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BibliotecaCrista - Sabedoria e prodígios - Abraham Kuyper

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Prévia do material em texto

Sabedoria e prodígios
 
Graça comum na ciência e na arte
 
Abraham Kuyper
 
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
Editora Monergismo
Caixa Postal 2416
Brasília, DF, Brasil ─ CEP 70.842-970
 
Sítio: www.editoramonergismo.com.br
 
1ª edição, 2016
 
Tradução: Fabrício Tavares de Moares
 
P������� � ���������� ��� ��������� �����, ����� �� ������ ��������, ���
��������� �� �����.
 
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA)
salvo indicação em contrário.
 
 
S������
Dedicatória
Prefácio
Prefácio do tradutor [do holandês para o inglês]
Introdução
1. Sabedoria
2. Conhecimento
3. Entendimento
4. Pecado
5. Educação
6. Maravilhas
7. Beleza
8. Glória
9. Criatividade
10. Adoração
Sobre o autor
 
 
D����������
Para o dr. Rimmer de Vries,
 
Em reconhecimento de seus empenhos ao longo da vida e de seu legado
permanente como líder cultural, economista, visionário e seguidor fiel de
Cristo, refletindo sempre a visão kuyperiana do senhorio de Jesus Cristo
sobre todas as esferas da sociedade.
 
 
P�������
Nos dias atuais, aqueles que seguem a Jesus enfrentam numerosos desafios,
um dos quais, não menos ferrenhos, são eles próprios.
A vida na cultura ocidental tem sido cada vez mais descrita como
“secular”, “amoral” e “ímpia”, ainda que vários servos fiéis de Deus se
esforcem para dar sentido de uma situação pública que destrambelhou
terrivelmente. A questão não é que determinado aspecto de nossa fé esteja
sendo confrontado, mas, sim, que a própria plausibilidade da fé não possui
credibilidade quando no que concerne à vida numa sociedade pluralista.
Qualquer que seja a fé que ainda retenhamos, não raro aparenta mais como
uma ressaca de um outro tempo do que uma fé robusta que molda o todo de
nossas vidas hoje. Mas o problema está com os próprios cristãos?
Lembramo-nos das famosas palavras de Walt Kelly: “Eu me deparei
com o inimigo, somos nós mesmos!” Os cristãos atualmente se defrontam
com um quadro sério dentro de si mesmos. Perdemos a compreensão
coerente e holística de como o Evangelho, e por esse meio a prática da fé
cristã, se relaciona com cada área da sociedade. Nossa confiança sofreu
abalos até mesmo em seus fundamentos na medida em que nos
empenhamos para oferecer uma realidade alternativa para um mundo
ansioso.
E eis Abraham Kuyper. Semelhante a muitos outros, passamos a
conhecer a obra de Kuyper indiretamente, por meio do famoso evangélico
Chuck Colson, quando, em seu livro Como viveremos?, exclamou: “os
cristãos são chamados a aplicar a redenção à totalidade de suas culturas, e
não somente a indivíduos”.
Essa simples afirmação alterou todo o curso das coisas, pois revela
uma verdade que muitos cristãos esqueceram, isto é, que nós, cristãos, temos
o papel, na verdade uma responsabilidade, de nos envolvermos na renovação
de cada domínio deste mundo. Nada deve deixar de ser tocado pelo poder
transformador do Evangelho. Essa foi a influência de Kuyper.
O teólogo holandês nos lembra — num tempo quando vários cristãos
inconscientemente vivem vidas dualistas e desintegradas — que a totalidade
da vida, não somente as “partes espirituais”, pertencem a Deus. Dallas
Willard, dentre outros, diagnostica corretamente o problema quando descreve
o “Evangelho truncado” adotado pela maioria. Nessa visão reducionista e
defeituosa, ao invés de viverem as riquezas da narrativa bíblica plena da
Criação, Queda, Redenção e Consumação, os cristãos, pelo contrário, se
debatem apenas com os temas da Queda (pecado) e Redenção (a cruz). Isto
frequentemente nos deixa confusos, levando-nos a questionar se é possível
encontrar a beleza e a bondade num mundo extensivamente deformado pelo
pecado; isso nos leva a perder de vista grande parte da operação divina no
mundo. Quando agimos assim, reduzido a extensão da obra de Deus à
remoção, espera e evacuação. Somos deixados a lutar, a fim de estarmos
plenamente presentes no mundo, crendo que Deus irá, em última instância,
abandoná-lo (este mundo) em prol de um domínio espiritual.
Por outro lado, Kuyper acredita e ensina que a totalidade da criação,
até sua plena consumação, pertence a Deus. Ele não é apenas o S����� dos
céus, mas sim o S����� dos céus e terra. Como observa o salmista: “Do
S����� é a terra e a sua plenitude” (Salmo 24.1). A obra de criação divina
continua ainda hoje na plenitude e alegria de toda a vida e cultura humanas.
Este é o entendimento coerente e a sensibilidade prática com relação à
aplicação da fé no todo da vida que os conduz os leitores de Kuyper a uma
derradeira epifania.
Mas por que ciências e arte? Em Sabedorias e Prodígios, Kuyper
aborda dois dos domínios mais difíceis que intimidam os cristãos nas nossas
conversas modernas: ciências e arte. Muitos cristãos se sentem ameaçados
pela ciência, creem que não é digna de confiança e que afronta a fé.
Questões concernentes à bioética, evolução, gestão ambiental e a
probabilidade de aumento das descobertas científicas por meio de novas
tecnologias obnubilam a objetividade entre certo e errado, bem e mal.
A arte é outro aspecto com o qual os cristãos possuem relacionamento
desconfortável e indefinido. Vivemos numa época na qual nossas
imaginações se encontram sob ataque, de modo que, na vida de vários
indivíduos, a criatividade se tornou uma vítima. Não estamos aptos a discernir
entre a boa arte e a arte pobre, e os patronos da cultura sólida já se
perderam. Infelizmente, grande parte da arte apreciada por cristãos é
classificada como “arte cristã”, que são incapazes de nos comoverem
profundamente. Kuyper vem ao nosso auxílio, se empenhado em recuperar a
noção de que a grande arte não deveria somente tocar nossos corações, mas
também ocupar nossas mentes. Caso falhe nisso, não se configura como
criativo.
A insistência de Kuyper de que Jesus é, de fato, S����� sobre todas
as coisas é ressaltada nas páginas deste livro. Sua convicção de que a
ciência não é uma ameaça à nossa fé, mas uma aliada, e suas exortações
para que celebremos a glória de Deus mediante a expressão criativa, farão,
com regozijo, colocar cânticos novos de louvor Àquele que é S����� tanto
dos céus quanto da terra.
 
— Gabe Lyons
Fundador do Q Ideas e autor de The Next Christians
 
— Jon Tyson
 Pastor da Trinity Grace Church e autor de Rumors of God
 
 
P������� �� �������� [�� �������� ���� �
������]
A tradução de um livro, que, além da língua, também pertence a um tempo
diferente, jamais é um processo tranquilo. Consequentemente, devemos
apresentar aos nossos leitores uma série de decisões concernentes à
tradução e edição que possibilitaram esta tradução de uma obra holandesa
escrita há mais de um século. Essas decisões evidentemente envolvem
alterações, subtrações e adições.
Por exemplo, ao citar as Escrituras, Kuyper emprega a versão
holandesa da Staten Vertaling ou suas próprias paráfrases do texto. A fim de
sermos consistentes com o nosso objetivo de produzir uma tradução inglesa
contemporânea dessa obra, utilizamos a English Standard Version (ESV) da
Bíblia, salvo em casos apontados. Para auxiliar o leitor, em alguns pontos,
substituímos as paráfrases de Kuyper pelo texto efetivo da ESV, de
semelhante modo, fornecemos (em parênteses) as referências textuais
específicas, que não constavam no original, tanto nas citações diretas das
Escrituras quanto nas paráfrases. Para algumas referências e alusões com as
quais, talvez, não estejamos familiarizados, acrescentamos notas limitadas
com referências aos textos das Escrituras relacionados.
Breves notas editoriais também foram adicionadas ao longo do texto, a
fim de identificar pessoas, escolas de pensamentos ou eventos mencionados
no original, que possam ser desconhecidos aos leitores contemporâneos.
Outras alterações estilísticas também foram feitas, a fim de facilitar a
leitura e em prol do bom aspecto. O itálico foi usado menos frequentemente
na tradução do que no original. E, mais importante, parágrafos e sentenças
extensos foram desmembrados, e cláusulas subordinadas foram,ocasionalmente, reorganizadas a fim de manter a ênfase presente no original.
Também acrescentamos os títulos aos capítulos e as divisões internas. O
título original do volume, em holandês, é o presente subtítulo; acrescentamos
um novo título, Wisdom & Wonder, com o intuito de capturar a essência da
mensagem kuyperiana.
Ora, trazer, mediante tradução, obras de grande relevância intelectual
para os nossos dias modernos frequentemente faz com que o tradutor e editor
se confrontem com questões que envolvem perspectivas sócio-culturais
delicadas, juntamente com a linguagem a elas relacionadas. À media que os
tempos mudam, também os modos de expressão se alteram. Isso se aplica,
da mesma forma, ao trabalho de Kuyper. Por exemplo, quando possível,
optamos por um uso responsável, mas de modo nenhum rigoroso, dos
substantivos e pronomes neutros (ex.: utilizando o termo “pessoas” ao invés
de “homens”). Quando necessário e apenas infrequentemente, formulações
não muito felizes foram alteradas para a sensibilidade moderna ou omitidas.
Não obstante, talvez o maior desafio seja a tradução da palavra
holandesa wetenschap de modo apropriado ao uso e contexto de Kuyper. O
sentido básico da palavra é simplesmente “conhecimento”, mas no uso
acadêmico e filosófico, corresponde à palavra alemã Wissenschaft, referindo-
se à ciência.
Contudo, em contraste às noções modernas de ciência, Kuyper a
compreendia num senso mais amplo, o qual se referia a algo pertencente à
criação, algo criado por Deus, para o qual o Criador designou uma tarefa
exclusiva. Kuyper estava plenamente consciente de que a ciência consistia da
reflexão humana sobre a criação, no entanto, insistia que a reflexão humana
espelhava ou imitava o pensamento divino embutido em toda a criação. Na
visão de Kuyper, a ciência é um corpo de conhecimentos e insights em
constante crescimento que foi chamado à existência por Deus,
desenvolvendo-se, ao longo da história, devido às pessoas devotadas ao seu
estudo, e que pode ser restaurada e santificada em Jesus Cristo. Contudo, a
visão científica moderna geralmente emprega o termo “ciência” em referência
à um método de investigação racional e neutro, ou em referência às
disciplinas ou domínios específicos.
Ademais, Kuyper distinguia entre “ciências inferiores” e “ciências
superiores”; as primeiras se referem à observação humana simples e direta
dos fenômenos na criação, ao passo que as últimas dizem respeito à uma
reflexão e prática mais refinadas da pesquisa científica em termos de um
sistema. Juntamente às ciências naturais (que podemos denominar de hard
sciences ou de ciências exatas), Kuyper tratou também acerca das ciências
espirituais, ou o que atualmente se chama de Humanidades (ou Ciências
Humanas) e ciências sociais (literatura, poesia, história, psicologia,
antropologia, sociologia, economia etc.). Tendo essas diferenças em mente, o
leitor terá um entendimento correto do amplo uso que Kuyper faz desses
termos.
Por fim, devemos mencionar nossa grata utilização, em vários trechos,
da tradução parcial da seção concernente à graça comum e a ciência, que
está inclusa na obra Abraham Kuyper: a centennial reader, edita por James D.
Bratt (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1998, pp. 442–460) e que se pautou
numa reformulação do material produzido por Hans van de Hel. Agradecemos
especial a Clifford Anderson, George Harinck e Harry Van Dyke por seus
experientes conselhos e assistência na preparação do presente texto.
 
— Nelson D. Kloosterman
16 de agosto de 2011
 
 
I���������
Vincent E. Bacote
Abraham Kuyper (1837-1920) foi um cidadão holandês cuja vida e obra
permanecem relevantes até os dias de hoje, particularmente devido à
fermentação contínua por eles propiciados no que tange ao papel que cabe
ao cristão na vida pública. Kuyper era filho de um pastor, tendo recebido sua
educação formal na Universidade de Leiden. Profundamente influenciado pelo
pensamento moderno, eventualmente se tornou pastor na cidade rural de
Beesd, onde passou por uma conversão ao cristianismo ortodoxo por meio da
influência de alguns membros piedosos e de confissão reformada de sua
congregação. Durante este mesmo período, o interesse de Kuyper numa fé
com impacto público começou a emergir.
Embora estive profundamente agradecido por aquilo que aprendera
dos membros de sua congregação, ele estava consciente de que o
cristianismo não estava confinado às câmaras internas do coração, mas era
definitivo para várias dimensões sociais da vida, com as quais nos deparamos
na medida em que participamos dos domínios da cultura, política e economia.
Eventualmente, Kuyper se tornou um líder no movimento anti-revolucionário
(termo relacionado com a Revolução Francesa), o qual se tornou um partido
político por volta de 1879, e também editor de jornais diários (De Standaard) e
semanais (De Heraut).
Kuyper focou sua atenção em questões relacionadas com as políticas
internas da igreja nacional da Holanda (Nederlandse Hervormde Kerk ou
NHK) e eventualmente passou a se envolver nas políticas nacionais em 1874.
Ele se via como um defensor dos cristãos ortodoxos que foram
marginalizados do âmbito da influência pública e buscou a influência cristã
nas políticas públicas, como exemplificado pelo seu apoio na expansão do
voto para famílias e o apoio público de escolas cristãs. Ele ajudou a fundar a
Universidade Livre de Amsterdã, em 1880, onde lecionou teologia.
Após uma grande crise eclesiástica, ele conduziu, em 1886, sua
separação da NHK (os Doleantie, ou “os aflitos”); em 1892, esse grupo se
uniu com aquelas igrejas que já haviam se separado do NHK, em 1834 (o
Afscheiding, ou “os separados”). Kuyper cresceu em influência na década de
1890; ele ministrou as palestras Stone no Seminário Teológico de Princeton,
em 1898, e, em parte devido a uma coalizão com membros católicos do
Parlamento, se tornou Primeiro Ministro da Holanda, de 1901 a 1905.
Vestindo os trajes de pastor, teólogo, jornalista e política em vários momentos
de sua vida, Kuyper encarnou o comprometimento com o cristianismo público
enquanto mantinha uma piedade pessoal fervorosa (como seus escritos
devocionais nos revelam).
Embora Kuyper seja conhecido por ter abordado um grande número de
questões teológicas, as mais proeminentes delas talvez sejam a soberania
das esferas, a antítese e a graça comum. A soberania das esferas é a ideia
kuyperiana de que, da soberania de Deus, procede “esferas” soberanas
distintas, tais como o estado, os negócios, a família e a igreja. Kuyper também
contribui para a formação de instituições públicas caracteristicamente cristãs,
como escolas e hospitais. A soberania das esferas apresenta um pluralismo
tanto das estruturas sociais quanto das cosmovisões, configurando-se,
portanto, como um dos traços mais proeminentes da abordagem de Kuyper
da vida pública.
A ênfase na singularidade cristã também se encontra enraizada na
visão kuyperiana da antítese entre cristãos e aqueles que não são
regenerados pelo Espírito Santo. Como Sabedoria e Prodígios demonstra em
certas passagens, Kuyper cria que a regeneração produz uma diferença
epistemológica distinta, que, em última análise, levam os cristãos a
interpretarem a realidade de forma diferente (e com uma exatidão maior) dos
descrentes. Ao enfatizar a antítese, Kuyper destacava fortemente a
importância da identidade cristã; ele não deseja que os cristãos sacrificassem
sua fé quando de sua participação nas várias áreas do âmbito público.
Em contraste à antítese, a graça comum enfatiza a humanidade
compartilhada e a responsabilidade pública. Sabedoria e Prodígios é uma
tradução recente e completa de duas seções que Kuyper pretendia incluir na
sua obra em três volumes sobre a graça comum. Essas seções foram
omitidas, por engano, da primeira edição dessa obra mais extensa de Kuyper.
De 1895 a 1901, Kuyper escreveu uma série de artigos no De Heraut, que
foram posteriormente compilados, e os três volumes resultantes foram
publicados em 1902, 1903 e 1904. As seções presentemente traduzidas, “a
graça comumna ciência e na arte”, apareceram pela primeira vez como um
volume separado em 1905, sendo mais tarde acrescentado nas outras
edições dos três volumes.
O que exatamente é a “graça comum”? Kuyper expôs esta doutrina
como um desenvolvimento das primeiras expressões reformadas da obra
preservadora de Deus na ordem criada. Tal desenvolvimento foi de fato
robusto e bem mais extenso do que as afirmações da doutrina em teólogos
como João Calvino. Alguns dos críticos de Kuyper dentro dos círculos
reformados viram essa expansão mais como invenção do que
desenvolvimento. Embora Kuyper não desprezasse as grandes declarações e
a expressão criativa, a graça comum está longo de ser uma inovação
doutrinária que se desvia das linhas da fidelidade à doutrina. Colocada de
modo simples, a graça comum responde a questão que muitos fazem acerca
de nosso mundo: “Como o mundo prossegue após a entrada do pecado e
como é possível que coisas ‘boas’ surjam das mãos dos homens dentro e fora
do relacionamento pactual com Deus?”. A graça comum é a restrição exercida
por Deus sobre os efeitos totais do pecado após a Queda; a preservação e
manutenção da ordem criada; e a distribuição dos talentos aos seres
humanos.
Como resultado dessa misericordiosa atividade de Deus por meio do
da obra Espírito Santo na criação, torna-se possível para os homens
obedecerem o mandamento dado por Deus de dominarem como mordomos
sobre a criação (Gn 1.28). Não se trata de uma graça salvadora,
regeneradora ou eletiva, mas uma graça preservadora que se estende ao
mundo que Deus criou, podendo ser vista na inclinação humana de servir ao
próximo por meio do trabalho, de buscar a paz em situações sociais
conflituosas, e de defender a equidade em todas as formas da interação
humana.
Sabedoria e Prodígios se destina especificamente aos domínios da
ciência e arte. Para Kuyper, a ciência não está limitada às ciências “exatas”,
como a química e biologia, mas também se estende às ciências humanas e
sociais. O teólogo escreveu numa época na qual se discutia abertamente se a
filosofia, literatura e teologia poderiam ser consideradas propriamente
“científicas”. Nesta obra, ele expressa sua perspectiva de que cabe à ciência
descobrir a verdade mais profunda das coisas, uma verdade que exige
investigações que conduzem para além dos encontros superficiais com os
vários fenômenos, em direção a uma compreensão de como toda a realidade
é uma expressão da mente divina.
Semelhantemente, ao tratar sobre a arte, Kuyper apresenta uma visão
que parte com a ligação entre religião e expressão artística e, por fim, se
dirige à afirmação da independência característica da arte ao domínio da
igreja. Talvez um dos pontos mais interessantes da discussão de Kuyper
sobre o domínio artístico seja sua visão de que a arte, nas suas composições
superiores, busca expressar a concretização final do reino glorioso de Deus
através de mídias como a arquitetura, pintura e música. Isto não significa que
todo artista consciente se empenha em criar obras que se aproxima do reino
consumado, mas que o desejo de expressar a plenitude da beleza tende a
orientar os artistas a esse objetivo sublime.
O foco de Kuyper na ciência e arte reflete as discussões então
contemporâneas sobre a participação cristã em ambos os domínios. Pelo
menos desde os tempos de Darwin, muitos cristãos perceberam um conflito
frequentemente real com o mundo da ciência, gerando uma tensão
significativa para aqueles cuja vocação os conduziu à pesquisa, ensinou ou
quaisquer profissões relacionadas à ciência. A reação de alguns foi o
abandono do mainstream científico em prol de uma corrente alternativa cristã,
ao passo que outros mantiveram sua fé e seu trabalho efetivamente
separados, e ainda outros abraçaram um anti-intelectualismo envolto numa
postura de fé que olha com desconfiança quaisquer pesquisas científicas
sérias. Kuyper encorajar-nos-ia a não seguir nenhum desses caminhos;
devemos participar plenamente no domínio científico, embora conscientes do
fato de que existirá uma antítese genuína entre cristãos e não-cristãos no
ponto das explicações derradeiras. Por certo Kuyper exortar-nos-ia a abraçar
tudo aquilo que se encontra no domínio das ciências.
O domínio da arte é também uma área de grandes desafios. Desde o
cinema, passando pela música popular, até à pintura, os artistas cristãos
frequentemente ocupam um domínio que muitos veem como que cercado de
placas indicando perigo. Há um abismo significativo entre o mundo da arte e a
igreja, e aqueles que se consideram como cidadãos de ambos os domínios se
encontram exasperados pelas distorções de sua vocação dentro da igreja.
Assim como no que diz respeito à ciência, há muitos que tender a encorajar
uma participação limitada nas artes, ou mesmo seu abandono, caso os
artistas não estejam produzindo obras espiritualmente orientadas. Os leitores
perceberão que Kuyper está consciente das armadilhas e promessas da arte,
ao mesmo tempo em que, em última análise, encorajando a busca pela
expressão artística em consonância com qualidade de portadores da imagem
divina presente em todos os seres humanos, como criadores de beleza, valor,
riquezas e conhecimento.
Não é necessário concordar plenamente com uma pessoa a fim de
admirá-la ou crer que suas contribuições são de grande valor. Talvez algumas
visões específicas de Kuyper sobre a ciência e arte não sejam abraçadas por
todos os leitores: embora incrivelmente visionário com relação a alguns
desenvolvimentos na sociedade, Kuyper, todavia, não era onisciente, de
maneira que por vezes arriscava algumas opiniões que podemos achar
espantosas. Isto talvez se torne mais claro ao observar seus comentários com
relação aos africanos e aos “povos primitivos” que aparecem nestas
discussões sobre a ciência e arte. Como muitos de sua época, Kuyper via os
africanos como estando bem atrás dos outros povos civilizados. Embora sua
teologia enfatizasse a criação de todos os seres humanos segundo a imagem
divina, e embora sua ênfase na diversidade cultura (multiformidade) encoraje
a humildade no que toca à extensão de nosso conhecimento, tais ênfases,
contudo, não o levaram a uma apreciação adequada de todos os seres
humanos. Ao passo que isto revela que Kuyper possuía pés de barro, não é,
contudo, justificativa para desconsiderar a tremenda contribuição de suas
obras, tais como seus volumes sobre a graça comum. Pelo contrário, isso nos
ajuda a aprimorar nossas habilidades de pensamento crítico; podemos criticar
Kuyper no que ele diz acerca de etnia e gênero, ao mesmo tempo em que
reconhecemos que tais afirmações são de fato periféricas ao seu argumento.
O projeto de Abraham Kuyper sobre a graça comum é uma
contribuição bem-vinda para uma discussão mais profunda acerca do papel
dos cristãos na sociedade. Em décadas recentes, alguns evangélicos nos
Estados Unidos empregaram um grande esforço a fim de discernir como
devemos viver com uma fé robusta e um compromisso apropriado ao
engajamento cultural, político, econômico e social. Para muitos, parece que as
únicas opções possíveis para o engajamento cristão são alguma forma de
Cristandade, que pode se assemelhar a um esforço de governar a sociedade
de acordo com os preceitos expressos da Escritura, ou uma forma de
testemunho alternativo, um tipo de antítese que enfatiza as práticas da
comunidade cristã como estando em oposição ao envolvimento direto nos
domínios político e cultural.
A graça comum nos ajuda a perceber as demais opções. A obra
sustentadora de Deus na criação nos encoraja a participar nas várias áreas
da vida, a nos empenharmos em discernir as melhores formas para
concretizar a educação, arte, política e negócios, na medida em que
participamos desses domínios. O engajamento cristão fiel significa a busca da
plenitude da vida humana na totalidade da ordem criada por Deus. Isto não
exige sanção eclesiástica nem a vida numa polis alternativa. Por certo, todo
contexto irá requerer de nós a percepção da forma pela qual podemos buscar
a fidelidade a Deus em diferentes formas;entretanto, podemos ser
encorajados pelo fato de que Deus, mediante a graça comum, nos possibilitou
a participar no âmbito público de diversas maneiras que contribuem para o
florescimento da ordem criada. Sabedorias e Prodígios é apenas um
antegosto daquilo que Kuyper escreveu a respeito desta grande doutrina —
que ele possa aguçar seu apetite.
 
PARTE UM
CIÊNCIA
 
 
1. S��������
A excelência do conhecimento é que a sabedoria dá vida ao
seu possuidor. (Eclesiastes 7.12)
 
Se nos atentarmos para o contraste existente entre a vida do Estado
e a sociedade, torna-se evidente que a ciência pertence
definitivamente à esfera da vida social. Contudo, isso não atenua o
fato de que, no que diz respeito à graça comum, a ciência não pode
ser incluída nas nossas discussões a respeito da sociedade, pois
aquele elemento que coloca a atividade social em movimento se
origina dentro da vivência comum e íntima das famílias num mesmo
vilarejo ou aldeia, numa mesma região ou província. Em
contrapartida, embora a ciência e, de modo semelhante, a arte,
devam encontrar a atmosfera apropriada para seu florescimento
dentro da vida comum em sociedade, elas, não obstante, extraem
seu impulso de algo que se encontra fora da sociedade, de uma
causa ímpar. Devido a esse fato, a ciência e a arte exigem um
tratamento separado, e é discutindo ambas que concluiremos nossa
exposição sobre a graça comum[1].
Primeiramente, pois, enfatizemos o caráter independente da
ciência. Antes de tudo, é necessário compreender que a ciência é
uma questão que se sustenta por si própria, não podendo ser
atravancada por quaisquer correntes externas. Por isso, se em seus
estágios iniciais faltou à ciência a força necessária para se manter
sobre suas próprias pernas, ela ainda pode, por um tempo, progredir
estando amarrada às fitas do avental dos outros. De modo
semelhante, o cidadão livre, que vive em um estado igualmente livre
e que posteriormente viesse a se focar fortemente em sua
independência, foi, quando criança, inicialmente carregado por sua
babá e aprendeu a andar agarrando-se às fitas do avental dela.
Nesse contexto, alguns apontam para o fato de que a ciência,
historicamente falando, não foi capaz de assumir inicialmente seu
papel sem o auxílio do governo e da Igreja. Todavia, tal observação
de maneira alguma constitui prova contra o caráter independente
próprio da ciência.
Em cada forma de vida, devemos distinguir dois estágios. Em
primeiro lugar, o estágio de surgimento seguido de crescimento
gradual, que continua até que a maioridade seja alcançada. E
somente então se dá o segundo estágio, quando a vida plenamente
desenvolvida se torna autossuficiente. Eis o motivo pelo qual o
jardineiro posiciona uma vareta ao longo de uma planta jovem,
unindo-as com um laço. Mas quando, graças a esse suporte, a
planta alcança o crescimento pleno, então a vareta é removida e a
planta se mantém ereta por si mesma.
E assim se deu com relação à ciência. De qualquer modo, na
Europa setentrional a ciência foi plantada e inicialmente amparada
pela Igreja cristã. Ademais, a ciência não teria sido capaz de
sobreviver sem o apoio do governo. Atualmente, de modo diferente,
a ciência se tornou independente na medida em que lhe era
infinitamente preferível dominar a Igreja e Estado a permanecer
submissa a eles. Essa independência, pois, pertence à ciência, não
se constituindo, de modo algum, uma usurpação.
A ciência não exigiu para si tal independência por meio de uma
confiança jactanciosa, antes, a possui devido ao propósito divino, e
isso de modo tal que a ciência negligenciaria sua vocação divina
caso permitisse novamente tornar-se serva do Estado ou da Igreja.
A ciência não é um ramo que cresce a partir do tronco do serviço
governamental, e muito menos um ramo que se desenvolve a partir
das raízes da Igreja. Pelo contrário, a ciência possui sua própria
raiz, estando nela, pois, firmada. Ora, é a partir do tronco que se
origina dessa raiz singular que a ciência deve cultivar seus ramos e
gerar seus frutos. Como o famoso relatório sinódico[2] expressou
acuradamente, a ciência é “uma criatura singular de Deus”, com seu
princípio próprio de vida, criada para se desenvolver em
conformidade com o princípio de vida, isto é, desenvolver-se em
liberdade.
A partir disso, podemos já observar que a ciência pertence à
criação. Pense nisto: se nossa vida humana tivesse se desenvolvido
na situação edênica, distanciada do pecado, então a ciência ainda
assim teria existido tal como existe agora, apesar de que seu
desenvolvimento teria sido completamente diferente. Embora seu
caráter tenha sofrido uma deformação descomunal como
consequência do pecado, jamais podemos dizer que, de modo
semelhante ao Estado e à Igreja, a ciência surgiu por causa do
pecado e, portanto, de uma graça interveniente.
Sem o pecado, não haveria Estado, e, à parte do pecado,
também não existiria uma Igreja cristã, todavia, teríamos a ciência.
Nessa medida, a ciência se encontra na mesma categoria que o
casamento e a família, ambos os quais igualmente sofreram
deformações monstruosas como resultado do pecado. Contudo, se
a queda não tivesse ocorrido, a família e o casamento manteriam,
todavia, sua existência independente ainda hoje, uma vez que já
existiam no paraíso. Desse modo, assim como não se pode afirmar
que o matrimônio e o grupo familiar devem sua existência ao Estado
ou à Igreja, de semelhante modo, a ciência não pode ser vista como
dependente deles. Também a ciência se origina da criação e, como
tal, recebeu do Criador um chamado independente do Estado e da
igreja.
 
__________
 
A posição independente da ciência se encontra firmada na
criação da humanidade segundo a imagem de Deus. No S�����,
nosso Deus, há um pensamento divino independente, que não
assoma na interioridade divina a partir das coisas criadas, mas que
precede a criação de todas as coisas. Ele não pensa porque criou,
antes, Ele criou após ter concebido.
Essa é nossa confissão na doutrina dos decretos divinos.
Embora a manifestação da vontade de Deus resida também no
decreto, todavia, foi firmemente estabelecido que tal vontade divina
fosse direcionada àquilo que Ele, em Sua sabedoria, havia
concebido. Não existe um decreto que não tenha sido precedido por
uma reflexão qualquer. Este pensamento divino que precedeu Seu
decreto não se configura como um aparecimento de conceitos
aleatórios que emergiram de um sentimento místico e inconsciente
de Seu ser, como propõem alguns, mas sim um pensamento
completamente independente na clareza absoluta da consciência
divina. Deus não Se inspirou em nada fora de Si mesmo.
Isto é algo que as Sagradas Escrituras expressam ao afirmar
que ninguém O instruiu, e ninguém foi Seu conselheiro. A mente do
S����� está junto a Ele eternamente. É isto que Paulo indaga:
“Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu
conselheiro?” (Rm 11.34, ARA). Em outra parte, o apóstolo
pergunta: “Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa
instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo”. (1Co 2.16, ARA).
Esse pensamento foi anteriormente formulado por Isaías, com as
seguintes palavras: “Quem guiou o Espírito do S�����? Ou, como
seu conselheiro, o ensinou?” (Is 40:13, ARA). Consequentemente, é
necessário afirmar definitivamente que, em Deus, o pensamento era
completamente independente e arquetípico; de tal pensamento
proveio o decreto divino; e deste decreto, por sua vez, originou-se o
mundo, da mesma forma como agora procede toda a história do
mundo.
Com movimentos majestosos, Salomão nos delineia essa
verdade no livro de Provérbios, quando nos traça a forma como a
sabedoria estava com Deus antes que qualquer coisa criada
procedesse de Suas mãos. Na linguagem exaltada de Provérbios
8.22-31, essa verdade nos é revelada nestas estrofes:
 
O S����� me [a Sabedoria] possuía no início de sua obra,
antes de suas obras mais antigas.
Desde a eternidade fui estabelecida,
desde o princípio, antes do começo da terra.
Antes de haver abismos, eu nasci,
e antes ainda de haver fontescarregadas de águas.
Antes que os montes fossem firmados,
antes de haver outeiros, eu nasci.
Ainda ele não tinha feito a terra, nem as amplidões,
nem sequer o princípio do pó do mundo.
Quando ele preparava os céus, aí estava eu;
quando traçava o horizonte sobre a face do abismo;
quando firmava as nuvens de cima;
quando estabelecia as fontes do abismo;
quando fixava ao mar o seu limite,
para que as águas não traspassassem os seus limites;
quando compunha os fundamentos da terra;
então, eu estava com ele e era seu arquiteto,
dia após dia, eu era as suas delícias,
folgando perante ele em todo o tempo;
regozijando-me no seu mundo habitável
e achando as minhas delícias com os filhos dos homens.
 
Retomando essa passagem, João, o Evangelista, nos ensina que
essa Sabedoria em Deus era o Verbo, e que todas as coisas foram
criadas por meio dEle: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava
com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus.
Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada
do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos
homens” (Jo 1.1-4, ARA). A expressão grega utilizada para “o
Verbo” é ho logos [ὁ λόγος], que, por seu turno, significa “razão”.
Uma vez que a razão pode se encontrar dormente até que venha à
plena claridade na palavra falada, essa frase não é traduzida por:
“No princípio era a Razão”, mas sim: “No princípio era o Verbo”.
Com isso pretende-se dizer que a razão de Deus não deve ser
representada como se existisse num estado de dormência, ainda
por vir à claridade, mas inteiramente diferente — como sendo um
com o Ser divino em plena claridade, de eternidade a eternidade.
Com efeito, aquelas igrejas que têm contínua e zelosamente
defendido a doutrina dos decretos divinos têm também buscado
resguardar cuidadosamente a honra de Deus e a compreensão pura
acerca de Sua essência divina. Em contraposição, é possível
registrar a queixa de que outras igrejas — sem negar o decreto, mas
em última análise permitindo que ele fuja de vista e seja assim
ignorado — permitiram a entrada de um conceito falseado acerca do
ser de Deus. Dessa perspectiva, comete-se o equívoco, como as
pessoas geralmente interpretam a questão, de sugerir que o conflito
entre os Reformados e os Metodistas e outros grupos tem sido
desencadeado simplesmente por causa de externalidades[3]. Pelo
contrário, esse conflito toca no ponto mais profundo da religião — a
nossa confissão com relação ao ser e atributos de Deus.
 
__________
 
Portanto, se o pensamento de Deus é eterno, e se a totalidade da
criação deve ser compreendida simplesmente como o fluxo desse
pensamento divino, de tal modo que todas as coisas vieram à
existência e continuam a existir por meio do Logos — isto é,
mediante a razão divina, ou mais particularmente, através do Verbo
—, então o caso é: o pensamento divino se encontra incorporado
em todas as coisas criadas. Então, não há nada no universo que
deixe de expressar — de encarnar — a revelação do pensamento
de Deus. Não é o caso de que tenha existido uma incomensurável
massa de matéria que o pensamento divino tentou processar, mas
sim que o pensamento divino está incorporado no todo da criação. A
essência mesma de cada coisa é constituída por um pensamento de
Deus, de maneira que foi esse pensamento que prescreveu para os
entes criados seus modos de existência, suas formas, seu princípio
de vida, suas destinações e seu progresso.
Toda a criação nada mais é do que a cortina visível por detrás da
qual radia a operação excelsa desse pensamento divino. Assim
como uma criança, brincando, observa um relógio de bolso, e supõe
que se trate apenas de um estojo dourado e um mostrador com
ponteiros móveis, da mesma forma a pessoa descuidada não é
capaz de observar na natureza e em toda a criação nada mais do
que a aparência externa das coisas. Em contraposição, o portador
do relógio sabe mais. Ele sabe que, por detrás do mostrador do
relógio, há o trabalho oculto de molas e engrenagens, e que o
movimento dos ponteiros ao longo do mostrador é causado por essa
atividade que está encoberta. De semelhante modo, todos aqueles
que são instruídos pela Palavra de Deus sabem, no que diz respeito
à criação divina, que por detrás desta natureza, atrás desta criação,
existe uma operação secreta, velada, do poder e sabedoria de
Deus, e que somente por esse modo as coisas se dão da maneira
habitual. Da mesma forma, eles sabem que essa atividade não é
uma operação inconsciente de um poder languidamente
propulsionado, mas a atividade de um poder que está sendo
direcionado pelo pensamento.
Ora, esse pensamento divino, que produz o movimento de todas as
coisas em seus respectivos cursos, não atua sem um plano,
desígnio ou princípio; pelo contrário, é uma obra direcionada a um
propósito, movendo-se em direção ao objetivo que se pauta por uma
regra preordenada. Esse plano, já em sua origem, dotou a criação
com tudo aquilo que é necessário para a consecução dessa meta.
Consequentemente, todas as coisas procederem do pensamento
de Deus, da consciência de Deus, da Palavra de Deus. Por meio
deles, todas as coisas são sustentadas; todas as coisas devem a
eles seu curso de vida e a certeza de alcançarem seu fim último.
Desse modo, podemos e devemos reconhecer e confessar
incondicionalmente que a totalidade da criação, em sua origem,
existência e progresso, constitui uma única e integrada revelação
daquilo que Deus, na eternidade, pensou e estabeleceu em Seu
decreto.
Agora a questão é se nós, os seres humanos, somos dotados com a
capacidade de refletir esse pensamento de Deus.
Está absolutamente claro que nem toda criatura possui essa
capacidade. Mesmo que o lírio esteja vestido com uma glória maior
do que a de Salomão em todo seu esplendor, ele, todavia, nada
sabe acerca de sua própria beleza, e não compreende a mínima
parcela do pensamento de Deus que encontra expressão em sua
existência. Não importa quão esplendidamente o peixe possa viver
na água — ele nada sabe a respeito da composição desse
elemento, nem de sua capacidade de manter um corpo flutuando,
ou ainda das propriedades nutritivas nele contidas. É também
patente que os animais dotados de instintos desenvolvidos, como a
formiga, a abelha, a aranha e afins, também não compreendem
absolutamente nada a respeito de seu ser, nem ainda concebem
nada daquilo que Deus neles manifesta.
Sem dúvida, devemos sempre nos precaver quando refletimos
acerca dos animais, uma vez que não somos capazes de penetrar
em sua existência interior. Contudo, podemos e devemos dizer isto:
com relação aos animais, não observamos nenhum
desenvolvimento contínuo, nem percebemos numa aptidão
proeminente ou consciência superior com as quais foram
agraciados.
Sabemos um pouco mais com relação aos anjos (levando em
consideração que os demônios sejam anjos caídos). Todavia, com
relação a eles, está escrito que anelam perscrutar coisas que não
compreendem. Independentemente da grandiosidade do
conhecimento que possuem, os anjos, em certos aspectos, são
inferiores a nós.
Por contraste, com relação ao ser humano, esta grande
verdade é revelada, a saber, que cada indivíduo é criado segundo a
imagem de Deus. Sobre essa base, as igrejas Reformadas
confessam que o homem original, em sua natureza, isto é, por
virtude de sua criação, não mediante a graça sobrenatural mas
segundo a ordem da criação, havia recebido a santidade, justiça e
sabedoria. Neste ponto, portanto, a atenção recai para uma
capacidade concedida aos homens, que os permite sair de sua
concha e espiar, por assim dizer, o pensamento de Deus que se
encontra engastado e incorporado na criação, e a captá-lo de tal
forma que, desde a criação, os seres humanos fossem capazes de
refletir o pensamento que Deus nela incorporou, já na sua origem.
Essa capacidade da natureza humana não foi adicionada
como algo extra, mas pertence ao próprio fundamento da natureza
humana.
Desse modo, pois, chegamos a três verdades que se
concatenam. Primeiramente, a plena e rica clareza dos
pensamentos divinos existiuem Deus desde a eternidade. Em
segundo lugar, na criação, Deus revelou, engastou e concretizou a
plenitude de Seus pensamentos. E em terceiro lugar, Deus criou nos
seres humanos, os portadores de Sua imagem, a capacidade de
inteligir, abranger, refletir e organizar, dentro de uma totalidade,
esses pensamentos expressos na criação.
A essência da ciência humana se apoia, pois, sobre essas
três realidades.
Uma capacidade tão excelente não foi dada aos homens para
que permanecesse inutilizada. Antes, eles devem exercê-la a fim de
realizar o propósito pelo qual foi dada. No momento em que os
seres humanos empregam essa capacidade para refletir os
pensamentos de Deus acerca da criação, surge a ciência. E na
medida em que atuem mais precisa e diligentemente, a ciência
humana alcançará uma maior estabilidade e um conteúdo ainda
mais rico.
 
 
Contudo, não se deve com isso entender que essa tarefa da
ciência, em si mesma e em toda sua extensão, foi delegada a todo
ser humano. Isso é impossível. A extensão dessa tarefa é imensa, e
a capacidade das pessoas individuais é demasiado limitada.
A confissão basilar da criação dos seres humanos à imagem
de Deus transcende o simples reconhecimento de que nós, pessoal
e individualmente, cada um por si mesmo, pertencemos à geração
de Deus. Na verdade, tal confissão só se concretiza efetivamente
quando a aplicamos a toda a raça humana ao longo das eras e
coerindo os talentos concedidos a todas as pessoas. Sendo assim,
não é o caso de que somente um cérebro individual, ou um gênio
em particular, ou algum talento singular tenha sido suficiente
equipado a fim de compreender a plenitude do Verbo na criação,
mas que todos eles conjuntamente possuem o objetivo de tornar
essa compreensão possível entre os homens. Se fosse outra a
intenção, então cada pessoa, homem ou mulher, teria que estar em
plena posse de toda a genialidade e talento. Contudo, não é esse o
caso. O gênio e o talento aparecem distribuídos apenas
pontualmente sobre determinados indivíduos. Aceitamos
prontamente a afirmação de que, com relação a essa questão, por
conta do pecado, muita coisa foi mudada daquilo que teria sido,
caso o pecado não tivesse interferido. Mas, mesmo levando isso em
consideração, não é possível afirmar que, de acordo com ordem da
criação original, não existiria diferença, nem distinção entre as
pessoas.
Ora, os céus estrelados não nos apresentam um número infinito de
estrelas idênticas entre si, mas sim estrelas, em infinitas
constelações, que diferem todas entre si. É precisamente nessa
diferenciação multiforme que radia o esplendor do firmamento. De
semelhante modo, não podemos supor que Deus não pretendia
nada mais do que uma uniformidade monótona no mundo humano,
e que a multiformidade e a variedade surgiram pela primeira vez
através do pecado. Se fosse assim, então o pecado teria antes
enriquecido do que depauperado a vida.
Ademais, o simples fato de que Deus criou homem e mulher
prova, de maneira inconteste, que a uniformidade absoluta não era
parte do plano da criação. Destarte, não podemos, pois, concluir
nada além do fato de que a rica variedade existente entre as
pessoas, em termo de aptidão e talento, tem origem na própria
criação e pertence à essência da natureza humana. Se as coisas
são dessa maneira, segue-se automaticamente que, no que diz
respeito à imagem de Deus, nenhum ser humano apresenta esse
aspecto de Deus em sua plenitude, mas que todo talento e todo
gênio, reunidos juntos, possuem a capacidade de incorporar dentro
de si mesmos essa plenitude do pensamento de Deus.
A ciência é, portanto, construída não sobre a base do que
uma única pessoa observa, descobre, imagina e organiza num
sistema em seu pensamento. Pelo contrário, a ciência surge como
fruto do pensamento, imaginação e reflexão de sucessivas gerações
ao longo dos séculos, e mediante a cooperação de todos. Cada
pessoa efetivamente possui conhecimento individual, isto é, o
conhecimento fragmentado por ela adquirido. Entretanto, a criação
de Deus é tão inefavelmente imensa, e a riqueza de pensamentos
que se encontram depositados em Sua criação é tão
incomensuravelmente profunda, que o conhecimento fragmentado
de qualquer pessoa virtualmente desaparece. Esse pequeno
fragmento é também ciência, no sentido mais geral do termo, mas
não é a ciência que atua como uma criatura singular de Deus, com
seu próprio princípio vital, a fim de completar sua tarefa também
singular.
A ciência, tomada nesse sentido elevado, se origina apenas
por meio da cooperação de várias pessoas. Avança apenas
gradualmente nas gerações que entram em cena, e, desse modo,
somente de maneira gradual adquire a estabilidade e o esplêndido
conteúdo que lhe garantem uma existência independente, e
somente nessa forma mais geral começa a assomar como uma
influência na vida.
Simultaneamente, segue-se que a ciência pode alcançar
relevância apenas com o passar dos séculos, e, portanto, será
capaz de se desenvolver em sua mais abundante plenitude somente
no fim dos tempos. A ciência é um templo esplêndido cujas bases
tiveram que ser primeiramente cavadas, para, em seguida, ter seu
fundamento estabelecido. Apenas então suas paredes puderam ser
erguidas a partir desse alicerce, para, uma vez finalizadas,
construírem suas ameias. Esse templo poderá ostentar o esplendor
cabal de sua arquitetura, de suas cores e formas, apenas quando
toda a construção estiver completa. Isso explica o porquê terem se
passado séculos, num certo número de nações nas quais
dificilmente havia ciência, no sentido mais amplo da palavra.
Também em nosso país, seria vã a busca por ciência, nesse
sentido, entre os Batavos[4]. Semelhantemente, isso também explica
porque apenas a história dos últimos séculos, especialmente dos
séculos XVI e XIX, nos apresentam o relato de um florescimento tão
poderoso da ciência. Finalmente, isso também ajuda a explicar tanto
aquilo que todos nós percebemos, isto é, que ainda hoje a ciência
se encontra somente no começo de suas grandes realizações,
quanto a razão pela qual todos os que estão familiarizados com o
domínio da ciência antecipam, com regozijo, o progresso na esfera
científica que se espera no século XX.
 
A ciência não é uma possessão adquirida pessoalmente por cada
indivíduo, pelo contrário, cresceu gradualmente em relevância e estabilidade
apenas como o fruto do trabalho de várias pessoas, entre várias nações, no
curso de séculos.
Desse fato, decorre o caráter independente da ciência, pois esta não
surgiu com a elaboração, por parte de seus melhores arquitetos, de um
projeto plenamente desenvolvido para a construção de seu templo, e, em
seguida, tendo gerações subsequentes trabalhando silenciosamente, em
consenso, e segundo esse projeto original, com o intuito de eventualmente
edificarem o templo.
Antes, todo o templo é construído sem um projeto humano e sem a
concordância dos homens. Aparentemente, ele se ergue sozinho. Cada
pessoa lavra sua própria pedra e a traz em seguida para tê-la cimentada na
construção. Logo vem outra pessoa que remove essa pedra, remodelando-a e
encaixando-a de modo diferente. Trabalhando separadamente entre si, sem
qualquer acordo mútuo e sem a menor presença de direção por parte de
outras pessoas, com todos ziguezagueando e seguindo seu próprio curso —
cada pessoa constrói a ciência segundo julga apropriado.
Através dessa confusão interminável, parece, contudo, que no curso
dos séculos, desse labor aparentemente confuso emerge um templo,
apresentando a estabilidade da arquitetura e também seu estilo, e, desde
então, se passa a especular acerca de como se dará a consecução de todo o
edifício.
Nesse ponto específico, é preciso reconhecer e confessar que todo
esse labor foi conduzido e direcionado invisivelmente por um Arquiteto e
Artista que jamais foi visto. Aqui, pois, não é possível sugerir que esse
resultado imensamente belo ocorreu por acidente, sem um plano e totalmente
por si mesmo. Pelo contrário, devemos confessar que o próprio Deus
desenvolveu Seu próprio plano divino paraessa construção, criou os gênios e
talentos para sua implementação e direcionou o trabalho de todos, tornando-o
profícuo, de forma que aquilo que havíamos desejado e ainda desejamos se
tornasse efetivamente realidade.
Vendo dessa forma, contudo, a ciência é também uma invenção de
Deus, que Ele chamou à existência, fazendo com que ela trilhasse as sendas
do desenvolvimento segundo Ele mesmo havia estabelecido.
Isso não significa nada além de afirmar e confessar com gratidão que o
próprio Deus chamou a ciência à existência como uma de Suas criaturas, e,
consequentemente, que a ciência ocupa seu lugar independente em nossa
vida humana.
 
 
2. C�����������
O temor do S����� é o princípio do conhecimento[5] (Provérbios
1.7a)
 
Descobrimos anteriormente que o pensamento original[6] existia em
Deus. O universo criado configura-se como uma manifestação e
uma concreção desse raciocínio original. Aos seres humanos, por
sua vez, foi dada a capacidade de refletir e investigar esse
pensamento divino de uma maneira exclusivamente humana. Tal
reflexão progride fragmentariamente; contudo, com a ajuda de
direção e organização competentes, ela dá origem a um sistema de
conhecimento. Portanto, a ciência, que é uma criação singular de
Deus, é constituída por esse sistema humano de reflexão, tendo
sido vocacionada para, de maneira independente, realizar a tarefa
que lhe foi designada pelo próprio Deus. O S����� organizou a
ciência desse modo com o intuito de magnificar Seu santo nome.
Desse modo, e de nenhum outro, a luz do Verbo de Deus
desvela o fundamento. A verdade aqui expressa é compreendida
ainda mais profundamente por meio das Sagradas Escrituras, sendo
inferido do ser, vida e obras singulares de Deus mediante a
deslumbrante revelação de que a Sabedoria ou Verbo possuía uma
existência pessoal eterna em Deus, sendo também verdadeiramente
o próprio Deus.
Com relação a essa questão, não é necessário discutir o pano
de fundo, já que presentemente não estamos tratando acerca do
pensamento original, isto é, arquetípico, em Deus[7], mas sim do
conhecimento refletido, ou ectípico, que se origina segundo o
arranjo divino dentro e a partir da consciência humana.
Como um aparte, a fim de prevenir a compreensão
equivocada, devemos prestar demasiada atenção à singularidade
das Sagradas Escrituras, as quais, à medida que lemos, nos passa
repetidamente a impressão de que, ao invés de recomendar o
conhecimento ou a sabedoria, frequentemente condena o
conhecimento humano. Como lemos em Isaías: “A tua sabedoria e a
tua ciência, isso te fez desviar” (Is 47.10). Ou como diz Eclesiastes,
o Pregador: “Quem aumenta ciência aumenta tristeza” (Ec 1.18). Ou
ainda como Paulo escreve aos Coríntios: “Porque a sabedoria deste
mundo é loucura diante de Deus” (1 Co 3.19).
Essas afirmações, juntamente com várias outras, rapidamente
nos desencorajam de obter aquilo que o mundo chama de
conhecimento, ao invés de nos fazer respeitá-lo. Junte isso ao tom
zombeteiro com que as pessoas da ciência tratam quase
sistematicamente a revelação da Escritura e das demais coisas que
nos são sagradas. E não ignoremos a destruição da fé de inúmeras
pessoas ocasionada pelos chamados resultados da ciência. Quando
se reúne tudo isto, então é possível explicar facilmente a razão
dessa suspeita com relação à ciência, a qual se instalou entre os
crentes. É fácil compreender porque um número considerável de
pessoas vê a ciência como um poder hostil que deveria, o mais
rapidamente possível, ser combatido ao invés de cultivado. E,
finalmente, podemos prontamente compreender a razão pela qual
algumas pessoas amaldiçoam o conhecimento, e, portanto,
preferem se recolher à segurança de suas próprias tendas.
Em resposta a isso, lembramos apenas que a Escritura
distingue entre o verdadeiro e o falso conhecimento. Por um lado, a
Bíblia testifica que “o proveito da sabedoria é que ela dá vida ao seu
possuidor” (Ec 7.12). Por outro, todavia, as Escrituras também nos
alertam contra “aquilo que é falsamente chamado ‘saber’” (1Tm
6.20). Desse modo, a Palavra de Deus contrasta um conhecimento
que é sobremodo excelente com um “conhecimento” que assim é
chamado falsamente. Manter essa distinção em vista nos permite
entender o motivo pelo qual, por um lado, as Escrituras nos
advertem com relação ao falso conhecimento, e, por outro, elas
buscam nos inspirar o amor e o respeito pelo verdadeiro saber.
 
Essa distinção surgiu devido ao pecado, que seduz e tenta as
pessoas para que excluam a ciência de uma relação com Deus,
roubando-a dEle, e, em última análise, fazendo com que ela se volte
contra Ele. A flor da verdadeira ciência possui sua raiz no temor do
S�����, desenvolve-se a partir desse temor e encontra nele seu
princípio, sua força motriz, seu ponto de partida. Se, por meio do
pecado, uma pessoa for cortada dessa raiz que procede do temor
do S�����, o resultado inevitável é que tal indivíduo verá a ciência
como uma ilusão destituída de qualquer essência.
Todavia, devemos estar alertas para uma compreensão
equivocada em particular. Alguns enfatizam esse contraste de tal
modo que a boa ciência, a verdadeira, a “ciência dos santos”, como
é chamada em alguns lugares[8], existe exclusivamente no
conhecimento da graça de Deus em Cristo. Essa interpretação
sugere que o conhecimento falso se identifica com a investigação
das coisas do mundo. Isso, contudo, é um equívoco. Ora, é possível
existir também um falso conhecimento acerca tanto das coisas
santas quando das terrenas. De modo oposto, pode existir tanto
verdadeiro conhecimento da sagrada revelação das Escrituras, bem
como verdadeiro conhecimento em relação à vida do mundo. Em
ambos os domínios, o conhecimento falso e o verdadeiro, o objeto
da ciência é e permanece sendo a totalidade de tudo que pode ser
conhecido por nós como seres humanos.
A diferença entre a verdadeira ciência e a falsa não se
encontra no domínio no qual as pessoas realizam suas
investigações, mas sim no modo e no princípio a partir do qual
investigam. O pecado não apenas corrompeu nossa vida moral, mas
também obscureceu nosso entendimento. O único resultado
possível é que aquele que tentar alcançar o conhecimento científico
com esse entendimento obnubilado está fadado a obter uma visão
distorcida das coisas, e, desse modo, chegar a conclusões falsas.
Portanto, esse obscurecimento do entendimento humano
causado pelo pecado conduziu a ciência pelo caminho errado.
Enquanto o obscurecimento não for compensado pela iluminação do
discernimento dado pelo Espírito Santo, não podemos evitar a
exposição a esse perigo.
Caso fosse suspendida a graça comum, e sem essa
iluminação concedida pelo Espírito Santo, o declínio da ciência seria
absoluto. Deixado por si próprio, o pecado avança de mal a pior.
Ora, o pecado faz com que o homem se resvale por uma ladeira
abaixo, sobre a qual é impossível manter-se de pé.
Aquele que ignora a graça comum não pode chegar a
nenhuma outra conclusão a não ser que toda ciência feita fora do
domínio do sagrado se apoia somente nas aparências e desilusões,
resultando necessariamente no ludíbrio de qualquer um que lhe dê
ouvidos. Contudo, o resultado demonstra que esse não é o caso.
Entre os gregos antigos, que estavam completamente privados da
luz das Escrituras, surgiu uma ciência que continua a nos maravilhar
com as belezas e verdades que nos oferece. Os nomes de
Sócrates, Platão e Aristóteles foram sempre admirados entre os
pensadores cristãos. Não é exagero dizer que o pensamento
aristotélico tem sido um dos instrumentos mais poderosos para
conduzir os cristãos a uma reflexão ainda mais profunda. Também
nos tempos modernos, ninguém pode negar que nas disciplinas da
astronomia, botânica, zoologia, física e afins, viceja atualmente uma
rica ciência. Embora conduzida quase que exclusivamente por
pessoas que são estranhas ao temor do S�����, a ciência,
contudo, produziu um tesouro de conhecimento que nós, cristãos,
admiramos e do qual, agradecidos, fazemos uso.
Consequentemente, confrontamos o fato de que, forados
círculos cristãos, floresceu uma ciência que, vista por um ângulo,
nos proveu com um conhecimento genuíno e verdadeiro; e, todavia,
vista por outro, culminou numa filosofia de vida e uma cosmovisão
que se opõem diretamente à verdade da Palavra de Deus. Ou, dito
de outro modo, estamos efetivamente perante uma ciência que
surgiu do mundo, uma ciência que jaz, definitivamente, sob o
domínio do pecado, e que, por outro lado, pode se vangloriar de
resultados nos quais o obscurecimento do pecado se encontra
virtualmente ausente. Somente nos é possível explicar isso
afirmando que, embora o pecado tenha de fato espraiado sua
corrupção, a graça comum, entretanto, interveio a fim de abrandar e
restringir sua atuação. Também, na medida em que diz respeito à
ciência, a situação que se nos apresenta é passível de explicação
somente se dermos a ambos estes elementos aquilo que lhes é
devido: por um lado, o obscurecimento de nosso entendimento por
parte do pecado, e, por outro, a graça comum de Deus que
estabeleceu limites nesse obscurecimento. Ora, que definitivamente
podemos e devemos falar da atividade de Deus nesse sentido torna-
se imediatamente evidente pelo fato de que em pessoas como
Platão e Aristóteles, Kant e Darwin, estrelas de primeira grandeza
resplandeceram, gênios do maior calibre, pessoas que expressaram
as mais profundas ideias, embora não fossem cristãos professos.
Essa genialidade não provinha deles mesmos, antes, receberam
seus talentos de Deus, que os criou e os equipou para seu trabalho
intelectual.
 
Para que percebamos isso, não devemos nos satisfazer com
a expressão “obscurecimento pelo pecado”, mas sim dar conta de
como esse obscurecimento opera. O pecado resultou numa
inabilidade de nossa parte em pensar logicamente? Porventura, o
pecado gerou em nós uma incapacidade de perceber aquilo que
existe e ocorre ao nosso redor? Ou ele coloca uma venda sobre
nossos olhos de forma que deixamos de ver ou observar? De modo
nenhum. Sempre que discutimos com outra pessoa, pressupomos
repetidamente, tanto para nós mesmos quanto para nosso parceiro
de discussão, a capacidade do pensamento lógico. Não hesitamos
por um momento sequer, imaginando se aquilo que estamos vendo
ou ouvindo existe efetivamente, tal como o percebemos. Como
regra geral, vivemos nossas vidas com um sentimento completo de
certeza. Não deixamos de ser criaturas racionais por conta do
pecado. E quando comparamos nossa própria existência com a dos
animais, estamos completamente conscientes da superioridade que
gozamos como seres humanos, graças à nossa razão. Desse modo,
o poder que gradualmente adquirimos sobre os animais é tão
patente e real que claramente nos convence da confiabilidade de
nossa pesquisa e pensamento.
Por conseguinte, não é possível negar que o obscurecimento
por meio do pecado também pode ser observado nessa instância.
Quão demasiadamente fraco é o poder do pensamento lógico entre
um considerável número de pessoas! Quão numerosos são os
equívocos e erros nos quais nosso raciocínio repetidamente
tropeça! Quão frequentemente a indolência se instala e se introduz
em nossas pesquisas, nos níveis mais profundos! Quantos estudos
são realizados simplesmente para os exames ou por uma carreira,
estando de todo ausente a motivação do entusiasmo sagrado pelo
objeto de estudo!
Entretanto, mesmo que admitamos tudo isto, ainda assim,
todas essas coisas não são nada mais do que um defeito parcial, e
não um obscurecimento que impede nossa visão.
Não. O verdadeiro obscurecimento efetuado pelo pecado reside
num lugar completamente diferente — a saber, no fato de que
perdemos o dom de abranger o contexto real, a coerência
apropriada, a integração sistemática de todas as coisas. Ora,
percebemos tudo apenas de uma perspectiva externa, não em seu
âmago e essência, isto é, percebemos cada coisa individualmente,
mas não em sua relação mútua e em suas respectivas origens em
Deus. Tal relação, tal coerência das coisas dentro da relação original
com Deus, pode ser percebida apenas em nosso espírito. Não
reside, pois, nas coisas que se encontram fora de nós, de modo que
poderíamos conhecer e examinar essa coerência somente na
medida em que nosso espírito vivesse um relacionamento vital com
Deus e fosse capaz de delinear a coerência dos pensamentos
divinos que procedem originalmente de Deus.
O espírito humano possuía precisamente essa característica
quando de sua criação perfeita, tendo-a perdido exatamente quando
o pecado rompeu essa conexão vital que nos unia a Deus. Assim
como um cachorro ou um pássaro vê um palácio com pedras,
madeiras e argamassa — percebendo talvez até mesmos suas
cores, sem, contudo, compreender ou entender nada acerca da
arquitetura ou do estilo daquela construção, nem o propósito de
suas câmaras e janelas —, assim também nos achamos com nosso
entendimento obscurecido perante o templo da criação. Vemos as
partes, as peças, os elementos, mas já não possuímos mais um
olhar perceptivo para o estilo desse templo. Não somos mais
capazes de vislumbrar seu arquiteto, e, assim, também não somos
mais capazes de compreender esse templo da criação em sua
unidade, origem e destino.
Somos semelhantes a um arquiteto destituído de seus
sentidos, que, quando estava em plena posse de sua mente,
compreendeu e percebeu o edifício inteiro em sua coerência, mas
que agora, espiando da janela de sua cela, contempla fixamente as
paredes e os pináculos, não sendo mais capaz de compreender o
estilo da construção.
O homem está cego com relação a Deus e às coisas divinas
— o que significa não somente que nós, que agora habitamos no
ofuscamento de nosso pecado, não podemos mais nos erguer em
direção a Deus, mas que também não nos encontramos mais na
posição de perceber, na criação, a coerência dos pensamentos de
Deus. De semelhante modo, isto significa que somos incapazes de
perceber a totalidade da criação e de formar um conceito claro do
plano que a permeia. Consequentemente, não somos capazes de
chegar a um conhecimento verdadeiro da criação.
Podemos certamente adquirir um conhecimento correto a
respeito da pedra, madeira, tinta e metal, mas nos é impossível
alcançar uma visão correta do estilo, da ideia fundamental, do tema
e do objetivo dessa construção chamada criação. Certamente que a
ciência não consiste simplesmente no exame da madeira, pedra e
metal; antes, uma investigação se torna mais própria e
essencialmente ciência quando tem êxito em capturar uma imagem
espelhada do todo. Precisamente por isso é que o obscurecimento
causado pelo pecado impede a aquisição não do conhecimento dos
detalhes, mas do conhecimento no sentido mais sublime e nobre do
termo.
Contanto que se olhe para a criação, ainda que excluindo os
homens e ignorando Deus, é certo que a ciência ainda traz à tona
maravilhas por meio de sua precisa dissecação das coisas e
delineamento das leis que governam seus movimentos. Contudo,
tão logo se leve em conta os homens, nos deparamos com questões
espirituais que nos fazem entrar em contato com o centro de toda a
vida espiritual, isto é, com Deus. Neste momento, toda certeza
desvanece, uma escola científica de pensamento se posta ao lado
da outra, um paradigma se opõe a outro, até que o desespero
generalizado tome conta dos pesquisadores. O conhecimento deles
avança, é claro, contanto que estudem o corpo humano e possam
observar algo da psique humana que tenha alguma forma de
expressão corporal, mas no momento em que adentram o domínio
caracteristicamente espiritual, os resultados são somente
especulações e conjecturas, com uma teoria substituindo outra,
conduzindo, em última instância, à dúvida e ceticismo.
 
A forma como tudo isso veio à existência nos seria muito mais
clara, caso soubéssemos mais acerca da situação original de nossa
raça humana quando saiu das mãos de seu Criador, não tendo sido
ainda afetada pelo pecado. Certamente nosso conhecimento sobre
isso é mínimo. Todavia, a partir de diversos fragmentos de valiosa
informação, podemos obter, mediante dedução, conhecimento
relevante suficientepara compreender a diferença que se instalou
na criação por conta do pecado.
Na nossa atual situação, podemos chegar ao conhecimento
das coisas somente mediante a observação e análise. Mas não era
assim no paraíso, pois quando lemos que Deus trouxe os animais a
Adão, e quando este os viu pela primeira vez, ele imediatamente
percebeu a natureza daquelas criaturas de tal forma que, no mesmo
instante, passou a nomeá-los (Gn 2.18-20). Naturalmente isso não
significa que, quando cada animal passava por ele, Adão
simplesmente articulava um som desprovido de sentido ou
significado. Imagine que alguém passasse perante você, carregando
duas ou três centenas de valises, e que à medida que olhasse para
cada uma delas, uma após a outra, inventasse um som, sem
qualquer propósito ou sentido. Antes mesmo de chegar à centésima
valise, você já teria esquecido o nome que havia dado à primeira
delas. Qual propósito foi cumprido quando Adão nomeou os
animais? Afinal, Eva não estava lá, portanto, ninguém o escutou.
Essa narrativa só faz sentido caso se compreenda que Adão
percebeu de imediato a natureza de cada animal, e expressou sua
intuição dessa natureza dando um nome que lha correspondesse.
Ora, se Adão desfrutou dessa posição com relação ao mundo
animal, não há razão para negar que ele gozou de uma posição
semelhante no que diz respeito ao mundo vegetal — na verdade, a
todo o mundo natural. Não possuímos mais essa característica,
essa capacidade imediata de percepção e compreensão da
essência de plantas e animais. Se desejamos compreender uma
planta ou um animal, então é preciso observá-los cuidadosamente
por um longo tempo, e, partindo daquilo que observamos
gradualmente, tirar conclusões a respeito da natureza deles. Isto
ocorre independente de chegarmos algum dia à compreensão da
essência deles. Até mesmo seus instintos permanecem, para nós,
um enigma completamente insolúvel.
Adão, contudo, possuía essa capacidade. Levando isso em
consideração, entenderemos também o modo pelo qual ele teria
alcançado o conhecimento de toda a criação caso o pecado não
tivesse interferido. Esse conhecimento teria conduzido a um
entendimento da totalidade da criação no contexto de sua origem e
seu destino.
Mas há algo mais — Adão não somente percebia a essência
das coisas, mas também as nomeava. Tal nomeação também não
existe mais para nós. Podemos certamente dar um nome para um
objeto não familiar, todavia, ou tomamos esse nome de outros
povos, como os holandeses tomaram de empréstimo termos do
inglês para trilhos, bondes e locomotivas, ou formamos um nome
com a ajuda de palavras gregas, como telégrafo, telefone,
eletricidade e assim por diante. Portanto, podemos inventar novos
nomes em nossa própria linguagem, a fim de expressar a essência
das coisas, somente mediante a composição linguística ou por meio
da adoção de palavras já em uso. Não somos mais capazes de criar
linguagem.
Adão, contrariamente, era capaz disso. Para ele, o conceito
de uma coisa existia juntamente à sua essência, e a palavra, por
sua vez, existia numa conexão orgânica com esse conceito. Adão
não teve uma mãe que lhe ensinou a falar, antes, ele o fez
automaticamente; e o fato que Deus falou com ele (e ele certamente
compreendeu as palavras divinas) já nos mostra o quão altamente
desenvolvidas eram suas capacidades conceituais e linguísticas.
Desse modo, não estamos exagerando quando afirmamos que, em
seus próprios pensamentos e consciência, Adão possuía uma
clareza, um discernimento e uma unidade que perdemos.
Se não fosse o pecado, a ciência teria tomado um rumo
completamente diferente, e teria sido construída com uma imediatez
que mal podemos imaginar. O que se deseja expressar por esse
obscurecimento do entendimento devido ao pecado se nos torna
evidente da maneira apropriada somente quando comparamos
aquilo que Adão poderia fazer e aquilo que não somos mais
capazes. A ciência era uma posse imediata para Adão, mas para
nós é um pão do qual não podemos nos alimentar a não ser
mediante o suor de nossos espíritos, por meio do trabalho árduo e
extenuante.
 
Embora a ciência tenha adquirido uma feição completamente
diferente como um resultado do pecado, de modo que agora ela é
fruto de custosa diligência, observação precisa, análise cuidadosa e
síntese conscienciosa, no entanto, sua existência anterior não foi
inteiramente perdida.
Os instintos dos animais demonstram quão intuitivamente
podem ocorrer tanto o conhecimento preciso quanto as ações
exatas, independente de estudo ou prática anteriores.
A aranha tece sua teia e a abelha constrói sua colmeia com
uma precisão e certeza que não podem ser superadas por qualquer
tipo de construção humana. Tome, por exemplo, uma jovem aranha
que jamais viu uma teia; no entanto, você verá que, em pouco
tempo, ela estará fiando e tecendo uma teia que é, ao mesmo
tempo, artística e proficiente. Nesse contexto, podemos mencionar
aquilo que o apóstolo Paulo observa a respeito do conhecimento
humano, que agora é somente parcial, atuando com imagens
espelhadas, mas, num momento posterior, tornar-se-á
completamente diferente e tido como perfeito[9]. Presentemente,
contudo, não mais possuímos esse tipo de conhecimento, nem a
capacidade de obtê-lo — tudo chega a nós mediante a observação,
aprendizado, prática e estudo.
Não obstante, há algo na experiência humana que se
encontra entre o instinto e o conhecimento adquirido, um tipo de
conhecimento mediado que o Espírito Santo, por toda parte,
apresenta com o termo “sabedoria”. Sabemos simplesmente, por
experiência prática, que isso é algo diferente do conhecimento
científico. Uma vez ou outra, em meio às pessoas mais simples, nos
deparemos com o tipo de indivíduo que é dotado com uma
sabedoria extraordinariamente prática. Tais pessoas geralmente não
possuem muita instrução acadêmica. Ocasionalmente, alguns deles
não sabem ler ou escrever, e, ainda assim, quando se trata de
aconselhar, decidir ou agir, eles são capazes de falar de forma
extremamente sábia; sabem como agir sabiamente, de forma que
sempre têm êxito, envergonhando pessoas mais instruídas do que
eles.
De modo geral, uma mulher possui uma educação formal
inferior ao homem, contudo, quantas vezes não percebemos como a
esposa de um homem douto possui uma ponderação muito mais
sábia com relação à experiência humana do que seu esposo, de
maneira que ela chega a constrangê-lo com todo seu
conhecimento? Esse tipo de sabedoria é encontrado não somente
no Oriente, mas também no Ocidente. Salomão jamais estudou
naquilo que chamamos de universidade, e muito provavelmente não
realizou quaisquer tipos de exames, e, todavia, as pessoas vinham
de todas as regiões do Oriente a fim de ouvir a sua sabedoria.
Mesmo que uma inspiração especial tenha entrado em jogo aqui,
todavia, entre outros povos do Oriente, circulavam histórias a
respeito de um povo sábio que foi de fato dotado com um
discernimento extremamente claro e lúcido no tocante a várias
questões.
Tal sabedoria é um dos elementos mais preciosos na vida de
uma sociedade. As pessoas ocasionalmente se surpreenderam pelo
alto nível de sabedoria prática presente mesmo em indivíduos de
tribos primitivas. No seu sentido mais amplo, não podemos
compará-la ao instinto animal, nem tampouco ao conhecimento
imediato que Adão possuía. No entanto, essa sabedoria nos faz
lembrar de ambos, e de fato tem algo em comum com eles. A
semelhança é que, aparentemente dissociado de qualquer esforço,
tal conhecimento lida confortavelmente com o contexto das coisas, e
com uma apreensão firme e segura sabe escolher o correto. É como
se essas pessoas sábias estivessem seguindo uma diretriz superior
que sempre os capacita a encontrar o que é certo. Eles
invariavelmente atingem o alvo.
Isto que presentemente assoma aos nossos olhos nada mais
é do que a operação da graça comum, que preservou alguns
resquícios do paraíso e enriquece nossa vida, mesmo a vida afligida
pelo pecado.
Ora, evidentemente essa característica também se
desenvolveu pecaminosamente nos estratagemas do enganoe nas
astúcias do enganador.
Entretanto, isso acontece com todos os dons fornecidos pela
graça comum, que se empenha em nos enriquecer, mas ao mesmo
tempo corre o risco de ser empregada incorretamente. Husai e
Aitofel[10] são exemplos de ambas essas situações. Contudo, em
nossa situação pecaminosa, a ciência não surgiu dessa sabedoria.
A sabedoria é proveitosa para o momento ou para a vida
prática, mas não é capaz de construir o conhecimento do todo. Por
esse motivo, a graça comum fornece um segundo elemento. Uma
vez desprovido desse discernimento imediato com relação à
essência das coisas, o caminho foi aberto para que, mediante o
trabalho incansável de pesquisa, observação, análise, imaginação e
reflexão ulteriores, uma pessoa possa adquirir pelo menos algum
conhecimento do lado externo das coisas e também possa
compreender o aspecto conjunto das coisas, mesmo que não a lei
de seu movimento.
Este é o segundo dom que procede da graça comum que, ao
longo dos séculos, conduziu ao surgimento daquilo que agora
chamamos ciência. Somente através desses meios podem os seres
humanos, tanto quanto lhes cabe, alcançar a ciência. Em que
medida a graça especial contribui para esse fim será objeto de
nossas considerações no próximo capítulo.
 
 
3. E�����������
Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o
seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as
coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de
Deus. (1Co 2.11)
 
Conforme dito, o pecado causou certo obscurecimento em nosso
entendimento. Como resultado, a clareza da ciência humana sofreu
consideravelmente no que tange ao entendimento. A situação não
seria tão grave caso nosso conhecimento repousasse inteira e
exclusivamente na observação ou proviesse da experiência. Se
assim fosse, possuiríamos na nossa consciência nada além de um
espelho que refletiria o mundo ao nosso redor. É verdade que um
espelho sem rachaduras ser-nos-ia preferível, contudo, um espelho
trincado ainda pode nos servir em caso de necessidade.
Portanto, poderíamos afirmar que o espelho de nossa
consciência fora trincado pelo pecado, e que o reflexo do mundo
projetado nessa superfície partida nos ofereceria um conhecimento
do mundo que não está de todo incorreto. Com efeito, a unidade da
imagem do mundo sofreria certo dano, todavia, ainda assim,
seríamos capazes de observar as partes dessa imagem.
E é precisamente neste ponto, contudo, que se encontra a
dificuldade. Ora, na verdade, o que se encontra dentro de nós é algo
totalmente diferente de um espelho. O fenômeno que projeta seu
reflexo no espelho de nossa consciência não é, absolutamente, o
único que nos leva a fazer ciência. De semelhante modo, nossa
consciência, nossa razão e nosso entendimento são elementos
totalmente diferentes de uma câmera. De fato, nosso entendimento
abarca uma capacidade fotográfica, no entanto, esta é de pouca
ajuda no que diz respeito à operação essencial de nosso
pensamento científico. O mesmo se dá analogicamente com relação
a nosso olho. Nas lentes de nossos olhos, existe, por assim dizer,
uma câmera. Elas capturam uma imagem; outra pessoa, por sua
vez, pode observar esse reflexo que foi capturado em nosso olho.
Mas nossa visão é uma atividade extremamente mais complexa.
Podemos facilmente exemplificar isso quando comparamos uma
pessoa que está olhando intencionalmente para algo com outra que
está fitando distraidamente o mesmo objeto — o olhar de ambas
captura o mesmo navio, a mesma casa ou o quer que seja. As
lentes de cada uma possuem o mesmo reflexo, e, todavia, uma de
fato vê o objeto e a outra, não. Isto constitui prova suficiente de que
há uma dualidade no olhar mais simples. Em primeiro lugar, há o
reflexo de algo nas lentes de nossos olhos; em segundo lugar,
nossas mentes se focam naquilo que é refletido.
A mesma coisa é verdade com relação ao nosso
conhecimento intelectual. A observação múltipla captura a imagem,
mas com isto não se dá por encerrada a atividade de nosso
intelecto. Na verdade, neste ponto, o trabalho principal de nossa
mente está apenas começando.
É preciso explicar mais profundamente esse contraste entre a
imagem refletida das coisas e o trabalho superior de nossa mente.
Ora, uma observação pode ser simples ou composta, direta ou
periférica. Se vejo o gado pastando à minha frente, podemos dizer
que esses animais estão sendo observados diretamente no que diz
respeito à sua aparência e movimento. Para isso não precisamos de
um professor de zoologia; até mesmo uma criança da fazenda é
capaz de fazê-lo.
Contrariamente, caso seja necessário verificar se um micróbio
infectuoso está alocado no pulmão desses animais; de que espécie
de micróbios se trata; e os danos que podem gerar, torna-se
necessária uma observação infinitamente mais analítica e complexa,
a qual pode ser realizada somente por um especialista nessa área.
Afinal, o pulmão não está exposto, e os micróbios são
demasiadamente minúsculos. Mesmo que tal observação exija um
esforço bem maior; ainda que não possa ser feita sem o uso de
várias ferramentas apropriadas; e que várias formas de
conhecimento dedutivo devem ser consideradas em relação a tudo
isso — contudo, o que temos neste ponto é e permanece sendo
nada mais do que observação.
Alguém pode chamar de ciência essa observação analítica,
intensiva, difusa e confusa e complexa, porém ela se encontra
basicamente no mesmo continuum que a observação direta e
ordinária. Na verdade, a ciência é bem mais refinada; requer um
talento consideravelmente maior; exige de nós um empenho maior;
entretanto, o resultado continua o mesmo. A criança da fazenda vê
a olho nu o gado no pasto; ela conta esses animais, distingue suas
cores, as observa andando e se movendo de um lado ao outro. O
pesquisador segue o mesmo caminho a fim de descobrir os
micróbios no pulmão enfermo: contá-los, distingui-los no tocante às
suas formas e identificar seu movimento.
Todas as ciências superiores começam com a avaliação das
coisas, contudo, sua verdadeira tarefa consiste em processar aquilo
que observou e, a partir disso, tirar suas conclusões. Tendo
realizado as observações, as ciências superiores seguem com a
composição de uma complexa teoria que explique claramente as
causas relevantes, os princípios operativos e as interrelações dos
fenômenos. Se esta descrição está correta, então não há dúvida de
que essas observações independentes fornecem o material para as
ciências superiores, embora não constituam a ciência em si mesma.
Contudo, em contraposição, no século passado, as pessoas
se habituaram cada vez mais a presumir que tal observação artificial
já constituía a verdadeira ciência, e partindo desta premissa eles
atribuíram o mais alto caráter científico àquelas disciplinas ocupadas
com a observação da natureza. A elas, os franceses concederam o
honorável título de sciènce exactes (as ciências naturais), e os
ingleses, por seu turno, lhe deram o título abreviado de sciences
(ciências), como se esses estudos, por si mesmos, pudessem
arrogar-se o ilustre epíteto de “ciência”.
Essa atitude talvez tenha sido causada pelo desleixo, e
mesmo pelo desprezo, com que a observação foi tratada no
passado. Mas nessa posição reside um erro e um perigo que
necessitam ser apontados.
Atrás dessa posição se encontra uma tentativa de libertar a
ciência de nossa subjetividade ou, se preferir, de nossa pessoa. A
ciência supostamente deve ser neutra, e a fim de sê-lo, deve ser
dissociada de nosso ser pessoal. Somente assim pode ser
qualificada como ciência, a qual todos sancionam de forma
imediata, ou concordam com base na demonstração. É isso que as
pessoas pretendem ao insistir que a ciência deve ser imparcial, e
que, no que tange a ela, nossa única preocupação deve ser
encontrar a verdade.
Todavia, nessa perspectiva, a questão se encontra falseada. É
inconcebível, no domínio da ciência, a busca, por parte de um
pesquisador, de algo que não seja a verdade — sim, pode ser que
haja alguém com um objetivo adicional.
Um médico que estuda um pulmão enfermo espera

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