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Sabedoria e prodígios Graça comum na ciência e na arte Abraham Kuyper Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Monergismo Caixa Postal 2416 Brasília, DF, Brasil ─ CEP 70.842-970 Sítio: www.editoramonergismo.com.br 1ª edição, 2016 Tradução: Fabrício Tavares de Moares P������� � ���������� ��� ��������� �����, ����� �� ������ ��������, ��� ��������� �� �����. Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário. S������ Dedicatória Prefácio Prefácio do tradutor [do holandês para o inglês] Introdução 1. Sabedoria 2. Conhecimento 3. Entendimento 4. Pecado 5. Educação 6. Maravilhas 7. Beleza 8. Glória 9. Criatividade 10. Adoração Sobre o autor D���������� Para o dr. Rimmer de Vries, Em reconhecimento de seus empenhos ao longo da vida e de seu legado permanente como líder cultural, economista, visionário e seguidor fiel de Cristo, refletindo sempre a visão kuyperiana do senhorio de Jesus Cristo sobre todas as esferas da sociedade. P������� Nos dias atuais, aqueles que seguem a Jesus enfrentam numerosos desafios, um dos quais, não menos ferrenhos, são eles próprios. A vida na cultura ocidental tem sido cada vez mais descrita como “secular”, “amoral” e “ímpia”, ainda que vários servos fiéis de Deus se esforcem para dar sentido de uma situação pública que destrambelhou terrivelmente. A questão não é que determinado aspecto de nossa fé esteja sendo confrontado, mas, sim, que a própria plausibilidade da fé não possui credibilidade quando no que concerne à vida numa sociedade pluralista. Qualquer que seja a fé que ainda retenhamos, não raro aparenta mais como uma ressaca de um outro tempo do que uma fé robusta que molda o todo de nossas vidas hoje. Mas o problema está com os próprios cristãos? Lembramo-nos das famosas palavras de Walt Kelly: “Eu me deparei com o inimigo, somos nós mesmos!” Os cristãos atualmente se defrontam com um quadro sério dentro de si mesmos. Perdemos a compreensão coerente e holística de como o Evangelho, e por esse meio a prática da fé cristã, se relaciona com cada área da sociedade. Nossa confiança sofreu abalos até mesmo em seus fundamentos na medida em que nos empenhamos para oferecer uma realidade alternativa para um mundo ansioso. E eis Abraham Kuyper. Semelhante a muitos outros, passamos a conhecer a obra de Kuyper indiretamente, por meio do famoso evangélico Chuck Colson, quando, em seu livro Como viveremos?, exclamou: “os cristãos são chamados a aplicar a redenção à totalidade de suas culturas, e não somente a indivíduos”. Essa simples afirmação alterou todo o curso das coisas, pois revela uma verdade que muitos cristãos esqueceram, isto é, que nós, cristãos, temos o papel, na verdade uma responsabilidade, de nos envolvermos na renovação de cada domínio deste mundo. Nada deve deixar de ser tocado pelo poder transformador do Evangelho. Essa foi a influência de Kuyper. O teólogo holandês nos lembra — num tempo quando vários cristãos inconscientemente vivem vidas dualistas e desintegradas — que a totalidade da vida, não somente as “partes espirituais”, pertencem a Deus. Dallas Willard, dentre outros, diagnostica corretamente o problema quando descreve o “Evangelho truncado” adotado pela maioria. Nessa visão reducionista e defeituosa, ao invés de viverem as riquezas da narrativa bíblica plena da Criação, Queda, Redenção e Consumação, os cristãos, pelo contrário, se debatem apenas com os temas da Queda (pecado) e Redenção (a cruz). Isto frequentemente nos deixa confusos, levando-nos a questionar se é possível encontrar a beleza e a bondade num mundo extensivamente deformado pelo pecado; isso nos leva a perder de vista grande parte da operação divina no mundo. Quando agimos assim, reduzido a extensão da obra de Deus à remoção, espera e evacuação. Somos deixados a lutar, a fim de estarmos plenamente presentes no mundo, crendo que Deus irá, em última instância, abandoná-lo (este mundo) em prol de um domínio espiritual. Por outro lado, Kuyper acredita e ensina que a totalidade da criação, até sua plena consumação, pertence a Deus. Ele não é apenas o S����� dos céus, mas sim o S����� dos céus e terra. Como observa o salmista: “Do S����� é a terra e a sua plenitude” (Salmo 24.1). A obra de criação divina continua ainda hoje na plenitude e alegria de toda a vida e cultura humanas. Este é o entendimento coerente e a sensibilidade prática com relação à aplicação da fé no todo da vida que os conduz os leitores de Kuyper a uma derradeira epifania. Mas por que ciências e arte? Em Sabedorias e Prodígios, Kuyper aborda dois dos domínios mais difíceis que intimidam os cristãos nas nossas conversas modernas: ciências e arte. Muitos cristãos se sentem ameaçados pela ciência, creem que não é digna de confiança e que afronta a fé. Questões concernentes à bioética, evolução, gestão ambiental e a probabilidade de aumento das descobertas científicas por meio de novas tecnologias obnubilam a objetividade entre certo e errado, bem e mal. A arte é outro aspecto com o qual os cristãos possuem relacionamento desconfortável e indefinido. Vivemos numa época na qual nossas imaginações se encontram sob ataque, de modo que, na vida de vários indivíduos, a criatividade se tornou uma vítima. Não estamos aptos a discernir entre a boa arte e a arte pobre, e os patronos da cultura sólida já se perderam. Infelizmente, grande parte da arte apreciada por cristãos é classificada como “arte cristã”, que são incapazes de nos comoverem profundamente. Kuyper vem ao nosso auxílio, se empenhado em recuperar a noção de que a grande arte não deveria somente tocar nossos corações, mas também ocupar nossas mentes. Caso falhe nisso, não se configura como criativo. A insistência de Kuyper de que Jesus é, de fato, S����� sobre todas as coisas é ressaltada nas páginas deste livro. Sua convicção de que a ciência não é uma ameaça à nossa fé, mas uma aliada, e suas exortações para que celebremos a glória de Deus mediante a expressão criativa, farão, com regozijo, colocar cânticos novos de louvor Àquele que é S����� tanto dos céus quanto da terra. — Gabe Lyons Fundador do Q Ideas e autor de The Next Christians — Jon Tyson Pastor da Trinity Grace Church e autor de Rumors of God P������� �� �������� [�� �������� ���� � ������] A tradução de um livro, que, além da língua, também pertence a um tempo diferente, jamais é um processo tranquilo. Consequentemente, devemos apresentar aos nossos leitores uma série de decisões concernentes à tradução e edição que possibilitaram esta tradução de uma obra holandesa escrita há mais de um século. Essas decisões evidentemente envolvem alterações, subtrações e adições. Por exemplo, ao citar as Escrituras, Kuyper emprega a versão holandesa da Staten Vertaling ou suas próprias paráfrases do texto. A fim de sermos consistentes com o nosso objetivo de produzir uma tradução inglesa contemporânea dessa obra, utilizamos a English Standard Version (ESV) da Bíblia, salvo em casos apontados. Para auxiliar o leitor, em alguns pontos, substituímos as paráfrases de Kuyper pelo texto efetivo da ESV, de semelhante modo, fornecemos (em parênteses) as referências textuais específicas, que não constavam no original, tanto nas citações diretas das Escrituras quanto nas paráfrases. Para algumas referências e alusões com as quais, talvez, não estejamos familiarizados, acrescentamos notas limitadas com referências aos textos das Escrituras relacionados. Breves notas editoriais também foram adicionadas ao longo do texto, a fim de identificar pessoas, escolas de pensamentos ou eventos mencionados no original, que possam ser desconhecidos aos leitores contemporâneos. Outras alterações estilísticas também foram feitas, a fim de facilitar a leitura e em prol do bom aspecto. O itálico foi usado menos frequentemente na tradução do que no original. E, mais importante, parágrafos e sentenças extensos foram desmembrados, e cláusulas subordinadas foram,ocasionalmente, reorganizadas a fim de manter a ênfase presente no original. Também acrescentamos os títulos aos capítulos e as divisões internas. O título original do volume, em holandês, é o presente subtítulo; acrescentamos um novo título, Wisdom & Wonder, com o intuito de capturar a essência da mensagem kuyperiana. Ora, trazer, mediante tradução, obras de grande relevância intelectual para os nossos dias modernos frequentemente faz com que o tradutor e editor se confrontem com questões que envolvem perspectivas sócio-culturais delicadas, juntamente com a linguagem a elas relacionadas. À media que os tempos mudam, também os modos de expressão se alteram. Isso se aplica, da mesma forma, ao trabalho de Kuyper. Por exemplo, quando possível, optamos por um uso responsável, mas de modo nenhum rigoroso, dos substantivos e pronomes neutros (ex.: utilizando o termo “pessoas” ao invés de “homens”). Quando necessário e apenas infrequentemente, formulações não muito felizes foram alteradas para a sensibilidade moderna ou omitidas. Não obstante, talvez o maior desafio seja a tradução da palavra holandesa wetenschap de modo apropriado ao uso e contexto de Kuyper. O sentido básico da palavra é simplesmente “conhecimento”, mas no uso acadêmico e filosófico, corresponde à palavra alemã Wissenschaft, referindo- se à ciência. Contudo, em contraste às noções modernas de ciência, Kuyper a compreendia num senso mais amplo, o qual se referia a algo pertencente à criação, algo criado por Deus, para o qual o Criador designou uma tarefa exclusiva. Kuyper estava plenamente consciente de que a ciência consistia da reflexão humana sobre a criação, no entanto, insistia que a reflexão humana espelhava ou imitava o pensamento divino embutido em toda a criação. Na visão de Kuyper, a ciência é um corpo de conhecimentos e insights em constante crescimento que foi chamado à existência por Deus, desenvolvendo-se, ao longo da história, devido às pessoas devotadas ao seu estudo, e que pode ser restaurada e santificada em Jesus Cristo. Contudo, a visão científica moderna geralmente emprega o termo “ciência” em referência à um método de investigação racional e neutro, ou em referência às disciplinas ou domínios específicos. Ademais, Kuyper distinguia entre “ciências inferiores” e “ciências superiores”; as primeiras se referem à observação humana simples e direta dos fenômenos na criação, ao passo que as últimas dizem respeito à uma reflexão e prática mais refinadas da pesquisa científica em termos de um sistema. Juntamente às ciências naturais (que podemos denominar de hard sciences ou de ciências exatas), Kuyper tratou também acerca das ciências espirituais, ou o que atualmente se chama de Humanidades (ou Ciências Humanas) e ciências sociais (literatura, poesia, história, psicologia, antropologia, sociologia, economia etc.). Tendo essas diferenças em mente, o leitor terá um entendimento correto do amplo uso que Kuyper faz desses termos. Por fim, devemos mencionar nossa grata utilização, em vários trechos, da tradução parcial da seção concernente à graça comum e a ciência, que está inclusa na obra Abraham Kuyper: a centennial reader, edita por James D. Bratt (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1998, pp. 442–460) e que se pautou numa reformulação do material produzido por Hans van de Hel. Agradecemos especial a Clifford Anderson, George Harinck e Harry Van Dyke por seus experientes conselhos e assistência na preparação do presente texto. — Nelson D. Kloosterman 16 de agosto de 2011 I��������� Vincent E. Bacote Abraham Kuyper (1837-1920) foi um cidadão holandês cuja vida e obra permanecem relevantes até os dias de hoje, particularmente devido à fermentação contínua por eles propiciados no que tange ao papel que cabe ao cristão na vida pública. Kuyper era filho de um pastor, tendo recebido sua educação formal na Universidade de Leiden. Profundamente influenciado pelo pensamento moderno, eventualmente se tornou pastor na cidade rural de Beesd, onde passou por uma conversão ao cristianismo ortodoxo por meio da influência de alguns membros piedosos e de confissão reformada de sua congregação. Durante este mesmo período, o interesse de Kuyper numa fé com impacto público começou a emergir. Embora estive profundamente agradecido por aquilo que aprendera dos membros de sua congregação, ele estava consciente de que o cristianismo não estava confinado às câmaras internas do coração, mas era definitivo para várias dimensões sociais da vida, com as quais nos deparamos na medida em que participamos dos domínios da cultura, política e economia. Eventualmente, Kuyper se tornou um líder no movimento anti-revolucionário (termo relacionado com a Revolução Francesa), o qual se tornou um partido político por volta de 1879, e também editor de jornais diários (De Standaard) e semanais (De Heraut). Kuyper focou sua atenção em questões relacionadas com as políticas internas da igreja nacional da Holanda (Nederlandse Hervormde Kerk ou NHK) e eventualmente passou a se envolver nas políticas nacionais em 1874. Ele se via como um defensor dos cristãos ortodoxos que foram marginalizados do âmbito da influência pública e buscou a influência cristã nas políticas públicas, como exemplificado pelo seu apoio na expansão do voto para famílias e o apoio público de escolas cristãs. Ele ajudou a fundar a Universidade Livre de Amsterdã, em 1880, onde lecionou teologia. Após uma grande crise eclesiástica, ele conduziu, em 1886, sua separação da NHK (os Doleantie, ou “os aflitos”); em 1892, esse grupo se uniu com aquelas igrejas que já haviam se separado do NHK, em 1834 (o Afscheiding, ou “os separados”). Kuyper cresceu em influência na década de 1890; ele ministrou as palestras Stone no Seminário Teológico de Princeton, em 1898, e, em parte devido a uma coalizão com membros católicos do Parlamento, se tornou Primeiro Ministro da Holanda, de 1901 a 1905. Vestindo os trajes de pastor, teólogo, jornalista e política em vários momentos de sua vida, Kuyper encarnou o comprometimento com o cristianismo público enquanto mantinha uma piedade pessoal fervorosa (como seus escritos devocionais nos revelam). Embora Kuyper seja conhecido por ter abordado um grande número de questões teológicas, as mais proeminentes delas talvez sejam a soberania das esferas, a antítese e a graça comum. A soberania das esferas é a ideia kuyperiana de que, da soberania de Deus, procede “esferas” soberanas distintas, tais como o estado, os negócios, a família e a igreja. Kuyper também contribui para a formação de instituições públicas caracteristicamente cristãs, como escolas e hospitais. A soberania das esferas apresenta um pluralismo tanto das estruturas sociais quanto das cosmovisões, configurando-se, portanto, como um dos traços mais proeminentes da abordagem de Kuyper da vida pública. A ênfase na singularidade cristã também se encontra enraizada na visão kuyperiana da antítese entre cristãos e aqueles que não são regenerados pelo Espírito Santo. Como Sabedoria e Prodígios demonstra em certas passagens, Kuyper cria que a regeneração produz uma diferença epistemológica distinta, que, em última análise, levam os cristãos a interpretarem a realidade de forma diferente (e com uma exatidão maior) dos descrentes. Ao enfatizar a antítese, Kuyper destacava fortemente a importância da identidade cristã; ele não deseja que os cristãos sacrificassem sua fé quando de sua participação nas várias áreas do âmbito público. Em contraste à antítese, a graça comum enfatiza a humanidade compartilhada e a responsabilidade pública. Sabedoria e Prodígios é uma tradução recente e completa de duas seções que Kuyper pretendia incluir na sua obra em três volumes sobre a graça comum. Essas seções foram omitidas, por engano, da primeira edição dessa obra mais extensa de Kuyper. De 1895 a 1901, Kuyper escreveu uma série de artigos no De Heraut, que foram posteriormente compilados, e os três volumes resultantes foram publicados em 1902, 1903 e 1904. As seções presentemente traduzidas, “a graça comumna ciência e na arte”, apareceram pela primeira vez como um volume separado em 1905, sendo mais tarde acrescentado nas outras edições dos três volumes. O que exatamente é a “graça comum”? Kuyper expôs esta doutrina como um desenvolvimento das primeiras expressões reformadas da obra preservadora de Deus na ordem criada. Tal desenvolvimento foi de fato robusto e bem mais extenso do que as afirmações da doutrina em teólogos como João Calvino. Alguns dos críticos de Kuyper dentro dos círculos reformados viram essa expansão mais como invenção do que desenvolvimento. Embora Kuyper não desprezasse as grandes declarações e a expressão criativa, a graça comum está longo de ser uma inovação doutrinária que se desvia das linhas da fidelidade à doutrina. Colocada de modo simples, a graça comum responde a questão que muitos fazem acerca de nosso mundo: “Como o mundo prossegue após a entrada do pecado e como é possível que coisas ‘boas’ surjam das mãos dos homens dentro e fora do relacionamento pactual com Deus?”. A graça comum é a restrição exercida por Deus sobre os efeitos totais do pecado após a Queda; a preservação e manutenção da ordem criada; e a distribuição dos talentos aos seres humanos. Como resultado dessa misericordiosa atividade de Deus por meio do da obra Espírito Santo na criação, torna-se possível para os homens obedecerem o mandamento dado por Deus de dominarem como mordomos sobre a criação (Gn 1.28). Não se trata de uma graça salvadora, regeneradora ou eletiva, mas uma graça preservadora que se estende ao mundo que Deus criou, podendo ser vista na inclinação humana de servir ao próximo por meio do trabalho, de buscar a paz em situações sociais conflituosas, e de defender a equidade em todas as formas da interação humana. Sabedoria e Prodígios se destina especificamente aos domínios da ciência e arte. Para Kuyper, a ciência não está limitada às ciências “exatas”, como a química e biologia, mas também se estende às ciências humanas e sociais. O teólogo escreveu numa época na qual se discutia abertamente se a filosofia, literatura e teologia poderiam ser consideradas propriamente “científicas”. Nesta obra, ele expressa sua perspectiva de que cabe à ciência descobrir a verdade mais profunda das coisas, uma verdade que exige investigações que conduzem para além dos encontros superficiais com os vários fenômenos, em direção a uma compreensão de como toda a realidade é uma expressão da mente divina. Semelhantemente, ao tratar sobre a arte, Kuyper apresenta uma visão que parte com a ligação entre religião e expressão artística e, por fim, se dirige à afirmação da independência característica da arte ao domínio da igreja. Talvez um dos pontos mais interessantes da discussão de Kuyper sobre o domínio artístico seja sua visão de que a arte, nas suas composições superiores, busca expressar a concretização final do reino glorioso de Deus através de mídias como a arquitetura, pintura e música. Isto não significa que todo artista consciente se empenha em criar obras que se aproxima do reino consumado, mas que o desejo de expressar a plenitude da beleza tende a orientar os artistas a esse objetivo sublime. O foco de Kuyper na ciência e arte reflete as discussões então contemporâneas sobre a participação cristã em ambos os domínios. Pelo menos desde os tempos de Darwin, muitos cristãos perceberam um conflito frequentemente real com o mundo da ciência, gerando uma tensão significativa para aqueles cuja vocação os conduziu à pesquisa, ensinou ou quaisquer profissões relacionadas à ciência. A reação de alguns foi o abandono do mainstream científico em prol de uma corrente alternativa cristã, ao passo que outros mantiveram sua fé e seu trabalho efetivamente separados, e ainda outros abraçaram um anti-intelectualismo envolto numa postura de fé que olha com desconfiança quaisquer pesquisas científicas sérias. Kuyper encorajar-nos-ia a não seguir nenhum desses caminhos; devemos participar plenamente no domínio científico, embora conscientes do fato de que existirá uma antítese genuína entre cristãos e não-cristãos no ponto das explicações derradeiras. Por certo Kuyper exortar-nos-ia a abraçar tudo aquilo que se encontra no domínio das ciências. O domínio da arte é também uma área de grandes desafios. Desde o cinema, passando pela música popular, até à pintura, os artistas cristãos frequentemente ocupam um domínio que muitos veem como que cercado de placas indicando perigo. Há um abismo significativo entre o mundo da arte e a igreja, e aqueles que se consideram como cidadãos de ambos os domínios se encontram exasperados pelas distorções de sua vocação dentro da igreja. Assim como no que diz respeito à ciência, há muitos que tender a encorajar uma participação limitada nas artes, ou mesmo seu abandono, caso os artistas não estejam produzindo obras espiritualmente orientadas. Os leitores perceberão que Kuyper está consciente das armadilhas e promessas da arte, ao mesmo tempo em que, em última análise, encorajando a busca pela expressão artística em consonância com qualidade de portadores da imagem divina presente em todos os seres humanos, como criadores de beleza, valor, riquezas e conhecimento. Não é necessário concordar plenamente com uma pessoa a fim de admirá-la ou crer que suas contribuições são de grande valor. Talvez algumas visões específicas de Kuyper sobre a ciência e arte não sejam abraçadas por todos os leitores: embora incrivelmente visionário com relação a alguns desenvolvimentos na sociedade, Kuyper, todavia, não era onisciente, de maneira que por vezes arriscava algumas opiniões que podemos achar espantosas. Isto talvez se torne mais claro ao observar seus comentários com relação aos africanos e aos “povos primitivos” que aparecem nestas discussões sobre a ciência e arte. Como muitos de sua época, Kuyper via os africanos como estando bem atrás dos outros povos civilizados. Embora sua teologia enfatizasse a criação de todos os seres humanos segundo a imagem divina, e embora sua ênfase na diversidade cultura (multiformidade) encoraje a humildade no que toca à extensão de nosso conhecimento, tais ênfases, contudo, não o levaram a uma apreciação adequada de todos os seres humanos. Ao passo que isto revela que Kuyper possuía pés de barro, não é, contudo, justificativa para desconsiderar a tremenda contribuição de suas obras, tais como seus volumes sobre a graça comum. Pelo contrário, isso nos ajuda a aprimorar nossas habilidades de pensamento crítico; podemos criticar Kuyper no que ele diz acerca de etnia e gênero, ao mesmo tempo em que reconhecemos que tais afirmações são de fato periféricas ao seu argumento. O projeto de Abraham Kuyper sobre a graça comum é uma contribuição bem-vinda para uma discussão mais profunda acerca do papel dos cristãos na sociedade. Em décadas recentes, alguns evangélicos nos Estados Unidos empregaram um grande esforço a fim de discernir como devemos viver com uma fé robusta e um compromisso apropriado ao engajamento cultural, político, econômico e social. Para muitos, parece que as únicas opções possíveis para o engajamento cristão são alguma forma de Cristandade, que pode se assemelhar a um esforço de governar a sociedade de acordo com os preceitos expressos da Escritura, ou uma forma de testemunho alternativo, um tipo de antítese que enfatiza as práticas da comunidade cristã como estando em oposição ao envolvimento direto nos domínios político e cultural. A graça comum nos ajuda a perceber as demais opções. A obra sustentadora de Deus na criação nos encoraja a participar nas várias áreas da vida, a nos empenharmos em discernir as melhores formas para concretizar a educação, arte, política e negócios, na medida em que participamos desses domínios. O engajamento cristão fiel significa a busca da plenitude da vida humana na totalidade da ordem criada por Deus. Isto não exige sanção eclesiástica nem a vida numa polis alternativa. Por certo, todo contexto irá requerer de nós a percepção da forma pela qual podemos buscar a fidelidade a Deus em diferentes formas;entretanto, podemos ser encorajados pelo fato de que Deus, mediante a graça comum, nos possibilitou a participar no âmbito público de diversas maneiras que contribuem para o florescimento da ordem criada. Sabedorias e Prodígios é apenas um antegosto daquilo que Kuyper escreveu a respeito desta grande doutrina — que ele possa aguçar seu apetite. PARTE UM CIÊNCIA 1. S�������� A excelência do conhecimento é que a sabedoria dá vida ao seu possuidor. (Eclesiastes 7.12) Se nos atentarmos para o contraste existente entre a vida do Estado e a sociedade, torna-se evidente que a ciência pertence definitivamente à esfera da vida social. Contudo, isso não atenua o fato de que, no que diz respeito à graça comum, a ciência não pode ser incluída nas nossas discussões a respeito da sociedade, pois aquele elemento que coloca a atividade social em movimento se origina dentro da vivência comum e íntima das famílias num mesmo vilarejo ou aldeia, numa mesma região ou província. Em contrapartida, embora a ciência e, de modo semelhante, a arte, devam encontrar a atmosfera apropriada para seu florescimento dentro da vida comum em sociedade, elas, não obstante, extraem seu impulso de algo que se encontra fora da sociedade, de uma causa ímpar. Devido a esse fato, a ciência e a arte exigem um tratamento separado, e é discutindo ambas que concluiremos nossa exposição sobre a graça comum[1]. Primeiramente, pois, enfatizemos o caráter independente da ciência. Antes de tudo, é necessário compreender que a ciência é uma questão que se sustenta por si própria, não podendo ser atravancada por quaisquer correntes externas. Por isso, se em seus estágios iniciais faltou à ciência a força necessária para se manter sobre suas próprias pernas, ela ainda pode, por um tempo, progredir estando amarrada às fitas do avental dos outros. De modo semelhante, o cidadão livre, que vive em um estado igualmente livre e que posteriormente viesse a se focar fortemente em sua independência, foi, quando criança, inicialmente carregado por sua babá e aprendeu a andar agarrando-se às fitas do avental dela. Nesse contexto, alguns apontam para o fato de que a ciência, historicamente falando, não foi capaz de assumir inicialmente seu papel sem o auxílio do governo e da Igreja. Todavia, tal observação de maneira alguma constitui prova contra o caráter independente próprio da ciência. Em cada forma de vida, devemos distinguir dois estágios. Em primeiro lugar, o estágio de surgimento seguido de crescimento gradual, que continua até que a maioridade seja alcançada. E somente então se dá o segundo estágio, quando a vida plenamente desenvolvida se torna autossuficiente. Eis o motivo pelo qual o jardineiro posiciona uma vareta ao longo de uma planta jovem, unindo-as com um laço. Mas quando, graças a esse suporte, a planta alcança o crescimento pleno, então a vareta é removida e a planta se mantém ereta por si mesma. E assim se deu com relação à ciência. De qualquer modo, na Europa setentrional a ciência foi plantada e inicialmente amparada pela Igreja cristã. Ademais, a ciência não teria sido capaz de sobreviver sem o apoio do governo. Atualmente, de modo diferente, a ciência se tornou independente na medida em que lhe era infinitamente preferível dominar a Igreja e Estado a permanecer submissa a eles. Essa independência, pois, pertence à ciência, não se constituindo, de modo algum, uma usurpação. A ciência não exigiu para si tal independência por meio de uma confiança jactanciosa, antes, a possui devido ao propósito divino, e isso de modo tal que a ciência negligenciaria sua vocação divina caso permitisse novamente tornar-se serva do Estado ou da Igreja. A ciência não é um ramo que cresce a partir do tronco do serviço governamental, e muito menos um ramo que se desenvolve a partir das raízes da Igreja. Pelo contrário, a ciência possui sua própria raiz, estando nela, pois, firmada. Ora, é a partir do tronco que se origina dessa raiz singular que a ciência deve cultivar seus ramos e gerar seus frutos. Como o famoso relatório sinódico[2] expressou acuradamente, a ciência é “uma criatura singular de Deus”, com seu princípio próprio de vida, criada para se desenvolver em conformidade com o princípio de vida, isto é, desenvolver-se em liberdade. A partir disso, podemos já observar que a ciência pertence à criação. Pense nisto: se nossa vida humana tivesse se desenvolvido na situação edênica, distanciada do pecado, então a ciência ainda assim teria existido tal como existe agora, apesar de que seu desenvolvimento teria sido completamente diferente. Embora seu caráter tenha sofrido uma deformação descomunal como consequência do pecado, jamais podemos dizer que, de modo semelhante ao Estado e à Igreja, a ciência surgiu por causa do pecado e, portanto, de uma graça interveniente. Sem o pecado, não haveria Estado, e, à parte do pecado, também não existiria uma Igreja cristã, todavia, teríamos a ciência. Nessa medida, a ciência se encontra na mesma categoria que o casamento e a família, ambos os quais igualmente sofreram deformações monstruosas como resultado do pecado. Contudo, se a queda não tivesse ocorrido, a família e o casamento manteriam, todavia, sua existência independente ainda hoje, uma vez que já existiam no paraíso. Desse modo, assim como não se pode afirmar que o matrimônio e o grupo familiar devem sua existência ao Estado ou à Igreja, de semelhante modo, a ciência não pode ser vista como dependente deles. Também a ciência se origina da criação e, como tal, recebeu do Criador um chamado independente do Estado e da igreja. __________ A posição independente da ciência se encontra firmada na criação da humanidade segundo a imagem de Deus. No S�����, nosso Deus, há um pensamento divino independente, que não assoma na interioridade divina a partir das coisas criadas, mas que precede a criação de todas as coisas. Ele não pensa porque criou, antes, Ele criou após ter concebido. Essa é nossa confissão na doutrina dos decretos divinos. Embora a manifestação da vontade de Deus resida também no decreto, todavia, foi firmemente estabelecido que tal vontade divina fosse direcionada àquilo que Ele, em Sua sabedoria, havia concebido. Não existe um decreto que não tenha sido precedido por uma reflexão qualquer. Este pensamento divino que precedeu Seu decreto não se configura como um aparecimento de conceitos aleatórios que emergiram de um sentimento místico e inconsciente de Seu ser, como propõem alguns, mas sim um pensamento completamente independente na clareza absoluta da consciência divina. Deus não Se inspirou em nada fora de Si mesmo. Isto é algo que as Sagradas Escrituras expressam ao afirmar que ninguém O instruiu, e ninguém foi Seu conselheiro. A mente do S����� está junto a Ele eternamente. É isto que Paulo indaga: “Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro?” (Rm 11.34, ARA). Em outra parte, o apóstolo pergunta: “Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo”. (1Co 2.16, ARA). Esse pensamento foi anteriormente formulado por Isaías, com as seguintes palavras: “Quem guiou o Espírito do S�����? Ou, como seu conselheiro, o ensinou?” (Is 40:13, ARA). Consequentemente, é necessário afirmar definitivamente que, em Deus, o pensamento era completamente independente e arquetípico; de tal pensamento proveio o decreto divino; e deste decreto, por sua vez, originou-se o mundo, da mesma forma como agora procede toda a história do mundo. Com movimentos majestosos, Salomão nos delineia essa verdade no livro de Provérbios, quando nos traça a forma como a sabedoria estava com Deus antes que qualquer coisa criada procedesse de Suas mãos. Na linguagem exaltada de Provérbios 8.22-31, essa verdade nos é revelada nestas estrofes: O S����� me [a Sabedoria] possuía no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra. Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontescarregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. Ainda ele não tinha feito a terra, nem as amplidões, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando traçava o horizonte sobre a face do abismo; quando firmava as nuvens de cima; quando estabelecia as fontes do abismo; quando fixava ao mar o seu limite, para que as águas não traspassassem os seus limites; quando compunha os fundamentos da terra; então, eu estava com ele e era seu arquiteto, dia após dia, eu era as suas delícias, folgando perante ele em todo o tempo; regozijando-me no seu mundo habitável e achando as minhas delícias com os filhos dos homens. Retomando essa passagem, João, o Evangelista, nos ensina que essa Sabedoria em Deus era o Verbo, e que todas as coisas foram criadas por meio dEle: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens” (Jo 1.1-4, ARA). A expressão grega utilizada para “o Verbo” é ho logos [ὁ λόγος], que, por seu turno, significa “razão”. Uma vez que a razão pode se encontrar dormente até que venha à plena claridade na palavra falada, essa frase não é traduzida por: “No princípio era a Razão”, mas sim: “No princípio era o Verbo”. Com isso pretende-se dizer que a razão de Deus não deve ser representada como se existisse num estado de dormência, ainda por vir à claridade, mas inteiramente diferente — como sendo um com o Ser divino em plena claridade, de eternidade a eternidade. Com efeito, aquelas igrejas que têm contínua e zelosamente defendido a doutrina dos decretos divinos têm também buscado resguardar cuidadosamente a honra de Deus e a compreensão pura acerca de Sua essência divina. Em contraposição, é possível registrar a queixa de que outras igrejas — sem negar o decreto, mas em última análise permitindo que ele fuja de vista e seja assim ignorado — permitiram a entrada de um conceito falseado acerca do ser de Deus. Dessa perspectiva, comete-se o equívoco, como as pessoas geralmente interpretam a questão, de sugerir que o conflito entre os Reformados e os Metodistas e outros grupos tem sido desencadeado simplesmente por causa de externalidades[3]. Pelo contrário, esse conflito toca no ponto mais profundo da religião — a nossa confissão com relação ao ser e atributos de Deus. __________ Portanto, se o pensamento de Deus é eterno, e se a totalidade da criação deve ser compreendida simplesmente como o fluxo desse pensamento divino, de tal modo que todas as coisas vieram à existência e continuam a existir por meio do Logos — isto é, mediante a razão divina, ou mais particularmente, através do Verbo —, então o caso é: o pensamento divino se encontra incorporado em todas as coisas criadas. Então, não há nada no universo que deixe de expressar — de encarnar — a revelação do pensamento de Deus. Não é o caso de que tenha existido uma incomensurável massa de matéria que o pensamento divino tentou processar, mas sim que o pensamento divino está incorporado no todo da criação. A essência mesma de cada coisa é constituída por um pensamento de Deus, de maneira que foi esse pensamento que prescreveu para os entes criados seus modos de existência, suas formas, seu princípio de vida, suas destinações e seu progresso. Toda a criação nada mais é do que a cortina visível por detrás da qual radia a operação excelsa desse pensamento divino. Assim como uma criança, brincando, observa um relógio de bolso, e supõe que se trate apenas de um estojo dourado e um mostrador com ponteiros móveis, da mesma forma a pessoa descuidada não é capaz de observar na natureza e em toda a criação nada mais do que a aparência externa das coisas. Em contraposição, o portador do relógio sabe mais. Ele sabe que, por detrás do mostrador do relógio, há o trabalho oculto de molas e engrenagens, e que o movimento dos ponteiros ao longo do mostrador é causado por essa atividade que está encoberta. De semelhante modo, todos aqueles que são instruídos pela Palavra de Deus sabem, no que diz respeito à criação divina, que por detrás desta natureza, atrás desta criação, existe uma operação secreta, velada, do poder e sabedoria de Deus, e que somente por esse modo as coisas se dão da maneira habitual. Da mesma forma, eles sabem que essa atividade não é uma operação inconsciente de um poder languidamente propulsionado, mas a atividade de um poder que está sendo direcionado pelo pensamento. Ora, esse pensamento divino, que produz o movimento de todas as coisas em seus respectivos cursos, não atua sem um plano, desígnio ou princípio; pelo contrário, é uma obra direcionada a um propósito, movendo-se em direção ao objetivo que se pauta por uma regra preordenada. Esse plano, já em sua origem, dotou a criação com tudo aquilo que é necessário para a consecução dessa meta. Consequentemente, todas as coisas procederem do pensamento de Deus, da consciência de Deus, da Palavra de Deus. Por meio deles, todas as coisas são sustentadas; todas as coisas devem a eles seu curso de vida e a certeza de alcançarem seu fim último. Desse modo, podemos e devemos reconhecer e confessar incondicionalmente que a totalidade da criação, em sua origem, existência e progresso, constitui uma única e integrada revelação daquilo que Deus, na eternidade, pensou e estabeleceu em Seu decreto. Agora a questão é se nós, os seres humanos, somos dotados com a capacidade de refletir esse pensamento de Deus. Está absolutamente claro que nem toda criatura possui essa capacidade. Mesmo que o lírio esteja vestido com uma glória maior do que a de Salomão em todo seu esplendor, ele, todavia, nada sabe acerca de sua própria beleza, e não compreende a mínima parcela do pensamento de Deus que encontra expressão em sua existência. Não importa quão esplendidamente o peixe possa viver na água — ele nada sabe a respeito da composição desse elemento, nem de sua capacidade de manter um corpo flutuando, ou ainda das propriedades nutritivas nele contidas. É também patente que os animais dotados de instintos desenvolvidos, como a formiga, a abelha, a aranha e afins, também não compreendem absolutamente nada a respeito de seu ser, nem ainda concebem nada daquilo que Deus neles manifesta. Sem dúvida, devemos sempre nos precaver quando refletimos acerca dos animais, uma vez que não somos capazes de penetrar em sua existência interior. Contudo, podemos e devemos dizer isto: com relação aos animais, não observamos nenhum desenvolvimento contínuo, nem percebemos numa aptidão proeminente ou consciência superior com as quais foram agraciados. Sabemos um pouco mais com relação aos anjos (levando em consideração que os demônios sejam anjos caídos). Todavia, com relação a eles, está escrito que anelam perscrutar coisas que não compreendem. Independentemente da grandiosidade do conhecimento que possuem, os anjos, em certos aspectos, são inferiores a nós. Por contraste, com relação ao ser humano, esta grande verdade é revelada, a saber, que cada indivíduo é criado segundo a imagem de Deus. Sobre essa base, as igrejas Reformadas confessam que o homem original, em sua natureza, isto é, por virtude de sua criação, não mediante a graça sobrenatural mas segundo a ordem da criação, havia recebido a santidade, justiça e sabedoria. Neste ponto, portanto, a atenção recai para uma capacidade concedida aos homens, que os permite sair de sua concha e espiar, por assim dizer, o pensamento de Deus que se encontra engastado e incorporado na criação, e a captá-lo de tal forma que, desde a criação, os seres humanos fossem capazes de refletir o pensamento que Deus nela incorporou, já na sua origem. Essa capacidade da natureza humana não foi adicionada como algo extra, mas pertence ao próprio fundamento da natureza humana. Desse modo, pois, chegamos a três verdades que se concatenam. Primeiramente, a plena e rica clareza dos pensamentos divinos existiuem Deus desde a eternidade. Em segundo lugar, na criação, Deus revelou, engastou e concretizou a plenitude de Seus pensamentos. E em terceiro lugar, Deus criou nos seres humanos, os portadores de Sua imagem, a capacidade de inteligir, abranger, refletir e organizar, dentro de uma totalidade, esses pensamentos expressos na criação. A essência da ciência humana se apoia, pois, sobre essas três realidades. Uma capacidade tão excelente não foi dada aos homens para que permanecesse inutilizada. Antes, eles devem exercê-la a fim de realizar o propósito pelo qual foi dada. No momento em que os seres humanos empregam essa capacidade para refletir os pensamentos de Deus acerca da criação, surge a ciência. E na medida em que atuem mais precisa e diligentemente, a ciência humana alcançará uma maior estabilidade e um conteúdo ainda mais rico. Contudo, não se deve com isso entender que essa tarefa da ciência, em si mesma e em toda sua extensão, foi delegada a todo ser humano. Isso é impossível. A extensão dessa tarefa é imensa, e a capacidade das pessoas individuais é demasiado limitada. A confissão basilar da criação dos seres humanos à imagem de Deus transcende o simples reconhecimento de que nós, pessoal e individualmente, cada um por si mesmo, pertencemos à geração de Deus. Na verdade, tal confissão só se concretiza efetivamente quando a aplicamos a toda a raça humana ao longo das eras e coerindo os talentos concedidos a todas as pessoas. Sendo assim, não é o caso de que somente um cérebro individual, ou um gênio em particular, ou algum talento singular tenha sido suficiente equipado a fim de compreender a plenitude do Verbo na criação, mas que todos eles conjuntamente possuem o objetivo de tornar essa compreensão possível entre os homens. Se fosse outra a intenção, então cada pessoa, homem ou mulher, teria que estar em plena posse de toda a genialidade e talento. Contudo, não é esse o caso. O gênio e o talento aparecem distribuídos apenas pontualmente sobre determinados indivíduos. Aceitamos prontamente a afirmação de que, com relação a essa questão, por conta do pecado, muita coisa foi mudada daquilo que teria sido, caso o pecado não tivesse interferido. Mas, mesmo levando isso em consideração, não é possível afirmar que, de acordo com ordem da criação original, não existiria diferença, nem distinção entre as pessoas. Ora, os céus estrelados não nos apresentam um número infinito de estrelas idênticas entre si, mas sim estrelas, em infinitas constelações, que diferem todas entre si. É precisamente nessa diferenciação multiforme que radia o esplendor do firmamento. De semelhante modo, não podemos supor que Deus não pretendia nada mais do que uma uniformidade monótona no mundo humano, e que a multiformidade e a variedade surgiram pela primeira vez através do pecado. Se fosse assim, então o pecado teria antes enriquecido do que depauperado a vida. Ademais, o simples fato de que Deus criou homem e mulher prova, de maneira inconteste, que a uniformidade absoluta não era parte do plano da criação. Destarte, não podemos, pois, concluir nada além do fato de que a rica variedade existente entre as pessoas, em termo de aptidão e talento, tem origem na própria criação e pertence à essência da natureza humana. Se as coisas são dessa maneira, segue-se automaticamente que, no que diz respeito à imagem de Deus, nenhum ser humano apresenta esse aspecto de Deus em sua plenitude, mas que todo talento e todo gênio, reunidos juntos, possuem a capacidade de incorporar dentro de si mesmos essa plenitude do pensamento de Deus. A ciência é, portanto, construída não sobre a base do que uma única pessoa observa, descobre, imagina e organiza num sistema em seu pensamento. Pelo contrário, a ciência surge como fruto do pensamento, imaginação e reflexão de sucessivas gerações ao longo dos séculos, e mediante a cooperação de todos. Cada pessoa efetivamente possui conhecimento individual, isto é, o conhecimento fragmentado por ela adquirido. Entretanto, a criação de Deus é tão inefavelmente imensa, e a riqueza de pensamentos que se encontram depositados em Sua criação é tão incomensuravelmente profunda, que o conhecimento fragmentado de qualquer pessoa virtualmente desaparece. Esse pequeno fragmento é também ciência, no sentido mais geral do termo, mas não é a ciência que atua como uma criatura singular de Deus, com seu próprio princípio vital, a fim de completar sua tarefa também singular. A ciência, tomada nesse sentido elevado, se origina apenas por meio da cooperação de várias pessoas. Avança apenas gradualmente nas gerações que entram em cena, e, desse modo, somente de maneira gradual adquire a estabilidade e o esplêndido conteúdo que lhe garantem uma existência independente, e somente nessa forma mais geral começa a assomar como uma influência na vida. Simultaneamente, segue-se que a ciência pode alcançar relevância apenas com o passar dos séculos, e, portanto, será capaz de se desenvolver em sua mais abundante plenitude somente no fim dos tempos. A ciência é um templo esplêndido cujas bases tiveram que ser primeiramente cavadas, para, em seguida, ter seu fundamento estabelecido. Apenas então suas paredes puderam ser erguidas a partir desse alicerce, para, uma vez finalizadas, construírem suas ameias. Esse templo poderá ostentar o esplendor cabal de sua arquitetura, de suas cores e formas, apenas quando toda a construção estiver completa. Isso explica o porquê terem se passado séculos, num certo número de nações nas quais dificilmente havia ciência, no sentido mais amplo da palavra. Também em nosso país, seria vã a busca por ciência, nesse sentido, entre os Batavos[4]. Semelhantemente, isso também explica porque apenas a história dos últimos séculos, especialmente dos séculos XVI e XIX, nos apresentam o relato de um florescimento tão poderoso da ciência. Finalmente, isso também ajuda a explicar tanto aquilo que todos nós percebemos, isto é, que ainda hoje a ciência se encontra somente no começo de suas grandes realizações, quanto a razão pela qual todos os que estão familiarizados com o domínio da ciência antecipam, com regozijo, o progresso na esfera científica que se espera no século XX. A ciência não é uma possessão adquirida pessoalmente por cada indivíduo, pelo contrário, cresceu gradualmente em relevância e estabilidade apenas como o fruto do trabalho de várias pessoas, entre várias nações, no curso de séculos. Desse fato, decorre o caráter independente da ciência, pois esta não surgiu com a elaboração, por parte de seus melhores arquitetos, de um projeto plenamente desenvolvido para a construção de seu templo, e, em seguida, tendo gerações subsequentes trabalhando silenciosamente, em consenso, e segundo esse projeto original, com o intuito de eventualmente edificarem o templo. Antes, todo o templo é construído sem um projeto humano e sem a concordância dos homens. Aparentemente, ele se ergue sozinho. Cada pessoa lavra sua própria pedra e a traz em seguida para tê-la cimentada na construção. Logo vem outra pessoa que remove essa pedra, remodelando-a e encaixando-a de modo diferente. Trabalhando separadamente entre si, sem qualquer acordo mútuo e sem a menor presença de direção por parte de outras pessoas, com todos ziguezagueando e seguindo seu próprio curso — cada pessoa constrói a ciência segundo julga apropriado. Através dessa confusão interminável, parece, contudo, que no curso dos séculos, desse labor aparentemente confuso emerge um templo, apresentando a estabilidade da arquitetura e também seu estilo, e, desde então, se passa a especular acerca de como se dará a consecução de todo o edifício. Nesse ponto específico, é preciso reconhecer e confessar que todo esse labor foi conduzido e direcionado invisivelmente por um Arquiteto e Artista que jamais foi visto. Aqui, pois, não é possível sugerir que esse resultado imensamente belo ocorreu por acidente, sem um plano e totalmente por si mesmo. Pelo contrário, devemos confessar que o próprio Deus desenvolveu Seu próprio plano divino paraessa construção, criou os gênios e talentos para sua implementação e direcionou o trabalho de todos, tornando-o profícuo, de forma que aquilo que havíamos desejado e ainda desejamos se tornasse efetivamente realidade. Vendo dessa forma, contudo, a ciência é também uma invenção de Deus, que Ele chamou à existência, fazendo com que ela trilhasse as sendas do desenvolvimento segundo Ele mesmo havia estabelecido. Isso não significa nada além de afirmar e confessar com gratidão que o próprio Deus chamou a ciência à existência como uma de Suas criaturas, e, consequentemente, que a ciência ocupa seu lugar independente em nossa vida humana. 2. C����������� O temor do S����� é o princípio do conhecimento[5] (Provérbios 1.7a) Descobrimos anteriormente que o pensamento original[6] existia em Deus. O universo criado configura-se como uma manifestação e uma concreção desse raciocínio original. Aos seres humanos, por sua vez, foi dada a capacidade de refletir e investigar esse pensamento divino de uma maneira exclusivamente humana. Tal reflexão progride fragmentariamente; contudo, com a ajuda de direção e organização competentes, ela dá origem a um sistema de conhecimento. Portanto, a ciência, que é uma criação singular de Deus, é constituída por esse sistema humano de reflexão, tendo sido vocacionada para, de maneira independente, realizar a tarefa que lhe foi designada pelo próprio Deus. O S����� organizou a ciência desse modo com o intuito de magnificar Seu santo nome. Desse modo, e de nenhum outro, a luz do Verbo de Deus desvela o fundamento. A verdade aqui expressa é compreendida ainda mais profundamente por meio das Sagradas Escrituras, sendo inferido do ser, vida e obras singulares de Deus mediante a deslumbrante revelação de que a Sabedoria ou Verbo possuía uma existência pessoal eterna em Deus, sendo também verdadeiramente o próprio Deus. Com relação a essa questão, não é necessário discutir o pano de fundo, já que presentemente não estamos tratando acerca do pensamento original, isto é, arquetípico, em Deus[7], mas sim do conhecimento refletido, ou ectípico, que se origina segundo o arranjo divino dentro e a partir da consciência humana. Como um aparte, a fim de prevenir a compreensão equivocada, devemos prestar demasiada atenção à singularidade das Sagradas Escrituras, as quais, à medida que lemos, nos passa repetidamente a impressão de que, ao invés de recomendar o conhecimento ou a sabedoria, frequentemente condena o conhecimento humano. Como lemos em Isaías: “A tua sabedoria e a tua ciência, isso te fez desviar” (Is 47.10). Ou como diz Eclesiastes, o Pregador: “Quem aumenta ciência aumenta tristeza” (Ec 1.18). Ou ainda como Paulo escreve aos Coríntios: “Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1 Co 3.19). Essas afirmações, juntamente com várias outras, rapidamente nos desencorajam de obter aquilo que o mundo chama de conhecimento, ao invés de nos fazer respeitá-lo. Junte isso ao tom zombeteiro com que as pessoas da ciência tratam quase sistematicamente a revelação da Escritura e das demais coisas que nos são sagradas. E não ignoremos a destruição da fé de inúmeras pessoas ocasionada pelos chamados resultados da ciência. Quando se reúne tudo isto, então é possível explicar facilmente a razão dessa suspeita com relação à ciência, a qual se instalou entre os crentes. É fácil compreender porque um número considerável de pessoas vê a ciência como um poder hostil que deveria, o mais rapidamente possível, ser combatido ao invés de cultivado. E, finalmente, podemos prontamente compreender a razão pela qual algumas pessoas amaldiçoam o conhecimento, e, portanto, preferem se recolher à segurança de suas próprias tendas. Em resposta a isso, lembramos apenas que a Escritura distingue entre o verdadeiro e o falso conhecimento. Por um lado, a Bíblia testifica que “o proveito da sabedoria é que ela dá vida ao seu possuidor” (Ec 7.12). Por outro, todavia, as Escrituras também nos alertam contra “aquilo que é falsamente chamado ‘saber’” (1Tm 6.20). Desse modo, a Palavra de Deus contrasta um conhecimento que é sobremodo excelente com um “conhecimento” que assim é chamado falsamente. Manter essa distinção em vista nos permite entender o motivo pelo qual, por um lado, as Escrituras nos advertem com relação ao falso conhecimento, e, por outro, elas buscam nos inspirar o amor e o respeito pelo verdadeiro saber. Essa distinção surgiu devido ao pecado, que seduz e tenta as pessoas para que excluam a ciência de uma relação com Deus, roubando-a dEle, e, em última análise, fazendo com que ela se volte contra Ele. A flor da verdadeira ciência possui sua raiz no temor do S�����, desenvolve-se a partir desse temor e encontra nele seu princípio, sua força motriz, seu ponto de partida. Se, por meio do pecado, uma pessoa for cortada dessa raiz que procede do temor do S�����, o resultado inevitável é que tal indivíduo verá a ciência como uma ilusão destituída de qualquer essência. Todavia, devemos estar alertas para uma compreensão equivocada em particular. Alguns enfatizam esse contraste de tal modo que a boa ciência, a verdadeira, a “ciência dos santos”, como é chamada em alguns lugares[8], existe exclusivamente no conhecimento da graça de Deus em Cristo. Essa interpretação sugere que o conhecimento falso se identifica com a investigação das coisas do mundo. Isso, contudo, é um equívoco. Ora, é possível existir também um falso conhecimento acerca tanto das coisas santas quando das terrenas. De modo oposto, pode existir tanto verdadeiro conhecimento da sagrada revelação das Escrituras, bem como verdadeiro conhecimento em relação à vida do mundo. Em ambos os domínios, o conhecimento falso e o verdadeiro, o objeto da ciência é e permanece sendo a totalidade de tudo que pode ser conhecido por nós como seres humanos. A diferença entre a verdadeira ciência e a falsa não se encontra no domínio no qual as pessoas realizam suas investigações, mas sim no modo e no princípio a partir do qual investigam. O pecado não apenas corrompeu nossa vida moral, mas também obscureceu nosso entendimento. O único resultado possível é que aquele que tentar alcançar o conhecimento científico com esse entendimento obnubilado está fadado a obter uma visão distorcida das coisas, e, desse modo, chegar a conclusões falsas. Portanto, esse obscurecimento do entendimento humano causado pelo pecado conduziu a ciência pelo caminho errado. Enquanto o obscurecimento não for compensado pela iluminação do discernimento dado pelo Espírito Santo, não podemos evitar a exposição a esse perigo. Caso fosse suspendida a graça comum, e sem essa iluminação concedida pelo Espírito Santo, o declínio da ciência seria absoluto. Deixado por si próprio, o pecado avança de mal a pior. Ora, o pecado faz com que o homem se resvale por uma ladeira abaixo, sobre a qual é impossível manter-se de pé. Aquele que ignora a graça comum não pode chegar a nenhuma outra conclusão a não ser que toda ciência feita fora do domínio do sagrado se apoia somente nas aparências e desilusões, resultando necessariamente no ludíbrio de qualquer um que lhe dê ouvidos. Contudo, o resultado demonstra que esse não é o caso. Entre os gregos antigos, que estavam completamente privados da luz das Escrituras, surgiu uma ciência que continua a nos maravilhar com as belezas e verdades que nos oferece. Os nomes de Sócrates, Platão e Aristóteles foram sempre admirados entre os pensadores cristãos. Não é exagero dizer que o pensamento aristotélico tem sido um dos instrumentos mais poderosos para conduzir os cristãos a uma reflexão ainda mais profunda. Também nos tempos modernos, ninguém pode negar que nas disciplinas da astronomia, botânica, zoologia, física e afins, viceja atualmente uma rica ciência. Embora conduzida quase que exclusivamente por pessoas que são estranhas ao temor do S�����, a ciência, contudo, produziu um tesouro de conhecimento que nós, cristãos, admiramos e do qual, agradecidos, fazemos uso. Consequentemente, confrontamos o fato de que, forados círculos cristãos, floresceu uma ciência que, vista por um ângulo, nos proveu com um conhecimento genuíno e verdadeiro; e, todavia, vista por outro, culminou numa filosofia de vida e uma cosmovisão que se opõem diretamente à verdade da Palavra de Deus. Ou, dito de outro modo, estamos efetivamente perante uma ciência que surgiu do mundo, uma ciência que jaz, definitivamente, sob o domínio do pecado, e que, por outro lado, pode se vangloriar de resultados nos quais o obscurecimento do pecado se encontra virtualmente ausente. Somente nos é possível explicar isso afirmando que, embora o pecado tenha de fato espraiado sua corrupção, a graça comum, entretanto, interveio a fim de abrandar e restringir sua atuação. Também, na medida em que diz respeito à ciência, a situação que se nos apresenta é passível de explicação somente se dermos a ambos estes elementos aquilo que lhes é devido: por um lado, o obscurecimento de nosso entendimento por parte do pecado, e, por outro, a graça comum de Deus que estabeleceu limites nesse obscurecimento. Ora, que definitivamente podemos e devemos falar da atividade de Deus nesse sentido torna- se imediatamente evidente pelo fato de que em pessoas como Platão e Aristóteles, Kant e Darwin, estrelas de primeira grandeza resplandeceram, gênios do maior calibre, pessoas que expressaram as mais profundas ideias, embora não fossem cristãos professos. Essa genialidade não provinha deles mesmos, antes, receberam seus talentos de Deus, que os criou e os equipou para seu trabalho intelectual. Para que percebamos isso, não devemos nos satisfazer com a expressão “obscurecimento pelo pecado”, mas sim dar conta de como esse obscurecimento opera. O pecado resultou numa inabilidade de nossa parte em pensar logicamente? Porventura, o pecado gerou em nós uma incapacidade de perceber aquilo que existe e ocorre ao nosso redor? Ou ele coloca uma venda sobre nossos olhos de forma que deixamos de ver ou observar? De modo nenhum. Sempre que discutimos com outra pessoa, pressupomos repetidamente, tanto para nós mesmos quanto para nosso parceiro de discussão, a capacidade do pensamento lógico. Não hesitamos por um momento sequer, imaginando se aquilo que estamos vendo ou ouvindo existe efetivamente, tal como o percebemos. Como regra geral, vivemos nossas vidas com um sentimento completo de certeza. Não deixamos de ser criaturas racionais por conta do pecado. E quando comparamos nossa própria existência com a dos animais, estamos completamente conscientes da superioridade que gozamos como seres humanos, graças à nossa razão. Desse modo, o poder que gradualmente adquirimos sobre os animais é tão patente e real que claramente nos convence da confiabilidade de nossa pesquisa e pensamento. Por conseguinte, não é possível negar que o obscurecimento por meio do pecado também pode ser observado nessa instância. Quão demasiadamente fraco é o poder do pensamento lógico entre um considerável número de pessoas! Quão numerosos são os equívocos e erros nos quais nosso raciocínio repetidamente tropeça! Quão frequentemente a indolência se instala e se introduz em nossas pesquisas, nos níveis mais profundos! Quantos estudos são realizados simplesmente para os exames ou por uma carreira, estando de todo ausente a motivação do entusiasmo sagrado pelo objeto de estudo! Entretanto, mesmo que admitamos tudo isto, ainda assim, todas essas coisas não são nada mais do que um defeito parcial, e não um obscurecimento que impede nossa visão. Não. O verdadeiro obscurecimento efetuado pelo pecado reside num lugar completamente diferente — a saber, no fato de que perdemos o dom de abranger o contexto real, a coerência apropriada, a integração sistemática de todas as coisas. Ora, percebemos tudo apenas de uma perspectiva externa, não em seu âmago e essência, isto é, percebemos cada coisa individualmente, mas não em sua relação mútua e em suas respectivas origens em Deus. Tal relação, tal coerência das coisas dentro da relação original com Deus, pode ser percebida apenas em nosso espírito. Não reside, pois, nas coisas que se encontram fora de nós, de modo que poderíamos conhecer e examinar essa coerência somente na medida em que nosso espírito vivesse um relacionamento vital com Deus e fosse capaz de delinear a coerência dos pensamentos divinos que procedem originalmente de Deus. O espírito humano possuía precisamente essa característica quando de sua criação perfeita, tendo-a perdido exatamente quando o pecado rompeu essa conexão vital que nos unia a Deus. Assim como um cachorro ou um pássaro vê um palácio com pedras, madeiras e argamassa — percebendo talvez até mesmos suas cores, sem, contudo, compreender ou entender nada acerca da arquitetura ou do estilo daquela construção, nem o propósito de suas câmaras e janelas —, assim também nos achamos com nosso entendimento obscurecido perante o templo da criação. Vemos as partes, as peças, os elementos, mas já não possuímos mais um olhar perceptivo para o estilo desse templo. Não somos mais capazes de vislumbrar seu arquiteto, e, assim, também não somos mais capazes de compreender esse templo da criação em sua unidade, origem e destino. Somos semelhantes a um arquiteto destituído de seus sentidos, que, quando estava em plena posse de sua mente, compreendeu e percebeu o edifício inteiro em sua coerência, mas que agora, espiando da janela de sua cela, contempla fixamente as paredes e os pináculos, não sendo mais capaz de compreender o estilo da construção. O homem está cego com relação a Deus e às coisas divinas — o que significa não somente que nós, que agora habitamos no ofuscamento de nosso pecado, não podemos mais nos erguer em direção a Deus, mas que também não nos encontramos mais na posição de perceber, na criação, a coerência dos pensamentos de Deus. De semelhante modo, isto significa que somos incapazes de perceber a totalidade da criação e de formar um conceito claro do plano que a permeia. Consequentemente, não somos capazes de chegar a um conhecimento verdadeiro da criação. Podemos certamente adquirir um conhecimento correto a respeito da pedra, madeira, tinta e metal, mas nos é impossível alcançar uma visão correta do estilo, da ideia fundamental, do tema e do objetivo dessa construção chamada criação. Certamente que a ciência não consiste simplesmente no exame da madeira, pedra e metal; antes, uma investigação se torna mais própria e essencialmente ciência quando tem êxito em capturar uma imagem espelhada do todo. Precisamente por isso é que o obscurecimento causado pelo pecado impede a aquisição não do conhecimento dos detalhes, mas do conhecimento no sentido mais sublime e nobre do termo. Contanto que se olhe para a criação, ainda que excluindo os homens e ignorando Deus, é certo que a ciência ainda traz à tona maravilhas por meio de sua precisa dissecação das coisas e delineamento das leis que governam seus movimentos. Contudo, tão logo se leve em conta os homens, nos deparamos com questões espirituais que nos fazem entrar em contato com o centro de toda a vida espiritual, isto é, com Deus. Neste momento, toda certeza desvanece, uma escola científica de pensamento se posta ao lado da outra, um paradigma se opõe a outro, até que o desespero generalizado tome conta dos pesquisadores. O conhecimento deles avança, é claro, contanto que estudem o corpo humano e possam observar algo da psique humana que tenha alguma forma de expressão corporal, mas no momento em que adentram o domínio caracteristicamente espiritual, os resultados são somente especulações e conjecturas, com uma teoria substituindo outra, conduzindo, em última instância, à dúvida e ceticismo. A forma como tudo isso veio à existência nos seria muito mais clara, caso soubéssemos mais acerca da situação original de nossa raça humana quando saiu das mãos de seu Criador, não tendo sido ainda afetada pelo pecado. Certamente nosso conhecimento sobre isso é mínimo. Todavia, a partir de diversos fragmentos de valiosa informação, podemos obter, mediante dedução, conhecimento relevante suficientepara compreender a diferença que se instalou na criação por conta do pecado. Na nossa atual situação, podemos chegar ao conhecimento das coisas somente mediante a observação e análise. Mas não era assim no paraíso, pois quando lemos que Deus trouxe os animais a Adão, e quando este os viu pela primeira vez, ele imediatamente percebeu a natureza daquelas criaturas de tal forma que, no mesmo instante, passou a nomeá-los (Gn 2.18-20). Naturalmente isso não significa que, quando cada animal passava por ele, Adão simplesmente articulava um som desprovido de sentido ou significado. Imagine que alguém passasse perante você, carregando duas ou três centenas de valises, e que à medida que olhasse para cada uma delas, uma após a outra, inventasse um som, sem qualquer propósito ou sentido. Antes mesmo de chegar à centésima valise, você já teria esquecido o nome que havia dado à primeira delas. Qual propósito foi cumprido quando Adão nomeou os animais? Afinal, Eva não estava lá, portanto, ninguém o escutou. Essa narrativa só faz sentido caso se compreenda que Adão percebeu de imediato a natureza de cada animal, e expressou sua intuição dessa natureza dando um nome que lha correspondesse. Ora, se Adão desfrutou dessa posição com relação ao mundo animal, não há razão para negar que ele gozou de uma posição semelhante no que diz respeito ao mundo vegetal — na verdade, a todo o mundo natural. Não possuímos mais essa característica, essa capacidade imediata de percepção e compreensão da essência de plantas e animais. Se desejamos compreender uma planta ou um animal, então é preciso observá-los cuidadosamente por um longo tempo, e, partindo daquilo que observamos gradualmente, tirar conclusões a respeito da natureza deles. Isto ocorre independente de chegarmos algum dia à compreensão da essência deles. Até mesmo seus instintos permanecem, para nós, um enigma completamente insolúvel. Adão, contudo, possuía essa capacidade. Levando isso em consideração, entenderemos também o modo pelo qual ele teria alcançado o conhecimento de toda a criação caso o pecado não tivesse interferido. Esse conhecimento teria conduzido a um entendimento da totalidade da criação no contexto de sua origem e seu destino. Mas há algo mais — Adão não somente percebia a essência das coisas, mas também as nomeava. Tal nomeação também não existe mais para nós. Podemos certamente dar um nome para um objeto não familiar, todavia, ou tomamos esse nome de outros povos, como os holandeses tomaram de empréstimo termos do inglês para trilhos, bondes e locomotivas, ou formamos um nome com a ajuda de palavras gregas, como telégrafo, telefone, eletricidade e assim por diante. Portanto, podemos inventar novos nomes em nossa própria linguagem, a fim de expressar a essência das coisas, somente mediante a composição linguística ou por meio da adoção de palavras já em uso. Não somos mais capazes de criar linguagem. Adão, contrariamente, era capaz disso. Para ele, o conceito de uma coisa existia juntamente à sua essência, e a palavra, por sua vez, existia numa conexão orgânica com esse conceito. Adão não teve uma mãe que lhe ensinou a falar, antes, ele o fez automaticamente; e o fato que Deus falou com ele (e ele certamente compreendeu as palavras divinas) já nos mostra o quão altamente desenvolvidas eram suas capacidades conceituais e linguísticas. Desse modo, não estamos exagerando quando afirmamos que, em seus próprios pensamentos e consciência, Adão possuía uma clareza, um discernimento e uma unidade que perdemos. Se não fosse o pecado, a ciência teria tomado um rumo completamente diferente, e teria sido construída com uma imediatez que mal podemos imaginar. O que se deseja expressar por esse obscurecimento do entendimento devido ao pecado se nos torna evidente da maneira apropriada somente quando comparamos aquilo que Adão poderia fazer e aquilo que não somos mais capazes. A ciência era uma posse imediata para Adão, mas para nós é um pão do qual não podemos nos alimentar a não ser mediante o suor de nossos espíritos, por meio do trabalho árduo e extenuante. Embora a ciência tenha adquirido uma feição completamente diferente como um resultado do pecado, de modo que agora ela é fruto de custosa diligência, observação precisa, análise cuidadosa e síntese conscienciosa, no entanto, sua existência anterior não foi inteiramente perdida. Os instintos dos animais demonstram quão intuitivamente podem ocorrer tanto o conhecimento preciso quanto as ações exatas, independente de estudo ou prática anteriores. A aranha tece sua teia e a abelha constrói sua colmeia com uma precisão e certeza que não podem ser superadas por qualquer tipo de construção humana. Tome, por exemplo, uma jovem aranha que jamais viu uma teia; no entanto, você verá que, em pouco tempo, ela estará fiando e tecendo uma teia que é, ao mesmo tempo, artística e proficiente. Nesse contexto, podemos mencionar aquilo que o apóstolo Paulo observa a respeito do conhecimento humano, que agora é somente parcial, atuando com imagens espelhadas, mas, num momento posterior, tornar-se-á completamente diferente e tido como perfeito[9]. Presentemente, contudo, não mais possuímos esse tipo de conhecimento, nem a capacidade de obtê-lo — tudo chega a nós mediante a observação, aprendizado, prática e estudo. Não obstante, há algo na experiência humana que se encontra entre o instinto e o conhecimento adquirido, um tipo de conhecimento mediado que o Espírito Santo, por toda parte, apresenta com o termo “sabedoria”. Sabemos simplesmente, por experiência prática, que isso é algo diferente do conhecimento científico. Uma vez ou outra, em meio às pessoas mais simples, nos deparemos com o tipo de indivíduo que é dotado com uma sabedoria extraordinariamente prática. Tais pessoas geralmente não possuem muita instrução acadêmica. Ocasionalmente, alguns deles não sabem ler ou escrever, e, ainda assim, quando se trata de aconselhar, decidir ou agir, eles são capazes de falar de forma extremamente sábia; sabem como agir sabiamente, de forma que sempre têm êxito, envergonhando pessoas mais instruídas do que eles. De modo geral, uma mulher possui uma educação formal inferior ao homem, contudo, quantas vezes não percebemos como a esposa de um homem douto possui uma ponderação muito mais sábia com relação à experiência humana do que seu esposo, de maneira que ela chega a constrangê-lo com todo seu conhecimento? Esse tipo de sabedoria é encontrado não somente no Oriente, mas também no Ocidente. Salomão jamais estudou naquilo que chamamos de universidade, e muito provavelmente não realizou quaisquer tipos de exames, e, todavia, as pessoas vinham de todas as regiões do Oriente a fim de ouvir a sua sabedoria. Mesmo que uma inspiração especial tenha entrado em jogo aqui, todavia, entre outros povos do Oriente, circulavam histórias a respeito de um povo sábio que foi de fato dotado com um discernimento extremamente claro e lúcido no tocante a várias questões. Tal sabedoria é um dos elementos mais preciosos na vida de uma sociedade. As pessoas ocasionalmente se surpreenderam pelo alto nível de sabedoria prática presente mesmo em indivíduos de tribos primitivas. No seu sentido mais amplo, não podemos compará-la ao instinto animal, nem tampouco ao conhecimento imediato que Adão possuía. No entanto, essa sabedoria nos faz lembrar de ambos, e de fato tem algo em comum com eles. A semelhança é que, aparentemente dissociado de qualquer esforço, tal conhecimento lida confortavelmente com o contexto das coisas, e com uma apreensão firme e segura sabe escolher o correto. É como se essas pessoas sábias estivessem seguindo uma diretriz superior que sempre os capacita a encontrar o que é certo. Eles invariavelmente atingem o alvo. Isto que presentemente assoma aos nossos olhos nada mais é do que a operação da graça comum, que preservou alguns resquícios do paraíso e enriquece nossa vida, mesmo a vida afligida pelo pecado. Ora, evidentemente essa característica também se desenvolveu pecaminosamente nos estratagemas do enganoe nas astúcias do enganador. Entretanto, isso acontece com todos os dons fornecidos pela graça comum, que se empenha em nos enriquecer, mas ao mesmo tempo corre o risco de ser empregada incorretamente. Husai e Aitofel[10] são exemplos de ambas essas situações. Contudo, em nossa situação pecaminosa, a ciência não surgiu dessa sabedoria. A sabedoria é proveitosa para o momento ou para a vida prática, mas não é capaz de construir o conhecimento do todo. Por esse motivo, a graça comum fornece um segundo elemento. Uma vez desprovido desse discernimento imediato com relação à essência das coisas, o caminho foi aberto para que, mediante o trabalho incansável de pesquisa, observação, análise, imaginação e reflexão ulteriores, uma pessoa possa adquirir pelo menos algum conhecimento do lado externo das coisas e também possa compreender o aspecto conjunto das coisas, mesmo que não a lei de seu movimento. Este é o segundo dom que procede da graça comum que, ao longo dos séculos, conduziu ao surgimento daquilo que agora chamamos ciência. Somente através desses meios podem os seres humanos, tanto quanto lhes cabe, alcançar a ciência. Em que medida a graça especial contribui para esse fim será objeto de nossas considerações no próximo capítulo. 3. E����������� Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. (1Co 2.11) Conforme dito, o pecado causou certo obscurecimento em nosso entendimento. Como resultado, a clareza da ciência humana sofreu consideravelmente no que tange ao entendimento. A situação não seria tão grave caso nosso conhecimento repousasse inteira e exclusivamente na observação ou proviesse da experiência. Se assim fosse, possuiríamos na nossa consciência nada além de um espelho que refletiria o mundo ao nosso redor. É verdade que um espelho sem rachaduras ser-nos-ia preferível, contudo, um espelho trincado ainda pode nos servir em caso de necessidade. Portanto, poderíamos afirmar que o espelho de nossa consciência fora trincado pelo pecado, e que o reflexo do mundo projetado nessa superfície partida nos ofereceria um conhecimento do mundo que não está de todo incorreto. Com efeito, a unidade da imagem do mundo sofreria certo dano, todavia, ainda assim, seríamos capazes de observar as partes dessa imagem. E é precisamente neste ponto, contudo, que se encontra a dificuldade. Ora, na verdade, o que se encontra dentro de nós é algo totalmente diferente de um espelho. O fenômeno que projeta seu reflexo no espelho de nossa consciência não é, absolutamente, o único que nos leva a fazer ciência. De semelhante modo, nossa consciência, nossa razão e nosso entendimento são elementos totalmente diferentes de uma câmera. De fato, nosso entendimento abarca uma capacidade fotográfica, no entanto, esta é de pouca ajuda no que diz respeito à operação essencial de nosso pensamento científico. O mesmo se dá analogicamente com relação a nosso olho. Nas lentes de nossos olhos, existe, por assim dizer, uma câmera. Elas capturam uma imagem; outra pessoa, por sua vez, pode observar esse reflexo que foi capturado em nosso olho. Mas nossa visão é uma atividade extremamente mais complexa. Podemos facilmente exemplificar isso quando comparamos uma pessoa que está olhando intencionalmente para algo com outra que está fitando distraidamente o mesmo objeto — o olhar de ambas captura o mesmo navio, a mesma casa ou o quer que seja. As lentes de cada uma possuem o mesmo reflexo, e, todavia, uma de fato vê o objeto e a outra, não. Isto constitui prova suficiente de que há uma dualidade no olhar mais simples. Em primeiro lugar, há o reflexo de algo nas lentes de nossos olhos; em segundo lugar, nossas mentes se focam naquilo que é refletido. A mesma coisa é verdade com relação ao nosso conhecimento intelectual. A observação múltipla captura a imagem, mas com isto não se dá por encerrada a atividade de nosso intelecto. Na verdade, neste ponto, o trabalho principal de nossa mente está apenas começando. É preciso explicar mais profundamente esse contraste entre a imagem refletida das coisas e o trabalho superior de nossa mente. Ora, uma observação pode ser simples ou composta, direta ou periférica. Se vejo o gado pastando à minha frente, podemos dizer que esses animais estão sendo observados diretamente no que diz respeito à sua aparência e movimento. Para isso não precisamos de um professor de zoologia; até mesmo uma criança da fazenda é capaz de fazê-lo. Contrariamente, caso seja necessário verificar se um micróbio infectuoso está alocado no pulmão desses animais; de que espécie de micróbios se trata; e os danos que podem gerar, torna-se necessária uma observação infinitamente mais analítica e complexa, a qual pode ser realizada somente por um especialista nessa área. Afinal, o pulmão não está exposto, e os micróbios são demasiadamente minúsculos. Mesmo que tal observação exija um esforço bem maior; ainda que não possa ser feita sem o uso de várias ferramentas apropriadas; e que várias formas de conhecimento dedutivo devem ser consideradas em relação a tudo isso — contudo, o que temos neste ponto é e permanece sendo nada mais do que observação. Alguém pode chamar de ciência essa observação analítica, intensiva, difusa e confusa e complexa, porém ela se encontra basicamente no mesmo continuum que a observação direta e ordinária. Na verdade, a ciência é bem mais refinada; requer um talento consideravelmente maior; exige de nós um empenho maior; entretanto, o resultado continua o mesmo. A criança da fazenda vê a olho nu o gado no pasto; ela conta esses animais, distingue suas cores, as observa andando e se movendo de um lado ao outro. O pesquisador segue o mesmo caminho a fim de descobrir os micróbios no pulmão enfermo: contá-los, distingui-los no tocante às suas formas e identificar seu movimento. Todas as ciências superiores começam com a avaliação das coisas, contudo, sua verdadeira tarefa consiste em processar aquilo que observou e, a partir disso, tirar suas conclusões. Tendo realizado as observações, as ciências superiores seguem com a composição de uma complexa teoria que explique claramente as causas relevantes, os princípios operativos e as interrelações dos fenômenos. Se esta descrição está correta, então não há dúvida de que essas observações independentes fornecem o material para as ciências superiores, embora não constituam a ciência em si mesma. Contudo, em contraposição, no século passado, as pessoas se habituaram cada vez mais a presumir que tal observação artificial já constituía a verdadeira ciência, e partindo desta premissa eles atribuíram o mais alto caráter científico àquelas disciplinas ocupadas com a observação da natureza. A elas, os franceses concederam o honorável título de sciènce exactes (as ciências naturais), e os ingleses, por seu turno, lhe deram o título abreviado de sciences (ciências), como se esses estudos, por si mesmos, pudessem arrogar-se o ilustre epíteto de “ciência”. Essa atitude talvez tenha sido causada pelo desleixo, e mesmo pelo desprezo, com que a observação foi tratada no passado. Mas nessa posição reside um erro e um perigo que necessitam ser apontados. Atrás dessa posição se encontra uma tentativa de libertar a ciência de nossa subjetividade ou, se preferir, de nossa pessoa. A ciência supostamente deve ser neutra, e a fim de sê-lo, deve ser dissociada de nosso ser pessoal. Somente assim pode ser qualificada como ciência, a qual todos sancionam de forma imediata, ou concordam com base na demonstração. É isso que as pessoas pretendem ao insistir que a ciência deve ser imparcial, e que, no que tange a ela, nossa única preocupação deve ser encontrar a verdade. Todavia, nessa perspectiva, a questão se encontra falseada. É inconcebível, no domínio da ciência, a busca, por parte de um pesquisador, de algo que não seja a verdade — sim, pode ser que haja alguém com um objetivo adicional. Um médico que estuda um pulmão enfermo espera
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