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Se Deus me chamar nAo vou - Mariana_SalomaIo

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A queda
 
As palavras
faltam
quando mais
se precisa
delas
são apenas
a sombrinha
do equilibrista
ajudam
talvez
mas não salvam
faltam
quando mais
se precisa delas
se você cair
de uma grande altura
por mais bonita
que seja a sua sombrinha
não conte com ela
para amortecer
a queda
 
ANA MARTINS MARQUES
Querido Homem-aranha,
meu nome é Maria Carmem (Carmem com m) e eu não
tenho superpoderes.
Eu tenho um pouco de pena de você porque seu tio
morreu por culpa sua e odeio quando uma coisa ruim é
culpa minha, tipo quando meus pais não puderam ir na
festa de ano novo porque eu tomei chuva e tive
pneumonia.
Acho que se um bicho fosse me morder pra eu virar
super-heroína eu nunca ia escolher aranha. A aranha tem
muitas pernas e é sozinha demais lá em cima na teia tanto
tempo esperando alguém aparecer. E quando um inseto
finalmente gruda ali, ela passa uns minutos olhando,
imaginando como seria viver com ele.
Daí ela mata o visitante. Uma vez numa viagem eu vi
uma aranha comendo um vaga-lume que não parava de
piscar. Ele já devia estar sem as asas e sem as perninhas e
mesmo assim ficava acendendo no canto do teto. Achei a
aranha tão cruel, espero que você mate os seus vilões
muito mais depressa.
Será que o vaga-lume pisca de dor? Se eu pudesse
brilhar de dor eu seria um escândalo.
Você corre tão rápido, na aula de educação física a
professora disse que eu não tenho fôlego. Sabe, Homem-
aranha, se um dia você precisasse descer de um edifício
pendurado na teia comigo nos braços acho que você não
ia aguentar, ou a teia ia arrebentar, porque eu tenho muito
tamanho, meus colegas me mandam tirar a cabeça da
frente da lousa.
Acho que eu escolheria uma águia, em vez de aranha,
assim não precisaria escalar os prédios, eu subiria voando
e enxergaria os criminosos lá de cima com os meus olhos
incríveis, depois eu rasgaria os inimigos com o meu bico.
Mas talvez, se uma águia me mordesse, como eu tenho
muito tamanho, ela não desse conta de me transformar
em Mulher-águia, e eu viraria a Menina-pomba, e os pais
iam afastar as crianças que tentassem me dar milho, eles
iam dizer que eu passo doença.
Talvez seja melhor eu escolher coruja, assim minha mãe
ia me deixar sair à noite.
Se eu tivesse os seus poderes, eu jogaria teia de aranha
no cabelo dos meus colegas. Apesar que na verdade eles
ficariam apertando o botão do meu pulso e forçando meu
braço pra trás pra jogar muita teia no meu olho e na minha
boca.
Eu queria saber como você faz pra perceber quem são os
vilões, porque a aranha não sabe, ela mata até mesmo o
vaga-lume que pisca de dor e tem uma luz tão bonita, e
como é que você descobre que uma pessoa precisa ser
salva no outro bairro, queria saber se você tem contato
com deus.
Porque mesmo deus, que às vezes nem existe, ele não
sabe muito bem quando as pessoas estão caindo ou
sequestradas, ou talvez ele só consiga prestar atenção em
um bairro de cada vez. Talvez deus, se ele existir, devesse
enviar outros insetos mágicos que iam morder outras
pessoas e fazer mais heróis, assim nenhum bairro ficava
desprotegido.
Se eu tivesse os seus poderes, no recreio em vez de ficar
sentada tentando arrancar as pedrinhas do chão do pátio,
eu ia fazer várias teias de aranha no teto, ia tentar jogar
minha teia cada vez mais alto, também no teto da capela
da escola e até no menino jesus, e eu faria teias até
mesmo em cima das aranhas de verdade pra elas verem
que o meu material é melhor, a escola ia ficar inteira
coberta com as minhas teias, o sino nem ia mais conseguir
bater e a gente ia ficar pra sempre na aula de redação,
que é a minha preferida.
Sabe, Homem-aranha, eu preferia fazer a carta para o
Super-homem, porque ele é imortal e eu queria perguntar
pra ele como é isso de saber que nunca vai morrer, eu
preferia esse poder, de nunca morrer, além de voar, mas a
professora me sorteou você, e tudo bem, as teias são
ótimas.
Eu e você podíamos chamar muitos vaga-lumes pra
grudarem numa teia gigante e à noite a gente ficava
olhando o pisca-pisca que ia parecer um céu cheio de
estrelas muito, muito perto, mas sem nenhuma aranha
comendo a luz, não teria nenhuma dor, nenhum inimigo, e
então a gente olharia as luzes a noite inteira, as
estrelinhas-lume embaçando no olho, até parecer que
estávamos voando muito alto, mais ou menos como o
Super-homem, e pensaríamos que somos imortais, que
nosso coração não pode mais parar de repente, e então eu
teria a minha resposta mesmo tendo feito esta carta pra
você, e não pro Super-homem, porque é assim que ele se
sente, agora eu sei, todo eterno.
 
Maria Carmem Rosário, 6º ano A
SUMÁRIO
CAPA
FOLHA DE ROSTO
EPÍGRAFE
INTRODUÇÃO
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
CATORZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE
VINTE
VINTE E UM
VINTE E DOIS
VINTE E TRÊS
VINTE E QUATRO
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS
kindle:embed:0003?mime=image/jpg
VINTE E SETE
VINTE E OITO
VINTE E NOVE
TRINTA
TRINTA E UM
TRINTA E DOIS
TRINTA E TRÊS
TRINTA E QUATRO
TRINTA E CINCO
TRINTA E SEIS
TRINTA E SETE
TRINTA E OITO
TRINTA E NOVE
QUARENTA
CRÉDITOS
UM
Esta é a história deste ano, deste meu ano, não do ano de
todo o mundo, porque cada um está tendo um ano todo seu
e eu só posso contar a história do ano que é meu. A não ser
quando eu for escritora, aí sim vou poder contar a história
do ano dos outros.
Minha professora falou que eu escrevo muito bem. Eu nem
sabia que era possível escrever mal, pensava que ou se
sabia escrever, ou não. Então ela me disse que um dia eu
serei escritora, o que me deixou muito frustrada. Perguntei
se isso queria dizer que eu não podia mais escrever até que
eu fosse escritora. Ela ficou me olhando, no começo parecia
distraída, depois pegou minha mão e, assim como se fosse
uma de nós brincando de professora, falou, com grandes
movimentos na boca, que muito pelo contrário, Maria
Carmem! Que eu devia continuar praticando muito, muito
mesmo, e só assim eu seria escritora.
Talvez ser escritora não fosse só escrever, mas escrever
muito bem. Ou pelo menos escrever muito, igual uma
corredora. Não é porque de vez em quando eu corro atrás
de um ônibus que eu sou corredora.
Daí isso me pareceu um pouco injusto, porque meus pais
viraram vendedores a partir do primeiro dia que resolveram
tocar a loja da vovó e começar a vender coisas. Aliás,
desconfio que até mesmo antes disso já fossem
vendedores, porque eles falam muito sobre os papéis, os
papéis da loja, e sem os papéis não podem vender nada,
então penso que existe um papel que você assina ou
compra na prefeitura – tudo na vida é produzido pela
prefeitura, eles são ótimos, e a minha professora também é
ótima, ela quem me ensinou a usar esses travessões no
meio das frases, embora ela diga que eu uso
excessivamente, mas eu gosto demais, parecem desvios de
tema pra testar se o leitor está interessado mesmo no
assunto – enfim, existe um papel que transforma a pessoa
em vendedora, e eu tenho certeza que meus pais assinaram
isso antes de assumir a loja e vender qualquer objeto
porque meus pais são muito honestos e legalizados – a
professora pediu para trocar legalizados por legais, mas não
quero; ela também me manda colocar vírgulas antes de
qualquer “mas”, mas eu expliquei pra ela que essas vírgulas
que a gente não sente dão vontade de parar de escrever.
Eu não tenho ainda um papel de escritora, mas achei que
este ano está sendo um ano que merece estar num livro, e,
como o ano é meu, pode muito bem estar num livro meu.
Esse ano acaba sendo também dos meus pais, porque na
minha idade as coisas costumam ser todas deles. Minha
mesmo só a prisão de ventre, que às vezes parece que tem
vida própria e que sou eu que pertenço a ela.
Não sei em que momentos encerrar capítulos. Decidi que
cada vez que eu precisar sair do computador, tipo para
tomar banho, comer ou ir para a escola, vou encerrar um
capítulo. Assim os capítulos do livrovão ficar parecidos com
os capítulos da vida de verdade.
DOIS
Eu completava 11 anos esquecida bem no meio de janeiro –
o que quer dizer que talvez eu faça doze anos enquanto
escrevo esse livro [1] –, ajudando minha mãe na loja de
velhos. Gosto de chamar de Loja de Velhos porque parece
que vendemos velhos.
Com o tempo, comecei a acreditar que isso é verdade,
porque os velhinhos precisam de uma porção de coisas que
já fazem parte do nosso corpo, e parece que, peça por peça,
estamos vendendo velhinhos inteiros. As pessoas vão lá e
pedem coisas que eu nem imaginava que alguém poderia
precisar, e eu vou procurar lá em cima, em caixas com
etiquetas mais ou menos em ordem alfabética. Às vezes
volto para confirmar, peço para soletrarem, e acontece de
simplesmente não ter, e minha mãe fica com um pouco de
raiva do cliente, como se fosse culpa dele que um parente
precisasse de uma coisa tão absurda.
Meu aniversário caiu na terceira segunda-feira do ano. Eu
li na internet que esse é o dia mais triste do ano. Todos
sérios nas ruas lamentando o calor, a semana, o ano que
começa, já sem qualquer esperança de natal, ou promessa
de ano novo, e ainda longe do carnaval.
Minha mãe passou o dia sentada na frente do ventilador,
abrindo e fechando um livro que eu emprestei e ela adiava
desde o ano anterior, e mexendo num cacho do cabelo da
frente que ela gosta de enfiar por dentro do brinco gigante
de argola. Quase nenhum cliente veio, e os poucos que
apareceram buscaram coisas que não tínhamos, ou não
gostaram da minha explicação sobre o andador dobrável –
nosso funcionário sempre tira férias em janeiro, já que eu
posso ficar pra ajudar.
Eu não quero nunca precisar das coisas que a gente
vende, e de vez em quando sentia que podia ser uma
maldição: de tanto ganhar dinheiro – aparentemente, não
muito dinheiro – com as coisas que os velhos precisam – em
vez de doar para a caridade –, vamos precisar um dia de
tudo isso e ninguém vai dar.
Antes de começar a ajudar na loja, eu achava que meus
pais eram velhíssimos. Daí entendi que não, e depois
percebi que são mais jovens que os pais dos meus colegas,
muito mais jovens. Acho que tiveram pressa em me ter,
deviam estar muito ansiosos. Mas agora não parecem tão
entusiasmados assim, às vezes eles não têm muito o que
me dizer.
Acho que meus pais começaram esse ano muito
frustrados, minha mãe me explicou que é culpa dos Planos.
Disse que os Planos são uns moços muito bonitos que ficam
caminhando em volta da cabeça dos jovens e vão sumindo
bem devagar, ninguém percebe, e a pessoa acorda um dia
que nem minha mãe com muita saudade deles, mas não
tem mais nada, os Planos todos desapareceram e ninguém
sabe dizer exatamente quando.
E meu pai ouviu e completou que os Planos são inimigos
das Noites, essas sim umas malditas, ligam música alta,
trazem muita bebida, e os Planos não conseguem se
organizar com toda essa barulheira e vão indo embora, pra
alguma cabeça onde eles possam ficar pensando. Minha
mãe riu, mas depois disse que ele estava simplificando
tudo. E era de noite, e eles saíram. Estavam muito bonitos,
talvez mais bonitos que os Planos.
Algumas noites, ou minha mãe ou meu pai passa um
tempo me olhando, e eu acho que está procurando alguma
coisa pra conversar comigo. E então finalmente faz algum
comentário crítico sobre o meu cabelo ou minha roupa, eles
se incomodam com quase tudo em mim. Ou eu acho que se
incomodam.
Esse ano eu descobri que sou gorda. Ou pelo menos um
pouco gorda. Nunca tinha verdadeiramente me dado conta
disso, só ia pondo roupas largas e achava que desse jeito
ninguém ia perceber, e não tinha importância. Só que eu fui
fantasiada de Branca de Neve pra uma peça da escola, e
um colega me disse que essa princesa estava muito
gordinha. E dentuça. Descobri isso também, o problema
com os dentes.
Passei a sorrir nas fotos com os lábios fechados, e o
resultado é que nenhuma foto deste ano faz o menor
sentido.
Resolvi fazer uma semana de regime. Achei que seria
suficiente, e economizaria muito dinheiro. A lembrança que
eu tenho dessa semana é de dor e cheiro de fome. Eu sentia
meu próprio hálito de vazio. É o cheiro de coisas antigas
sozinhas no estômago esperando a chegada das novas
comidas. Meu intestino – que é bastante tímido e no meio
do ano revelou seu poder de vingança – ficou praticamente
imóvel de tão pouca comida que chegava.
No recreio, vivia de migalhas que sobravam das colegas
que não tinham fome – meu maior desejo, para além de me
tornar escritora, passou a ser me tornar essas meninas –, e
guardava o dinheiro do lanche num novo fundo de
investimentos que eu mais tarde gastaria numa roupa
pequena e elegante que finalmente coubesse em mim e
agradasse aos meus pais.
Na sexta-feira, ao sair do colégio, eu fui tomada por uma
força invencível, era algo poderosíssimo que vinha por trás
da orelha e girava as asas dentro da minha boca produzindo
saliva, muita saliva. O fundo de investimento ainda estava
na mochila e eu ponderei – se é que foi possível qualquer
ponderação contra o crocodilo vampiro que me dominava –
que não seria possível engordar o que emagreci em cinco
dias, se eu comesse muita coisa tudo de uma vez num dia
só.
Voltei para casa levando na mochila um hambúrguer
dentro de uma embalagem de isopor que ia fazendo um
rangido sinistro conforme eu caminhava, um barulho que eu
associei para sempre ao som da derrota. Acabou que era o
hambúrguer mais caro e mais sensacional que eu já tinha
experimentado, queijos que eu nem sabia que eram queijos,
pão sofisticado, uma carne muito grossa desmanchando em
verduras que, pela primeira vez, não tirei, e que faziam meu
sanduíche parecer muito saudável.
Desde então não só fui incapaz de tentar novas dietas,
como fiquei muito mais exigente com os lanches. Tudo isso
só trouxe insatisfação, incluindo uma triste pesquisa no
google-imagens por “princesas gordinhas”. Também em
inglês.
Eu pareço bem mais velha do que eu sou, porque sou
muito alta e tenho peso, então as pessoas concluem que eu
tive mais tempo para crescer e engordar e, por isso, só
posso ser mais velha. Daí a idade que pensam que eu tenho
não combina nada com a roupa que eu uso, e com a minha
voz e as minhas perguntas. Acho que isso deixa a minha
mãe com vergonha porque a todo instante ela me apresenta
dizendo que eu só tenho 11 anos, veja bem, só tenho
tamanho.
Daí fico um tempo pensando que só tenho isso mesmo,
tamanho. Muito tamanho. Era meu aniversário, no dia mais
triste do ano, a loja quente, eu só tinha tamanho, não
tínhamos garfo flexível com engrossador pro pai do cliente
parado ali, e eu procurava uma posição na banqueta em
que meus pés não alcançassem o chão, porque é assim que
as coisas deviam ser na minha idade.
E de repente tudo ficou ainda mais triste quando descobri
que era possível que alguém precisasse de meias térmicas
resistentes a micro-ondas – que também não tínhamos –
nessa tarde em que a minha mãe sufocava na frente do
ventilador.
TRÊS
Tudo começou nesse meu aniversário, no dia mais triste do
ano, logo depois de fechar a loja. Minha mãe ligou a
televisão num daqueles programas que nenhum dos dois
gosta, mas ficam mais ou menos assistindo e interrompendo
pra lamentar como é ruim. Eu terminava de arrumar a mesa
pra minha festa, que era um bolo de padaria só para nós
três, e de abacaxi – o que só reforça o tamanho da tristeza
desse dia.
Meu pai veio lá da cozinha abrindo um vinho, e me sorriu
erguendo a garrafa como se com isso ele mostrasse que era
um dia para se comemorar, ainda que o vinho não fosse pra
mim e tivessem esquecido meu suco de laranja. O gato do
vizinho, que volta e meia aparecia não sei como na minha
sala, e que nunca me amou, ameaçava fincar as unhas nas
bordas da toalha da mesa e puxar, então eu me dedicava a
dobrar cada ponta e prender embaixo dos pratos.
Chamei atenção para a televisão, que tinha ficado ali
baixinho no canal insignificante, talvezpra gente sentir
umas vozes povoando o aniversário. Sentamos os três no
sofá e aumentamos o volume. Um jovem – alguém que eu
finalmente identifico como tendo mais ou menos a idade
dos meus pais – era entrevistado ao lado de alguns
velhinhos, e falava sobre o trabalho dele. Enquanto nós
tentávamos desesperadamente vender velhos, esse moço
estudava tudo que um velho podia precisar, e fabricava, eu
acho, ou encontrava quem fabricasse. Tudo com ares de
cuidado especial, amor, dedicação, paixão, no lugar de
idoso ele dizia vovô, como se todo velho fosse avô, e na
verdade acho que todos são.
Eu corri para pegar um caderninho, embora meus pais
tentassem fingir desinteresse. Anotei Pós-graduação em
Gerontologia Integrativa, Gestão Gerontológica, Marketing
Gerontológico, Design Gerontológico, meus deus, eles criam
de tudo, esse pessoal da prefeitura é demais. E o mais
importante, anotei o e-mail do moço, já que ele comentou
que trabalhava também em consultoria para lojas
especializadas, e fazia conexões com as marcas mais atuais
e importadores mais antenados com as necessidades dos
vovôs – isso tudo eu anotei.
Eu fazia 11 anos e entendi que dali em diante só precisaria
de mais e mais coisas, e que um dia alguém mais novo que
eu teria de estudar e investigar e até inventar objetos que
me ajudassem a continuar fazendo as coisinhas de sempre.
E que a nossa loja era isso, era um cuidado, não era uma
maldição que um dia causaria nossa ruína, nem um abuso
nem uma extorsão do dinheiro de velhinhos.
Eu precisava salvar a loja, ainda que fosse no dia mais
triste do ano. Todo fim de ano eu sentia que parecia ainda
mais com aquelas lojas de filmes natalinos minúsculas, de
madeiras que rangem, em que um senhor parecido com o
Gepeto do Pinóquio tenta vender antiguidades, e que têm
um sininho na porta que toca muito raramente quando um
cliente entra, daí pergunta onde pode encontrar cigarros por
ali, e o velho mais ou menos Gepeto fica triste, mas
ninguém sabe que o Gepeto é o próprio Papai Noel ou uma
das antiguidades é uma lâmpada mágica. As meias
antitrombóticas poderiam ser meias de natal para pôr na
lareira, mas de toda forma ninguém tem lareira aqui.
Depois do bolo de abacaxi com um Parabéns melancólico
que meu pai um pouco bêbado insistiu em cantar, os dois
discutiram muito sobre a loja. Costumava ser assim sempre
que começavam a enxergar uma solução, porque pensar
numa solução era reconhecer que as coisas iam muito mal,
e eles revezavam no papel daquele que nega a existência
da crise. Naquela noite era minha mãe.
Ela achou o homem teatral e cheio de estudos, duas coisas
que eu até então pensava que eram boas. O pai dizia que
era por isso que a gente afundava, desatualizados,
deixando faltar material, sem nada de novo para sugerir a
quem precisa de alguma coisa que não sabe o que é.
Precisamos de um profissional orientando as pessoas, não
sua filha, ele disse. Eu sempre viro filha apenas do outro
quando gero algum desgosto.
Isso também descobri naquela noite, que é possível ter
uma necessidade sem que se saiba qual é. Tipo um velhinho
que não consegue mais mastigar e fosse na nossa loja e
aprendesse que precisa de dentes.
Agora, quase no último trimestre, penso aquilo que eu
tentei pensar naquela noite e não consegui – ou precisava
pensar e nem sabia. Que essa história de viver vendendo
coisas que os velhos precisam não faz bem pra quem ainda
não entende quanto tempo falta pra ser a nossa vez, pra
nossa casa estar cheia de andadores, assentos altos para
privada, antiderrapantes.
Especialmente porque todos na loja e no prédio comentam
que o tempo passa muito rápido, quando vai ver, já passou.
Eu acho que passa muito devagar, ainda mais quando estou
com fome, mas eles que sabem, os adultos, já entenderam
tudo, e se eles dizem que passa rápido eu acredito. E tenho
muito medo.
QUATRO
Percebi que já sei encerrar os capítulos. Eles encerram
sozinhos, eles acham a hora deles. Desse jeito, são os
capítulos que estão controlando as minhas coisinhas diárias,
tipo xixi, banho, comida. Só não controlam a escola, isso só
quando eu for escritora e o livro for mais importante que a
escola.
Falei pra professora e ela disse que isso é fascinante. Essas
palavras fortes que ela escolhe me fazem pensar que a
minha mãe a descreveria como teatral e cheia de estudos, e
que eu não poderia escrever isso aqui já que a professora
está lendo tudo e ajudando, mas não tem problema porque
essas duas palavras ainda parecem coisas boas pra mim.
Talvez seja assim com os velhinhos também, como os
capítulos. Ninguém precisa decidir que certa parte da vida
acabou. O corpo sente sozinho que não dá mais pra andar
sem ajuda de alguma coisa que vendem na loja de velhos, e
então, naturalmente, alguém vai lá e compra, e começamos
um novo capítulo da vida. Vai ver é assim, e nem assusta
tanto.
Na escola meus colegas não precisam de muita coisa, eles
correm bastante. As meninas são quase todas pequenas e
delicadas. Algumas têm namorados na sala de aula, e ficam
dando as mãos. Às vezes acho que dão as mãos só para
mostrar aos outros, e quando apenas eu estou olhando
chego a me sentir importante. Estão dando as mãos para
me impressionar.
E impressiona, porque isso é o tipo de coisa que nunca vai
acontecer comigo. Existem as pessoas com quem essas
coisas acontecem, e aquelas que não nasceram pra isso,
nasceram para ser escritoras ou vendedoras de velhos ou
as duas coisas. O que é muito grave porque nunca vou
conseguir impressionar ninguém da minha sala, já que eles
não leem, nem compram nada na Loja de Velhos.
Às vezes fico imaginando que alguns deles aparecem lá
para comprar alguma coisa muito importante para o avô, e
sou eu que atendo, e mostro todos os produtos, explico
como usa cada coisa, indico a melhor marca, e como
conservar, e como ajudar o velhinho a não sentir tanta dor
ao colocar, depois sento na banqueta para fazer a notinha
fiscal, e usar a calculadora bem na frente deles, e de um
jeito que meus pés não toquem o chão e eu pareça
pequena, e eles saiam de lá muito impressionados.
Meus pais brigam muito, mas se amam exageradamente,
nenhum poderia viver sem o outro. Talvez seja igual aos
objetos dos velhos, cada um tinha uma necessidade que
não sabia bem o que era e o outro veio preencher. Isso me
irrita porque é como se meus colegas estivessem dando as
mãos na minha frente pra me impressionar o tempo todo,
dentro da minha casa, nas viagens, na loja.
Minha mãe diz que quando eu for mais velha todos esses
colegas que eu hoje admiro vão me causar pena e eu vou rir
dessa minha inveja. Mas quando eu for mais velha vou
precisar de fraldas e andadores e meias de compressão,
então essa risada não vai valer de muita coisa.
Acho que existem crianças mais solitárias que os velhos.
CINCO
Prezado Senhor Leonardo Delgado
 
Temos uma loja de velhos e eu gostaria muito que nos
ajudasse a melhorá-la, temos muito interesse nos seus
produtos de Gerontologia Integrativa, Gestão
Gerontológica, Marketing Gerontológico, Design
Gerontológico, que o senhor falou na televisão.
Será que poderíamos marcar uma visita?
 
Atenciosamente,
Família Rosário
SEIS
Eu não contei a ninguém que tinha mandado o e-mail, mas
fiquei desesperada quando ele respondeu, quase uma
semana depois. Percebi que meu e-mail tinha minha foto
numa espécie de perfil, ou algo assim, e ficou muito claro
que eu era meio criança. Também ficou claro que Leonardo
Delgado tentou disfarçar isso, mas sua habilidade era muito
maior com velhos.
Terminava o e-mail dizendo que teria muito prazer em nos
ajudar, que bastava que meus pais preenchessem uma
ficha anexa e ele telefonaria assim que possível para
“estudar as melhores possibilidades para o nosso negócio”.
Apoiei o celular na cabeceira e fiquei um tempo olhando as
estrelinhas de neon do teto do meu quarto, pensando se eu
levaria uma bronca grande ou pequena. Concluí que no
máximo seria humilhada,e repetiriam que eu só tenho
tamanho, o que eu já sabia, muito tamanho.
Levantei e fui até a cozinha. Poderia escrever que meus
pais estavam ali tomando café da manhã juntos, porque era
domingo, mas é o meu livro e enquanto eu não for escritora
sou obrigada a dar minha própria versão das coisas. Meu pai
estava ali, como sempre amando minha mãe daquele jeito
como nenhum homem jamais me amará em toda a minha
vida, e eu apareci, feito um bloco de solidão, que é a minha
consistência.
Eles me estenderam o pão e a manteiga, como se isso
pudesse resolver, ainda que fosse mesmo ótimo. Depois de
mil voltas no assunto, contei do Leonardo Delgado, e me
enrolei tanto que a coisa ficou muito mais sinistra, eles
acharam que eu estava mantendo contatos virtuais com ele
me passando por minha mãe, e que eu andava divulgando
por aí que a loja estava indo mal, o que nem seria verdade,
dessa vez segundo meu pai.
Depois dos quinze minutos que o computador demora pra
ligar, ficamos os três olhando a tela, variando entre o meu
e-mail e o dele, até minha mãe clicar no anexo, comentando
que poderia ser vírus, e se espantar com a vastidão da ficha
que devíamos preencher. Meu pai chamou de Detalhes
Gerontológicos. Ela riu. Ele fez um carinho no cabelo dela,
do jeito que nenhum homem jamais fará em mim. Depois
imprimiu a ficha pra ler com calma no banheiro.
Uma das perguntas iniciais era Por que você quis ter uma
loja voltada para idosos e doentes? Meus pais responderam
que herdaram da minha avó. Depois vieram me chamar pra
pensar em alguma coisa. Sentei diante do computador, os
dois atrás de mim olhando a tela. Era uma sensação boa,
embora arriscada, porque assim ao vivo eu tinha de acertar
de primeira.
Uma loja especializada para pessoas que precisam de
tantos cuidados é um comércio afetivo.
Eles acharam ótimo. Pedi um biscoito, e fui preenchendo o
resto. Como é a vizinhança da loja. Bem jovem, e talvez
esse seja o nosso maior problema, mas em seguida um
asterisco conduzia ao fim da folha em que ele pedia que
não desanimássemos com nada disso, porque clientes
jovens precisam de coisas para seus pais e avós. Era demais
o quanto esse cara conversava com a gente, eu sentia que
se eu perguntasse alguma coisa lá do meu quarto ele
mandaria um e-mail respondendo.
A vizinhança da loja, e portanto a do nosso apartamento
também, atende a todo tipo de necessidade especial,
principalmente para quem precisa de prostitutas e para
quem é prostituta e precisa de coisas que prostitutas usam.
Mas a isso Leonardo também responderia que prostitutas
envelhecem ou têm avós. Mas eu acho que muitas
prostitutas já abandonaram seus avós. Não, na verdade,
elas é que foram abandonadas por eles muito antes. E elas
devem morrer muito cedo porque eu nunca vi uma
prostituta velhinha ali na rua.
Todo dia passo em frente a uma loja de botas e roupas
para elas. Tem uma bota branca muito alta que tem
praticamente o comprimento da minha perna, mas é
provável que não caiba na coxa. Ela é de verniz e é
maravilhosa. Às vezes eu imagino que eu junto muito
dinheiro e compro essa bota, e também um dos vestidos da
mesma loja, bem curto, e prendo o cabelo tipo as atrizes de
filme da tarde, com brincos de argola iguais aos da minha
mãe, e fico atrás do balcão da Loja de Velhos, e quando
meus colegas vão lá comprar coisas pros seus avós eu saio
lá de trás e caminho lentamente nas botas até o centro da
loja, e começa a tocar Livin’ La Vida Loca, que é a música
que minha mãe dança muito bonito com meu pai na sala
quando os amigos deles vão lá, e eu faço uns passos de
ginástica olímpica que vão saindo bem fácil de mim, e assim
que a música acaba eu começo a apresentar os produtos e
meus colegas estão impressionadíssimos.
Quando eu era um pouco mais nova perguntei pra minha
mãe por que ela não se vestia que nem essas moças
sempre paradas perto da nossa casa, com essas roupas
bonitas e aqueles sapatos muito altos e brilhantes, minha
mãe não usa nada brilhante, e até as tatuagens dela têm
poucas cores. Ela riu e me respondeu que aquelas moças
estavam trabalhando, e me explicou que o que ela e o papai
faziam por amor elas tinham que fazer com os homens
como trabalho, recebendo dinheiro. Eu fiquei pensando que
então tinha uma esperança pra mim, se eu nunca fosse
amada eu poderia contratar alguém pra isso. Hoje que eu já
entendo melhor eu continuo querendo pelo menos a bota
branca.
Passamos o domingo todo preenchendo a ficha, e depois
que enviamos ficou uma sensação de que tudo estava
resolvido, como se a ficha fosse terapêutica só por organizar
em tabela a nossa quase falência.
Papai comprou uns salames e cervejas e chamaram uns
amigos sem filhos. Quando é assim eu fico ainda mais no
quarto com vergonha porque fica muito evidente, pra todo o
mundo, que eu não tenho ninguém pra mim.
SETE
Era o primeiro dia de aula e eu estava mais ansiosa com a
visita do Leonardo Delgado do que com os três ou quatro
nomes novos na turma, sempre uma menina bonita demais
e uns moleques com cara de ruins, manias com bonés e
tênis largos. Nunca vou compreender a ideia de um tênis
largo.
Minha mãe estava sentada na cama tentando consertar
um despertador, como se o Leonardo não tivesse a menor
importância. Meu pai tinha chegado mais cedo do serviço e
arrumava a sala, bem nervoso, escondendo bagunças atrás
de potes e revistas. Perguntou se eu tinha gostado da turma
nova e eu disse que sim, eu sempre tenho de gostar da
turma nova, já que a escola custa igual ao plano de saúde
da família inteira e eu não posso ficar reclamando. Tinha um
catálogo de pizza do lado do telefone, e saquei que meus
pais não tinham a menor ideia de como ia ser essa visita
técnica.
Desde que eu descobri que sou gorda, parei um pouco de
tentar ser sensual com todos os homens novos da nossa
vida, o que deve ter sido mais confortável para o Leonardo.
Ele entrou com um sorriso bem menor que o da televisão,
comentou do calor e foi tirando um paletó que a minha mãe
chamou de blazer, e a camisa dele estava suada. Ele
aceitou uma cerveja, que meu pai achava que ele não ia
aceitar e nem tinha colocado tantas pra gelar. Leonardo
aceitou todas as coisas oferecidas e a noite não terminava
nunca.
Ele me falou que eu fiz muito bem em enviar o e-mail e
que ele gostou das nossas respostas. Dai ficou revendo uma
por uma, como se fosse uma entrevista, e acho que era. Ele
tinha o cabelo preto cacheado e a barba um pouco grande,
parecia forte, os cílios eram longos que nem eu queria que
os meus fossem, a boca grossa, o dente bonitinho que nem
o meu vai ser depois que a loja melhorar e tivermos
dinheiro pro meu aparelho. Falou que a vizinhança é bacana
pra loja, sim, porque tem pouca oferta.
Eu pensei que oferta fosse promoção, fiquei pensando que
ele estava errado, aqui tinha oferta de tudo o tempo todo.
Depois minha mãe me explicou.
Eles pediram pizza, o que eu tinha duvidado que fosse
acontecer. Leonardo explicava uma porção de coisas de
mercado e gerontologia, e ele fazia parecer tão legal ter
uma loja como a nossa que acho que meus pais estavam de
fato interessados. Mostrou muita foto de produto novo e uns
milagres que a internet poderia fazer por nós. Fiquei o
tempo todo na sala esperando que ele falasse sobre valores,
eu queria saber quanto poderia sair essa pizza. Era injusto
passar tanto tempo ali sendo tão bonito e revolucionário e
depois dizer que vai cobrar um milhão de dólares.
Eu acabei indo dormir antes de o Leonardo dar qualquer
sinal de que ia embora. Minha mãe tinha entrado um pouco
no quarto dela, e voltado com o cabelo de um jeito legal, e
meio perfumada. Eu notei e ela ficou com vergonha, depois
riu. O pai falava com ele sobre o cinema legal que tinha
fechado e reabriu ali perto, falou que o horário da loja é
bom porque fecha um pouco antes da sessão das sete.
OITO
Esse ano na sala chegou um menino que chama Carlos.
Colocaram o Carlos sentado lá no fundo, do meulado,
provavelmente porque ele também é alto – não tanto
quanto eu, porque não existe, mas ele tem um cabelo
grande – e ocupa toda a visão. É muito desagradável ser
uma criança que ocupa toda a visão.
Carlos é um nome de seis letras, igual Carmem. E as três
primeiras letras são iguais às minhas, e significam carro, em
inglês. O que quer dizer que vamos nos casar e até ter um
carro juntos, que meus pais não têm, porque eles dizem que
não gostam, mas eu sei que é porque é caro e não temos
garagem.
Eu vou dirigir o nosso carro até a praia e ele vai ligar o
rádio. Vai tocar Livin’ La Vida Loca e eu vou encostar o carro
de repente na beira, descer e dançar a coreografia certa
igual minha mãe faz e ele vai ficar olhando pela janela. Mas
antes disso, talvez semana que vem, o Carlos vai precisar
comprar aparelho de infravermelho pro avô dele e eu vou
explicar direitinho como usa, e minha mãe estará lá nos
fundos no banheiro, e eu vou dizer que controlo a loja
totalmente sozinha.
Eu ainda não tinha conhecido o Carlos muito bem, porque
era mais ou menos começo do ano, mas ele foi o primeiro
menino legal que existiu. Ele era bom mesmo, bom de um
jeito que os meninos não sabem ser. Ele levava caixinha de
suco pro lanche, mas às vezes ele não conseguia esperar
até o intervalo, e eu sentia cheiro de laranja na aula. Daí
toda vez que alguém tem uma laranja eu penso no Carlos.
Ele tem uns cachos grandes e não deixa a mãe cortar.
Escuta umas músicas no fone de ouvido, músicas bem
antigas, que parecem de dançar. Antes de a gente
conversar pela primeira vez, ele me deixou ouvir um pouco
junto com ele, enquanto o professor demorava. Eu tentei
pôr a mão no lápis em cima da mesa dele, como se fosse
uma distração, pra ver se ele punha a mão em cima, mas
ele ficou olhando o aparelhinho e procurando a próxima
música.
O Carlos não gosta de futebol, anda devagar pelo corredor,
fala comigo, não fica brincando de dar soco nos outros, e
toma banho antes da escola, porque o cabelo está sempre
molhado. Ele era definitivamente o melhor menino que
existiu.
Um dia ele estava lendo um livro antes de começar a aula.
Eu olhei a capa e não era livro obrigatório, nem era de
vampiro. Depois ele me emprestou e era muito bom, sobre
uma droga que os estudantes consumiram e ficavam
obedecendo, feito robôs, e alguns alunos tinham de salvar
todo o resto. Nesse grupo de heróis tinha uma menina, e ela
namorava um deles. Eu queria dizer pro Carlos que a gente
era parecido com eles, mas eu não dizia quase nada pra ele.
Eu só ficava copiando a lousa imaginando que ele estava
me olhando, mas não sei se estava.
Eu conversei com deus e fiz um arranjado. Se até o fim do
ano a gente fosse namorado e ele pegasse na minha mão
no meio da aula na frente de todo o mundo e andasse
comigo até em casa, eu entregaria de graça três produtos
caros da loja pros velhinhos que precisassem.
NOVE
Minha mãe passou a semana distraída, a cara no celular.
Respondia absurdos ao que eu perguntava, como se
estivesse finalmente respondendo a algo que eu tinha dito
muitos dias antes. Uma noite, bateu no meu quarto toda
bonita e disse que estava saindo, e que o pai logo chegava.
E deixou na minha cama o livro que eu tinha emprestado
antes do ano novo. Eu fiquei um pouco sem saber qual
dúvida minha era prioridade enquanto ela estava cada vez
mais inteira fora do quarto.
– Você não vai mesmo ler?
– Terminei hoje na loja. Muito bom.
E ela saiu. Talvez eu estivesse enganada sobre ela estar
dispersa, comecei a achar que era o contrário, que ela
estava de repente concentrada em tudo que não fosse eu.
Ou a loja estava muito parada mesmo.
Quando um comércio está quase falindo qualquer cliente
que entra é muito importante. Meio igual a quando alguém
fala comigo na escola, a conversa fica repetindo dias na
minha cabeça, cada gesto que eu não devia ter feito, um
monte de palavra ruim que eu escolho. Ficamos dizendo o
tempo todo palavras que não são as melhores, as melhores
vêm só depois. Por isso que vai ser legal quando eu for
escritora, dá tempo de selecionar as palavras.
Às vezes o cliente entra, e a gente fica toda atenta,
achando que ele vai comprar um assento ortopédico e vai
salvar o dia, e ele pergunta se tem CD de música para
relaxamento, e logo sai. Ou olha a primeira estante e já
desiste, deixa a gente angustiado com a porcaria da
estante, o que deveria estar lá e não está. As pessoas
tinham que aprender a não entrar desse jeito na vida dos
outros.
Um dia eu vou sair do balcão e vou atrás de um cliente
desses, só pra implorar que ele me explique, pelo amor de
deus, o que há de errado com a gente, por que ele não ficou
nem um minutinho, por que não quis perguntar alguma
coisa, por que era tão óbvio assim que não teríamos nada
que interessasse.
O pai chegou e respondeu que não sabia onde a mãe tinha
ido, mas não pareceu se importar. Sentou e ficou lendo um
livro que não tinha em casa antes, não sei onde ele pegou.
Sentei do lado, com uma lição da escola. Foi difícil achar
uma posição confortável nas almofadas, e depois a luz
estava muito fraca, mas eu disfarcei tudo porque não queria
que meu pai sugerisse a escrivaninha do meu quarto,
sozinha. Ele fez um carinho na minha cabeça e tomou um
chá, e me ofereceu, sem tirar o olho do livro.
– Hoje o Leo foi com a sua mãe na loja. Ela deve estar
cheia de ideias.
O pai contou isso e eu não soube o que responder. Queria
perguntar então por que ela não estava lá pra contar tudo
pra gente. Ficamos sentados ali um monte de horas e a mãe
chegou com uns lanches, um pouco bêbada, e não contou
nada da loja, só disse que estava animada, que tinham
muita coisa a fazer.
Eles ligaram a música e começaram aquele show
particular de amor que eles esfregam na minha cara há
mais de 11 anos, um baile no centro da sala, cada passo na
hora certa, os cabelos pra cima e pra baixo parecendo
abertura de novela. Minha mãe era dançarina quando era
nova, mas duas coisas atrapalharam: eu, e a loja. Eu como
problema, e a loja como solução para o problema, eu acho.
Às vezes eu imagino que eles divorciaram, e eu faço
companhia para um de cada vez. Daí seríamos os três muito
sozinhos e silenciosos. Mas seria como se a minha solidão
tivesse se dividido por três, e ficasse mais leve pra mim. E
quando alguma professora perguntasse por que eu passo os
recreios sozinha eu diria que é porque meus pais estão se
separando e eu preciso pensar com quem eu vou ficar, já
que os dois precisam muito de mim. Isso só até eu
conseguir passar os recreios com o Carlos.
A dança terminou e eles estavam jogados no chão dando
muita risada. E não precisando de mim.
Fui guardar o material e ajeitar a mochila no quarto. Eu
preciso conferir três vezes na agenda as matérias do dia,
porque uma vez eu levei o material todo errado e não
consegui segurar o choro – justo na aula de português que
eu tinha caprichado tanto na lição e nunca mais ia ter
oportunidade de ler minha melhor resposta.
Eu inventei que o choro era porque eu achava que os
meus pais estavam se separando, e mesmo assim riram de
mim porque quase todos os pais se separam e não era pra
eu chorar. Uma menina comentou que ela nem conhecia o
próprio pai, e a professora cortou o assunto dizendo que não
era pra gente ficar competindo tragédia.
Minha mãe veio deixar água no meu quarto e falou pra eu
dormir bem. Ela parecia muito feliz.
DEZ
Adultos se divertem. Crianças se divertem. Eu não sei se
estou exatamente na idade em que ninguém faz nada de
bom, ou se isso de diversão simplesmente acabou pra mim.
Da minha janela vejo os vizinhos entrando no prédio. Eles
passam algum tempo procurando a chave do portão no
molho de chaves, então eu tenho de ficar bem concentrada
para abrir a porta pra eles com a mente exatamente no
instante em que eles abrem com a chave, chego a ouvir o
estalo. Quando eu erro, sinto que a porta abriu só mais ou
menos e por isso essa pessoa chegou só maisou menos em
casa, e alguém vai comentar que ela anda distraída e
ausente.
O dia tem um milhão de horas, mesmo lendo e escrevendo
livro. Acho que o tempo só passa se você tem alguém
respondendo ao que você diz, daí talvez divida o tempo por
dois, ou por três, depende de quantas pessoas estão na
conversa.
Minha mãe perguntou o que eu achava de passar o sábado
e o domingo na vizinha pra eles viajarem depois de fechar a
loja. A vizinha tem uma filha de 15 anos que é louca e fica
me dizendo pra eu nunca namorar porque sexo é muito
ruim e dói. Ela repete que eu devo dizer sempre não, e eu
fico pensando que talvez eu nunca tenha ninguém pra dizer
não.
Isso é uma coisa que eu não entendo bem, eu sei que tudo
isso existe, mas não pra todas as pessoas, algumas pessoas
não ganham sexo, como eu. Mas eu sei que meus pais
viajam juntos porque se amam e têm sexo e todo o mundo
viaja e têm sexo menos eu que fico com a vizinha que odeia
sexo.
– Por que eu não posso ir junto?
Minha mãe fez uma cara chateada e explicou que dessa
vez eles tinham um monte de coisas pra resolver e
conversar e por isso queriam ficar sozinhos. Senti que era
mentira, mas de qualquer forma eu não queria ir, queria
dormir sem ninguém em casa, mas nem isso os meus 11
anos permitem.
Antes da viagem dos meus pais, o Leonardo passou lá em
casa e tirou de uma pastinha um questionário que esticou
pra mim. Falou que eu sou muito boa com respostas e que
ele decidiu que se eu pudesse responder esse questionário
com calma durante a viagem “da mamãe” isso ia ajudá-lo a
me conhecer muito melhor. Ele gosta realmente de
formulários.
– Achei que seus estudos fossem sobre velhos.
Todos riram, menos eu.
À noite, a vizinha ficou vendo um programa insuportável
de jovens falando inglês e se gostando e sendo uma turma
de pessoas bonitas. Olhei a primeira questão do Leo.
Do que você mais gosta ?
De quando um doce está pra vencer lá em casa e minha
mãe manda comer tudo logo.
Do que você tem medo?
De a loja fechar e a gente ter de vender as coisas dos
velhinhos no farol pra continuar pagando a escola, e daí eu
vou mostrar uma bota ortopédica e tem um colega da sala
dentro do carro. Não tinha mais espaço pra escrever e eu
coloquei um asterisco e continuei no fim da folha: e de ficar
velha logo e ainda ser sozinha e não ter ninguém pra
comprar uma cadeira de rodas pra mim.
Comecei a achar legal, fiquei com vontade de imprimir
vários e distribuir na sala de aula e pedir pra me
entregarem na saída, eu poderia dar um bombom em troca.
Quando eu for professora farei isso, e sem bombom.
Uma das perguntas pedia uma vergonha. Não sei, não
sabia perceber direito quando tinha vergonha. Escrevi que
toda vez que eu vejo a polícia correndo com a sirene ligada,
ultrapassando todo o mundo, eu imagino que tem um
criminoso fugindo em algum lugar muito perto. E fundo
dentro de mim eu torço pra ele conseguir fugir. E daí tenho
vergonha de mim mesma, tipo uma eu-mesma que vive um
pouco pra fora de mim, mas meio dentro, e me enxerga
quando eu penso essas coisas.
O que você queria ter e não tem?
Coloquei cachorro, porque acho que o Leo pensava que eu
ia escrever namorado. Minha mãe diz que o apartamento é
muito pequeno pra um cachorro, e eu não entendo, porque
eu tenho tamanho e fico lá dentro parada o tempo todo.
O que é muito triste no mundo?
Respondi mulheres.
Depois outro dia ele veio me perguntar por que eu
respondi assim, e eu não disse nada. Acho as mulheres
muito tristes, algumas usam véu, outras têm muitos filhos
que puxam o peito, outras ficam na calçada trabalhando
pros homens, outras levam muito soco.
O que você mudaria na sua escola?
Eu faria uma turma só para os burros, que me irritam. E
não teria uniforme, porque uniforme me deixa muito feia. E
faria formulários como este, muitos deles.
Descobri que o questionário era imenso, várias páginas, e
eu guardei na bolsa pra ir respondendo aos pouquinhos. A
vizinha continuava vendo o programa.
– Você não quer me levar pra comer em algum lugar? Eu
tenho algum dinheiro.
Ela pediu mais dinheiro pra mãe e foi descendo a rua
comigo. Tinha muita gente mesmo, pessoas que estão nas
idades da diversão, rindo e se abraçando, essas que
provavelmente viajam juntas e compartilham comida.
Alguns meninos mexiam com a vizinha e ela xingava.
Ninguém mexia comigo, mas ela disse que era pra eu
aproveitar. Ela sentou num bar e pediu um monte de
coxinha e uma cerveja pra ela.
Eu tenho a mesma altura dela, mas só tenho tamanho.
Ela tentou me ensinar a jogar sinuca, eu não consegui e
ela se entediou. Uma menina fez amizade com ela, assim
como se fossem crianças num hotel, e as duas ficaram um
tempão jogando. Eu olhava as pessoas, e elas não me viam.
Gostei das roupas de todos, e dos cabelos. A amiga nova
veio falar comigo e eu perguntei se ela também não
gostava de sexo e a menina olhou muito estranho para a
vizinha, depois riram, e ela respondeu que até que gostava,
mas que eu teria tempo pra me preocupar com isso, e riu
mais, eu teria a vida toda pra me preocupar, falou uns
palavrões, bebeu a cerveja, ela era bonita. Eu preferia que a
filha da vizinha fosse ela.
A hora foi indo mais rápido do que em casa, e nós não
parecíamos estar perto de voltar. A amiga nova agora tinha
uma bebida vermelhíssima e eu falei que ela parecia uma
vampira bebendo sangue, mas ela não riu, e eu fiquei me
odiando. Digo, aquela outra-eu que vive meio fora, meio
dentro de mim e me enxerga ficou me olhando e passando
vergonha.
A moça sentou do meu lado e ficou vendo a bebida
vermelha.
– A gente devia estar num lugar mais divertido.
Eu estava achando aquele lugar fantástico.
– Onde você estaria se tivesse a nossa idade?
– Na casa do Carlos, eu acho.
– Quem é o Carlos?
A vizinha riu, mas ela não sabia quem ele era. Fiquei com
medo de ela começar o sermão enlouquecido sobre sexo ser
muito ruim e a amiga nova achar que eu também não gosto
quando na verdade eu não faço a menor ideia nem de como
funciona e isso eu também não quero que ela saiba.
– O Carlos é um menino. Ele é quase alto, e tem cabelos
lavados. E nunca xinga, nem anda rápido, nem joga
esportes, nem puxa cabelo, e às vezes ele lê um livro.
– Lê um livro? Jura?
– Juro por deus. E não é um livro obrigatório. E ele usa o
uniforme ajustado, e limpo, e anota a aula, e às vezes,
quando ele chega, diz bom dia. Assim, como se fosse um
professor.
A amiga nova estava me olhando completamente
chocada, e deu uma risadinha pra vizinha, que estava de
mau humor e não retribuiu.
– Olha, Carmem, eu acho que você precisa agir rápido,
você nunca vai encontrar um menino como o Carlos em
toda a sua vida!
– Não!?
– Bom, pelo menos não até os seus 16 anos, isso eu te
garanto.
– Nossa...
Eu não sabia o que era agir rápido.
– Como eu faço pra ele viver comigo?
– Você sabe se ele gosta de você?
– Ele me mostra as músicas dele.
– Ótimo. Então faz alguma coisa logo, não sei, mostra que
você gosta dele. Mostra que você é diferente, que você não
é dessas menininhas que ficam esperando esses moleques
se mexerem.
Foi o conselho mais confuso que eu já recebi em toda a
minha vida. De tudo que parecia fazer-alguma- -coisa, eu só
conseguia pensar em cambalhota, desenho, cartinha. Uma
cartinha não parecia me fazer diferente.
Mais tarde a vizinha subiu a rua comigo sem olhar na
minha cara. Bem irritada mesmo. Perguntei pra ela o que
era fazer alguma coisa e mostrar que eu sou diferente. Ela
mandou agarrar logo esse menino.
Tínhamos decorado o nome todo da amiga nova e antes de
dormir ficamos vendo as fotos dela na internet. A vizinha já
estava mais animada, e a mãe dela não brigou com a gente
por voltar meio tarde, e ainda trouxe leite morno com
chocolate no quarto pra dar sono, ela falou.
ONZE
Eu usava lancheira rosa com desenhos de princesas, mas a
diretora me achou no corredor e comentou que iam fazer
muita graça de mim, que eu já era muito grande. Comecei a
comprar na cantinaou levar o lanche num papel alumínio
dentro de um saco plástico muito adulto.
Era maio e a loja estava melhor, mas não o quanto eu
imaginava que ficaria. Eu tinha pensado algo que
envolvesse balões coloridos na porta.
Meus pais estavam trabalhando muito. Várias noites um
deles ficava com o Leo na loja até de noite, ou mesmo ele
ficava lá em casa até bem tarde. Teve uma noite que eu
jantei salsicha e fui pro quarto pra ler, mas acabei ficando
horas deitada na cama com o olho e o ouvido fechado
pensando no Carlos e em muitas coisas que a gente podia
viver juntos. E em diversos meios de eu fazer alguma coisa
e ser diferente.
Eu fiquei imaginando tanto que dava uma energia nas
pernas e eu chutava o colchão e tinha vontade de pular e
rir. Pensei que eu mudava de lugar pra sentar na frente dele
e ele fazia carinho na minha cabeça atrás do cabelo pro
professor não ver, mas todo o mundo via, e no intervalo
todos vinham puxar assunto com a gente só porque a gente
é junto. Todo o mundo não, alguns eu tirava da imaginação
porque eu não gosto nem de ver na frente. Daí eu pensava
que eles tinham faltado na escola por alguma razão, mas
me distraía imaginando a razão pra cada um deles ter
faltado, e atrapalhava um pouco.
Saí pra cozinha, chateada de ficar tanto tempo fazendo
isso, já era tarde e eu devia estar dormindo.
Vi o Leonardo na cozinha com o meu pai, estavam se
cumprimentando, mas as mãos ficaram ali, juntas. Foi um
carinho na mão. Depois um carinho no pescoço, e no
cabelo. E um sorriso.
Daí eles me viram e vieram muito atenciosos na minha
direção. Eu tive vontade de chorar e mais vontade ainda
porque não tinha exatamente um motivo pra chorar, era
pior do que quando eu esquecia de levar o material da aula.
Minha mãe apareceu também lá do quarto dela e
estranhou nossas caras, cada uma de um jeito, e eu pensei
que eu devia fazer alguma coisa, eu era responsável por
isso, eu que tinha mandado o e-mail pra esse homem.
Também pensei que era mentira que eu queria que meus
pais se separassem.
– Não vou completar seu questionário estúpido.
E voltei correndo pro quarto.
DOZE
A porta do meu quarto não tem chave, o que deve fazer
parte dessa maravilha que é ter 11 anos. Mas ela tem um
problema, é totalmente emperrada. Tem um desnível
inexplicável no chão, que exige que as pessoas deem um
tranco especial pra cima antes de virar a maçaneta. Minha
mãe fala que é preciso ter intimidade com a minha porta
pra saber abrir. Então é isso, meu quarto só abre pra quem
tem intimidade com a porta.
Naquela noite alguém foi até lá, devagarinho, e bateu três
vezes, bem fraco. Eu não disse nada, aumentei a música, e
fiquei com vergonha porque era uma música muito ruim.
Daí alguém forçou de leve a maçaneta, e não insistiu. O
Leonardo não tinha intimidade com a porta.
Depois de um milhão de horas, minha mãe abriu e veio me
trazer um suco – não era o leite quente achocolatado da
vizinha, que dava sono – e perguntou por que eu estava
esquisita. Eu disse que eu queria muito ter um namorado, e
ela riu, depois parou, porque eu estava muito séria. Ela
disse que era cedo, mas que daqui a pouco eu teria, que eu
não devia apressar essas coisas que eram só dor de cabeça.
Mas ela gostava de namorar o meu pai e não chamava de
dor de cabeça. Onze anos é a pior idade do universo, dura
pelo menos cinco anos. E tem fome, e às vezes cólica e
menstruação. Muita fome. Pelo menos depois de um tempo
emagrece um pouco porque a pessoa cresce muito, de
repente, mas isso quer dizer que depois eu fiquei maior,
mais tamanho.
Minha mãe passou a mão no meu cabelo, do jeito que eu
não gosto, que desata os cachos e faz ficar imenso. Mas eu
deixei. Eu imaginei que ela não sabia que o papai fazia
carinho no Leonardo também, e eu queria dizer, mas não
conseguia. Chorei um pouco e ela pareceu preocupada.
Perguntou se tinha alguma novidade que eu não estava
gostando.
Eu falei que o Carlos era novidade, mas eu estava
gostando. Ela deu uma risada bonita e perguntou se o
Carlos sabia dançar. Eu falei que achava que sim, porque
ele ouvia muita música. Ela me mandou aproveitar. Não sei
o que ela acha que existe para aproveitar.
Acho que eu descobri o problema da minha idade, as
coisas no mundo são todas divididas nas categorias 7 a 11
anos, ou 12 a 16 ou 18 anos. Daí que eu estou no limbo de
quem já fez 11 anos, que é a infelicidade. O que pode
querer dizer que vai passar, embora não tenha passado
para a vizinha de 15, que parece muito infeliz.
TREZE
O Carlos tinha levado na aula um caderninho, e ficou
rabiscando umas letras de música com uns desenhos. Eu
tentava ver mas o olho não alcançava. Eu sorri pra ele e ele
tirou o fone e perguntou o que eu tinha dito, e eu não tinha
dito nada.
Era preciso fazer-alguma-coisa. No intervalo ele foi saindo
na minha frente olhando pra dentro da sacolinha de lanche
dele. Não fazia sentido a gente não lanchar junto se
nenhum dos dois tinha companhia, mas agora eu já aprendi
que faz sim. Sozinho faz sentido também.
Não sei muito bem o que eu pensei, foi uma mistura muito
grande de informações, eu não sei por que as pessoas não
informam tudo de uma vez, deixam a gente ficar
aprendendo de pouquinho e fazendo confusão.
Ele virou no corredor e eu puxei o braço dele, o fone de
ouvido caiu no chão, e eu resolvi agir rápido, coloquei uma
perna em cima da perna dele e segurei uma das mãos, a
ideia era fazer um passo de Livin’ la Vida Loca igual ao da
minha mãe, era só um passinho pra congelar feito uma foto,
achei que isso ia mostrar que eu era diferente, mas como
ele não estava entendendo e tudo foi muito rápido, pensei
que eu devia garantir tudo com um beijo na boca, bem
curto, ia ser só um estalinho, mas tudo foi muito assustador
e talvez eu toda grande e perto demais, ele afastou a cara e
dobrou meu braço num golpe e com a outra mão me
empurrou no chão, e logo em seguida pareceu ficar
pensando se me puxava do chão ou pegava o fone de
ouvido que também tinha caído.
Doeu alguma coisa na minha perna esquerda e no pulso, e
ao mesmo tempo eu não conseguia levantar porque eu não
sabia pra onde correr depois que eu saísse dali, já tinha
muitos meninos em volta e eles riam e começaram a gritar,
e eu achei que iam gritar pra mim, umas meninas riam
também, mas era pro Carlos que eles gritavam BI-CHA BI-
CHA BI-CHA BI-CHA BI-CHA!
Parecia que não ia terminar mais, ele tentou sair dali, mas
eram muitos e eu continuava no chão e o Carlos nem me
olhava nem me ajudava, e quando eu vi eu tinha levantado
sozinha e estava gritando junto BI-CHA BI-CHA BI-CHA, com
muita raiva e mais força, e só aí ele me olhou e depois riu.
Eu fiquei olhando a risada sem entender como podia rir ali,
se era uma risada maldosa, se era nervoso, e daí eu corri
pro banheiro, corri daquele jeito feio que parece que uma
tonelada de pregos estão balançando dentro de cada perna.
Na aula seguinte a gente tinha de fazer um mapa do
estado de São Paulo com massinha e colocar cores
diferentes conforme o que era produzido em cada região
mas eu fiz um coração com vários buracos e a professora
nem me deu bronca porque eu sempre fazia tudo muito
direito. Deixei o coração bem do lado da mesa pro Carlos
ver, mas não sei se ele viu porque não nos olhamos mais.
Na aula de matemática o problema dizia que um menino e
uma menina precisavam calcular quantas laranjas levar ao
parque se os convidados meninos comiam tantas e as
meninas só mais tantas cada uma. E eu escrevi que não era
pra levar nenhuma, que tudo é mentira, ninguém vai junto a
parque nenhum nessa vida.
E na aula de português a gente tinha que olhar a imagem
de uma menina que estava perdendo o ônibus e escrever
um parágrafo imaginando a solução pra essa situação e eu
escrevi que a única solução pra nós todas é nunca tomar
nenhuma atitude, nunca sair de casa, nunca parar de olhar
a janela e abrir mentalmente o portão do prédio para os
vizinhos, e nunca fazer nenhum movimento brusco,que se
ela perdeu o ônibus ela tinha de esperar, esperar quieta e
pra sempre.
CATORZE
Eu estava jogada na cama e batia um lápis de cor no outro e
a minha mãe falou pra parar porque isso quebrava todo o
lápis por dentro e eu nunca mais conseguiria apontar.
Perguntei como-assim, como se isso tivesse qualquer
importância, e ela explicou que eu ia apontar e apontar,
mas toda vez que tentasse pintar a ponta já estaria
quebrada.
Parei com os lápis. Acho que minha mãe foi chamada na
escola.
Ela me disse que na minha idade as pessoas estão em
banho-maria, e que eu tinha de ter paciência. Eu achei que
fosse uma brincadeira com o meu nome, banho-maria-
carmem, mas depois entendi que estou mais ou menos
numa travessa de vidro cozinhando muito lentamente em
cima da água, pra eu não queimar, e uma hora eu vou virar
alguma coisa.
Não gostei. Nem do lápis que nunca mais aponta nem do
banho-maria. Minha mãe não usou a palavra cozinhando,
ela disse preparando. Que quando a gente não tem
paciência e prepara sem o banho-maria as coisas não dão
certo, pode até queimar. Falou que eu precisava acreditar
nela, que ia ficar tudo bem se eu ficasse boazinha no
banho-maria, que eu ia sair a mais forte de todas as Marias.
Os dias iam passando e os moleques continuavam dando
tapinhas na cabeça do Carlos e chamando de viado.
Perguntei pra minha mãe o que era, exatamente, viado e
bicha. Ela fez uma cara muito ruim, não para a pergunta,
mas para a palavra, e falou que era um jeito ruim de dizer
que um homem gostava de outros homens, e não de
mulheres. Isso eu já sabia, mas às vezes eu gosto quando a
minha mãe me trata como se eu fosse bem pequena.
– E se ele gostar de homem e de mulher?
Ela falou que as pessoas conseguiam xingar todo o mundo.
– O Carlos é um menino igual ao papai e ao Leo.
– Por que, o Carlos é um menino legal?
O Carlos depois de um tempo cansou e reagiu, começou a
explicar pra todos que era evidente que ele não era bicha,
mas que ele não queria uma menina gorda e feia. Logo os
meninos entenderam, deram risada. Inventaram uma piada:
cada vez que cruzavam comigo no corredor eles gritavam
de susto e davam um salto pro lado como se eu fosse pular
no colo deles e tentar beijar. Isso começou a piorar bastante
minha prisão de ventre, e a cada berro deles eu sentia uma
pedrada por dentro do umbigo.
Apesar de tudo, eu gosto muito de falar prisão de ventre,
acho tão bonito.
Quando você está em banho-maria as pessoas só vão
contando as coisas que você pergunta, mas você nem
imagina quais perguntas poderia fazer. E isso vai fazendo o
banho-maria durar uma eternidade.
Outra pergunta do questionário do Leo pedia pra contar
uma nova descoberta. Respondi que é possível que um lápis
pareça estar novo, mas todo quebrado por dentro. Que é
possível que um lápis não funcione. Que ele nunca escreva
nada, só porque algum idiota ficou batendo insistentemente
um lápis no outro.
QUINZE
A loja ganhou um site todo fantástico, e às vezes minha
mãe me pedia pra ir no correio levar alguma entrega. Ela
ficava muito agitada, arrumando noventa vezes a
embalagem, como se fosse um presente. O velhinho ia abrir
a caixa e achar que é Natal, e ficar todo contente com o
colete lombar que talvez seja a nova coluna dele.
No site tem minha foto sorrindo meio esfumaçada, talvez
pra embaçar meus dentinhos, fingindo que ajudo um senhor
comprido a caminhar. Não sei quem é esse senhor
comprido, o Leonardo que arranjou, talvez seja vizinho dele.
Muito divertido, trouxe umas balas e ficou olhando a loja
todo curioso como se os velhos que precisassem daquelas
coisas fossem alienígenas.
Eu gosto de ir no correio porque as pessoas ficam me
olhando e olhando a minha caixa e aposto que voltam pra
casa se perguntando o que uma menina tem pra enviar pelo
correio numa caixa grande. Os velhinhos passam na frente
na fila, e eu tenho vontade de dizer com licença isto aqui
também é para um velhinho.
Na Revolução Industrial parece que os idosos trabalhavam
como se fossem jovens, e as crianças também. Na verdade
não sei muito bem se eles eram tão velhos, parece que eles
não conseguiam viver tanto assim porque as lojas de velhos
eram muito ruins. Eu escrevi na prova que as coisas
mudaram, mas não totalmente porque em alguns lugares os
velhos e as crianças trabalham demais e sem ar pra respirar
direito. O professor gostou muitíssimo e até leu pra turma,
mas os colegas odeiam quando minha resposta aparece
muito.
O Leo surgiu com uma sanfona naquela semana. Eu fiquei
fascinada, parecia que ele estava entrando em casa com
um enorme bebê retangular e vermelho, e se ele vacilasse
os braços o bebê se espreguiçava gemendo com sua
barrigona enrugada. Ele tocava e minha mãe acompanhava
batendo uma faca de metal na outra, e meu pai ficou me
ensinando a dançar forró. Cantavam Ela só quer, só pensa
em namorar, Ela só quer, só pensa em namorar, e era
evidente que era pra fazer graça comigo mas tudo bem, eu
gostei.
Decidi que quando meus colegas fossem comprar algo
pros avós deles na loja, em vez de dançar Livin’ la vida loca
eu ia tocar aquela sanfona gigante, do jeito que o Leo fazia.
O Leo ouve pensamentos e lê respostas de questionários
que ainda não foram respondidos, e antes de ir embora ele
comentou que podíamos tocar um pouco de sanfona ali na
entrada da loja num sábado, só pra dar um ar de alegria.
E foi a coisa mais espetacular que a loja já viu, o Leo
tocava todas as músicas de sanfona que eram meio antigas
ou falavam de velhinhos, ou de esperar na janela, e as
pessoas olhavam e achavam que era alguma coisa muito
legal, daí percebiam que era uma loja de velhos, e riam,
mas aproveitavam pra dar uma olhada numa bolinha de
fisioterapia, lembravam alguma coisa que faz tempo que a
vovó tinha de começar a fazer, ou mesmo eles próprios
precisavam, como sentar direito no trabalho sem forçar os
ombros, e eles iam comprando coisinhas, ou só anotando o
nome da loja pra procurar na internet, dançavam de leve ali
na calçada mesmo, tiravam uma foto do Leo que é
bonitíssimo e toca sanfona, e eu me perguntei se os
velhinhos da Revolução Industrial não podiam ter alguém
tocando sanfona enquanto eles apertavam parafusos.
Também fiquei querendo que livros fossem igual sanfona.
Que tudo que eu escrevesse ficasse sanfonando na calçada
pras pessoas ouvirem, em vez de lerem, já que ninguém sai
lendo muito por aí. Daí as páginas abriam e fechavam no
meu braço e as palavras iam saindo e se eu escrevesse
muito muito muito bem igual o Leonardo toca, as pessoas
acabariam dançando.
DEZESSEIS
Em outro ano, não neste ano do livro, num ano já antigo,
minha avó que era a dona da loja de velhos ficou muito
velhinha também. Só que nenhuma das coisas da loja
resolviam, porque o problema era dentro da cabeça dela.
Minha mãe disse na época que era porque a vovó era
inteligente demais, daí tinha gastado a cabeça mais cedo do
que devia, e eu fiquei com medo de ser inteligente. Às
vezes minha mãe fala qualquer coisa achando que eu vou
esquecer e tudo bem. Quando eu tiver uma filha vou saber
que ela não esquece.
A vovó foi ficando meio bebê, mas um bebê pesado e
enrugado, e difícil de lavar, e às vezes ela ria demais, à toa,
e depois berrava, sem motivo também, um bebê gigante, e
eu fazia carinho no cabelo dela, mas quase já não tinha
cabelo.
Antes de ficar doente, ela era muito sozinha, daí algumas
tardes minha mãe me enviava pra fazer companhia pra ela,
mas na verdade eu fazia solidão. As duas ali no sofá, quase
no escuro, competindo qual solidão conseguia alcançar o
teto. Eu acho mesmo que as crianças podem ser mais
sozinhas que as velhas.
Daí quando vem o Lobo Mau as meninas contam tudo,
ensinam direitinho como chegar na casa da avó, a terceira
após a colina, e o Lobo chega antes e não sobra avó
nenhuma. Uma tarde fiquei imaginando o lobo comendo
cada pedaço e a vovó sem dizer nada nem chorar, só a
solidão acabando depressa. Depois fiquei com medoe foi
difícil dormir.
Às vezes ela falava comigo, perguntava da loja, da escola,
mas eu não sei se a resposta interessava de verdade, ela
tinha uma porção de coisas pra pensar por dentro, porque
ela era inteligente, não precisava ouvir o que eu pensava.
Só quando a cabeça dela deu problema é que ela ficou com
poucos pensamentos e por isso ria ou gritava. Antes não.
Um dia ela saiu do banheiro com a calça ainda abaixada e
veio arrastando os joelhos até a sala, dando risada. Eu
ajudei a se enxugar e depois avisei minha mãe que a vovó
não tava bem, mas no começo eu achei legal, ela ficou
carinhosa, parecia até feliz, menos pensamentos, só que
mais pra frente a cara foi ficando arregalada, um jeito de
susto, uns gritos imprevisíveis, e eu tinha medo, não queria
ficar com ela, mas minha mãe me obrigava, dizia que eu ia
me arrepender, os adultos são cheios de arrependimentos e
ficam achando que a gente vai ser também.
Um pouco antes de morrer, a vovó já sem andar, numa
cama dessas com rodinhas que minha mãe tinha alugado,
meus pais na cozinha preparando uma sopa, eu fiquei
alisando a mão dela que parecia um tronquinho seco, e por
um instante pareceu que ela tinha voltado ao normal, a cara
muito séria, eu até imaginei que engraçado seria se a vovó
tivesse fingido tudo isso, e agora piscasse pra mim, só eu
saberia, mas não, foi só um pensamento que tinha vindo,
um só, e ela me olhou, e falou bem baixinho e triste, o olho
cheio de água: Antônio nunca me amou.
Eu senti um monte de coisa ao mesmo tempo. Primeiro
que eu precisava dizer que sim, imagina, o vovô amou
muito a senhora. Só que era a primeira vez que me diziam
que era possível passar 60 anos do lado de alguém sem
amar. O vovô de fato parecia ter sido um homem que não
amou ninguém.
Também percebi que obviamente é isso que vai acontecer
comigo, eu vou morrer sozinha, sem cabelo, e mesmo muito
confusa ainda vou ter espaço pra essa dor, essa coisa total
que vai ser a minha solidão.
E também pensei que isso de não ser amada pelo marido
era gravíssimo, porque minha avó estava ali com uma
porção de problemas, dores no corpo, fraldas, engasgos, a
morte, e a única coisa que a fez parar e pensar e chorar foi
esse homem que já tinha morrido e talvez nunca de fato
tivesse amado mesmo.
Não consegui dizer nada, e acho que disso eu já tenho
aquele arrependimento. Não senti que eu tinha idade pra
dizer a uma mulher qualquer coisa sobre isso. E ela
continuava me olhando, talvez esperando uma resposta, é
só isso que ela precisava, como se eu fosse um anjinho
flutuando do lado da cama, e bastava que eu dissesse com
muita convicção que ela tinha vivido a mais bonita história
de amor de todos os tempos, e talvez ela tivesse morrido
feliz.
Mas eu não disse nada. E nem contei pra minha mãe,
porque ela ia ficar muito triste. Foi isso, eu dei o endereço
da vovó pro Lobo Mau e sumi. Ficou sendo meu segredo,
minha grande falha. O dia em que a vovó só precisava de
uma mentira, e eu não tive coragem.
DEZESSETE
Às vezes eu não durmo. Principalmente quando o dia foi tão
péssimo que eu não quero que o outro dia chegue porque
fico pensando que vai ser pior. Daí, antes de eu desenvolver
uma nova técnica, eu comecei a chantagear deus.
Mas era uma chantagem estranha porque eu não tinha
muito poder e pode ser que pra ele não tivesse importância
que uma menina parasse de vez de acreditar nele. Ou pode
ser que ele não exista mesmo, eu ainda não decidi, e algo
me diz que a minha opinião sobre isso não tem a menor
importância pra ele, se ele existir, então eu posso demorar
o quanto eu precisar.
Eu dizia que se eu não dormisse em quinze segundos,
deus não existia. E começava a contar. Cada vez que
chegava perto dos quinze, eu dava uma chance pra ele,
esticava até trinta, depois até um minuto, afinal ele podia
estar ocupado ou não ter me escutado, e quanto mais perto
chegava do sessenta mais eu me agitava, um pouco com
medo de dormir de repente e depois acordar muito
assustada com a presença desse deus, mas também, e cada
vez mais, com o medo de continuar contando, infinito, a
noite inteira, e nunca dormir, mais e mais sozinha, porque
não existia deus nenhum me escutando contar, e eu podia
ficar ali acordada por várias noites e vários dias que não
tinha ninguém me olhando e se importando comigo, e que
portanto era impossível saber quem estaria decidindo que
pessoas devem nascer e morrer, e que poderia ser alguém
muito mau, ou, pior, poderia não haver controle nenhum.
Um dia, completamente exausta de uma madrugada
inteira de contagem e ameaças e preces, entrei na capela
da escola e andei bem depressa até a figura que mais me
parecia conter deus, que seria Jesus, todo coitado ali em
cima, crucificado e sangrando, os olhos baixos de miséria e
tristeza, olhei pra ele uns segundos e estendi bem evidente
o meu dedo do meio, e sustentei por quinze segundos, que
era o tempo que eu achava que ele tinha pra me fazer
dormir, daí virei as costas e saí.
Foi bom, foi bem gostoso, por uns minutos. Depois eu
chorei, chorei muito, porque Jesus era tão bonito e dolorido,
ele sofria ali em cima há tantos anos, e as mãos estavam
presas de um modo que ele não poderia me mostrar o dedo
do meio de volta. Eu fui injusta, e egoísta, e muito ruim.
Levei vários dias um pouquinho do meu lanche pra ele. Eu
deixava embaixo da cruz, e na saída ia olhar e o lanche
continuava ali, e eu estava sempre com fome e acabava
comendo. No fim concluí que ele tinha me perdoado. Ou que
ele não existe. E que de toda forma, não serve para me
fazer dormir.
DEZOITO
Tem uma porção de maneiras estúpidas de uma criança
morrer. Por exemplo descer uma escada segurando um pote
de vidro em cada mão e escorregar e cortar os dois pulsos.
De todo jeito a morte sempre foi uma coisa barulhenta, a
criança com os pulsos rasgados vai gritar caída na escada e
esse grito vai ficar ali meio vibrando até a mãe entrar dez
minutos tarde demais, e a mãe vai viver pra sempre
imaginando aquele grito que ela não ouviu. A morte é uma
coisa que avisa, que arma um escândalo na rua, no bar, que
apita no hospital, que telefona na casa de todos os
parentes, e eles saem correndo como se agora adiantasse, a
morte pra mim era assim.
Mas daí, esse ano eu descobri que a morte pode ser
silenciosa, muito mesmo. E tóxica. É possível morrer velho e
quieto dentro da própria casa deitado na cama sem tempo
de gritar, e dessa morte não sai um aviso, um apito
imediato, não, as coisas fora da morte continuam iguais, e
essa morte quieta pode ficar três, quatro dias tomando
liberdade, contaminando as coisas que vão morrendo junto,
o colchão, a cama, o piso de madeira, começa a vazar um
sangue que não é mais necessário, e vai crescendo um
cheiro que nenhum humano vivo consegue suportar, só os
mortos.
E quando enfim a família descobre eles fogem batendo a
porta do apartamento e gritam o grito que o morto não deu,
e tudo é muito pior porque elas descobrem que deixaram o
morto sozinho três ou quatro dias, tão sozinho que não tinha
nem ele mesmo. Uma solidão morta, tão horrorosa que vai
tomando conta da casa inteira e quando finalmente alguém
descobre você já está metade consumido de solidão.
A família do Seu Vicente do terceiro andar ficou muito
tempo no portão do prédio chorando e rebobinando os
últimos quatro dias, onde estaria cada um deles enquanto o
morto estava tão sozinho, e eu tentava abrir mentalmente o
portão pra eles, mas não entravam, eles não queriam de
jeito nenhum entrar, e minha mãe comentou com o Leo que
o cheiro agora estava até no elevador, e meu pai lamentou
que o Seu Vicente tinha comprado outro dia mesmo uma
almofada térmica na loja, e que ele estava sempre sorrindo.
Eu desci até a rua tapando o nariz porque eu tive muito
medo do cheiro dessa morte e fiquei quieta no portão
ouvindo a família. Tinha uma menina um pouco mais velha
que eu e ela não conseguia nem chorar, parada com o olho
no interfone, talvezela quisesse testar, digitar o número do
apartamento do avô pra ter certeza de que nenhuma voz
contaminada e sombria responderia, a voz que ocupou a
casa quando não tinha ninguém.
Depois que eu descobri que a morte pode ser desse jeito,
eu concluí que ela também não precisa avisar que está
chegando, e eu não quero ficar sozinha nem um segundo
depois de morrer, então além da minha necessidade de
controlar o sono e também o cocô – que eu ainda vou
explicar –, comecei a tentar dominar a morte, ou pelo
menos prever a sua chegada.
Daí que de tempos em tempos eu me lembro disso, de que
eu posso morrer a qualquer tempo e tudo acabar, então eu
presto muita atenção na minha respiração, puxo o ar bem
devagar e fundo, depois seguro um tempo, e observo o ar
sair, e se isso está ocorrendo direito e dentro dos meus
comandos, é porque a morte não está aqui, se ela estivesse
eu puxaria o ar e ele não viria, ou sairia depressa antes que
eu mandasse, ou não encheria direito o meu pulmão, ou não
subiria até a minha cabeça.
Isso ficou um pouco complicado porque às vezes eu tenho
essa lembrança quando estou falando com alguém ou até
lendo alguma coisa alto em sala de aula e então eu pareço
de fato muito esquisita, e aí sim as pessoas vêm perguntar
se está tudo bem e talvez elas pensem que eu estou
morrendo, mas é o contrário, elas é que podem estar
morrendo neste instante e não sabem e vão entrar num
banheiro pra passar uma água no rosto e cair ali mortas,
sozinhas, até o dia seguinte, e deixar a escola inteira com
medo e nojo.
DEZENOVE
Um moleque foi fazer a brincadeira do susto e se jogar pro
lado ao me ver e acabou derrubando um cara mais velho
que passava e que não entendeu nada, os dois entraram
numa briga ridícula em que o menino tentava convencer o
outro de que eu ia de repente me jogar em cima dele e
tentar beijá-lo no corredor e o mais velho voltou com a
história de BICHA e o mais novo voltou com a história de
GORDA e dessa vez eu fiquei parada, bem parada e bem
séria, escutando e pensando meu deus quando será que o
colégio muda, e se não muda pra onde vão essas pessoas
todas depois, será que elas são o mundo, será que os
adultos são essas pessoas depois do banho-maria, fico
achando impossível, esses meninos nunca vão ser adultos.
Se me perguntassem eu escolheria que ninguém existisse,
ou pelo menos quase todos os alunos do mundo não
existissem ou ficassem trancados juntos numa sala gigante
sendo insuportáveis uns com os outros sem me trazer tanto
desgosto, não o mesmo desgosto que eu trago pra minha
mãe quando não gosto do bife, mas sim esse outro
desgosto, que quer dizer parar de gostar de todas as coisas.
No fim o moleque mais novo levou um soco, e por um
truque mágico da justiça escolar fomos parar os três na sala
do diretor que ouviu um de cada vez e a primeira pergunta
que ele me fez foi por que eu tinha tentado agarrar o
menino. Eu fiquei olhando pra ele e pensando um trilhão de
respostas e todas elas me faziam parecer uma menina
muito maluca e que por certo teria tentado beijar aquele
animalzinho sem banho, e mesmo sabendo disso eu
comecei a gritar que eu não acreditava no que estava
acontecendo naquele colégio de merda, eu disse assim
mesmo, quem eles pensavam que eles eram, dois
dinossauros trombam no corredor e eles resolvem acreditar
nessa gente – talvez na hora eu não tenha pensado em
dinossauros, algumas palavras só chegam quando a gente
escreve, eu devia ter escrito um e-mail para o diretor –, que
eu não quero beijar nunca menino nenhum na minha vida,
muito menos aquele, e homem nenhum valeria um beijo já
que até mesmo o diretor dessa escola é igualzinho aos
moleques-desgosto da minha sala.
É uma pena que na hora as coisas saíram com muito mais
palavrão e muito choro no meio das frases e minha mão
pegou e largou o peso de papel várias vezes como se eu
fosse arremessar no homem, sei que meus pais vieram me
buscar e é claro que somaram minhas angústias em casa
com tudo o que deve ter sido narrado pelo diretor e quando
me tiraram dali já era impossível que acreditassem em mim,
e na verdade não tinha tanta importância porque um mês
antes eu tinha de fato agarrado o Carlos e pra eles não
devia fazer a menor diferença se eu tinha agarrado um
menino limpo e legal ou só mais um animalzinho, o fato é
que eu estava causando brigas no recreio e depois
promovendo escândalos na sala do diretor tentando negar
que tivesse agarrado e beijado um menino no corredor,
acusação que toda a escola confirmava, e inclusive
começava a parecer um estranho hábito.
– O Leo vocês podem beijar à vontade, não é?
VINTE
Aparentemente naquela tarde horrorosa em que eu me
sentia um fracasso e ao mesmo tempo tinha passado a
odiar o mundo ainda mais, meus pais resolveram que era
inadiável A Grande Revelação.
Cheguei em casa sem dizer nada, joguei a mochila na
cama e bati a porta do meu banho, todos os sinais de que
hoje não era dia para informações. A camisola depois até
que trouxe um conforto e na sala tinha uns sanduíches
bonitos que eles tinham feito e estavam os dois atrás dos
pães sentados me olhando.
– É mentira, eu já falei. Eles fazem isso porque eu sou feia.
– A gente quer te explicar uma coisa, Carmelina.
Normalmente essa frase é boa e traz alguma novidade
importante pra engrossar o caldo do banho-maria. Mas
quando vem com o Carmelina é porque estão achando que
eu não vou gostar.
Eles se atrapalhavam e riam e pareciam duas crianças e
ficavam puxando o alface pra fora do pão e, em resumo,
retirados todos os nomes que tentaram inventar, eles
estavam namorando o Leo. E já fazia vários meses, e eles
queriam o direito de parar de mentir, de viajar escondido,
de disfarçar tudo, ou seja, queriam pular essa nova
adolescência deles que nem tinha começado pra mim.
Eu achei um completo absurdo, uns com tão pouco e
outros com tanto. Eu ainda estava de pé na sala com o
cabelo molhado escorrendo na camisola e um sanduíche na
mão e a minha solidão parece que se multiplicou por três, e
as pessoas à minha volta se aglutinando em blocos de
amor, e a minha vida que era inteira somente casa e escola
estava me jogando cada vez mais para o lado até que eu
achasse um canto escondido sem incomodar.
E eu que tinha percebido naquela tarde que quantos
menos homens existissem no mundo tanto melhor, agora
descobria que minha família estava querendo ainda mais
um, e não me importava que o Leo não se parecesse com o
diretor ou com os moleques do corredor, ele e meu pai
certamente tinham sido assim, talvez tivessem sido ainda
mais terríveis, os dois, um em cada canto da cidade
gritando BICHA BICHA, certamente gritaram, até eu gritei
por alguns segundos, ou pior, os dois explicando que não
iam beijar uma gorda, os dois ali na minha casa se amando
e amando a minha mãe que de fato andava contentíssima e
estava tendo um ano ma-ra-vilhoso coisa que até então eu
pensava que era por causa da loja e me achava a heroína
das nossas finanças por ter encontrado o Leo.
Eu ainda tinha o sanduíche na mão começando a escorrer
a maionese e de repente me veio a lembrança de que eu
poderia estar morrendo, o que até daria a essa tarde um
tom dramático bastante ideal, e respirei e segurei, e só
depois soltei, diversas vezes, mas eu continuava com
vontade de escândalo. Era uma semana de gritos. Respirar
longo, vontade de arremessar o sanduíche na cara da minha
mãe, segurar o ar, queria perguntar como é que ela tinha
guardado toda essa beleza só pra ela, guardado tanto que
não me deixou nenhuma, gritar que todos esses anos ela só
fez me entupir de comida até eu ser uma coisa boa de se
empurrar no pátio, soltar o ar bem devagar, tudo isso pra
ficar colecionando esse monte de homem, respirar mais
ainda e bem fundo, tive vontade de chamá-la de nomes
terríveis, e tudo isso só contra a minha mãe porque do meu
pai eu não sabia nem sequer o que pensar, pra mim ele
estava sempre brincando, segurar o ar, e além disso era

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