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A queda As palavras faltam quando mais se precisa delas são apenas a sombrinha do equilibrista ajudam talvez mas não salvam faltam quando mais se precisa delas se você cair de uma grande altura por mais bonita que seja a sua sombrinha não conte com ela para amortecer a queda ANA MARTINS MARQUES Querido Homem-aranha, meu nome é Maria Carmem (Carmem com m) e eu não tenho superpoderes. Eu tenho um pouco de pena de você porque seu tio morreu por culpa sua e odeio quando uma coisa ruim é culpa minha, tipo quando meus pais não puderam ir na festa de ano novo porque eu tomei chuva e tive pneumonia. Acho que se um bicho fosse me morder pra eu virar super-heroína eu nunca ia escolher aranha. A aranha tem muitas pernas e é sozinha demais lá em cima na teia tanto tempo esperando alguém aparecer. E quando um inseto finalmente gruda ali, ela passa uns minutos olhando, imaginando como seria viver com ele. Daí ela mata o visitante. Uma vez numa viagem eu vi uma aranha comendo um vaga-lume que não parava de piscar. Ele já devia estar sem as asas e sem as perninhas e mesmo assim ficava acendendo no canto do teto. Achei a aranha tão cruel, espero que você mate os seus vilões muito mais depressa. Será que o vaga-lume pisca de dor? Se eu pudesse brilhar de dor eu seria um escândalo. Você corre tão rápido, na aula de educação física a professora disse que eu não tenho fôlego. Sabe, Homem- aranha, se um dia você precisasse descer de um edifício pendurado na teia comigo nos braços acho que você não ia aguentar, ou a teia ia arrebentar, porque eu tenho muito tamanho, meus colegas me mandam tirar a cabeça da frente da lousa. Acho que eu escolheria uma águia, em vez de aranha, assim não precisaria escalar os prédios, eu subiria voando e enxergaria os criminosos lá de cima com os meus olhos incríveis, depois eu rasgaria os inimigos com o meu bico. Mas talvez, se uma águia me mordesse, como eu tenho muito tamanho, ela não desse conta de me transformar em Mulher-águia, e eu viraria a Menina-pomba, e os pais iam afastar as crianças que tentassem me dar milho, eles iam dizer que eu passo doença. Talvez seja melhor eu escolher coruja, assim minha mãe ia me deixar sair à noite. Se eu tivesse os seus poderes, eu jogaria teia de aranha no cabelo dos meus colegas. Apesar que na verdade eles ficariam apertando o botão do meu pulso e forçando meu braço pra trás pra jogar muita teia no meu olho e na minha boca. Eu queria saber como você faz pra perceber quem são os vilões, porque a aranha não sabe, ela mata até mesmo o vaga-lume que pisca de dor e tem uma luz tão bonita, e como é que você descobre que uma pessoa precisa ser salva no outro bairro, queria saber se você tem contato com deus. Porque mesmo deus, que às vezes nem existe, ele não sabe muito bem quando as pessoas estão caindo ou sequestradas, ou talvez ele só consiga prestar atenção em um bairro de cada vez. Talvez deus, se ele existir, devesse enviar outros insetos mágicos que iam morder outras pessoas e fazer mais heróis, assim nenhum bairro ficava desprotegido. Se eu tivesse os seus poderes, no recreio em vez de ficar sentada tentando arrancar as pedrinhas do chão do pátio, eu ia fazer várias teias de aranha no teto, ia tentar jogar minha teia cada vez mais alto, também no teto da capela da escola e até no menino jesus, e eu faria teias até mesmo em cima das aranhas de verdade pra elas verem que o meu material é melhor, a escola ia ficar inteira coberta com as minhas teias, o sino nem ia mais conseguir bater e a gente ia ficar pra sempre na aula de redação, que é a minha preferida. Sabe, Homem-aranha, eu preferia fazer a carta para o Super-homem, porque ele é imortal e eu queria perguntar pra ele como é isso de saber que nunca vai morrer, eu preferia esse poder, de nunca morrer, além de voar, mas a professora me sorteou você, e tudo bem, as teias são ótimas. Eu e você podíamos chamar muitos vaga-lumes pra grudarem numa teia gigante e à noite a gente ficava olhando o pisca-pisca que ia parecer um céu cheio de estrelas muito, muito perto, mas sem nenhuma aranha comendo a luz, não teria nenhuma dor, nenhum inimigo, e então a gente olharia as luzes a noite inteira, as estrelinhas-lume embaçando no olho, até parecer que estávamos voando muito alto, mais ou menos como o Super-homem, e pensaríamos que somos imortais, que nosso coração não pode mais parar de repente, e então eu teria a minha resposta mesmo tendo feito esta carta pra você, e não pro Super-homem, porque é assim que ele se sente, agora eu sei, todo eterno. Maria Carmem Rosário, 6º ano A SUMÁRIO CAPA FOLHA DE ROSTO EPÍGRAFE INTRODUÇÃO UM DOIS TRÊS QUATRO CINCO SEIS SETE OITO NOVE DEZ ONZE DOZE TREZE CATORZE QUINZE DEZESSEIS DEZESSETE DEZOITO DEZENOVE VINTE VINTE E UM VINTE E DOIS VINTE E TRÊS VINTE E QUATRO VINTE E CINCO VINTE E SEIS kindle:embed:0003?mime=image/jpg VINTE E SETE VINTE E OITO VINTE E NOVE TRINTA TRINTA E UM TRINTA E DOIS TRINTA E TRÊS TRINTA E QUATRO TRINTA E CINCO TRINTA E SEIS TRINTA E SETE TRINTA E OITO TRINTA E NOVE QUARENTA CRÉDITOS UM Esta é a história deste ano, deste meu ano, não do ano de todo o mundo, porque cada um está tendo um ano todo seu e eu só posso contar a história do ano que é meu. A não ser quando eu for escritora, aí sim vou poder contar a história do ano dos outros. Minha professora falou que eu escrevo muito bem. Eu nem sabia que era possível escrever mal, pensava que ou se sabia escrever, ou não. Então ela me disse que um dia eu serei escritora, o que me deixou muito frustrada. Perguntei se isso queria dizer que eu não podia mais escrever até que eu fosse escritora. Ela ficou me olhando, no começo parecia distraída, depois pegou minha mão e, assim como se fosse uma de nós brincando de professora, falou, com grandes movimentos na boca, que muito pelo contrário, Maria Carmem! Que eu devia continuar praticando muito, muito mesmo, e só assim eu seria escritora. Talvez ser escritora não fosse só escrever, mas escrever muito bem. Ou pelo menos escrever muito, igual uma corredora. Não é porque de vez em quando eu corro atrás de um ônibus que eu sou corredora. Daí isso me pareceu um pouco injusto, porque meus pais viraram vendedores a partir do primeiro dia que resolveram tocar a loja da vovó e começar a vender coisas. Aliás, desconfio que até mesmo antes disso já fossem vendedores, porque eles falam muito sobre os papéis, os papéis da loja, e sem os papéis não podem vender nada, então penso que existe um papel que você assina ou compra na prefeitura – tudo na vida é produzido pela prefeitura, eles são ótimos, e a minha professora também é ótima, ela quem me ensinou a usar esses travessões no meio das frases, embora ela diga que eu uso excessivamente, mas eu gosto demais, parecem desvios de tema pra testar se o leitor está interessado mesmo no assunto – enfim, existe um papel que transforma a pessoa em vendedora, e eu tenho certeza que meus pais assinaram isso antes de assumir a loja e vender qualquer objeto porque meus pais são muito honestos e legalizados – a professora pediu para trocar legalizados por legais, mas não quero; ela também me manda colocar vírgulas antes de qualquer “mas”, mas eu expliquei pra ela que essas vírgulas que a gente não sente dão vontade de parar de escrever. Eu não tenho ainda um papel de escritora, mas achei que este ano está sendo um ano que merece estar num livro, e, como o ano é meu, pode muito bem estar num livro meu. Esse ano acaba sendo também dos meus pais, porque na minha idade as coisas costumam ser todas deles. Minha mesmo só a prisão de ventre, que às vezes parece que tem vida própria e que sou eu que pertenço a ela. Não sei em que momentos encerrar capítulos. Decidi que cada vez que eu precisar sair do computador, tipo para tomar banho, comer ou ir para a escola, vou encerrar um capítulo. Assim os capítulos do livrovão ficar parecidos com os capítulos da vida de verdade. DOIS Eu completava 11 anos esquecida bem no meio de janeiro – o que quer dizer que talvez eu faça doze anos enquanto escrevo esse livro [1] –, ajudando minha mãe na loja de velhos. Gosto de chamar de Loja de Velhos porque parece que vendemos velhos. Com o tempo, comecei a acreditar que isso é verdade, porque os velhinhos precisam de uma porção de coisas que já fazem parte do nosso corpo, e parece que, peça por peça, estamos vendendo velhinhos inteiros. As pessoas vão lá e pedem coisas que eu nem imaginava que alguém poderia precisar, e eu vou procurar lá em cima, em caixas com etiquetas mais ou menos em ordem alfabética. Às vezes volto para confirmar, peço para soletrarem, e acontece de simplesmente não ter, e minha mãe fica com um pouco de raiva do cliente, como se fosse culpa dele que um parente precisasse de uma coisa tão absurda. Meu aniversário caiu na terceira segunda-feira do ano. Eu li na internet que esse é o dia mais triste do ano. Todos sérios nas ruas lamentando o calor, a semana, o ano que começa, já sem qualquer esperança de natal, ou promessa de ano novo, e ainda longe do carnaval. Minha mãe passou o dia sentada na frente do ventilador, abrindo e fechando um livro que eu emprestei e ela adiava desde o ano anterior, e mexendo num cacho do cabelo da frente que ela gosta de enfiar por dentro do brinco gigante de argola. Quase nenhum cliente veio, e os poucos que apareceram buscaram coisas que não tínhamos, ou não gostaram da minha explicação sobre o andador dobrável – nosso funcionário sempre tira férias em janeiro, já que eu posso ficar pra ajudar. Eu não quero nunca precisar das coisas que a gente vende, e de vez em quando sentia que podia ser uma maldição: de tanto ganhar dinheiro – aparentemente, não muito dinheiro – com as coisas que os velhos precisam – em vez de doar para a caridade –, vamos precisar um dia de tudo isso e ninguém vai dar. Antes de começar a ajudar na loja, eu achava que meus pais eram velhíssimos. Daí entendi que não, e depois percebi que são mais jovens que os pais dos meus colegas, muito mais jovens. Acho que tiveram pressa em me ter, deviam estar muito ansiosos. Mas agora não parecem tão entusiasmados assim, às vezes eles não têm muito o que me dizer. Acho que meus pais começaram esse ano muito frustrados, minha mãe me explicou que é culpa dos Planos. Disse que os Planos são uns moços muito bonitos que ficam caminhando em volta da cabeça dos jovens e vão sumindo bem devagar, ninguém percebe, e a pessoa acorda um dia que nem minha mãe com muita saudade deles, mas não tem mais nada, os Planos todos desapareceram e ninguém sabe dizer exatamente quando. E meu pai ouviu e completou que os Planos são inimigos das Noites, essas sim umas malditas, ligam música alta, trazem muita bebida, e os Planos não conseguem se organizar com toda essa barulheira e vão indo embora, pra alguma cabeça onde eles possam ficar pensando. Minha mãe riu, mas depois disse que ele estava simplificando tudo. E era de noite, e eles saíram. Estavam muito bonitos, talvez mais bonitos que os Planos. Algumas noites, ou minha mãe ou meu pai passa um tempo me olhando, e eu acho que está procurando alguma coisa pra conversar comigo. E então finalmente faz algum comentário crítico sobre o meu cabelo ou minha roupa, eles se incomodam com quase tudo em mim. Ou eu acho que se incomodam. Esse ano eu descobri que sou gorda. Ou pelo menos um pouco gorda. Nunca tinha verdadeiramente me dado conta disso, só ia pondo roupas largas e achava que desse jeito ninguém ia perceber, e não tinha importância. Só que eu fui fantasiada de Branca de Neve pra uma peça da escola, e um colega me disse que essa princesa estava muito gordinha. E dentuça. Descobri isso também, o problema com os dentes. Passei a sorrir nas fotos com os lábios fechados, e o resultado é que nenhuma foto deste ano faz o menor sentido. Resolvi fazer uma semana de regime. Achei que seria suficiente, e economizaria muito dinheiro. A lembrança que eu tenho dessa semana é de dor e cheiro de fome. Eu sentia meu próprio hálito de vazio. É o cheiro de coisas antigas sozinhas no estômago esperando a chegada das novas comidas. Meu intestino – que é bastante tímido e no meio do ano revelou seu poder de vingança – ficou praticamente imóvel de tão pouca comida que chegava. No recreio, vivia de migalhas que sobravam das colegas que não tinham fome – meu maior desejo, para além de me tornar escritora, passou a ser me tornar essas meninas –, e guardava o dinheiro do lanche num novo fundo de investimentos que eu mais tarde gastaria numa roupa pequena e elegante que finalmente coubesse em mim e agradasse aos meus pais. Na sexta-feira, ao sair do colégio, eu fui tomada por uma força invencível, era algo poderosíssimo que vinha por trás da orelha e girava as asas dentro da minha boca produzindo saliva, muita saliva. O fundo de investimento ainda estava na mochila e eu ponderei – se é que foi possível qualquer ponderação contra o crocodilo vampiro que me dominava – que não seria possível engordar o que emagreci em cinco dias, se eu comesse muita coisa tudo de uma vez num dia só. Voltei para casa levando na mochila um hambúrguer dentro de uma embalagem de isopor que ia fazendo um rangido sinistro conforme eu caminhava, um barulho que eu associei para sempre ao som da derrota. Acabou que era o hambúrguer mais caro e mais sensacional que eu já tinha experimentado, queijos que eu nem sabia que eram queijos, pão sofisticado, uma carne muito grossa desmanchando em verduras que, pela primeira vez, não tirei, e que faziam meu sanduíche parecer muito saudável. Desde então não só fui incapaz de tentar novas dietas, como fiquei muito mais exigente com os lanches. Tudo isso só trouxe insatisfação, incluindo uma triste pesquisa no google-imagens por “princesas gordinhas”. Também em inglês. Eu pareço bem mais velha do que eu sou, porque sou muito alta e tenho peso, então as pessoas concluem que eu tive mais tempo para crescer e engordar e, por isso, só posso ser mais velha. Daí a idade que pensam que eu tenho não combina nada com a roupa que eu uso, e com a minha voz e as minhas perguntas. Acho que isso deixa a minha mãe com vergonha porque a todo instante ela me apresenta dizendo que eu só tenho 11 anos, veja bem, só tenho tamanho. Daí fico um tempo pensando que só tenho isso mesmo, tamanho. Muito tamanho. Era meu aniversário, no dia mais triste do ano, a loja quente, eu só tinha tamanho, não tínhamos garfo flexível com engrossador pro pai do cliente parado ali, e eu procurava uma posição na banqueta em que meus pés não alcançassem o chão, porque é assim que as coisas deviam ser na minha idade. E de repente tudo ficou ainda mais triste quando descobri que era possível que alguém precisasse de meias térmicas resistentes a micro-ondas – que também não tínhamos – nessa tarde em que a minha mãe sufocava na frente do ventilador. TRÊS Tudo começou nesse meu aniversário, no dia mais triste do ano, logo depois de fechar a loja. Minha mãe ligou a televisão num daqueles programas que nenhum dos dois gosta, mas ficam mais ou menos assistindo e interrompendo pra lamentar como é ruim. Eu terminava de arrumar a mesa pra minha festa, que era um bolo de padaria só para nós três, e de abacaxi – o que só reforça o tamanho da tristeza desse dia. Meu pai veio lá da cozinha abrindo um vinho, e me sorriu erguendo a garrafa como se com isso ele mostrasse que era um dia para se comemorar, ainda que o vinho não fosse pra mim e tivessem esquecido meu suco de laranja. O gato do vizinho, que volta e meia aparecia não sei como na minha sala, e que nunca me amou, ameaçava fincar as unhas nas bordas da toalha da mesa e puxar, então eu me dedicava a dobrar cada ponta e prender embaixo dos pratos. Chamei atenção para a televisão, que tinha ficado ali baixinho no canal insignificante, talvezpra gente sentir umas vozes povoando o aniversário. Sentamos os três no sofá e aumentamos o volume. Um jovem – alguém que eu finalmente identifico como tendo mais ou menos a idade dos meus pais – era entrevistado ao lado de alguns velhinhos, e falava sobre o trabalho dele. Enquanto nós tentávamos desesperadamente vender velhos, esse moço estudava tudo que um velho podia precisar, e fabricava, eu acho, ou encontrava quem fabricasse. Tudo com ares de cuidado especial, amor, dedicação, paixão, no lugar de idoso ele dizia vovô, como se todo velho fosse avô, e na verdade acho que todos são. Eu corri para pegar um caderninho, embora meus pais tentassem fingir desinteresse. Anotei Pós-graduação em Gerontologia Integrativa, Gestão Gerontológica, Marketing Gerontológico, Design Gerontológico, meus deus, eles criam de tudo, esse pessoal da prefeitura é demais. E o mais importante, anotei o e-mail do moço, já que ele comentou que trabalhava também em consultoria para lojas especializadas, e fazia conexões com as marcas mais atuais e importadores mais antenados com as necessidades dos vovôs – isso tudo eu anotei. Eu fazia 11 anos e entendi que dali em diante só precisaria de mais e mais coisas, e que um dia alguém mais novo que eu teria de estudar e investigar e até inventar objetos que me ajudassem a continuar fazendo as coisinhas de sempre. E que a nossa loja era isso, era um cuidado, não era uma maldição que um dia causaria nossa ruína, nem um abuso nem uma extorsão do dinheiro de velhinhos. Eu precisava salvar a loja, ainda que fosse no dia mais triste do ano. Todo fim de ano eu sentia que parecia ainda mais com aquelas lojas de filmes natalinos minúsculas, de madeiras que rangem, em que um senhor parecido com o Gepeto do Pinóquio tenta vender antiguidades, e que têm um sininho na porta que toca muito raramente quando um cliente entra, daí pergunta onde pode encontrar cigarros por ali, e o velho mais ou menos Gepeto fica triste, mas ninguém sabe que o Gepeto é o próprio Papai Noel ou uma das antiguidades é uma lâmpada mágica. As meias antitrombóticas poderiam ser meias de natal para pôr na lareira, mas de toda forma ninguém tem lareira aqui. Depois do bolo de abacaxi com um Parabéns melancólico que meu pai um pouco bêbado insistiu em cantar, os dois discutiram muito sobre a loja. Costumava ser assim sempre que começavam a enxergar uma solução, porque pensar numa solução era reconhecer que as coisas iam muito mal, e eles revezavam no papel daquele que nega a existência da crise. Naquela noite era minha mãe. Ela achou o homem teatral e cheio de estudos, duas coisas que eu até então pensava que eram boas. O pai dizia que era por isso que a gente afundava, desatualizados, deixando faltar material, sem nada de novo para sugerir a quem precisa de alguma coisa que não sabe o que é. Precisamos de um profissional orientando as pessoas, não sua filha, ele disse. Eu sempre viro filha apenas do outro quando gero algum desgosto. Isso também descobri naquela noite, que é possível ter uma necessidade sem que se saiba qual é. Tipo um velhinho que não consegue mais mastigar e fosse na nossa loja e aprendesse que precisa de dentes. Agora, quase no último trimestre, penso aquilo que eu tentei pensar naquela noite e não consegui – ou precisava pensar e nem sabia. Que essa história de viver vendendo coisas que os velhos precisam não faz bem pra quem ainda não entende quanto tempo falta pra ser a nossa vez, pra nossa casa estar cheia de andadores, assentos altos para privada, antiderrapantes. Especialmente porque todos na loja e no prédio comentam que o tempo passa muito rápido, quando vai ver, já passou. Eu acho que passa muito devagar, ainda mais quando estou com fome, mas eles que sabem, os adultos, já entenderam tudo, e se eles dizem que passa rápido eu acredito. E tenho muito medo. QUATRO Percebi que já sei encerrar os capítulos. Eles encerram sozinhos, eles acham a hora deles. Desse jeito, são os capítulos que estão controlando as minhas coisinhas diárias, tipo xixi, banho, comida. Só não controlam a escola, isso só quando eu for escritora e o livro for mais importante que a escola. Falei pra professora e ela disse que isso é fascinante. Essas palavras fortes que ela escolhe me fazem pensar que a minha mãe a descreveria como teatral e cheia de estudos, e que eu não poderia escrever isso aqui já que a professora está lendo tudo e ajudando, mas não tem problema porque essas duas palavras ainda parecem coisas boas pra mim. Talvez seja assim com os velhinhos também, como os capítulos. Ninguém precisa decidir que certa parte da vida acabou. O corpo sente sozinho que não dá mais pra andar sem ajuda de alguma coisa que vendem na loja de velhos, e então, naturalmente, alguém vai lá e compra, e começamos um novo capítulo da vida. Vai ver é assim, e nem assusta tanto. Na escola meus colegas não precisam de muita coisa, eles correm bastante. As meninas são quase todas pequenas e delicadas. Algumas têm namorados na sala de aula, e ficam dando as mãos. Às vezes acho que dão as mãos só para mostrar aos outros, e quando apenas eu estou olhando chego a me sentir importante. Estão dando as mãos para me impressionar. E impressiona, porque isso é o tipo de coisa que nunca vai acontecer comigo. Existem as pessoas com quem essas coisas acontecem, e aquelas que não nasceram pra isso, nasceram para ser escritoras ou vendedoras de velhos ou as duas coisas. O que é muito grave porque nunca vou conseguir impressionar ninguém da minha sala, já que eles não leem, nem compram nada na Loja de Velhos. Às vezes fico imaginando que alguns deles aparecem lá para comprar alguma coisa muito importante para o avô, e sou eu que atendo, e mostro todos os produtos, explico como usa cada coisa, indico a melhor marca, e como conservar, e como ajudar o velhinho a não sentir tanta dor ao colocar, depois sento na banqueta para fazer a notinha fiscal, e usar a calculadora bem na frente deles, e de um jeito que meus pés não toquem o chão e eu pareça pequena, e eles saiam de lá muito impressionados. Meus pais brigam muito, mas se amam exageradamente, nenhum poderia viver sem o outro. Talvez seja igual aos objetos dos velhos, cada um tinha uma necessidade que não sabia bem o que era e o outro veio preencher. Isso me irrita porque é como se meus colegas estivessem dando as mãos na minha frente pra me impressionar o tempo todo, dentro da minha casa, nas viagens, na loja. Minha mãe diz que quando eu for mais velha todos esses colegas que eu hoje admiro vão me causar pena e eu vou rir dessa minha inveja. Mas quando eu for mais velha vou precisar de fraldas e andadores e meias de compressão, então essa risada não vai valer de muita coisa. Acho que existem crianças mais solitárias que os velhos. CINCO Prezado Senhor Leonardo Delgado Temos uma loja de velhos e eu gostaria muito que nos ajudasse a melhorá-la, temos muito interesse nos seus produtos de Gerontologia Integrativa, Gestão Gerontológica, Marketing Gerontológico, Design Gerontológico, que o senhor falou na televisão. Será que poderíamos marcar uma visita? Atenciosamente, Família Rosário SEIS Eu não contei a ninguém que tinha mandado o e-mail, mas fiquei desesperada quando ele respondeu, quase uma semana depois. Percebi que meu e-mail tinha minha foto numa espécie de perfil, ou algo assim, e ficou muito claro que eu era meio criança. Também ficou claro que Leonardo Delgado tentou disfarçar isso, mas sua habilidade era muito maior com velhos. Terminava o e-mail dizendo que teria muito prazer em nos ajudar, que bastava que meus pais preenchessem uma ficha anexa e ele telefonaria assim que possível para “estudar as melhores possibilidades para o nosso negócio”. Apoiei o celular na cabeceira e fiquei um tempo olhando as estrelinhas de neon do teto do meu quarto, pensando se eu levaria uma bronca grande ou pequena. Concluí que no máximo seria humilhada,e repetiriam que eu só tenho tamanho, o que eu já sabia, muito tamanho. Levantei e fui até a cozinha. Poderia escrever que meus pais estavam ali tomando café da manhã juntos, porque era domingo, mas é o meu livro e enquanto eu não for escritora sou obrigada a dar minha própria versão das coisas. Meu pai estava ali, como sempre amando minha mãe daquele jeito como nenhum homem jamais me amará em toda a minha vida, e eu apareci, feito um bloco de solidão, que é a minha consistência. Eles me estenderam o pão e a manteiga, como se isso pudesse resolver, ainda que fosse mesmo ótimo. Depois de mil voltas no assunto, contei do Leonardo Delgado, e me enrolei tanto que a coisa ficou muito mais sinistra, eles acharam que eu estava mantendo contatos virtuais com ele me passando por minha mãe, e que eu andava divulgando por aí que a loja estava indo mal, o que nem seria verdade, dessa vez segundo meu pai. Depois dos quinze minutos que o computador demora pra ligar, ficamos os três olhando a tela, variando entre o meu e-mail e o dele, até minha mãe clicar no anexo, comentando que poderia ser vírus, e se espantar com a vastidão da ficha que devíamos preencher. Meu pai chamou de Detalhes Gerontológicos. Ela riu. Ele fez um carinho no cabelo dela, do jeito que nenhum homem jamais fará em mim. Depois imprimiu a ficha pra ler com calma no banheiro. Uma das perguntas iniciais era Por que você quis ter uma loja voltada para idosos e doentes? Meus pais responderam que herdaram da minha avó. Depois vieram me chamar pra pensar em alguma coisa. Sentei diante do computador, os dois atrás de mim olhando a tela. Era uma sensação boa, embora arriscada, porque assim ao vivo eu tinha de acertar de primeira. Uma loja especializada para pessoas que precisam de tantos cuidados é um comércio afetivo. Eles acharam ótimo. Pedi um biscoito, e fui preenchendo o resto. Como é a vizinhança da loja. Bem jovem, e talvez esse seja o nosso maior problema, mas em seguida um asterisco conduzia ao fim da folha em que ele pedia que não desanimássemos com nada disso, porque clientes jovens precisam de coisas para seus pais e avós. Era demais o quanto esse cara conversava com a gente, eu sentia que se eu perguntasse alguma coisa lá do meu quarto ele mandaria um e-mail respondendo. A vizinhança da loja, e portanto a do nosso apartamento também, atende a todo tipo de necessidade especial, principalmente para quem precisa de prostitutas e para quem é prostituta e precisa de coisas que prostitutas usam. Mas a isso Leonardo também responderia que prostitutas envelhecem ou têm avós. Mas eu acho que muitas prostitutas já abandonaram seus avós. Não, na verdade, elas é que foram abandonadas por eles muito antes. E elas devem morrer muito cedo porque eu nunca vi uma prostituta velhinha ali na rua. Todo dia passo em frente a uma loja de botas e roupas para elas. Tem uma bota branca muito alta que tem praticamente o comprimento da minha perna, mas é provável que não caiba na coxa. Ela é de verniz e é maravilhosa. Às vezes eu imagino que eu junto muito dinheiro e compro essa bota, e também um dos vestidos da mesma loja, bem curto, e prendo o cabelo tipo as atrizes de filme da tarde, com brincos de argola iguais aos da minha mãe, e fico atrás do balcão da Loja de Velhos, e quando meus colegas vão lá comprar coisas pros seus avós eu saio lá de trás e caminho lentamente nas botas até o centro da loja, e começa a tocar Livin’ La Vida Loca, que é a música que minha mãe dança muito bonito com meu pai na sala quando os amigos deles vão lá, e eu faço uns passos de ginástica olímpica que vão saindo bem fácil de mim, e assim que a música acaba eu começo a apresentar os produtos e meus colegas estão impressionadíssimos. Quando eu era um pouco mais nova perguntei pra minha mãe por que ela não se vestia que nem essas moças sempre paradas perto da nossa casa, com essas roupas bonitas e aqueles sapatos muito altos e brilhantes, minha mãe não usa nada brilhante, e até as tatuagens dela têm poucas cores. Ela riu e me respondeu que aquelas moças estavam trabalhando, e me explicou que o que ela e o papai faziam por amor elas tinham que fazer com os homens como trabalho, recebendo dinheiro. Eu fiquei pensando que então tinha uma esperança pra mim, se eu nunca fosse amada eu poderia contratar alguém pra isso. Hoje que eu já entendo melhor eu continuo querendo pelo menos a bota branca. Passamos o domingo todo preenchendo a ficha, e depois que enviamos ficou uma sensação de que tudo estava resolvido, como se a ficha fosse terapêutica só por organizar em tabela a nossa quase falência. Papai comprou uns salames e cervejas e chamaram uns amigos sem filhos. Quando é assim eu fico ainda mais no quarto com vergonha porque fica muito evidente, pra todo o mundo, que eu não tenho ninguém pra mim. SETE Era o primeiro dia de aula e eu estava mais ansiosa com a visita do Leonardo Delgado do que com os três ou quatro nomes novos na turma, sempre uma menina bonita demais e uns moleques com cara de ruins, manias com bonés e tênis largos. Nunca vou compreender a ideia de um tênis largo. Minha mãe estava sentada na cama tentando consertar um despertador, como se o Leonardo não tivesse a menor importância. Meu pai tinha chegado mais cedo do serviço e arrumava a sala, bem nervoso, escondendo bagunças atrás de potes e revistas. Perguntou se eu tinha gostado da turma nova e eu disse que sim, eu sempre tenho de gostar da turma nova, já que a escola custa igual ao plano de saúde da família inteira e eu não posso ficar reclamando. Tinha um catálogo de pizza do lado do telefone, e saquei que meus pais não tinham a menor ideia de como ia ser essa visita técnica. Desde que eu descobri que sou gorda, parei um pouco de tentar ser sensual com todos os homens novos da nossa vida, o que deve ter sido mais confortável para o Leonardo. Ele entrou com um sorriso bem menor que o da televisão, comentou do calor e foi tirando um paletó que a minha mãe chamou de blazer, e a camisa dele estava suada. Ele aceitou uma cerveja, que meu pai achava que ele não ia aceitar e nem tinha colocado tantas pra gelar. Leonardo aceitou todas as coisas oferecidas e a noite não terminava nunca. Ele me falou que eu fiz muito bem em enviar o e-mail e que ele gostou das nossas respostas. Dai ficou revendo uma por uma, como se fosse uma entrevista, e acho que era. Ele tinha o cabelo preto cacheado e a barba um pouco grande, parecia forte, os cílios eram longos que nem eu queria que os meus fossem, a boca grossa, o dente bonitinho que nem o meu vai ser depois que a loja melhorar e tivermos dinheiro pro meu aparelho. Falou que a vizinhança é bacana pra loja, sim, porque tem pouca oferta. Eu pensei que oferta fosse promoção, fiquei pensando que ele estava errado, aqui tinha oferta de tudo o tempo todo. Depois minha mãe me explicou. Eles pediram pizza, o que eu tinha duvidado que fosse acontecer. Leonardo explicava uma porção de coisas de mercado e gerontologia, e ele fazia parecer tão legal ter uma loja como a nossa que acho que meus pais estavam de fato interessados. Mostrou muita foto de produto novo e uns milagres que a internet poderia fazer por nós. Fiquei o tempo todo na sala esperando que ele falasse sobre valores, eu queria saber quanto poderia sair essa pizza. Era injusto passar tanto tempo ali sendo tão bonito e revolucionário e depois dizer que vai cobrar um milhão de dólares. Eu acabei indo dormir antes de o Leonardo dar qualquer sinal de que ia embora. Minha mãe tinha entrado um pouco no quarto dela, e voltado com o cabelo de um jeito legal, e meio perfumada. Eu notei e ela ficou com vergonha, depois riu. O pai falava com ele sobre o cinema legal que tinha fechado e reabriu ali perto, falou que o horário da loja é bom porque fecha um pouco antes da sessão das sete. OITO Esse ano na sala chegou um menino que chama Carlos. Colocaram o Carlos sentado lá no fundo, do meulado, provavelmente porque ele também é alto – não tanto quanto eu, porque não existe, mas ele tem um cabelo grande – e ocupa toda a visão. É muito desagradável ser uma criança que ocupa toda a visão. Carlos é um nome de seis letras, igual Carmem. E as três primeiras letras são iguais às minhas, e significam carro, em inglês. O que quer dizer que vamos nos casar e até ter um carro juntos, que meus pais não têm, porque eles dizem que não gostam, mas eu sei que é porque é caro e não temos garagem. Eu vou dirigir o nosso carro até a praia e ele vai ligar o rádio. Vai tocar Livin’ La Vida Loca e eu vou encostar o carro de repente na beira, descer e dançar a coreografia certa igual minha mãe faz e ele vai ficar olhando pela janela. Mas antes disso, talvez semana que vem, o Carlos vai precisar comprar aparelho de infravermelho pro avô dele e eu vou explicar direitinho como usa, e minha mãe estará lá nos fundos no banheiro, e eu vou dizer que controlo a loja totalmente sozinha. Eu ainda não tinha conhecido o Carlos muito bem, porque era mais ou menos começo do ano, mas ele foi o primeiro menino legal que existiu. Ele era bom mesmo, bom de um jeito que os meninos não sabem ser. Ele levava caixinha de suco pro lanche, mas às vezes ele não conseguia esperar até o intervalo, e eu sentia cheiro de laranja na aula. Daí toda vez que alguém tem uma laranja eu penso no Carlos. Ele tem uns cachos grandes e não deixa a mãe cortar. Escuta umas músicas no fone de ouvido, músicas bem antigas, que parecem de dançar. Antes de a gente conversar pela primeira vez, ele me deixou ouvir um pouco junto com ele, enquanto o professor demorava. Eu tentei pôr a mão no lápis em cima da mesa dele, como se fosse uma distração, pra ver se ele punha a mão em cima, mas ele ficou olhando o aparelhinho e procurando a próxima música. O Carlos não gosta de futebol, anda devagar pelo corredor, fala comigo, não fica brincando de dar soco nos outros, e toma banho antes da escola, porque o cabelo está sempre molhado. Ele era definitivamente o melhor menino que existiu. Um dia ele estava lendo um livro antes de começar a aula. Eu olhei a capa e não era livro obrigatório, nem era de vampiro. Depois ele me emprestou e era muito bom, sobre uma droga que os estudantes consumiram e ficavam obedecendo, feito robôs, e alguns alunos tinham de salvar todo o resto. Nesse grupo de heróis tinha uma menina, e ela namorava um deles. Eu queria dizer pro Carlos que a gente era parecido com eles, mas eu não dizia quase nada pra ele. Eu só ficava copiando a lousa imaginando que ele estava me olhando, mas não sei se estava. Eu conversei com deus e fiz um arranjado. Se até o fim do ano a gente fosse namorado e ele pegasse na minha mão no meio da aula na frente de todo o mundo e andasse comigo até em casa, eu entregaria de graça três produtos caros da loja pros velhinhos que precisassem. NOVE Minha mãe passou a semana distraída, a cara no celular. Respondia absurdos ao que eu perguntava, como se estivesse finalmente respondendo a algo que eu tinha dito muitos dias antes. Uma noite, bateu no meu quarto toda bonita e disse que estava saindo, e que o pai logo chegava. E deixou na minha cama o livro que eu tinha emprestado antes do ano novo. Eu fiquei um pouco sem saber qual dúvida minha era prioridade enquanto ela estava cada vez mais inteira fora do quarto. – Você não vai mesmo ler? – Terminei hoje na loja. Muito bom. E ela saiu. Talvez eu estivesse enganada sobre ela estar dispersa, comecei a achar que era o contrário, que ela estava de repente concentrada em tudo que não fosse eu. Ou a loja estava muito parada mesmo. Quando um comércio está quase falindo qualquer cliente que entra é muito importante. Meio igual a quando alguém fala comigo na escola, a conversa fica repetindo dias na minha cabeça, cada gesto que eu não devia ter feito, um monte de palavra ruim que eu escolho. Ficamos dizendo o tempo todo palavras que não são as melhores, as melhores vêm só depois. Por isso que vai ser legal quando eu for escritora, dá tempo de selecionar as palavras. Às vezes o cliente entra, e a gente fica toda atenta, achando que ele vai comprar um assento ortopédico e vai salvar o dia, e ele pergunta se tem CD de música para relaxamento, e logo sai. Ou olha a primeira estante e já desiste, deixa a gente angustiado com a porcaria da estante, o que deveria estar lá e não está. As pessoas tinham que aprender a não entrar desse jeito na vida dos outros. Um dia eu vou sair do balcão e vou atrás de um cliente desses, só pra implorar que ele me explique, pelo amor de deus, o que há de errado com a gente, por que ele não ficou nem um minutinho, por que não quis perguntar alguma coisa, por que era tão óbvio assim que não teríamos nada que interessasse. O pai chegou e respondeu que não sabia onde a mãe tinha ido, mas não pareceu se importar. Sentou e ficou lendo um livro que não tinha em casa antes, não sei onde ele pegou. Sentei do lado, com uma lição da escola. Foi difícil achar uma posição confortável nas almofadas, e depois a luz estava muito fraca, mas eu disfarcei tudo porque não queria que meu pai sugerisse a escrivaninha do meu quarto, sozinha. Ele fez um carinho na minha cabeça e tomou um chá, e me ofereceu, sem tirar o olho do livro. – Hoje o Leo foi com a sua mãe na loja. Ela deve estar cheia de ideias. O pai contou isso e eu não soube o que responder. Queria perguntar então por que ela não estava lá pra contar tudo pra gente. Ficamos sentados ali um monte de horas e a mãe chegou com uns lanches, um pouco bêbada, e não contou nada da loja, só disse que estava animada, que tinham muita coisa a fazer. Eles ligaram a música e começaram aquele show particular de amor que eles esfregam na minha cara há mais de 11 anos, um baile no centro da sala, cada passo na hora certa, os cabelos pra cima e pra baixo parecendo abertura de novela. Minha mãe era dançarina quando era nova, mas duas coisas atrapalharam: eu, e a loja. Eu como problema, e a loja como solução para o problema, eu acho. Às vezes eu imagino que eles divorciaram, e eu faço companhia para um de cada vez. Daí seríamos os três muito sozinhos e silenciosos. Mas seria como se a minha solidão tivesse se dividido por três, e ficasse mais leve pra mim. E quando alguma professora perguntasse por que eu passo os recreios sozinha eu diria que é porque meus pais estão se separando e eu preciso pensar com quem eu vou ficar, já que os dois precisam muito de mim. Isso só até eu conseguir passar os recreios com o Carlos. A dança terminou e eles estavam jogados no chão dando muita risada. E não precisando de mim. Fui guardar o material e ajeitar a mochila no quarto. Eu preciso conferir três vezes na agenda as matérias do dia, porque uma vez eu levei o material todo errado e não consegui segurar o choro – justo na aula de português que eu tinha caprichado tanto na lição e nunca mais ia ter oportunidade de ler minha melhor resposta. Eu inventei que o choro era porque eu achava que os meus pais estavam se separando, e mesmo assim riram de mim porque quase todos os pais se separam e não era pra eu chorar. Uma menina comentou que ela nem conhecia o próprio pai, e a professora cortou o assunto dizendo que não era pra gente ficar competindo tragédia. Minha mãe veio deixar água no meu quarto e falou pra eu dormir bem. Ela parecia muito feliz. DEZ Adultos se divertem. Crianças se divertem. Eu não sei se estou exatamente na idade em que ninguém faz nada de bom, ou se isso de diversão simplesmente acabou pra mim. Da minha janela vejo os vizinhos entrando no prédio. Eles passam algum tempo procurando a chave do portão no molho de chaves, então eu tenho de ficar bem concentrada para abrir a porta pra eles com a mente exatamente no instante em que eles abrem com a chave, chego a ouvir o estalo. Quando eu erro, sinto que a porta abriu só mais ou menos e por isso essa pessoa chegou só maisou menos em casa, e alguém vai comentar que ela anda distraída e ausente. O dia tem um milhão de horas, mesmo lendo e escrevendo livro. Acho que o tempo só passa se você tem alguém respondendo ao que você diz, daí talvez divida o tempo por dois, ou por três, depende de quantas pessoas estão na conversa. Minha mãe perguntou o que eu achava de passar o sábado e o domingo na vizinha pra eles viajarem depois de fechar a loja. A vizinha tem uma filha de 15 anos que é louca e fica me dizendo pra eu nunca namorar porque sexo é muito ruim e dói. Ela repete que eu devo dizer sempre não, e eu fico pensando que talvez eu nunca tenha ninguém pra dizer não. Isso é uma coisa que eu não entendo bem, eu sei que tudo isso existe, mas não pra todas as pessoas, algumas pessoas não ganham sexo, como eu. Mas eu sei que meus pais viajam juntos porque se amam e têm sexo e todo o mundo viaja e têm sexo menos eu que fico com a vizinha que odeia sexo. – Por que eu não posso ir junto? Minha mãe fez uma cara chateada e explicou que dessa vez eles tinham um monte de coisas pra resolver e conversar e por isso queriam ficar sozinhos. Senti que era mentira, mas de qualquer forma eu não queria ir, queria dormir sem ninguém em casa, mas nem isso os meus 11 anos permitem. Antes da viagem dos meus pais, o Leonardo passou lá em casa e tirou de uma pastinha um questionário que esticou pra mim. Falou que eu sou muito boa com respostas e que ele decidiu que se eu pudesse responder esse questionário com calma durante a viagem “da mamãe” isso ia ajudá-lo a me conhecer muito melhor. Ele gosta realmente de formulários. – Achei que seus estudos fossem sobre velhos. Todos riram, menos eu. À noite, a vizinha ficou vendo um programa insuportável de jovens falando inglês e se gostando e sendo uma turma de pessoas bonitas. Olhei a primeira questão do Leo. Do que você mais gosta ? De quando um doce está pra vencer lá em casa e minha mãe manda comer tudo logo. Do que você tem medo? De a loja fechar e a gente ter de vender as coisas dos velhinhos no farol pra continuar pagando a escola, e daí eu vou mostrar uma bota ortopédica e tem um colega da sala dentro do carro. Não tinha mais espaço pra escrever e eu coloquei um asterisco e continuei no fim da folha: e de ficar velha logo e ainda ser sozinha e não ter ninguém pra comprar uma cadeira de rodas pra mim. Comecei a achar legal, fiquei com vontade de imprimir vários e distribuir na sala de aula e pedir pra me entregarem na saída, eu poderia dar um bombom em troca. Quando eu for professora farei isso, e sem bombom. Uma das perguntas pedia uma vergonha. Não sei, não sabia perceber direito quando tinha vergonha. Escrevi que toda vez que eu vejo a polícia correndo com a sirene ligada, ultrapassando todo o mundo, eu imagino que tem um criminoso fugindo em algum lugar muito perto. E fundo dentro de mim eu torço pra ele conseguir fugir. E daí tenho vergonha de mim mesma, tipo uma eu-mesma que vive um pouco pra fora de mim, mas meio dentro, e me enxerga quando eu penso essas coisas. O que você queria ter e não tem? Coloquei cachorro, porque acho que o Leo pensava que eu ia escrever namorado. Minha mãe diz que o apartamento é muito pequeno pra um cachorro, e eu não entendo, porque eu tenho tamanho e fico lá dentro parada o tempo todo. O que é muito triste no mundo? Respondi mulheres. Depois outro dia ele veio me perguntar por que eu respondi assim, e eu não disse nada. Acho as mulheres muito tristes, algumas usam véu, outras têm muitos filhos que puxam o peito, outras ficam na calçada trabalhando pros homens, outras levam muito soco. O que você mudaria na sua escola? Eu faria uma turma só para os burros, que me irritam. E não teria uniforme, porque uniforme me deixa muito feia. E faria formulários como este, muitos deles. Descobri que o questionário era imenso, várias páginas, e eu guardei na bolsa pra ir respondendo aos pouquinhos. A vizinha continuava vendo o programa. – Você não quer me levar pra comer em algum lugar? Eu tenho algum dinheiro. Ela pediu mais dinheiro pra mãe e foi descendo a rua comigo. Tinha muita gente mesmo, pessoas que estão nas idades da diversão, rindo e se abraçando, essas que provavelmente viajam juntas e compartilham comida. Alguns meninos mexiam com a vizinha e ela xingava. Ninguém mexia comigo, mas ela disse que era pra eu aproveitar. Ela sentou num bar e pediu um monte de coxinha e uma cerveja pra ela. Eu tenho a mesma altura dela, mas só tenho tamanho. Ela tentou me ensinar a jogar sinuca, eu não consegui e ela se entediou. Uma menina fez amizade com ela, assim como se fossem crianças num hotel, e as duas ficaram um tempão jogando. Eu olhava as pessoas, e elas não me viam. Gostei das roupas de todos, e dos cabelos. A amiga nova veio falar comigo e eu perguntei se ela também não gostava de sexo e a menina olhou muito estranho para a vizinha, depois riram, e ela respondeu que até que gostava, mas que eu teria tempo pra me preocupar com isso, e riu mais, eu teria a vida toda pra me preocupar, falou uns palavrões, bebeu a cerveja, ela era bonita. Eu preferia que a filha da vizinha fosse ela. A hora foi indo mais rápido do que em casa, e nós não parecíamos estar perto de voltar. A amiga nova agora tinha uma bebida vermelhíssima e eu falei que ela parecia uma vampira bebendo sangue, mas ela não riu, e eu fiquei me odiando. Digo, aquela outra-eu que vive meio fora, meio dentro de mim e me enxerga ficou me olhando e passando vergonha. A moça sentou do meu lado e ficou vendo a bebida vermelha. – A gente devia estar num lugar mais divertido. Eu estava achando aquele lugar fantástico. – Onde você estaria se tivesse a nossa idade? – Na casa do Carlos, eu acho. – Quem é o Carlos? A vizinha riu, mas ela não sabia quem ele era. Fiquei com medo de ela começar o sermão enlouquecido sobre sexo ser muito ruim e a amiga nova achar que eu também não gosto quando na verdade eu não faço a menor ideia nem de como funciona e isso eu também não quero que ela saiba. – O Carlos é um menino. Ele é quase alto, e tem cabelos lavados. E nunca xinga, nem anda rápido, nem joga esportes, nem puxa cabelo, e às vezes ele lê um livro. – Lê um livro? Jura? – Juro por deus. E não é um livro obrigatório. E ele usa o uniforme ajustado, e limpo, e anota a aula, e às vezes, quando ele chega, diz bom dia. Assim, como se fosse um professor. A amiga nova estava me olhando completamente chocada, e deu uma risadinha pra vizinha, que estava de mau humor e não retribuiu. – Olha, Carmem, eu acho que você precisa agir rápido, você nunca vai encontrar um menino como o Carlos em toda a sua vida! – Não!? – Bom, pelo menos não até os seus 16 anos, isso eu te garanto. – Nossa... Eu não sabia o que era agir rápido. – Como eu faço pra ele viver comigo? – Você sabe se ele gosta de você? – Ele me mostra as músicas dele. – Ótimo. Então faz alguma coisa logo, não sei, mostra que você gosta dele. Mostra que você é diferente, que você não é dessas menininhas que ficam esperando esses moleques se mexerem. Foi o conselho mais confuso que eu já recebi em toda a minha vida. De tudo que parecia fazer-alguma- -coisa, eu só conseguia pensar em cambalhota, desenho, cartinha. Uma cartinha não parecia me fazer diferente. Mais tarde a vizinha subiu a rua comigo sem olhar na minha cara. Bem irritada mesmo. Perguntei pra ela o que era fazer alguma coisa e mostrar que eu sou diferente. Ela mandou agarrar logo esse menino. Tínhamos decorado o nome todo da amiga nova e antes de dormir ficamos vendo as fotos dela na internet. A vizinha já estava mais animada, e a mãe dela não brigou com a gente por voltar meio tarde, e ainda trouxe leite morno com chocolate no quarto pra dar sono, ela falou. ONZE Eu usava lancheira rosa com desenhos de princesas, mas a diretora me achou no corredor e comentou que iam fazer muita graça de mim, que eu já era muito grande. Comecei a comprar na cantinaou levar o lanche num papel alumínio dentro de um saco plástico muito adulto. Era maio e a loja estava melhor, mas não o quanto eu imaginava que ficaria. Eu tinha pensado algo que envolvesse balões coloridos na porta. Meus pais estavam trabalhando muito. Várias noites um deles ficava com o Leo na loja até de noite, ou mesmo ele ficava lá em casa até bem tarde. Teve uma noite que eu jantei salsicha e fui pro quarto pra ler, mas acabei ficando horas deitada na cama com o olho e o ouvido fechado pensando no Carlos e em muitas coisas que a gente podia viver juntos. E em diversos meios de eu fazer alguma coisa e ser diferente. Eu fiquei imaginando tanto que dava uma energia nas pernas e eu chutava o colchão e tinha vontade de pular e rir. Pensei que eu mudava de lugar pra sentar na frente dele e ele fazia carinho na minha cabeça atrás do cabelo pro professor não ver, mas todo o mundo via, e no intervalo todos vinham puxar assunto com a gente só porque a gente é junto. Todo o mundo não, alguns eu tirava da imaginação porque eu não gosto nem de ver na frente. Daí eu pensava que eles tinham faltado na escola por alguma razão, mas me distraía imaginando a razão pra cada um deles ter faltado, e atrapalhava um pouco. Saí pra cozinha, chateada de ficar tanto tempo fazendo isso, já era tarde e eu devia estar dormindo. Vi o Leonardo na cozinha com o meu pai, estavam se cumprimentando, mas as mãos ficaram ali, juntas. Foi um carinho na mão. Depois um carinho no pescoço, e no cabelo. E um sorriso. Daí eles me viram e vieram muito atenciosos na minha direção. Eu tive vontade de chorar e mais vontade ainda porque não tinha exatamente um motivo pra chorar, era pior do que quando eu esquecia de levar o material da aula. Minha mãe apareceu também lá do quarto dela e estranhou nossas caras, cada uma de um jeito, e eu pensei que eu devia fazer alguma coisa, eu era responsável por isso, eu que tinha mandado o e-mail pra esse homem. Também pensei que era mentira que eu queria que meus pais se separassem. – Não vou completar seu questionário estúpido. E voltei correndo pro quarto. DOZE A porta do meu quarto não tem chave, o que deve fazer parte dessa maravilha que é ter 11 anos. Mas ela tem um problema, é totalmente emperrada. Tem um desnível inexplicável no chão, que exige que as pessoas deem um tranco especial pra cima antes de virar a maçaneta. Minha mãe fala que é preciso ter intimidade com a minha porta pra saber abrir. Então é isso, meu quarto só abre pra quem tem intimidade com a porta. Naquela noite alguém foi até lá, devagarinho, e bateu três vezes, bem fraco. Eu não disse nada, aumentei a música, e fiquei com vergonha porque era uma música muito ruim. Daí alguém forçou de leve a maçaneta, e não insistiu. O Leonardo não tinha intimidade com a porta. Depois de um milhão de horas, minha mãe abriu e veio me trazer um suco – não era o leite quente achocolatado da vizinha, que dava sono – e perguntou por que eu estava esquisita. Eu disse que eu queria muito ter um namorado, e ela riu, depois parou, porque eu estava muito séria. Ela disse que era cedo, mas que daqui a pouco eu teria, que eu não devia apressar essas coisas que eram só dor de cabeça. Mas ela gostava de namorar o meu pai e não chamava de dor de cabeça. Onze anos é a pior idade do universo, dura pelo menos cinco anos. E tem fome, e às vezes cólica e menstruação. Muita fome. Pelo menos depois de um tempo emagrece um pouco porque a pessoa cresce muito, de repente, mas isso quer dizer que depois eu fiquei maior, mais tamanho. Minha mãe passou a mão no meu cabelo, do jeito que eu não gosto, que desata os cachos e faz ficar imenso. Mas eu deixei. Eu imaginei que ela não sabia que o papai fazia carinho no Leonardo também, e eu queria dizer, mas não conseguia. Chorei um pouco e ela pareceu preocupada. Perguntou se tinha alguma novidade que eu não estava gostando. Eu falei que o Carlos era novidade, mas eu estava gostando. Ela deu uma risada bonita e perguntou se o Carlos sabia dançar. Eu falei que achava que sim, porque ele ouvia muita música. Ela me mandou aproveitar. Não sei o que ela acha que existe para aproveitar. Acho que eu descobri o problema da minha idade, as coisas no mundo são todas divididas nas categorias 7 a 11 anos, ou 12 a 16 ou 18 anos. Daí que eu estou no limbo de quem já fez 11 anos, que é a infelicidade. O que pode querer dizer que vai passar, embora não tenha passado para a vizinha de 15, que parece muito infeliz. TREZE O Carlos tinha levado na aula um caderninho, e ficou rabiscando umas letras de música com uns desenhos. Eu tentava ver mas o olho não alcançava. Eu sorri pra ele e ele tirou o fone e perguntou o que eu tinha dito, e eu não tinha dito nada. Era preciso fazer-alguma-coisa. No intervalo ele foi saindo na minha frente olhando pra dentro da sacolinha de lanche dele. Não fazia sentido a gente não lanchar junto se nenhum dos dois tinha companhia, mas agora eu já aprendi que faz sim. Sozinho faz sentido também. Não sei muito bem o que eu pensei, foi uma mistura muito grande de informações, eu não sei por que as pessoas não informam tudo de uma vez, deixam a gente ficar aprendendo de pouquinho e fazendo confusão. Ele virou no corredor e eu puxei o braço dele, o fone de ouvido caiu no chão, e eu resolvi agir rápido, coloquei uma perna em cima da perna dele e segurei uma das mãos, a ideia era fazer um passo de Livin’ la Vida Loca igual ao da minha mãe, era só um passinho pra congelar feito uma foto, achei que isso ia mostrar que eu era diferente, mas como ele não estava entendendo e tudo foi muito rápido, pensei que eu devia garantir tudo com um beijo na boca, bem curto, ia ser só um estalinho, mas tudo foi muito assustador e talvez eu toda grande e perto demais, ele afastou a cara e dobrou meu braço num golpe e com a outra mão me empurrou no chão, e logo em seguida pareceu ficar pensando se me puxava do chão ou pegava o fone de ouvido que também tinha caído. Doeu alguma coisa na minha perna esquerda e no pulso, e ao mesmo tempo eu não conseguia levantar porque eu não sabia pra onde correr depois que eu saísse dali, já tinha muitos meninos em volta e eles riam e começaram a gritar, e eu achei que iam gritar pra mim, umas meninas riam também, mas era pro Carlos que eles gritavam BI-CHA BI- CHA BI-CHA BI-CHA BI-CHA! Parecia que não ia terminar mais, ele tentou sair dali, mas eram muitos e eu continuava no chão e o Carlos nem me olhava nem me ajudava, e quando eu vi eu tinha levantado sozinha e estava gritando junto BI-CHA BI-CHA BI-CHA, com muita raiva e mais força, e só aí ele me olhou e depois riu. Eu fiquei olhando a risada sem entender como podia rir ali, se era uma risada maldosa, se era nervoso, e daí eu corri pro banheiro, corri daquele jeito feio que parece que uma tonelada de pregos estão balançando dentro de cada perna. Na aula seguinte a gente tinha de fazer um mapa do estado de São Paulo com massinha e colocar cores diferentes conforme o que era produzido em cada região mas eu fiz um coração com vários buracos e a professora nem me deu bronca porque eu sempre fazia tudo muito direito. Deixei o coração bem do lado da mesa pro Carlos ver, mas não sei se ele viu porque não nos olhamos mais. Na aula de matemática o problema dizia que um menino e uma menina precisavam calcular quantas laranjas levar ao parque se os convidados meninos comiam tantas e as meninas só mais tantas cada uma. E eu escrevi que não era pra levar nenhuma, que tudo é mentira, ninguém vai junto a parque nenhum nessa vida. E na aula de português a gente tinha que olhar a imagem de uma menina que estava perdendo o ônibus e escrever um parágrafo imaginando a solução pra essa situação e eu escrevi que a única solução pra nós todas é nunca tomar nenhuma atitude, nunca sair de casa, nunca parar de olhar a janela e abrir mentalmente o portão do prédio para os vizinhos, e nunca fazer nenhum movimento brusco,que se ela perdeu o ônibus ela tinha de esperar, esperar quieta e pra sempre. CATORZE Eu estava jogada na cama e batia um lápis de cor no outro e a minha mãe falou pra parar porque isso quebrava todo o lápis por dentro e eu nunca mais conseguiria apontar. Perguntei como-assim, como se isso tivesse qualquer importância, e ela explicou que eu ia apontar e apontar, mas toda vez que tentasse pintar a ponta já estaria quebrada. Parei com os lápis. Acho que minha mãe foi chamada na escola. Ela me disse que na minha idade as pessoas estão em banho-maria, e que eu tinha de ter paciência. Eu achei que fosse uma brincadeira com o meu nome, banho-maria- carmem, mas depois entendi que estou mais ou menos numa travessa de vidro cozinhando muito lentamente em cima da água, pra eu não queimar, e uma hora eu vou virar alguma coisa. Não gostei. Nem do lápis que nunca mais aponta nem do banho-maria. Minha mãe não usou a palavra cozinhando, ela disse preparando. Que quando a gente não tem paciência e prepara sem o banho-maria as coisas não dão certo, pode até queimar. Falou que eu precisava acreditar nela, que ia ficar tudo bem se eu ficasse boazinha no banho-maria, que eu ia sair a mais forte de todas as Marias. Os dias iam passando e os moleques continuavam dando tapinhas na cabeça do Carlos e chamando de viado. Perguntei pra minha mãe o que era, exatamente, viado e bicha. Ela fez uma cara muito ruim, não para a pergunta, mas para a palavra, e falou que era um jeito ruim de dizer que um homem gostava de outros homens, e não de mulheres. Isso eu já sabia, mas às vezes eu gosto quando a minha mãe me trata como se eu fosse bem pequena. – E se ele gostar de homem e de mulher? Ela falou que as pessoas conseguiam xingar todo o mundo. – O Carlos é um menino igual ao papai e ao Leo. – Por que, o Carlos é um menino legal? O Carlos depois de um tempo cansou e reagiu, começou a explicar pra todos que era evidente que ele não era bicha, mas que ele não queria uma menina gorda e feia. Logo os meninos entenderam, deram risada. Inventaram uma piada: cada vez que cruzavam comigo no corredor eles gritavam de susto e davam um salto pro lado como se eu fosse pular no colo deles e tentar beijar. Isso começou a piorar bastante minha prisão de ventre, e a cada berro deles eu sentia uma pedrada por dentro do umbigo. Apesar de tudo, eu gosto muito de falar prisão de ventre, acho tão bonito. Quando você está em banho-maria as pessoas só vão contando as coisas que você pergunta, mas você nem imagina quais perguntas poderia fazer. E isso vai fazendo o banho-maria durar uma eternidade. Outra pergunta do questionário do Leo pedia pra contar uma nova descoberta. Respondi que é possível que um lápis pareça estar novo, mas todo quebrado por dentro. Que é possível que um lápis não funcione. Que ele nunca escreva nada, só porque algum idiota ficou batendo insistentemente um lápis no outro. QUINZE A loja ganhou um site todo fantástico, e às vezes minha mãe me pedia pra ir no correio levar alguma entrega. Ela ficava muito agitada, arrumando noventa vezes a embalagem, como se fosse um presente. O velhinho ia abrir a caixa e achar que é Natal, e ficar todo contente com o colete lombar que talvez seja a nova coluna dele. No site tem minha foto sorrindo meio esfumaçada, talvez pra embaçar meus dentinhos, fingindo que ajudo um senhor comprido a caminhar. Não sei quem é esse senhor comprido, o Leonardo que arranjou, talvez seja vizinho dele. Muito divertido, trouxe umas balas e ficou olhando a loja todo curioso como se os velhos que precisassem daquelas coisas fossem alienígenas. Eu gosto de ir no correio porque as pessoas ficam me olhando e olhando a minha caixa e aposto que voltam pra casa se perguntando o que uma menina tem pra enviar pelo correio numa caixa grande. Os velhinhos passam na frente na fila, e eu tenho vontade de dizer com licença isto aqui também é para um velhinho. Na Revolução Industrial parece que os idosos trabalhavam como se fossem jovens, e as crianças também. Na verdade não sei muito bem se eles eram tão velhos, parece que eles não conseguiam viver tanto assim porque as lojas de velhos eram muito ruins. Eu escrevi na prova que as coisas mudaram, mas não totalmente porque em alguns lugares os velhos e as crianças trabalham demais e sem ar pra respirar direito. O professor gostou muitíssimo e até leu pra turma, mas os colegas odeiam quando minha resposta aparece muito. O Leo surgiu com uma sanfona naquela semana. Eu fiquei fascinada, parecia que ele estava entrando em casa com um enorme bebê retangular e vermelho, e se ele vacilasse os braços o bebê se espreguiçava gemendo com sua barrigona enrugada. Ele tocava e minha mãe acompanhava batendo uma faca de metal na outra, e meu pai ficou me ensinando a dançar forró. Cantavam Ela só quer, só pensa em namorar, Ela só quer, só pensa em namorar, e era evidente que era pra fazer graça comigo mas tudo bem, eu gostei. Decidi que quando meus colegas fossem comprar algo pros avós deles na loja, em vez de dançar Livin’ la vida loca eu ia tocar aquela sanfona gigante, do jeito que o Leo fazia. O Leo ouve pensamentos e lê respostas de questionários que ainda não foram respondidos, e antes de ir embora ele comentou que podíamos tocar um pouco de sanfona ali na entrada da loja num sábado, só pra dar um ar de alegria. E foi a coisa mais espetacular que a loja já viu, o Leo tocava todas as músicas de sanfona que eram meio antigas ou falavam de velhinhos, ou de esperar na janela, e as pessoas olhavam e achavam que era alguma coisa muito legal, daí percebiam que era uma loja de velhos, e riam, mas aproveitavam pra dar uma olhada numa bolinha de fisioterapia, lembravam alguma coisa que faz tempo que a vovó tinha de começar a fazer, ou mesmo eles próprios precisavam, como sentar direito no trabalho sem forçar os ombros, e eles iam comprando coisinhas, ou só anotando o nome da loja pra procurar na internet, dançavam de leve ali na calçada mesmo, tiravam uma foto do Leo que é bonitíssimo e toca sanfona, e eu me perguntei se os velhinhos da Revolução Industrial não podiam ter alguém tocando sanfona enquanto eles apertavam parafusos. Também fiquei querendo que livros fossem igual sanfona. Que tudo que eu escrevesse ficasse sanfonando na calçada pras pessoas ouvirem, em vez de lerem, já que ninguém sai lendo muito por aí. Daí as páginas abriam e fechavam no meu braço e as palavras iam saindo e se eu escrevesse muito muito muito bem igual o Leonardo toca, as pessoas acabariam dançando. DEZESSEIS Em outro ano, não neste ano do livro, num ano já antigo, minha avó que era a dona da loja de velhos ficou muito velhinha também. Só que nenhuma das coisas da loja resolviam, porque o problema era dentro da cabeça dela. Minha mãe disse na época que era porque a vovó era inteligente demais, daí tinha gastado a cabeça mais cedo do que devia, e eu fiquei com medo de ser inteligente. Às vezes minha mãe fala qualquer coisa achando que eu vou esquecer e tudo bem. Quando eu tiver uma filha vou saber que ela não esquece. A vovó foi ficando meio bebê, mas um bebê pesado e enrugado, e difícil de lavar, e às vezes ela ria demais, à toa, e depois berrava, sem motivo também, um bebê gigante, e eu fazia carinho no cabelo dela, mas quase já não tinha cabelo. Antes de ficar doente, ela era muito sozinha, daí algumas tardes minha mãe me enviava pra fazer companhia pra ela, mas na verdade eu fazia solidão. As duas ali no sofá, quase no escuro, competindo qual solidão conseguia alcançar o teto. Eu acho mesmo que as crianças podem ser mais sozinhas que as velhas. Daí quando vem o Lobo Mau as meninas contam tudo, ensinam direitinho como chegar na casa da avó, a terceira após a colina, e o Lobo chega antes e não sobra avó nenhuma. Uma tarde fiquei imaginando o lobo comendo cada pedaço e a vovó sem dizer nada nem chorar, só a solidão acabando depressa. Depois fiquei com medoe foi difícil dormir. Às vezes ela falava comigo, perguntava da loja, da escola, mas eu não sei se a resposta interessava de verdade, ela tinha uma porção de coisas pra pensar por dentro, porque ela era inteligente, não precisava ouvir o que eu pensava. Só quando a cabeça dela deu problema é que ela ficou com poucos pensamentos e por isso ria ou gritava. Antes não. Um dia ela saiu do banheiro com a calça ainda abaixada e veio arrastando os joelhos até a sala, dando risada. Eu ajudei a se enxugar e depois avisei minha mãe que a vovó não tava bem, mas no começo eu achei legal, ela ficou carinhosa, parecia até feliz, menos pensamentos, só que mais pra frente a cara foi ficando arregalada, um jeito de susto, uns gritos imprevisíveis, e eu tinha medo, não queria ficar com ela, mas minha mãe me obrigava, dizia que eu ia me arrepender, os adultos são cheios de arrependimentos e ficam achando que a gente vai ser também. Um pouco antes de morrer, a vovó já sem andar, numa cama dessas com rodinhas que minha mãe tinha alugado, meus pais na cozinha preparando uma sopa, eu fiquei alisando a mão dela que parecia um tronquinho seco, e por um instante pareceu que ela tinha voltado ao normal, a cara muito séria, eu até imaginei que engraçado seria se a vovó tivesse fingido tudo isso, e agora piscasse pra mim, só eu saberia, mas não, foi só um pensamento que tinha vindo, um só, e ela me olhou, e falou bem baixinho e triste, o olho cheio de água: Antônio nunca me amou. Eu senti um monte de coisa ao mesmo tempo. Primeiro que eu precisava dizer que sim, imagina, o vovô amou muito a senhora. Só que era a primeira vez que me diziam que era possível passar 60 anos do lado de alguém sem amar. O vovô de fato parecia ter sido um homem que não amou ninguém. Também percebi que obviamente é isso que vai acontecer comigo, eu vou morrer sozinha, sem cabelo, e mesmo muito confusa ainda vou ter espaço pra essa dor, essa coisa total que vai ser a minha solidão. E também pensei que isso de não ser amada pelo marido era gravíssimo, porque minha avó estava ali com uma porção de problemas, dores no corpo, fraldas, engasgos, a morte, e a única coisa que a fez parar e pensar e chorar foi esse homem que já tinha morrido e talvez nunca de fato tivesse amado mesmo. Não consegui dizer nada, e acho que disso eu já tenho aquele arrependimento. Não senti que eu tinha idade pra dizer a uma mulher qualquer coisa sobre isso. E ela continuava me olhando, talvez esperando uma resposta, é só isso que ela precisava, como se eu fosse um anjinho flutuando do lado da cama, e bastava que eu dissesse com muita convicção que ela tinha vivido a mais bonita história de amor de todos os tempos, e talvez ela tivesse morrido feliz. Mas eu não disse nada. E nem contei pra minha mãe, porque ela ia ficar muito triste. Foi isso, eu dei o endereço da vovó pro Lobo Mau e sumi. Ficou sendo meu segredo, minha grande falha. O dia em que a vovó só precisava de uma mentira, e eu não tive coragem. DEZESSETE Às vezes eu não durmo. Principalmente quando o dia foi tão péssimo que eu não quero que o outro dia chegue porque fico pensando que vai ser pior. Daí, antes de eu desenvolver uma nova técnica, eu comecei a chantagear deus. Mas era uma chantagem estranha porque eu não tinha muito poder e pode ser que pra ele não tivesse importância que uma menina parasse de vez de acreditar nele. Ou pode ser que ele não exista mesmo, eu ainda não decidi, e algo me diz que a minha opinião sobre isso não tem a menor importância pra ele, se ele existir, então eu posso demorar o quanto eu precisar. Eu dizia que se eu não dormisse em quinze segundos, deus não existia. E começava a contar. Cada vez que chegava perto dos quinze, eu dava uma chance pra ele, esticava até trinta, depois até um minuto, afinal ele podia estar ocupado ou não ter me escutado, e quanto mais perto chegava do sessenta mais eu me agitava, um pouco com medo de dormir de repente e depois acordar muito assustada com a presença desse deus, mas também, e cada vez mais, com o medo de continuar contando, infinito, a noite inteira, e nunca dormir, mais e mais sozinha, porque não existia deus nenhum me escutando contar, e eu podia ficar ali acordada por várias noites e vários dias que não tinha ninguém me olhando e se importando comigo, e que portanto era impossível saber quem estaria decidindo que pessoas devem nascer e morrer, e que poderia ser alguém muito mau, ou, pior, poderia não haver controle nenhum. Um dia, completamente exausta de uma madrugada inteira de contagem e ameaças e preces, entrei na capela da escola e andei bem depressa até a figura que mais me parecia conter deus, que seria Jesus, todo coitado ali em cima, crucificado e sangrando, os olhos baixos de miséria e tristeza, olhei pra ele uns segundos e estendi bem evidente o meu dedo do meio, e sustentei por quinze segundos, que era o tempo que eu achava que ele tinha pra me fazer dormir, daí virei as costas e saí. Foi bom, foi bem gostoso, por uns minutos. Depois eu chorei, chorei muito, porque Jesus era tão bonito e dolorido, ele sofria ali em cima há tantos anos, e as mãos estavam presas de um modo que ele não poderia me mostrar o dedo do meio de volta. Eu fui injusta, e egoísta, e muito ruim. Levei vários dias um pouquinho do meu lanche pra ele. Eu deixava embaixo da cruz, e na saída ia olhar e o lanche continuava ali, e eu estava sempre com fome e acabava comendo. No fim concluí que ele tinha me perdoado. Ou que ele não existe. E que de toda forma, não serve para me fazer dormir. DEZOITO Tem uma porção de maneiras estúpidas de uma criança morrer. Por exemplo descer uma escada segurando um pote de vidro em cada mão e escorregar e cortar os dois pulsos. De todo jeito a morte sempre foi uma coisa barulhenta, a criança com os pulsos rasgados vai gritar caída na escada e esse grito vai ficar ali meio vibrando até a mãe entrar dez minutos tarde demais, e a mãe vai viver pra sempre imaginando aquele grito que ela não ouviu. A morte é uma coisa que avisa, que arma um escândalo na rua, no bar, que apita no hospital, que telefona na casa de todos os parentes, e eles saem correndo como se agora adiantasse, a morte pra mim era assim. Mas daí, esse ano eu descobri que a morte pode ser silenciosa, muito mesmo. E tóxica. É possível morrer velho e quieto dentro da própria casa deitado na cama sem tempo de gritar, e dessa morte não sai um aviso, um apito imediato, não, as coisas fora da morte continuam iguais, e essa morte quieta pode ficar três, quatro dias tomando liberdade, contaminando as coisas que vão morrendo junto, o colchão, a cama, o piso de madeira, começa a vazar um sangue que não é mais necessário, e vai crescendo um cheiro que nenhum humano vivo consegue suportar, só os mortos. E quando enfim a família descobre eles fogem batendo a porta do apartamento e gritam o grito que o morto não deu, e tudo é muito pior porque elas descobrem que deixaram o morto sozinho três ou quatro dias, tão sozinho que não tinha nem ele mesmo. Uma solidão morta, tão horrorosa que vai tomando conta da casa inteira e quando finalmente alguém descobre você já está metade consumido de solidão. A família do Seu Vicente do terceiro andar ficou muito tempo no portão do prédio chorando e rebobinando os últimos quatro dias, onde estaria cada um deles enquanto o morto estava tão sozinho, e eu tentava abrir mentalmente o portão pra eles, mas não entravam, eles não queriam de jeito nenhum entrar, e minha mãe comentou com o Leo que o cheiro agora estava até no elevador, e meu pai lamentou que o Seu Vicente tinha comprado outro dia mesmo uma almofada térmica na loja, e que ele estava sempre sorrindo. Eu desci até a rua tapando o nariz porque eu tive muito medo do cheiro dessa morte e fiquei quieta no portão ouvindo a família. Tinha uma menina um pouco mais velha que eu e ela não conseguia nem chorar, parada com o olho no interfone, talvezela quisesse testar, digitar o número do apartamento do avô pra ter certeza de que nenhuma voz contaminada e sombria responderia, a voz que ocupou a casa quando não tinha ninguém. Depois que eu descobri que a morte pode ser desse jeito, eu concluí que ela também não precisa avisar que está chegando, e eu não quero ficar sozinha nem um segundo depois de morrer, então além da minha necessidade de controlar o sono e também o cocô – que eu ainda vou explicar –, comecei a tentar dominar a morte, ou pelo menos prever a sua chegada. Daí que de tempos em tempos eu me lembro disso, de que eu posso morrer a qualquer tempo e tudo acabar, então eu presto muita atenção na minha respiração, puxo o ar bem devagar e fundo, depois seguro um tempo, e observo o ar sair, e se isso está ocorrendo direito e dentro dos meus comandos, é porque a morte não está aqui, se ela estivesse eu puxaria o ar e ele não viria, ou sairia depressa antes que eu mandasse, ou não encheria direito o meu pulmão, ou não subiria até a minha cabeça. Isso ficou um pouco complicado porque às vezes eu tenho essa lembrança quando estou falando com alguém ou até lendo alguma coisa alto em sala de aula e então eu pareço de fato muito esquisita, e aí sim as pessoas vêm perguntar se está tudo bem e talvez elas pensem que eu estou morrendo, mas é o contrário, elas é que podem estar morrendo neste instante e não sabem e vão entrar num banheiro pra passar uma água no rosto e cair ali mortas, sozinhas, até o dia seguinte, e deixar a escola inteira com medo e nojo. DEZENOVE Um moleque foi fazer a brincadeira do susto e se jogar pro lado ao me ver e acabou derrubando um cara mais velho que passava e que não entendeu nada, os dois entraram numa briga ridícula em que o menino tentava convencer o outro de que eu ia de repente me jogar em cima dele e tentar beijá-lo no corredor e o mais velho voltou com a história de BICHA e o mais novo voltou com a história de GORDA e dessa vez eu fiquei parada, bem parada e bem séria, escutando e pensando meu deus quando será que o colégio muda, e se não muda pra onde vão essas pessoas todas depois, será que elas são o mundo, será que os adultos são essas pessoas depois do banho-maria, fico achando impossível, esses meninos nunca vão ser adultos. Se me perguntassem eu escolheria que ninguém existisse, ou pelo menos quase todos os alunos do mundo não existissem ou ficassem trancados juntos numa sala gigante sendo insuportáveis uns com os outros sem me trazer tanto desgosto, não o mesmo desgosto que eu trago pra minha mãe quando não gosto do bife, mas sim esse outro desgosto, que quer dizer parar de gostar de todas as coisas. No fim o moleque mais novo levou um soco, e por um truque mágico da justiça escolar fomos parar os três na sala do diretor que ouviu um de cada vez e a primeira pergunta que ele me fez foi por que eu tinha tentado agarrar o menino. Eu fiquei olhando pra ele e pensando um trilhão de respostas e todas elas me faziam parecer uma menina muito maluca e que por certo teria tentado beijar aquele animalzinho sem banho, e mesmo sabendo disso eu comecei a gritar que eu não acreditava no que estava acontecendo naquele colégio de merda, eu disse assim mesmo, quem eles pensavam que eles eram, dois dinossauros trombam no corredor e eles resolvem acreditar nessa gente – talvez na hora eu não tenha pensado em dinossauros, algumas palavras só chegam quando a gente escreve, eu devia ter escrito um e-mail para o diretor –, que eu não quero beijar nunca menino nenhum na minha vida, muito menos aquele, e homem nenhum valeria um beijo já que até mesmo o diretor dessa escola é igualzinho aos moleques-desgosto da minha sala. É uma pena que na hora as coisas saíram com muito mais palavrão e muito choro no meio das frases e minha mão pegou e largou o peso de papel várias vezes como se eu fosse arremessar no homem, sei que meus pais vieram me buscar e é claro que somaram minhas angústias em casa com tudo o que deve ter sido narrado pelo diretor e quando me tiraram dali já era impossível que acreditassem em mim, e na verdade não tinha tanta importância porque um mês antes eu tinha de fato agarrado o Carlos e pra eles não devia fazer a menor diferença se eu tinha agarrado um menino limpo e legal ou só mais um animalzinho, o fato é que eu estava causando brigas no recreio e depois promovendo escândalos na sala do diretor tentando negar que tivesse agarrado e beijado um menino no corredor, acusação que toda a escola confirmava, e inclusive começava a parecer um estranho hábito. – O Leo vocês podem beijar à vontade, não é? VINTE Aparentemente naquela tarde horrorosa em que eu me sentia um fracasso e ao mesmo tempo tinha passado a odiar o mundo ainda mais, meus pais resolveram que era inadiável A Grande Revelação. Cheguei em casa sem dizer nada, joguei a mochila na cama e bati a porta do meu banho, todos os sinais de que hoje não era dia para informações. A camisola depois até que trouxe um conforto e na sala tinha uns sanduíches bonitos que eles tinham feito e estavam os dois atrás dos pães sentados me olhando. – É mentira, eu já falei. Eles fazem isso porque eu sou feia. – A gente quer te explicar uma coisa, Carmelina. Normalmente essa frase é boa e traz alguma novidade importante pra engrossar o caldo do banho-maria. Mas quando vem com o Carmelina é porque estão achando que eu não vou gostar. Eles se atrapalhavam e riam e pareciam duas crianças e ficavam puxando o alface pra fora do pão e, em resumo, retirados todos os nomes que tentaram inventar, eles estavam namorando o Leo. E já fazia vários meses, e eles queriam o direito de parar de mentir, de viajar escondido, de disfarçar tudo, ou seja, queriam pular essa nova adolescência deles que nem tinha começado pra mim. Eu achei um completo absurdo, uns com tão pouco e outros com tanto. Eu ainda estava de pé na sala com o cabelo molhado escorrendo na camisola e um sanduíche na mão e a minha solidão parece que se multiplicou por três, e as pessoas à minha volta se aglutinando em blocos de amor, e a minha vida que era inteira somente casa e escola estava me jogando cada vez mais para o lado até que eu achasse um canto escondido sem incomodar. E eu que tinha percebido naquela tarde que quantos menos homens existissem no mundo tanto melhor, agora descobria que minha família estava querendo ainda mais um, e não me importava que o Leo não se parecesse com o diretor ou com os moleques do corredor, ele e meu pai certamente tinham sido assim, talvez tivessem sido ainda mais terríveis, os dois, um em cada canto da cidade gritando BICHA BICHA, certamente gritaram, até eu gritei por alguns segundos, ou pior, os dois explicando que não iam beijar uma gorda, os dois ali na minha casa se amando e amando a minha mãe que de fato andava contentíssima e estava tendo um ano ma-ra-vilhoso coisa que até então eu pensava que era por causa da loja e me achava a heroína das nossas finanças por ter encontrado o Leo. Eu ainda tinha o sanduíche na mão começando a escorrer a maionese e de repente me veio a lembrança de que eu poderia estar morrendo, o que até daria a essa tarde um tom dramático bastante ideal, e respirei e segurei, e só depois soltei, diversas vezes, mas eu continuava com vontade de escândalo. Era uma semana de gritos. Respirar longo, vontade de arremessar o sanduíche na cara da minha mãe, segurar o ar, queria perguntar como é que ela tinha guardado toda essa beleza só pra ela, guardado tanto que não me deixou nenhuma, gritar que todos esses anos ela só fez me entupir de comida até eu ser uma coisa boa de se empurrar no pátio, soltar o ar bem devagar, tudo isso pra ficar colecionando esse monte de homem, respirar mais ainda e bem fundo, tive vontade de chamá-la de nomes terríveis, e tudo isso só contra a minha mãe porque do meu pai eu não sabia nem sequer o que pensar, pra mim ele estava sempre brincando, segurar o ar, e além disso era