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ESTUDOS ESTRATÉGICOS AULA 4 Prof. Érico Duarte 2 CONVERSA INICIAL Esta aula apresenta a linha de estudos de relações civis-militares e sua interseção com os Estudos Estratégicos. Ela apresenta requisitos e modelos analíticos para se compreender como as democracias podem ter vantagens comparativas na conduta de guerras, bem como os elementos que podem neutralizá-las. Esses conceitos são aplicados em uma apresentação histórica e geral do caso brasileiro. TEMA 1 – RELAÇÕES CIVIS-MILITARES: ELEMENTOS CONCEITUAIS A questão central na origem dos estudos de relações civis-militares é como fazer do militar um defensor efetivo do Estado sem ser uma ameaça para o ordenamento político interno. Este estudo trata de dois tipos mais comuns de relações civis-militares: a transição que parte de regimes militares e a que parte de regimes comunistas de partido único durante a Guerra Fria. No primeiro caso, existente em boa parte da América do Sul (Brasil, Chile e Argentina) e Europa Ocidental (Portugal, Espanha e Grécia), ao longo do século XX, os militares abandonam o poder e a principal preocupação é tirar os militares da política, da economia e dos negócios. Nesse caso, instituições e especialistas civis são fatores mais importantes. Nos regimes comunistas, sendo os casos mais estudados os da Europa Oriental (como, por exemplo, Polônia, Hungria e República Tcheca), os partidos únicos geralmente possuíam mecanismos de controle dos militares e o principal foco da transição é tirar a política dos militares. Qual seja o caso, a consolidação democrática depende do comprometimento das elites militares com a democracia, bem como o comprometimento das elites políticas com o aparato de defesa nacional. Isso implica em desenvolver a legitimidade desse aparato, sua capacidade de inovação e de resposta a ameaças, e em enfrentar o dilema de alocar recursos escassos no longo prazo. O equilíbrio ou desequilíbrio das relações civis- militares afetam a efetividade militar e devem ser estudadas tendo isso em vista. TEMA 2 – RELAÇÕES CIVIS-MILITARES E EFETIVIDADE MILITAR Diferentes tipos de arranjos das relações civis-militares produzem qualidades distintas de avaliação estratégica e efetividade combatente. Quando existe descompasso e desconfiança entre estamento militar e liderança civil, a 3 capacidade de avaliar ameaças externas e a formulação da política de defesa são disfuncionais. Em geral, o excesso de autonomia do Executivo ou das Forças Armadas para tomar decisões sobre preparo e emprego são as principais causas. Quando o estamento militar é muito forte, o líder do Executivo tende a fundamentar sua autoridade em personalismo, selecionando comandantes mais por critérios de lealdade do que por mérito. Ele passa a restringir o treinamento e a centralizar o comando militar e o compartilhamento de informações, sabotando a capacidade de contrainteligência. Quando o líder do Executivo se mostra muito forte, ele tende a escapar do controle do Legislativo e do consentimento público. As Forças Armadas recebem aportes necessários, mas os cenários em que são utilizadas aumentam consideravelmente, bem como seus casos de fracasso, sejam por decisões equivocadas, sejam por más condições de uso. TEMA 3 – GUERRA E DEMOCRACIA As condições que levam as democracias a vencer guerras são de duas naturezas. A primeira relaciona-se aos propósitos da guerra, enquanto a segunda, aos meios militares e a seu emprego. Líderes políticos de sistemas representativos tendem a fazer melhores cálculos políticos e estimativas estratégicas sobre quais guerras enfrentar e quais evitar. Democracias têm melhores estimativas de sucesso estratégico porque são mais suscetíveis a críticas de grupos de oposição e da opinião pública, e possuem burocracias menos politizadas, produzindo informação menos enviesada e de melhor qualidade. Em democracias consolidadas, as Forças Armadas são regularmente inspecionadas pelo Poder Legislativo, por departamentos de auditorias de contas públicas, pela imprensa, por centros públicos e privados de pesquisa (os think-tanks) e, idealmente, por pesquisadores acadêmicos. Isso tudo tem dois efeitos. Esse arranjo desvincula as Forças Armadas do mandato do líder do Poder Executivo e otimiza a participação civil na condução de uma política de defesa de melhor qualidade. 4 3.1 A erosão do consentimento público para a guerra A continuidade e a qualidade do consentimento público é o elemento de distinção das democracias no que tange o uso da força. A erosão desse consentimento é a principal razão de seus fracassos contra ações militares externas e da disfuncionalidade das atribuições e componentes constituintes das instituições de defesa. O primeiro efeito é a redução da capacidade da liderança política de selecionar as instâncias de uso da força e ponderar seus custos. O segundo efeito é que um líder que consegue autorizar e dar encaminhamento ao emprego das Forças Armadas sem consenso e legitimidade para tal, dificilmente conseguirá acumular os recursos necessários – militares e financeiros, principalmente – para a empreitada. Consequentemente, haverá um problema de incompatibilidade entre fins e meios, e a impossibilidade de se desenhar planos consistentes e uma estratégia com uma visão viável de futuro, ou seja, de como a guerra deverá terminar. 3.2 Financiamento da guerra em democracias e conscientização e consentimento públicos Em termos de custos econômicos, guerras são inflacionárias, pois reduzem a oferta de bens e serviços na sociedade, que passam a ser consumidos para o esforço de guerra. Da mesma maneira, a guerra leva a bloqueios de trocas comerciais e redução da disponibilidade de insumos importados necessários para a produção interna, além de aumentar a quantidade de dinheiro na economia ao passo que compra insumos para a guerra. Líderes tendem a utilizar formas diretas de extração de recursos quando suas guerras têm apoio popular e quando há risco inflacionário caso se aplique outras formas de financiamento. Além de envolver maior conscientização do público sobre a guerra, essa forma tira dinheiro da economia e reduz o poder de compra dos cidadãos. Por isso, apesar dos efeitos de austeridade, é a melhor forma de financiamento dos pontos de vista democrático e econômico. As outras duas formas de financiamento de guerra – por taxação indireta e empréstimo externo – são mais prováveis quando o apoio popular não é alto, quando não existe medo de inflação (ou ela é escondida ou ignorada) e quando 5 o Estado não possui capacidade de extração direta. Portanto, as formas de financiamento indireto são mais prováveis nos casos em que os líderes não têm lastro político, recorrem a guerras constantemente e se arriscam em empreitadas sem consentimento público. TEMA 4 – BREVE HISTÓRIA MILITAR DO BRASIL Este tema traça as bases históricas para características institucionais do Brasil relacionadas a questões de defesa e segurança. 4.1 A influência de fatores geográficos O enorme território brasileiro não ofereceu características geográficas vantajosas iniciais nem mesmo em comparação aos nossos vizinhos. O Brasil possui áreas planas e férteis – no Sudeste e no Nordeste, por exemplo – mas elas são isoladas e de acesso limitado. Isso foi sempre um desafio para uma produção agrícola com economia de escala e possibilidade de trocas comerciais e de conhecimento. A principal consequência disso foi que o Brasil sempre dependeu de grande investimento em infraestrutura para conectar suas regiões e possibilitar seu desenvolvimento econômico. Do ponto de vista político, essas características geográficas favoreceram a formação regional de grupos sociais e políticos com grande autonomia de um poder central e com característicasculturais e identitárias locais mais fortes que as nacionais. Consequentemente, o Brasil, desde sua origem colonial, esteve sob o risco da fragmentação política. 4.2 Colônia e império A história militar colonial brasileira seguiu as linhas gerais da colonização latino-americana, com algumas considerações adicionais. O imperialismo português foi ainda mais insipiente, pois não tinha potencial logístico e estratégico para fazer frente a populações nativas mais desenvolvidas e às demais potências europeias. Como consequência, a colonização portuguesa foi limitada a áreas costeiras da África, do Brasil e de ilhas e penínsulas no Atlântico e no Índico. Ademais, até o século XVIII, os portugueses trabalhavam com a extração predatória de jazidas de ouro e prata que tinham acesso mais fácil e exploravam ilegalmente as rotas comerciais dos demais impérios europeus. 6 Os conflitos gerados na Independência do Brasil foram pela integridade da América Portuguesa sob a dinastia dos Braganças, e não pela secessão de Portugal. Por isso, não foi uma revolução, muito menos uma guerra com objetivos de mudança constitucional, mas sim uma série de disputas limitadas sobre quem mandaria nas províncias brasileiras. Consequentemente, não provocou grandes mudanças institucionais. O período mais conturbado da história militar do Brasil foram as duas décadas que se seguiram à Independência, quando houve a derrota pela força de todas as alternativas à unidade política centrada no Rio de Janeiro Após esse período, o Império do Brasil se lançou em intervenções para o controle do Cone Sul. Mas essas eram empreitadas de resultado limitado e de pequeno avanço institucional. A grande guerra com envolvimento brasileiro e da América do Sul foi a Guerra da Tríplice Aliança (ou Guerra do Paraguai). Ela levou a um fortalecimento relativo da Argentina e à ruína do Império do Brasil, provocando uma mudança da base social do Exército e gerando a necessidade de reformas que levassem à profissionalização dos oficiais. 4.3 O século militar: 1889-1988 Durante todo o século XX, o Exército foi um ator político no Brasil com um projeto de modernização do país que rivalizava com alternativas criadas à luz dos movimentos fascistas, comunistas e anarquistas que contaminaram as Forças Armadas e o restante da sociedade, levando a rupturas institucionais. Nesse cenário, o envolvimento militar foi constante e crescente. Esse envolvimento ficaria mais forte após a Segunda Mundial, com a modernização das Forças Armadas brasileiras e o contato mais direto com os potenciais militares e econômicos dos Estados Unidos e de outros países mais desenvolvidos da época. Na década de 1960, a polarização política ganhou a coloração da Guerra Fria e o inimigo passou a ser a influência e a possibilidade da revolução comunista. O estabelecimento do regime militar em 1964 foi uma reunião até então irrealizável. De um lado, estavam as forças políticas que queriam a modernização do Estado e da economia a qualquer custo. Do outro, os que temiam a recorrência da história militar brasileira do século de guerras civis, agora com o apoio de superpotências estrangeiras. 7 As consequências institucionais do regime militar para o aparato de defesa foram substantivas e com efeitos visíveis até os dias atuais: militarização da polícia e sua desestruturação como organização para provimento de ordem pública; deformação dos serviços de inteligência; o predomínio da doutrina de segurança nacional como "pensamento estratégico"; e a degradação das Forças Armadas, principalmente para fazer frente a ameaças externas. 4.4 O período da redemocratização A transição democrática no Brasil foi por iniciativa militar e segundo um cronograma próprio. Por isso, os militares tinham uma posição de força e preservaram prerrogativas institucionais As reformas institucionais tiveram início principalmente com a presidência de Fernando Collor de Mello (1990-1992). Na administração de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), a reforma dos serviços de inteligência foi retomada, mas a criação do Ministério da Defesa foi uma dura queda de braço. Os principais incrementos institucionais da defesa ocorreram no segundo mandato do governo Lula da Silva (2003-2011). Porém, na administração de Dilma Rousseff (2011-2016), as reformas institucionais em defesa e inteligência estancaram, quando não retrocederam. TEMA 5 – RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO O Brasil tem três elementos – um externo e dois domésticos – que condicionam a formulação de sua política de defesa e as relações civis-militares nos dias de hoje. Primeiro, existe um problema de foco pela inexistência de reais ameaças regionais. Segundo, o Brasil não possui uma indústria de defesa complexa e ela está concentrada na região Sudeste. Terceiro, no Brasil, existe um problema constitucional na alocação de recursos de defesa. O Congresso apenas redistribui recursos assinalados em defesa pelo Executivo, por isso existe uma barreira na promoção dos gastos militares, ou em seu controle, pelos parlamentares. Além disso, o sistema político brasileiro colabora para que os congressistas defendam interesses próprios de curto prazo em vez de cuidar dos interesses públicos de longo prazo. Assim eles apoiam o emprego dos militares 8 em funções não políticas e de impacto popular imediato, como infraestrutura, segurança pública e desenvolvimento. Como resultado, o Brasil possui um desenvolvimento limitado das relações civis-militares mesmo em comparação com os demais países da região. NA PRÁTICA Hoje em dia, ter passado por um regime militar não é um fator determinante dos problemas das relações civis-militares de um país. Para citar três exemplos: Espanha, Portugal e Grécia são casos de sucesso de transição democrática. Portanto, é sempre interessante o exercício de comparar o caso brasileiro com outros países democráticos em matéria de segurança e defesa. Nesse contexto, quais são os papéis desempenhados pelas Forças Armadas, em funções domésticas e externas? Qual é a frequência do envolvimento das Forças Armadas em questões domésticas? Como é a relação dos militares com os poderes Executivo e Legislativo, e com a sociedade? FINALIZANDO A questão das relações civis-militares não é simplesmente acadêmica, mas cívica. Portanto, é importante conhecer o desenvolvimento e o foco desse tipo de estudo, de maneira a compreender as virtudes e as dificuldades na preparação e na condução de guerras por democracias. Da mesma maneira, é importante conhecer a história militar brasileira e refletir sobre as contradições das relações civis-militares no Brasil. 9 REFERÊNCIAS CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem e teatro de sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. DUARTE, E. Estudos estratégicos. Curitiba: InterSaberes, 2019. SKIDMORE, T. E. Brasil: de Getúlio a Castello. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.