é um exercício �losó�co e estético que se aproxima do trabalho do compositor musical. Sublinhar ações com objetivo de hiper- realizar a experiência sonora oferece um efeito quase hipnótico ao espectador, o ranger das portas e o queimar dos cigarros adicionados é um trabalho de precisão que se aproxima daquele do músico de câmara, executor preciso das notas. Para entender o design de som, exploraremos tanto as abordagens Dionisíacas quanto as Apolíneas, respectivamente. 1. A função do som no audiovisual É incorreto imaginar que não havia som no cinema mudo. A presença de uma dimensão sonora no universo do cinema mudo sempre esteve, no mínimo, implícita. O silêncio das imagens sem som é quase insuportável (teste em sua casa), de modo que, desde os primórdios do universo cinematógrafo, o acompanhamento musical era cotidiano. As cartelas de títulos e falas eram também evidência clara da necessidade que o cinema teria de buscar palavras para expressar seu total sentido, bem como da tendência vococentrista (tem a voz como prioridade), que acompanha esta arte até os dias de hoje. A música, por exemplo, é uma arte que sustenta diversos gêneros em que não há palavras para além dos títulos das peças. Diferente da música, no cinema as palavras são como um instrumento solista ao redor do qual os outros elementos orbitam. O advento do som, na sétima arte, trouxe com ele um ”valor acrescentado” de expressão e informação para seu discurso. Analisamos o acréscimo de sentido trazido pelo texto primeiro, justamente por conta do vococentrismo do cinema. Como o cinema, as pessoas também são ”vococêntricas”: ouvirão uma voz e direcionarão sua atenção ao que aquela voz diz, �ltrando o resto. Somente após essa percepção de sentido, a atenção de um espectador se volta aos outros elementos sonoros e ao que eles trazem ao discurso da cena. Justamente porque as pessoas são vococêntricas, o cinema também é. Desta forma, pode-se dizer que as palavras estruturam a percepção sonora do cinema de um espectador da mesma forma que uma pessoa �ltra sua percepção sonora do mundo real. Pode-se dizer, também, que o valor adicionado pelo texto é aquele do sentido que as palavras expressam de modo a construir a mensagem do �lme. A experiência do ser humano, enquanto ouvinte aqui, é próxima daquela do mixador. Quando se escuta o ruído de um cigarro quando um personagem fuma, assume-se que aquilo foi natural, trabalho de microfones precisos, quando na verdade cada ruído de porta e de cigarro, por exemplo, também são adicionados arti�cialmente. Um set precisa ser um lugar silencioso para que as vozes sejam bem captadas, pois o contrário seria o mesmo de ter uma imagem com muitos elementos e tudo em foco ou tudo fora de foco (BURCH, 2008). Na mixagem, dá-se o processo que os ouvidos fazem naturalmente de reduzir os outros sons e focar na informação transmitida pela voz. O texto (e todo som) pode vir de uma fonte diegética, ou seja, ”de dentro” da cena: uma fala direta de um personagem, a explosão de um elemento do cenário, etc. A outra possibilidade é a ”extra-diegética”, ou seja, um som cuja fonte emissora não se justi�ca pelo discurso de realidade do �lme. Ao invés de um personagem falando, na extra- diegese podemos imaginar um narrador a-corporal, até mesmo a presença de um personagem em seus pensamentos, enquanto uma narrativa paralela se passa pelas imagens. Você sabia A música extra-diegética também é conhecida como música de fosso pela função análoga à da orquestra que �ca no fosso do teatro. Assim como a música extra- diegética, a música de fosso não faz parte da diegese da cena performada no palco, “invisível” aos olhos do espectador. Dentro ou fora da diegese, um texto tem o poder de estruturar não apenas a audição, mas também a visão do espectador. Um torcedor, assistindo à uma partida de futebol, não considera redundante que o narrador diga o nome do jogador que está com a bola, por mais que seu número e nome possam estar aparecendo na imagem. Sua atenção, de fato, se volta mais ao jogador cujo nome é proferido. A presença da torcida e os acontecimentos do jogo são elementos que estão na tela da TV, porém careceriam de vida sem o som, como um ventríloquo mexendo a boca sem que ninguém falasse por ele (CHION, 2008). A redundância é ilusória, dado que as observações do narrador guiam e estruturam a visão do espectador. Explorados os aspectos discursivos do texto e da voz, podemos ir aos pormenores da relação da música com a imagem e suas funções no discurso audiovisual. A música pode criar uma emoção em relação à imagem mostrada de maneira empática ou anempática. A música empática (do termo empatia: capacidade de partilhar o sentimento alheio) é essencialmente semelhanteà cena em termos de ritmo, volume, sentimento e tem a função de colorir e ressaltar tonalidades dramáticas. A cena de abertura de Pulp Fiction é uma escalada de tensão e excitação dos personagens através do diálogo (característica marcante do diretor Quentin Tarantino), que culmina na decisão de assaltar o lugar. A cena é procedida pelos créditos iniciais e a música de abertura, que sustentam o ápice emocional dos personagens e da situação, durante a exibição das cartelas. A música anempática é o exato oposto: destaca-se da essência estética e emocional da cena com a função de ressaltar alguma característica não tão óbvia ou harmônica com a situação. Em Hannibal, o assassino Hannibal Lecter coloca em seu toca-�tas o movimento lento do Concerto Italiano de J.S. Bach, um contraste suave ao agudo, violento e animalesco assassinato de dois policiais pelo personagem enquanto a música se desenrola. Com essa camada dissonante o �lme busca construir a psique do doutor Lecter, sua ausência de culpa, seu prazer, de modo que a aparente dissonância com a cena é uma harmonia com o subtexto doentio do personagem. Para sair um pouco do campo cinematográ�co (entraremos mais a fundo no assunto na terceira unidade), vamos utilizar a franquia de jogos eletrônicos Fallout , para exempli�car como a trilha sonora anempática pode acrescentar sentido ao videogame destacando-se da essência estética e emocional do que é transmitido pelo jogo. Em um contexto pós-apocalíptico, a presença do jazz vocal americano e sua temática romântica e alegre é um tremendo contraste aos monstros mutantes, gangues de assassinos e violência geral do jogo. Ao explorar esse desvio anempático, o jogo consegue uma atmosfera de nostalgia única, como se essa lembrança romântica e feliz de um mundo funcional mantivesse os seres humanos vivos naquele contexto. Em um título recente da franquia, Fallout 4, a escolha da trilha sonora teve requintes de ironia com The End of the World , interpretada por Skeeter Davis, cuja letra fala sobre o �m de um relacionamento amoroso. Em harmonia ou dissonância criativa, o design de som pode ter uma relação estrutural com a obra da qual faz parte. Noel Burch fala sobre a aptidão natural do cinema japonês para este tipo de utilização seminal do som dentro do discurso de um �lme. Por um lado, a música atonal possui uma �uência mais livre, menos estruturada que a ocidental, o que permite que a organização das partes da música possa servir a determinados espaços e tempos dramáticos. Por outro lado, o caráter eminentemente grá�co das percussões da música japonesa se aproxima do som de diversos ruídos de cena, o que permite que a música extra-diegética tenha justi�cativas diegéticas para entradas e saídas. Este tipo de aproximação entre ruído e música identi�cado nas origens distantes do cinema japonês é uma tendência atualíssima, pois com os softwares atuais é muito simples samplear sons importantes e utilizá-los em melodias e batidas. ( sample vem do inglês “amostra”, neste processo grava-se uma amostra de um som, que pode ser tanto o verso de uma música quanto algo bem curto, como um grito, e inserir este som dentro de uma dinâmica de ritmo e melodia programada.) Você quer ver Uma análise que diferencia a música oriental (árabe) da ocidental, explicando a diferença entre a música tonal e a modal (atonal). Lembrando que a explicação sobre os intervalos de tons pode ser transposta para os intervalos rítmicos: https://www.youtube.com/watch?v=l8SGLpyzXQ8 A música, os ruídos e sua utilização na montagem podem servir para retomar emoções de outras cenas, para caracterizar personagens, tornando-se temas ou leitmotifs . No universo dos videogames e dos desenhos animados, existe um uso de ruídos extra- diegéticos muito característico, chamado síncrese (ou Mickeymousing ), que é uma relação tão imediata entre imagem e som que traz ao espectador uma impressão de unidade. Por exemplo, aqueles sons cômicos e cartunescos semelhantes ao disparo de uma arma lúdica, simultâneo a movimentações intensas de personagens rápidos em https://www.youtube.com/watch?v=l8SGLpyzXQ8 fuga, como Papa Léguas ou Pernalonga. São como a transposição para a banda sonora daqueles desenhos da poeira levantada pela velocidade. Dentro ou fora da diegese, com viés harmônico (empático) ou dissonante (anempático), em composição de formações orquestrais ou a partir de samples de ruídos signi�cativos para determinado contexto, o designer de som aumenta as chances de sucesso de seu trabalho, a partir do momento que consegue inserir a dimensão sonora da obra nestes esquemas estruturais, que auxiliam a narrativa da história e dão colorido e profundidade aos personagens e ações. 2. Formas musicais - temas e arranjos No tópico anterior desta unidade, discutimos as propriedades do som dentro de um contexto de mídias audiovisuais. Começamos a discussão pelas funções do texto e da voz. Pois, como as pessoas, o cinema e as artes audiovisuais como um todo são vococêntricos. Evoluímos a discussão para as funções dos ruídos e da música dentro das mesmas plataformas e �nalizamos, estudando maneiras através das quais o design de som pode se ligar à obra da qual faz parte de forma estrutural. Algo que não �cou claro, apesar de uma ilusão de obviedade, é a distinção entre ruído, música e silêncio. Murray Schafer inicia seu célebre livro O Ouvido Pensante, transcrevendo discussões que teve em sala de aula com diversos músicos, buscando uma de�nição sobre o que é a música, quebrando muitos paradigmas mesmo dentro de uma escola de música, onde as pessoas certamente, em média, se debruçaram sobre a questão com mais atenção. Algo agradável? Algo que eu gosto? Algo organizado de maneira tradicional e familiar ao ouvido ocidental? O produto de organizações sociais com o intuito de produzir cultura? Agradar ao ouvido de uma pessoa em especí�co é um critério falho, pois outra pessoa pode considerar música o que a primeira considera ruído. A idéia de organização e harmonia é desconstruída com um exercício em que os alunos deveriam criar uma música para um hipotético �lme de suspense de Hitchcock: concluiu-se que caos e intensidade funcionavam musicalmente melhor que a organização formal tradicional para este intento. Concluiu-se, de maneira também importante, que a de�nição do que é música pode variar de acordo com a �nalidade do compositor. Uma a uma as ideias são exploradas e esgotadas até que se chega em uma conclusão: “música é uma organização de sons (ritmo, melodia, etc) com a intenção de ser ouvida”. Pensar a música a partir de uma perspectiva cultural, movimentos artísticos e etc., levaria a profundas discussões como “o que é arte?” ou “o que é cultura?”, questões impertinentes para nosso �uxo. Damo-nos por satisfeitos pensar que um som qualquer pode adquirir status de som musical, dado um contexto e uma intenção. Harmonia e dissonância se tornam termos relativos dentro dessa de�nição de música, pois o tensionamento causado pela dissonância pode se prestar a cumprir determinada intenção narrativa ou musical do compositor. Isso vai de encontro com a tendência da música eletrônica de transformar em samples coisas que não seriam consideradas música previamente. Mesmo dentro de uma de�nição tão ampla, ainda podemos encontrar subcategorias dessa grande arte sonora. Basicamente, podemos analisar a música, segundo características que a compõem: ruído, silêncio, som, timbre, amplitude, melodia, textura e ritmo. Ruído é um som não intencional que quebra o silêncio: o burburinho da plateia, o estampido de algo que caiu, etc. Schafer observa que crianças entre 6 e 12 anos possuíam um ouvido “mais limpo” que o dos músicos de suas aulas. As três crianças observadas foram convidadas a escreverem em um papel os sons que ouviam no silêncio. Diferente de todos os adultos da universidade, elas foram capazes de ouvir seus próprios ruídos como respiração, estômago roncando, etc. Possuíamuma audição menos seletiva e eram capazes de ouvir o mundo de uma forma mais completa e com consciência. O designer de som precisa ter o “ouvido limpo” para que possa planejar as estruturas sonoras da forma mais completa possível, fazendo o possível para não ignorar as supressões subjetivas do ambiente sonoro, performadas pelo cérebro. O silêncio é o recipiente que abriga um evento musical, tem o poder de reverberar sons anteriores e preparar tensões estruturais aos sons vindouros. Recuperamos aqui a discussão da unidade anterior, sobre a música atonal, característica dos �lmes japoneses. A noção de �uência deste tipo de música é bem menos previsível que a ocidental, dentro de seus versos, refrãos e repetições. Essa liberdade de forma atonal comporta intervalos de silêncio que, como observamos antes, podem se prestar a funções dramáticas dentro de uma obra. Nossos ouvidos ocidentais não estão treinados a apreciar as sutilezas de sons que insistem em existir no silêncio longamente após sua emissão ter acabado, tampouco a preparação que um silêncio pode tencionar a um novo movimento de uma peça. Para exempli�car pelo absurdo, tomemos o exemplo de John Cage, que compôs uma partitura para um órgão que �ca em uma igreja e permanece silencioso por meses, até que um músico vá quebrar este silêncio com uma solitária nota e abandonar o órgão novamente. O som é o corpo de intenção concretizada do compositor. A mera frequência de um som não o de�ne completamente. Contrastada a um longo período de silêncio, uma nota sonora emitida se preenche da vida e da liberdade que carrega. Sustentado por um longo tempo, um som possui um valor diferente de uma emissão curta. Em um ambiente de eco, o degradê causa um efeito único. Um mesmo som isolado pode adquirir vida, deslocando-se pelo espaço. O timbre é a cor do som. Quando vários instrumentos emitem a mesma nota, o timbre é o que permite ao ouvinte diferenciar estes emissores. A amplitude é a força do som. Traçando um paralelo com o desenho, amplitude é a perspectiva do universo sonoro, a�nal essa intensidade pode variar de acordo com a posição do ouvinte em relação ao emissor. Para que uma melodia exista, é preciso uma combinação de sons em frequências diferentes. Elas podem ser “bonitas” ou ”feias” (estes julgamentos de valores são absolutamente arbitrários), mas encontram seu propósito musical na medida em que cumprem a intenção lírica do compositor. Consideremos que o caminho melódico de um instrumento possa ser representado por uma linha, subindo e descendo, conforme frequências mais altas ou baixas são tocadas. Instrumentos podem tocar a mesma nota, o que, em termos dessas linhas imaginárias produziria uma repetição de um padrão dentro de diferentes timbres. No caso de contrapontos, ou seja, linhas melódicas que desa�em e tencionem o desenho das notas de outro instrumento, as linhas de som se organizariam em tramas. Linhas mais numerosas podem causar uma impressão mais opaca do conjunto geral, enquanto conjuntos musicais minimalistas permitem uma percepção mais de�nida das linhas. Essa dinâmica dos conjuntos melódicos se chama textura. Ritmo é a direção da música e divide o todo em partes, como degraus de duração e variação. Pode ser um ritmo regular, que emula a �uência do tempo real, assim como pode ser um ritmo irregular, que se aproxima mais de um tempo psicológico, onírico ou até mesmo surreal. Até o momento nos debruçamos sobre a diferença entre conceitos como som, ruído e silêncio, também desmembramos o que entendemos por música. Solidi�cada esta visão �losó�ca, podemos ser mais práticos e analisar as estruturas tradicionais da música ocidental, através dessas ferramentas de pensamento. Em entrevista ao canal da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo no YouTube, a professora do Instituto de Artes da Unesp, Yara Caznok, de�ne a forma musical como o conjunto de blocos de sentido que o compositor planeja para transmitir suas ideias musicais ao ouvinte. Este compositor dialoga com a tradição, porém precisa explorar os limites destas formas sob pena de fazer peças desinteressantes e repetitivas. Nosso ouvido é uma construção histórico-sócio-cultural e está treinado para reconhecer estes estilos. Tradições musicais propõem formas muito diferentes da nossa tradição ocidental. Uma pessoa acostumada a ouvir música clássica vai ao teatro e lê no programa que será executada uma sinfonia. Condicionado pela tradição, seu ouvido já vai esperar uma estrutura básica, como primeiro, segundo e terceiro movimentos e, assim por diante, bem como será agraciado pelas liberdades e expansões conceituais do compositor em oposição ao que se esperava. Uma pessoa, que ouve muito rock, espera pelo momento do solo de guitarra ansiosamente, assim como pode apreciar como esta forma musical se transmutou ao longo das décadas. Este treinamento musical da tradição nos oferece alguns pontos-chave que nos permitem entender uma obra musical. Dentre eles, talvez o principal, seja o tema. Temas são organizações melódicas, predominantes em suas peças, esquemas musicais que têm o poder de soar como uma unidade de sentido dentro de uma obra sonora. O compositor prepara o ouvinte para que ele identi�que este tema, seja pela repetição e pelos retornos a este tema, pelo destaque de determinado instrumento, pela construção narrativa da obra, etc. Na tradição popular, este tema se encontra nos refrãos. Quando uma música se repete durante um �lme, pode ser considerada o tema deste �lme. Se a aparição da peça estiver condicionada pela participação de determinado personagem, então ela se torna o tema deste personagem (também conhecido como leitmotif ). Este tema pode ter seu arranjo e tonalidades variados com determinados objetivos. As indicações da partitura dizem o caminho que será trilhado por uma peça sonora, mas pode-se fazer este caminho a pé, de bicicleta, de carro, etc. O arranjo é a forma que o condutor decide entregar aquela ideia musical, através de determinados instrumentos, buscando obter determinadas texturas. O arranjo pode ser uma expansão, quando uma música para poucos instrumentos é tocada por um conjunto maior como uma orquestra ou grupo coral. Pode também ser uma redução, como quando uma música para orquestra é reduzida para ser tocada por um grupo menor de músicos ou mesmo por um instrumento solista, como um piano ou um violino. Utilizemos, como exemplo �nal, a franquia de jogos eletrônicos Super Mario Bros, da Nintendo. Pode-se dizer que o tema do jogo é algo pertencente ao coletivo inconsciente da humanidade, tamanho seu poder de reconhecimento. O que algumas pessoas não observam é que este tema é explorado em diferentes arranjos para diferentes estágios do jogo. Por exemplo, nas fases embaixo da água, usa-se o tema algumas oitavas abaixo e transpõe-se a melodia para a escala menor, utilizando instrumentos eletrônicos signi�cativamente diferentes daqueles da fase original. O ritmo, que nas fases normais é um ragtime (precursor do jazz americano), nas fases subaquáticas, passa a ser uma valsa sombria em tom menor. Exploraremos outras facetas da estrutura sonora dentro dessas mídias interativas, no próximo tópico. Você quer ver Vídeo feito por alunos da UFPE em que, a trilha sonora do jogo Super Mario Bros é profundamente analisada. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=VYBuUaKyq0s >. https://www.youtube.com/watch?v=VYBuUaKyq0s 3. Áudio e diegese - mídias não- lineares No tópico 2, aprendemos a diferenciar conceitos básicos como ruído, som e silêncio, perguntamo-nos o que é a música e destrinchamos esta arte em seus pormenores e depois, voltamos nossa atenção para algumas estruturas recorrentes da tradição musical. Ao �nal do tópico, estudamos um exemplo sobre como diferentes arranjos de um mesmo tema servem para tonalizar as fases de um jogo eletrônico. A partir daqui, adentramos o universo do som nas mídias interativas ou não-lineares. Até agora, tratamosa obra sonora como algo pronto, pré-renderizado, de modo que, a partir de agora, temos como objeto uma obra aberta ao input de um jogador e de interações da máquina. No caso do jogo Super Mario Bros , os arranjos adaptativos do tema central para as diferentes fases do jogo é o que Collins (2007) chama de Áudio Dinâmico. É o termo usado para denominar o áudio, cuja estrutura reage ou se constrói por inputs , sejam mudanças no ambiente diegético do jogo, sejam ações do jogador. Há gradações de dinamicidade que passam pela abertura estrutural da trilha sonora ou possibilidade de mudança, manipulação e criação em tempo real (MENEGUETTE, 2011). Essa dinamicidade de níveis mais rudimentares como essas simples variações de acordo com a fase do jogo, podem chegar a níveis de interação que envolvem desfechos narrativos, imagem e som ao mesmo tempo, passando por jogos como Guitar Hero , em que o input do jogador é interpretado linearmente como música, abafando ou incrementando de acordo com os acertos do jogador. Em um nível mais imediato da interação entre jogo e som está o Áudio Interativo. É o som emitido por uma arma, quando se clica para que ela atire, ou o som que o chute de um jogador, no Fifa emite. O Áudio Adaptativo é um caso de variação sonora não atrelada do input . Desta forma, as motivações desta adaptação estão em outros aspectos do jogo: número de inimigos, suspense ou andamento narrativo, ditar diversos humores necessários a partes diferentes de um jogo como medo ou triunfo. Em um jargão mais técnico, Farnell (2007), em seção Interactive , non-linear sound , tradução livre, diz: “ Em um video game, certas situações emergem, que chamamos de estados. Na tentativa de trazer o humor do jogador a esses estados, talvez representando qualidades emocionais tais como medo (...) ou triunfo (...), a música ou os efeitos sonoros são modi�cados. Nós chamamos isso de áudio adaptativo. É uma forma de som interativo onde uma função complexa ou uma máquina de estados reside entre as ações do jogador e a resposta audível. ” Farnell (2007 ) Um nível de interatividade sonora já conjecturado, mas ainda não aperfeiçoado tecnicamente, é o Áudio Procedural ou Gerativo. Este tipo de áudio dinâmico seria gerado a partir de redes neurais, algoritmos, inteligências arti�ciais ou mesmo de formas mais analógicas como sistemas biológicos, mecânicos ou elétricos relacionados de alguma forma com a interação de um usuário. Por exemplo, um personagem que rouba tesouros em covas e assassina crianças em um RPG pode ter uma reputação ruim e, desta forma, a música generativa responderia a estes dados através de seu sistema, produzindo-lhe um tema soturno e tacanho. Por ser uma ferramenta muito pouco desenvolvida, os resultados de tentativas procedurais ainda não conseguem ser agradáveis esteticamente e carecem de mais desenvolvimento e pesquisa para que possam ocupar um nicho signi�cativo no mercado. O fato de que em uma obra não-linear o “espectador” constrói a obra sonora na tela, complica as classi�cações com relação à diegese. Nos primórdios da pesquisa de som em mídias interativas, Bernstein (1997) disse que os métodos de comunicação sonora dos objetos do jogo entre si e com o jogador variam de objeto para objeto e de contexto para contexto. Há três tipos de interação: direta, indireta e ambiental. A direta é a mais óbvia possível: quando o Mario pega uma moedinha, ou quando em um jogo de FPS o jogador atira. A interação indireta é aquela resultante de uma ação do jogador que produz uma resposta sônica, como em diversos casos de jogos de tiro em que se escuta um antagonista gritar para sinalizar que o jogador foi avistado, até mesmo a respiração pesada de um personagem que está cansado se encaixa nesta categoria indireta. O caso da comunicação sonora ambiental é especialmente interessante porque sinaliza a existência de determinado objeto em uma realidade diegética do jogo. Este tipo de comunicação se dá quando dois objetos se comunicam entre si de forma autônoma. Todos os três tipos de possíveis interações sonoras devem ser levados em consideração pelo designer de som, pois os objetos se encontrarão em diferentes contextos e produzirão diferentes sons. Há ainda uma categoria extremamente única aos jogos interativos, os eventos trans- diegéticos. São eventos muito particulares desta mídia, pois se relacionam a intersecções entre o que está dentro e fora da diegese. Por exemplo, quando um jogador pega um ítem do cenário e coloca em seu inventário, ele transforma um objeto real da diegese do jogo em uma abstração da plataforma, através da qual ele interage com o universo do jogo: um menu onde ele pode guardar e organizar esses objetos, antes, organicamente colocados no cenário diegético. Em jogos de RPG também é frequente a ocorrência de vozes desencarnadas, como demônios ou anjos, que fornecem informações valiosas sobre o desenrolar da narrativa ao jogador, sem que ele tenha necessariamente acessado isso pela sua interação com a diegese do jogo. Este ferramental estético é aplicado em dois níveis: horizontal e vertical. A estrutura horizontal (ou temporal) deve prever rami�cações adaptativas na própria composição da trilha, de modo que diversas mini trilhas possam proceder um mesmo momento do jogo de acordo com decisões do jogador. A variabilidade horizontal serve até mesmo para efeitos sonoros, por exemplo, deve-se randomizar vários tipos de cantos de um pássaro, para que uma sequência premeditada ou a repetição de um mesmo canto não tornem enfadonha a experiência sonora de um jogador. A sobreposição de muitas camadas horizontais é o nível vertical do som, em que se compõe a paisagem sonora através de uma alquimia sonora. Instrumentos podem ser adicionados ou removidos de determinada parte do jogo, por exemplo, de modo que um arranjo mais orquestrado se proponha em momentos mais grandiosos e um mais minimalista nos momentos íntimos, por exemplo. Quando planeja um jogo ou aplicativo, o designer de som deve pensar em quais são os elementos essenciais, qual o nível de abertura da banda sonora para interatividade, em quantas dimensões sonoras os objetos vão interagir e implementar estes conceitos de forma premeditada, tanto de forma que estes elementos tenham uma sequência temporal lógica (horizontalidade), quanto possam haver várias camadas simultâneas de eventos sonoros acontecendo (verticalidade). 4. Loops - conceitos e usos nas mídias interativas O termo loop , em geral, refere-se a uma peça que se fecha em si mesma, seu �m contém um reinício. Trata-se de um anglicanismo de uma palavra que pode signi�car “laço” ou ”repetição”. Pode se referir a loops sonoros ou visuais, como aqueles que marcaram o início dos desenhos animados, em suas movimentações, caracteristicamente, repetitivas. E podem ser menos óbvios que batidas ou mesmo ciclos fechados de excertos musicais: o designer de som frequentemente se fala de loops de silêncio atmosférico, pois di�cilmente consegue-se uma amostra de ambiência sem a interferência de ruídos prejudiciais ao sentido do �lme. Pega-se uma amostra ilustrativa e nítida desta atmosfera desejada, longa o su�ciente para que não se note seu loop , e aí está. Como abordado em tópicos anteriores, sabemos que o sample é a matéria-prima do loop sonoro. Este mecanismo tem base nos primórdios dos hardwares de criação destes ciclos rítmicos e melódicos, que podiam vir com sua base de “amostras sonoras” ou dotados da função de gravar e processar sinais sonoros com essa �nalidade. O hip hop foi um dos primeiros gêneros musicais que explorou a ideia de recortar e colar trechos de músicas, com a �nalidade de obter novos ritmos e melodias, a partir dessas superposições. Deve-se levar em consideração que era um processo muito mais manual e difícil, em plataformas como �tas cassete, discos de vinil, vitrolas, scratches e por aí vai. Passadas décadas, os bancos de samples e a utilização inventiva de sons para estesloops permanece uma arte aberta e facilitada pela disponibilidade de softwares que realizam estas operações. Obtido um sample , cabe, ao designer de som, entender quanto deste fragmento será utilizado (duração), como ele será tocado, qual o tempo (batida) em que este som aparece, dentro desta fragmentação de tempo e quantas repetições este som terá dentro da batida. Enquanto a duração e a repetição são critérios meramente criativos, há formas de entregar essa amostra: quanto tempo ela demora para sair do silêncio e atingir sua amplitude máxima (ataque), o tempo que este sample permanece em seu volume máximo (sustentação), quanto tempo este som leva para diminuir seu volume ( decay ) e quanto tempo ele permanece em uma intensidade mais baixa após seu �m (release). Estas funções podem ser encontradas com seus nomes em inglês nas ferramentas de softwares como Sound Forge ou Fruity Loops . Estes elementos equacionam a textura e a impressão estética do loop . Pode ser feito de um som que começa mudo, tem uma duração intensa e volta ao silêncio, assim como pode ser um som que permanece constante com ataques de intensidade sincopada ao ritmo determinado. Mais importante, estes elementos devem ser balanceados para que se obtenha um resultado estético condizente com o objetivo do aplicativo, jogo ou o que for. A importância de como o loop entrega seu sample é grande, mas está destacada apenas para que se possa explicar as ferramentas do software . Isso é a importância semântica do som, as roupas que ele veste. A sintaxe, ou seja, a estrutura rítmica e melódica do loop deve �uir em tensão ou na mesma direção que a semântica, e o discurso de sentido que este fragmento sonoro se encontra quase por função matemática: semântica sobre sintaxe é igual a discurso. No universo dos games , loops dos temas principais e suas variações dinâmicas eram característica marcante. Recorreremos sempre ao exemplo de Super Mario Bros por ser icônico, mas pode-se transpor essa análise para outros títulos como Sonic ou Donkey Kong , jogos em que a repetição em loop da trilha sonora marcou a construção cultural do ouvido de uma geração. O loop faz parte da estética das próprias músicas em repetição cíclica, como é característico também na música eletrônica. Top Gear é um exemplo de um jogo que possui um punhado de músicas que são repetidas ao longo de diversas corridas e, ao mesmo tempo, possuem uma estética de loop dentro de suas próprias composições. É indiscutível que cada um destes jogos cause uma impressão estética particular, apesar de participarem de uma forma comum, e o designer de som deve estar sempre atento às minúcias dos desvios e das consonâncias e aplicar isso a seus propósitos. A variabilidade (horizontal) destes loops , de acordo com o estágio do jogo em que o player interage, foi ferramenta essencial para evitar que essas repetições de ritmos e melodias não se tornassem enfadonhas. Síntese Nesta primeira unidade, no primeiro tópico, exploramos as funcionalidades da arte sonora em diversas plataformas e contextos analíticos. Começamos pelos primórdios do cinema, onde o som era implícito ou �sicamente destacado da obra cinematográ�ca, depois disso, exploramos como a palavra, o ruído e a música agregaram um valor discursivo à sétima arte. No tópico seguinte, perguntamo-nos questões básicas sobre o que é a música, o que são todos os outros sons do mundo e como um compositor pode colocá-los a serviço de sua arte. Exploramos também algumas estruturas tradicionais da tradição musical. No terceiro tópico, procedemos de forma parecida ao primeiro, explorando as características particulares de esquemas sonoros dentro de obras não lineares, especialmente as questões delicadas sobre a diegese que a interatividade destas plataformas traz. Por último, lançamos luz sobre o conceito de loops , destrinchamos algumas ferramentas através das quais o designer de som pode modular os samples em favor de sua intenção artística e observamos exemplos clássicos da ocorrência de loops sonoros em games . Na próxima unidade, iremos mais a fundo nos sons digitais, seus usos em mídias não- lineares, suas propriedades e softwares para sua manipulação. Até lá. Download do PDF da unidade Bibliografia BURCH, Noel. Práxis do Cinema . São Paulo, Ed. Perspectiva, 2008. CHION, Michel. Audiovisão: som e imagem no cinema . Lisboa, Ed. Texto e Gra�a, 2008. FARNELL, A., An Introduction to Procedural Sound and its Application in Computer Games . 2007. MENEGUETTE, Lucas C. Áudio dinâmico para games: conceitos fundamentais procedimentos de composição adaptativa. SBC - Proceedings of SBGames 2011 . Disponível em: < http://www.sbgames.org/sbgames2011/proceedings/sbgames/papers/art/full/92207.pdf >. Acesso em 20/01/2020. SCHAFER, Murray. O Ouvido Pensante . São Paulo, Ed. Unesp, 1991. http://www.sbgames.org/sbgames2011/proceedings/sbgames/papers/art/full/92207.pdf
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