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METODOLOGIA DAS LUTAS Beatriz Paulo Biedrzycki Potencial pedagógico das lutas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar as potencialidades de ensino na dimensão atitudinal. Avaliar as potencialidades de ensino na dimensão procedimental. Indicar as potencialidades de ensino na dimensão conceitual. Introdução O esporte está presente na escola: na atual Base Nacional Comum Curri- cular (BNCC) (BRASIL, 2017), consta a introdução dos esportes de combate, que engloba as lutas como um todo e que tem o objetivo de permitir a experiência de diferentes práticas corporais. Dentro das lutas, ainda é possível observar diversas dimensões a serem abordadas durante a aula, visando um entendimento integral e completo das diversas modalidades que são embarcadas nessa categoria. É importante que, durante uma aula de educação física, trabalhe-se à luz das diferentes dimensões em que são separados os objetos de conhecimento. Neste capítulo, você vai compreender como é possível desenvolver habilidades na dimensão atitudinal, como construir conhecimentos de diferentes maneiras na dimensão procedimental e, por último, vai co- nhecer as possibilidades da dimensão conceitual. As lutas como estratégia educacional Desde 2017, com a formulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aparecem, dentro do contexto das práticas corporais, os esportes de oposição — incluindo as lutas — como um conteúdo obrigatório das aulas de educação física. Deve-se destacar que cabe à educação física muito mais do que ensinar o gesto motor correto: deve problematizar, interpretar, relacionar e analisar com seus alunos as amplas manifestações da cultura corporal, de tal forma que eles compreendam os sentidos e signifi cados impregnados nas práticas corporais (RUFINO; DARIDO, 2013). As lutas estão dentro dos esportes de oposição, ou seja, são esportes nos quais duas pessoas se opõem, sendo o movimento de uma determinante para o movimento da outra, o que sempre é imprevisível. É importante frisar que, dentro dessas modalidades, regras e códigos morais tendem a ser bastante rígidos e minuciosos quanto ao uso de suas técnicas fora do cenário do es- porte ou ainda como forma de vantagens pessoais. (GOZÁLEZ; DARIDO; OLIVEIRA, 2014). Por exemplo, a filosofia existente no judô preza por um movimento suave, em que a agressividade é reduzida para conseguir controlar melhor seus movimentos, visando uma evolução espiritual. Essa filosofia caminha de mãos dadas com o respeito mútuo, nunca visando a utilização da modalidade para machucar outra pessoa ou ameaçá-la de qualquer maneira, desbancando a ideia que as lutas tornam as pessoas que as praticam violentas. Esse conteúdo sempre foi muito controverso dentro das aulas de educação física, uma vez que as lutas ainda são vistas com caráter pejorativo, preconceitu- oso, de incitação à violência. Esse preconceito às modalidades normalmente está atrelado à falta de conhecimento sobre os esportes, ou ainda, à maneira como alguns técnicos e professores o abordam. A verdade é que a luta pode ser um aliado não apenas para o desenvolvimento motor daqueles que têm contato com ela, mas, ainda, auxiliar no desenvolvimento cognitivo e social desses sujeitos. No aspecto motor, podemos destacar a lateralidade, o controle e o tônus muscular, o equilíbrio, a coordenação motora ampla, a percepção espaço- -temporal, o esquema corporal e o tempo de reação. Já no aspecto cognitivo, observa-se o aumento da atenção, a percepção, o raciocínio lógico; por fim, nos aspectos atitudinais e sociais, são observáveis melhoras no desempenho de posturas sociais, como respeito, perseverança, autocontrole, e a responsa- bilidade (SOUSA, 2012). Você pode aprofundar seu conhecimento sobre a maneira como as lutas aparecem na Base Nacional Comum Curricular acessando o site no link a seguir. https://qrgo.page.link/ZAZK3 O potencial pedagógico das lutas2 Pensando no desenvolvimento cognitivo e social dos sujeitos é que vamos compreender como as lutas podem auxiliar o professor na construção das três dimensões de sua aula. Coll et al. (2000) pensaram em um formato no qual o conteúdo teria três formas, permitindo, assim, que pudessem ser aborda- das outras habilidades que não unicamente os “conteúdos” ou “disciplinas”, ampliando o cenário de atuação do professor. As três partes do conteúdo, segundo os autores, seriam: Dimensão conceitual: o que se deve saber? Dimensão procedimental: o que se deve fazer? Dimensão atitudinal: como se deve ser? Deve-se destacar que, embora as dimensões sejam divididas, na prática do processo de ensino e aprendizagem, elas devem estar interconectadas, não sendo possível realizar o ensino das lutas na escola em cada dimensão de forma separada — é preciso fazer com que interajam ente si, facilitando a aprendizagem dessas práticas (RUFINO; DARIDO, 2015). A seguir, apro- fundaremos os conhecimentos sobre a dimensão atitudinal. A dimensã o atitudinal das lutas Esta dimensão fala sobre os valores, normas e atitudes que estão vinculados com a prática educativa. A dimensão atitudinal se propõe a pensar a forma como o sujeito pensa e sente durante a prática, levando em consideração valores e a cultura a que ele pertence, assim como busca abranger as relações pessoais que o indivíduo estabelece com o ambiente e com o outro, indo além da atividade que está sendo proposta. Deve-se buscar responder à pergunta “como se deve ser?”, partindo de refl exões e questionamentos, e não de normas preestabelecidas. Quando pensamos a aula de educação física dentro dessa dimensão, per- cebemos que cabe ao professor de educação física problematizar, interpretar, relacionar e analisar com seus alunos as amplas manifestações da cultura corporal, de tal forma que eles compreendam os sentidos e significados que estão dentro das práticas corporais e das lutas. É importante sempre lembrar que a função da escola não é formar grandes atletas, competidores ou ainda lutadores, mas, sim, buscar trazer novas vivên- cias e possibilidades de práticas e manifestações sociais e culturais, prezando pela formação da cidadania a partir da ética e da autonomia. Assim, segundo Rufino e Darido (2015): 3O potencial pedagógico das lutas [...] compreende-se que a temática das lutas, a partir do momento em que é inserida na esfera da cultura corporal, também deve apresentar uma ampliação no que corresponde a seu tratamento pedagógico dentro da escola. Não só compreendendo os aspectos da dimensão procedimental, mas também tudo aquilo que esteja relacionado às dimensões conceitual e atitudinal. As lutas fazem parte da cultura de um povo e carregam consigo valores e comportamentos inerentes à sua prática, como respeito, dedicação, confiança e autoestima, visando o desenvolvimento integral do ser humano. Todavia, se esses valores ficarem só na questão da tradição e se não são questionados durante a prática pedagógica, a dimensão atitudinal no ensino das lutas corre o risco de não ser abordada de maneira minimamente satisfatória — o sucesso dessa prática depende muito da intencionalidade do professor e da sua maneira de abordar os conteúdos (RUFINO; DARIDO, 2015). Uma característica interessante que aparece em todas as modalidades de lutas é que o objetivo central é o oponente, que deve ser observado e respeitado. Por isso, o praticante é responsável por seus movimentos e cuidados, como, por exemplo, não utilizar golpes que venham a trazer lesões graves a seu compa- nheiro — nesse sentido, é preciso lembrar que não existe luta sem um oponente. Aqui, cabe ressaltar a diferença entre adversário e inimigo. O adversário refere-se à diferença de relação que há com o outro: com o adversário, não existe a relação de ódio, agressão, mas, sim, interação. Durante o combate, cria-se uma espécie de diálogo corporal, em que ambos atacam e ambos defendem, mas, quando o combate termina, ambos voltama ser colegas, sem que nenhum dos dois tenha se sentido agredido ou ainda desrespeitado (SOUSA, 2012). Já o inimigo se configura quando há uma relação de desrespeito com o outro e se usa o combate como maneira de agredir e desrespeitar o outro. Além disso, as lutas favorecem atividades nas quais seja necessário coo- perar e trabalhar em pequenos grupos, buscando o cuidado com o seu colega. O conteúdo das lutas oferece diversas possibilidades de abordar questões sobre humanidade e respeito ao próximo, sobre conceitos como luta e briga, discutindo suas diferenças e abrangendo diferente cenários nos quais ambas acontecem. Além disso, é possível discutir sobre modelos hierárquicos propostos. Ou seja, a luta permite discutir diversos assuntos, mostrando-se rica para ser tra- balhada na escola. O potencial pedagógico das lutas4 As lutas, mesmo sendo conhecidas como esporte individuais, buscam a cooperação e o trabalho em equipe em diferentes contextos. Ao desenvolver esse conteúdo nas aulas de educação física, o professor deve buscar trabalhar as habilidades que são importantes não só para o bom andamento das aulas, mas para o desenvolvimento social do estudante, que poderá beneficiar-se também na sua vida social com essas habilidades. As lutas podem ser uma boa estratégia para melhorar aspectos como a agressividade entre os estudantes e aquela dirigida ao docente durante a aula, já que elas buscam a interação social e de responsabilidade com o adversário, além de produzirem situações nas quais o estudante pode canalizar a sua raiva para o movimento. Aprender é muito mais do que reproduzir um gesto motor ou executá-lo à exaustão. A aprendizagem deve ser significativa, isto é, deve-se sempre ter condições para que determinada habilidade seja aperfeiçoada, permitindo que, assim, os estudantes construam o seu eu crítico, emancipando-se e adquirindo autonomia. Essa é, sem dúvida, a grande contribuição da dimensão atitudinal que as lutas trazem ao ambiente escola. Dessa maneira, essa dimensão pode auxiliar no desenvolvimento das habilidades motoras, pois propicia um ambiente agradável. Nesse sentido, é importante lembrar que os desenvolvimentos cognitivo, social e motor ocorrem mutuamente, e um exerce influência sobre o outro. Desse modo, o professor de educação física deve estar atento a todos os aspectos que englobam o desenvolvimento dos seus alunos. A dimensão procedimental nas lutas As lutas podem ser entendidas como quaisquer práticas corporais que apresen- tam características de enfrentamento físico com um oponente e são compostas por fundamentos e características importantes para a sua prática. Nesse contexto, está a dimensão procedimental do ensino, que é entendida com um conjunto de ações ordenadas e destinadas à realização de um fim predeterminado, tendo como característica o movimento em si, ou seja, a aprendizagem de procedimentos implica a aprendizagem de ações, gestos motores ou movimentos das atividades que se fundamentem em sua realização (ZABALA, 1998). A dimensão procedimental busca responder à pergunta “o que se deve fazer?”, que se refere não somente a realizar o movimento sem sentido, mas também a compreender os sentidos que compõem esse movimento, usando-o como as raízes que sustentam e dão força para as outras dimensões. 5O potencial pedagógico das lutas A dimensão procedimental pode, por vezes, ser vista como uma dimensão rígida, o que de certa forma pode ser verdade, quando a aplicamos de maneira isolada, sem englobá-la em um contexto. A técnica é um apoio que facilita o desenvolvimento do sujeito. Ao longo dos anos, a educação física se dedicou exclusivamente ao ensino exclusivo dessa dimensão, focando no saber fazer, e não no saber sobre a cultura corporal ou sobre como se deve ser. É claro que a forma como as técnicas são apresentadas as estudantes devem ser levadas em consideração, pois não se pode pensar na “prática pela prática”, na repetição infundada e vazia de sentido que resulta em alienação, mas, sim, buscar enaltecer as diferenças individuais como forma de emancipação dos envolvidos no pro- cesso. A prerrogativa que se abre não é mais se é possível ou não ensinar esses conteúdos, e sim o que ensinar desses conteúdos (RUFINO; DARIDO, 2013). Então, nesse aspecto, é possível utilizar os jogos como uma estratégia para o ensino das lutas, desde que sejam respeitadas as suas características básicas, quais sejam: enfrentamento físico direto, regras, oposição entre indivíduos, objetivo centrado no corpo da outra pessoa, ações de caráter simultâneo e imprevisibilidade. Veja, no Quadro 1, uma descrição de tais características. Fonte: Adaptado de Gonzálesz, Darido e Oliveira (2014). Enfrentamento físico direto As lutas exigem contato físico com outra pessoa, gerando enfrentamentos. Regras Cada modalidade possui regras rígidas e estabelecidas sobre competição, conduta e graduação. Oposição entre indivíduos Os praticantes se enfrentam durante o combate, em caráter de oposição um ao outro, sempre com o objetivo sobrepor o oponente, o que pode ser feito de diferentes maneiras, dependendo da modalidade. Objetivo centrado no corpo de outra pessoa Durante um combate, toda a atenção está voltada para as ações e os movimentos do seu oponente, uma vez que ele é o alvo e deve ser acertado. Ações de caráter simultâneo Ao mesmo tempo, acontecem movimentos de ataque e defesa, não havendo um momento específico para que cada um aconteça, o que faz com que seja necessário sempre estar atento. Imprevisibilidade Por conta da simultaneidade, as lutas se tornam imprevisíveis, pois não há como saber qual será o próximo movimento. Quadro 1. Características gerais das lutas O potencial pedagógico das lutas6 Rufino e Darido (2015) exemplificam com maestria a maneira como essa dimensão deve ser utilizada nas aulas de educação física: A técnica deve estar relacionada com outras dimensões humanas, como os nossos sentidos, os fatores subjetivos e as intencionalidades. Assim, podemos ampliar as perspectivas de ensino da dimensão procedimental, permitindo a ela ser significativamente importante, possibilitando o se movimentar dos alunos de maneira singular e significativa, a que eles possam dar seus próprios sentidos e gerar atitudes que sejam críticas e criativas sobre suas próprias realidades. Mais do que isso, possibilitando que os alunos possam conhecer, vivenciar, praticar e agir a partir de conhecimentos significativos sobre a dimensão procedimental. No livro Lutas, Capoeira e Práticas Corporais de Aventura, González, Darido e Oliveira (2014) propõem que o ensino das lutas na escola aconteça por meio de jogos e brincadeiras, acreditando no potencial pedagógico dos jogos tanto para a compreensão dos aspectos mais fundamentais das lutas quanto para o interesse e envolvimento dos alunos, contribuindo para a prática do professor, que pode ter mais possibilidades de intervenção nos processos de ensino e aprendizagem. Uma brincadeira muito tradicional que pode ser usada no ensino dos esportes de combate é o pega-pega, em que cada aluno possui um número determinado de prendedores de roupa espalhados pelo corpo e o objetivo é recolher esses prendedores de seus colegas, protegendo os seus. Esse jogo é uma excelente maneira de introduzir a luta nas aulas de educação física, pois, com ele, é possível compreender diversos fundamentos de várias modalidades. A dimensão procedimental é extremamente importante para que o ensino da modalidade em si seja alcançado, e é interessante lembrar que existem diversas maneiras de trazer esse conhecimento aos estudantes e que vão muito além de um modelo tradicional, em que os alunos aprendem a fazer os movimentos com o companheiro. É possível utilizar jogos e brincadeiras, tendo o lúdico sempre como um aliado da aprendizagem. Brincadeiras tradicionais, como cabo de guerra ou até um pega-pega diferente (como apresentado no exemplo anterior), são opçõespara essa finalidade. 7O potencial pedagógico das lutas Muitos são os movimentos básicos de lutas que podem ser utilizados na educação física escolar. Dentre eles, pode-se citar a ginga da capoeira e os rola- mentos, que são utilizados tanto no judô quanto no jiu-jítsu. Esses movimentos são de esporte praticados em alto rendimento e trazem consigo um caráter competitivo, mas é importante ressaltar que o gesto técnico especializado não é o principal objetivo na escola, que deve ser o lúdico. A competição sob forma de jogo sempre esteve presente, mas a sua manutenção não é justificável (FREIRE, 2002 apud GERMANO; MOURA, 2011). Diante disso, devemos pensar em como introduzir movimentos es- pecíficos das lutas nas aulas de educação física, utilizando estratégias lúdicas e buscando tirar o véu que cobre os olhos dos professores sobre o movimento — e que tem por característica mostrar o gesto motor como algo sem significado e importância. Cabe ao professor de educação física perceber o sujeito que se movimenta, suas intenções e os sentimentos que manifesta por meio do gesto motor. Isso significa ver o rumo do movimento, sempre na direção de buscar, no mundo, as partes que faltam ao homem para ser humano. É importante frisar que, ao optar por utilizar essa estratégia, algumas dificuldades ficam minimizadas, como o risco de lesões (que não devem ser ignoradas quando falamos com crianças, pois uma queda equivocada pode gerar uma lesão grave) ou, ainda, a insegurança do professor (que, por vezes, não tem uma formação ou vivência suficiente no mundo das lutas para ensiná-la aos estudantes) também quanto ao material, uma vez que não são todas as escolas que, na realidade da educação brasileira, tem à disposição todos os materiais para o ensino formal das lutas. Desse modo, a utilização dos jogos parece uma opção viável para o ensino das lutas na escola. Germano e Moura trazem uma visão dura, mas realista, sobre a educação física escolar na atualidade, destacando que ela: [...] está se tornando palco de exclusões de alunos, por esses não possuírem habilidades motoras adequadas para uma simples vivência motora durante a aula. Nos dias atuais, na área escolar, os gestos motores estão cada vez mais sendo cobrados pela ‘sociedade’ formada pelos alunos ditos como habilidosos, na qual o não habilidoso é deixado de lado. Embora a aula de educação física não seja instrumento para a formação de atletas, tem o propósito de formar o cidadão e, nessa formação, o desen- volvimento motor se mostra importante, uma vez que tem relação direta com O potencial pedagógico das lutas8 o desenvolvimento das habilidades sociais e cognitivas, das quais não pode ser dissociado (FONTANA; KEMPER, 2015). Todo ser humano nasce com uma habilidade motora, mas essa habilidade somente irá florescer com uma estimulação motora adequada. Nesse sentido, a luta surge como um facilitador do desenvolvimento. A prática das lutas, quando vista na sua dimensão procedimental, traz inúmeros benefícios, destacando- -se o desenvolvimento motor. Nesse aspecto, observamos o desenvolvimento da lateralidade, o controle do tônus muscular, a melhora do equilíbrio e da coordenação global, o aprimoramento da ideia de tempo e espaço. Hattori, Lima e Fernandes (2015) verificaram que crianças que praticavam a modalidade do jiu-jítsu apresentavam níveis de desenvolvimento acima do esperado para a sua idade. Isso também pode ser verificado no estudo de Melo et al. (2017), que testaram o desenvolvimento motor de 40 crianças antes e depois de uma intervenção de 12 semanas de kung fu. As crianças que participaram do estudo, em sua maioria, estavam abaixo do padrão de desenvolvimento esperado para a idade, o que mudou significativamente após as aulas de lutas, mostrando o potencial das lutas para propiciar um desenvolvimento motor adequado. A dimensão procedimental pode ser entendida como o “corpo” do ensino das lutas durante as aulas de educação física, e o professor deve ter sempre ter plena consciência dos objetivos (atitudinais, procedimentais e conceituais) que pretende desenvolver com determinada atividade, cuidando sempre para não manter o foco de sua atenção em ensinar fundamentos e técnicas, criando um contexto para a prática que está sendo realizada. A dimensão conceitual das lutas A dimensão conceitual abrange, como o nome sugere, os conceitos específi cos da modalidade. Essa dimensão é considerada a mais importante de ser abor- dada, pois requer estratégias didáticas diferenciadas, que tragam o estudante para uma imersão dos conceitos que se deseja abordar. Além do mais, essa dimensão exige leitura e estudo aprofundado constante por parte do professor. Barros e Darido (2009) referem essa dimensão ao entendimento dos significados, objetivos, princípios e possibilidades de conhecimentos re- lacionados a anatomia, nutrição, habilidades motoras, fisiologia, saúde, capacidades físicas, treinamento, aspectos históricos, sociais, econômicos, políticos, estéticos, culturais, regras, técnicas, táticas das práticas integrantes da cultura corporal. 9O potencial pedagógico das lutas A dimensão conceitual deve abranger os aspectos históricos, conceituais e de regras sobre as modalidades que serão abordadas, já que, somente a partir desse conhecimento, é possível entender as modalidades como um todo, seus valores culturais e sua importância dentro da sociedade, inclusive a brasileira, levando à reflexão crítica do mundo que nos cerca. Essa dimensão busca contextualizar o gesto motor, ou seja, refere-se a fatos, conceitos, princípios e o próprio contexto histórico da modalidade, a diferença de luta e briga, como essas lutas são tratadas pela mídia, entre outras questões (CORSINO; OLIVEIRA, 2008). Mas, afinal, o que significa ensinar conceitos? Durante a prática pedagógica das lutas, representa ensinar além das técnicas e dos golpes em si. É ampliar a visão de mundo dos alunos acerca dos conteúdos e da prática educativa, de maneira geral, ajudando-os a compreender conceitos, aspectos históricos, como a história de determinado golpe ou, ainda, o motivo de cada modalidade ter uma vestimenta específica. A dimensão conceitual é a que dá o sentido à prática, ou seja, mostra para o aluno o sentido e a função do movimento que ele está executando. Um bom exemplo seria o rolamento: ao rolar, o aluno está executando a dimensão procedimental, mas ele deve saber o que está fazendo, qual é o significado de executar aquele movimento e para que serve o rolamento. Nesse sentido, o aluno terá a possibilidade de apresentar um posicionamento crítico em relação ao movimento executado, o que será possível com a inclusão da dimensão conceitual. Diversas estratégias podem ser utilizadas no tratamento dos conteúdos dessa dimensão, como exposições, discussões, reflexões sobre a prática e resolução de problemas, construção de materiais para exposição, brincadeiras e jogos, sempre respeitando a faixa etária do estudante. A ampliação da inserção do ensino da dimensão conceitual dos conteúdos na educação física escolar favorece uma aprendizagem mais significativa para o aluno, na medida em que ele poderá apropriar-se do conhecimento cientí- fico, estabelecendo relações com seu conhecimento prévio, além de refletir e contextualizar os fatos, podendo, assim, ser um importante instrumento para o desenvolvimento de suas competências para a atuação autônoma na vida social e no exercício da cidadania. O potencial pedagógico das lutas10 Um exemplo para desenvolver a dimensão conceitual das lutas é uma brincadeira bastante conhecida, o “jogo da memória”. O professor pode construir fichas com imagens de diferentes modalidades de lutas ou, ainda, com curiosidades de uma determinada modalidade. É interessante que, em uma turma de 20 alunos, o professor tenha, pelo menos, 4 jogos da memória. O professor deve separar a turma em equipes, tendo 1 jogo da memória para cada equipe. Cada alunodeve virar duas peças por vez, recolhê-las se formarem um par ou devolvê-las para o lugar caso não combinem. Vence a equipe que conseguir resolver mais rapidamente o jogo da memória. Nessa atividade, é possível desenvolver as três dimensões conceituais, uma vez que é necessário trabalhar em equipe, desenvolver uma habilidade motora (já que os alunos podem saltar, correr, rolar, antes de chegar no jogo da memória) e ainda conhecer o conceito da modalidade esportiva que está sendo trabalhada. É importante salientar que a dimensão conceitual não é “à parte” da aula, deve estar presente em todos os momentos, sendo: [...] parte integrante do processo de ensino e aprendizagem, o que sugere a necessidade de valorização desta dimensão, ascendendo-a à condição de importância que deve ter durante a prática educativa dos alunos. [...] é conte- údo e precisa ser ensinado, ainda mais em uma prática corporal complexa e plural como as lutas e que apresenta inúmeras relações possíveis sobre essa dimensão (RUFINO; DARIDO, 2015). Infelizmente, o uso da dimensão conceitual nas aulas de educação física ainda é restrito a alguns conteúdos acerca de regras, técnicas e táticas es- portivas, que são comumente transmitidos de forma mecânica e, portanto, desvinculados de maiores reflexões. Por outro lado, as propostas que valorizam a inserção ou ampliação da di- mensão conceitual dos conteúdos nas aulas de Educação Física têm sido mal interpretadas, gerando a ideia de que valorizar o ensino deste tipo de conte- údo seria trocar a predominância do ensino de procedimentos, geralmente desenvolvidos na quadra, pelo ensino de fatos e conceitos, através de aulas teóricas, desenvolvidas em sala (BARROS, 2006, p. 7). 11O potencial pedagógico das lutas Esses desentendimentos quanto ao real sentido dessa dimensão geram grande desvantagens à educação como um todo, uma vez que as lutas permitem uma passibilidade de formação integral do sujeito de maneira ímpar durante as aulas de educação física. A dimensão conceitual é que cria o “cenário” e tem a capacidade de cativar o estudante para a modalidade, trazendo um contexto de curiosidade e deleite. Existem muitas dificuldades na execução da dimensão conceitual das lutas na escola, destacando-se a formação deficiente dos docentes, o que pode acar- retar preconceito quanto a ensinar as lutas na escola, por crençcas como as de que não são seguras, necessitam de muitos materiais ou, ainda, que deixarão os alunos mais violentos. É importante ressaltar que muitos profissionais de educação física se formam sem ter nenhum contato com as lutas durante toda a graduação (RUFINO; DARINO, 2013), mas não podemos ignorar que é dever do professor ensinar as habilidades e competência de diversas lutas, não havendo a necessidade de focar suas aulas em uma determinada modalidade. Sendo assim: [...] não é necessário que o professor de educação física tenha profundos co- nhecimentos das lutas para que elas possam ser tratadas na educação física escolar, contanto que o professor tenha uma formação que o possibilite ter contato com esses conteúdos, como [...] as formas de ensinar (LAÇANOVA, 2007 apud SOUSA, 2012, p.12). Quando o professor entende que não irá formar atletas ou competidores, é natural contextualizar as práticas educativas que traz para seus alunos como forma de fazê-los conhecer diferentes realidades, mostrando que, no contexto das lutas, o mais importante não é realizar uma mecânica perfeita dos movimentos, mas vivenciar as mais diferentes práticas corporais que farão parte da formação das suas memórias motoras, favorecendo a adesão dos alunos às práticas corporais. As lutas ainda sofrem muito com o preconceito das pessoas que as julgam unicamente pelos seus movimentos, que é o que se vê quando se observa qualquer uma delas. Por isso, o professor é tão importante e, com um movi- mento de trazer os conceitos importantes dessa modalidade, pode, a partir de debates e do conhecimento, trazer aceitação em relação a modalidades tão ricas. Ensinar as lutas é ampliar a visão sobre elas, possibilitando que sejam adquiridas novas perspectivas e novos olhares a seu respeito — e isso só é possível por meio da ampliação dos conteúdos. Dentro de uma perspectiva de educação, é fundamental considerar proce- dimentos, fatos, conceitos, atitudes e valores como conteúdos, todos no mesmo O potencial pedagógico das lutas12 nível de importância. Nesse sentido, o papel da educação física ultrapassa ensinar esporte, ginástica, dança, jogos, atividades rítmicas, expressivas e conhecimento sobre o próprio corpo para todos, em seus fundamentos e técnicas (dimensão procedimental), e inclui, também, os seus valores subjacentes, ou seja, as atitudes que os alunos devem ter nas e para as atividades corporais (dimensão atitudinal). Finalmente, pode garantir o direito do aluno de saber por que está realizando esse ou aquele movimento, isto é, quais conceitos estão ligados a quais procedimentos (dimensão conceitual). BARROS, A.; DARIDO, S. Práticas pedagógicas de dois professores mestres em educação física escolar e o tratamento da dimensão conceitual dos conteúdos. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 23, n. 1, p. 61-75, mar. 2009. Disponível em: http://www. revistas.usp.br/rbefe/article/view/16711. Acesso em: 21 maio 2019. BARROS, A. M. Práticas pedagógicas em educação física e o tratamento da dimensão conceitual dos conteúdos. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências da Motricidade) - Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2006. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/. Acesso em: 21 maio 2019. COLL, C. et al. Os conteúdos na reforma. 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