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1 Júlia Morbeck – @med.morbeck Objetivos 1- Revisar a resposta imunológica na alergia; 2- Estudar a epidemiologia, etiologia e fatores de risco da intolerância e alergia alimentar; 3- Discutir a fisiopatologia, manifestações clínicas e diagnóstico da intolerância e alergia alimentar; 4- Conhecer os alimentos que desencadeiam intolerâncias e processos alérgicos. Resposta imunológica na alergia ↠ Na alergia, a resposta imune estende-se além de seu limite habitual de reconhecimento exclusivo de patógenos estranhos para incluir também o que deveriam ser antígenos ambientais inócuos (DELVES, 2018). ↠ Essa resposta é uma forma de hipersensibilidade, uma imunidade excessivamente zelosa que também pode assumir a forma de reatividade a antígenos próprios ou a antígenos de outra espécie (DELVES, 2018). Os vários estados de hipersensibilidade foram originalmente classificados por Gell e Coombs em tipos I-IV, e essa classificação continua tendo grande utilidade. Alguns acréscimos subsequentes à classificação original incluíram um tipo V e uma hipersensibilidade inata (DELVES, 2018). As alergias (rinite alérgica, asma, eczema e alergias alimentares) são mediadas, em sua maioria, por reações de hipersensibilidade tipo I, embora algumas formas de eczema sejam causadas por reações tipo IV (DELVES, 2018). Produção de IgE e células envolvidas nas reações alérgicas Todas as reações alérgicas compartilham características comuns, embora sejam muito diferentes quanto aos tipos de antígenos que deflagram essas reações, bem como em relação as suas manifestações clínicas e patológicas (ABBAS, 2019). Uma característica marcante das doenças alérgicas é a produção de anticorpo IgE, a qual depende da ativação de células T auxiliares produtoras de IL-4 (ABBAS, 2019). ↠ O desenvolvimento da doença alérgica começa com a diferenciação de células T auxiliares CD4+ produtoras de IL-4, IL-5 e IL-13 em tecidos linfoides. Os sinais que dirigem a diferenciação das células T CD4+ naive em células Th2 em resposta a maioria dos antígenos ambientais são indeterminados (ABBAS, 2019). IL-4 secretada por células Th2 induz expressão de VCAM-1 endotelial, que promove recrutamento de eosinófilos e células Th2 adicionais para os tecidos. A IL-5 secretada pelas células Th2 ativa os eosinófilos. A IL-13 estimula as células epiteliais (p. ex.: nas vias aéreas) a secretarem quantidades aumentadas de muco, sendo que a produção excessiva de muco também é uma característica comum dessas reações (ABBAS, 2019). Existe uma forte propensão genética à produção de respostas Th2 contra alguns alérgenos, porém isso por si só não explica por que os indivíduos atópicos são propensos a desenvolver essas respostas. Em algumas doenças alérgicas crônicas, um evento iniciador pode ser a lesão à barreira epitelial resultando em produção local de citocinas Th2-indutoras (ABBAS, 2019). ↠ As células Th2 diferenciadas migram para sítios teciduais de exposição ao alérgeno, onde contribuem para a fase inflamatória das reações alérgicas. As células Tfh permanecem em órgãos linfoides, onde podem auxiliar as células B (ABBAS, 2019). ↠ As células B específicas para alérgenos são ativadas por células Tfh em órgãos linfoides secundários, como em outras respostas de célula B dependentes de célula T. Em resposta ao CD40-ligante e às citocinas (sobretudo IL-4 e possivelmente IL-13) produzidas por células T auxiliares, as células B sofrem troca de isotipo de cadeia pesada e produzem IgE (ABBAS, 2019). A IgE circula como anticorpo bivalente e normalmente está presente no plasma em concentrações abaixo de 1 μg/mL. Em condições patológicas, como nas infecções helmínticas e na atopia grave, esse nível pode subir para mais de 1.000 μg/mL (ABBAS, 2019). ↠ A IgE alérgeno-específica produzida por plasmoblastos e plasmócitos entra na circulação e se liga a receptores Fc presentes nos mastócitos teciduais, de modo que essas células são sensibilizadas e estarão prontas a reagir a um encontro subsequente com o alérgeno. Basófilos APG 03– “SE NÃO FOR UM PROBLEMA NA ROTA BIOQUÍMICA, É UMA FALHA O SISTEMA IMUNOLÓGICO” Seis categorias de hipersensibilidade. Tipo I: desgranulação dos mastócitos mediada por IgE. Tipo II: citotoxicidade dependente de anticorpos, que pode ser mediada por células killer (K) que possuem citotoxicidade celular dependente de anticorpos (ADCC), por opsonização para fagocitose ou pela ativação da via clássica do complemento, com geração do complexo de ataque à membrana. Tipo III: mediada por imunocomplexos, que pode resultar em ativação das células fagocitárias, levando a uma resposta inflamatória (bem como à agregação das plaquetas e ativação dos mastócitos, não mostradas). Tipo IV: tipo tardio (celular), envolvendo a liberação de citocinas pelas células T. Tipo V: hipersensibilidade estimuladora, em que os anticorpos atuam como agonistas em receptores de superfície celular. A hipersensibilidade inata resulta, por exemplo, de ativação excessiva dos receptores de reconhecimento de padrões (PRR). 2 Júlia Morbeck – @med.morbeck circulantes também são capazes de se ligar à IgE (ABBAS, 2019). Mastócitos e basófilos expressam um receptor Fc de alta afinidade para cadeias pesadas ɛ, chamado FcɛRI, que se liga à IgE. A IgE, como todos os outros anticorpos, é produzida exclusivamente por células B, embora atue como receptor de antígeno na superfície de mastócitos e basófilos. Essa função é realizada por meio da ligação da IgE ao FcɛRI nestas células. A afinidade do FcɛRI pela IgE é muito alta, maior do que a de qualquer outro receptor Fc para seu anticorpo ligante. Sendo assim, na concentração sérica normal de IgE, ainda que baixa em comparação a dos outros isotipos de Ig (<5 × 10-10 M), há ocupação total dos receptores FcɛRI pela IgE, e a maioria dos mastócitos está sempre recoberta com IgE, mesmo em indivíduos não atópicos. Além dos mastócitos e basófilos, o FcɛRI foi detectado em eosinófilos, células de Langerhans epidérmicas e alguns macrófagos dérmicos, bem como em monócitos ativados (ABBAS, 2019). Cada molécula de FcɛRI presente nos mastócitos é composta de uma cadeia α que se liga à região Fc da IgE, além de uma cadeia β e duas cadeias γ responsáveis pela sinalização (ABBAS, 2019). ↠ A reexposição ao alérgeno, então, ativa os mastócitos a liberarem mediadores que causam a reação danosa (ABBAS, 2019). ↠ A ativação de mastócitos resulta em três tipos de resposta biológica: (ABBAS, 2019). • secreção dos conteúdos pré-formados dos grânulos por exocitose (desgranulação); • síntese e secreção de mediadores lipídicos; • síntese e secreção de citocinas. ↠ Alguns eventos de sinalização levam a três respostas principais: (ABBAS, 2019). • Desgranulação. A PKC ativada fosforila a cadeia leve da miosina que compõe os complexos actina-miosina localizados sob a membrana plasmática, levando à desmontagem do complexo. Isso permite que os grânulos citoplasmáticos entrem em contato com a membrana plasmática. A membrana do grânulo do mastócito então se funde à membrana plasmática, em um processo mediado pelos membros da família de proteínas SNARE, envolvidas em muitos outros eventos de fusão de membrana. Diferentes proteínas SNARE presentes nos grânulos e membranas plasmáticas interagem para formar um complexo multimérico que catalisa a fusão. A formação de complexos SNARE é regulada por várias moléculas acessórias, incluindo guanosina trifosfatases Rab3, além de fosfatases e quinases Rab-associadas. Nos mastócitos em repouso, as enzimas inibem a fusão da membrana do grânulo do mastócito à membrana plasmática. Na ligação cruzada de FcɛRI, o aumento resultante nas concentrações citoplasmáticas de cálcio e a ativação de PKC bloqueiam a atividade de moléculas acessórias inibidoras. Em adição, as proteínas sensorasde cálcio respondem a concentrações de cálcio elevadas promovendo a formação do complexo SNARE e a fusão da membrana. Em seguida, a fusão da membrana, os conteúdos dos grânulos dos mastócitos são liberados no ambiente extracelular. Esse processo pode ocorrer segundos após a ligação cruzada de FcɛRI e pode ser morfologicamente visualizado pela perda dos grânulos densos dos mastócitos. • Produção de mediadores lipídicos. A síntese de mediadores lipídicos é controlada pela enzima citosólica fosfolipase A2 (PLA2). A enzima é ativada por dois sinais: Ca++ citoplasmático elevado e fosforilação catalisada por uma proteína quinase ativada por mitógeno (MAP, do inglês, mitogen-activated protein), como a quinase ativada por receptor extracelular (ERK, do inglês, extracellular receptor-activated kinase). A ERK é ativada em consequência de uma cascata de quinases iniciada pelos ITAMs do receptor, provavelmente usando os mesmos intermediários que nas células T. Uma vez ativada, a PLA2 hidrolisa os fosfolipídeos de membrana a liberarem ácido araquidônico e este é convertido pela cicloxigenase ou pela lipoxigenase em diferentes mediadores. • Produção de citocinas. A secreção de citocinas por mastócitos ativados é consequência da transcrição de genes de citocinas neoformadas. Os eventos bioquímicos que regulam a transcrição gênica em mastócitos parecem ser similares aos eventos que ocorrem nas células T. O recrutamento e ativação de várias moléculas adaptadoras e quinases em resposta à ligação cruzada de FcɛRI leva à translocação nuclear do fator nuclear de células T ativadas (NFAT, do inglês, nuclear factor of activated T cells) e do fator nuclear κB (NF-κB, do inglês nuclear fator κB), bem como à ativação da proteína de ativação 1 (AP-1, do inglês, activation protein 1) por proteínas quinases como a quinase c-Jun N-terminal. Esses fatores de transcrição estimulam a expressão de várias citocinas (IL-4, IL-5, IL-6, IL-13 e fator de necrose tumoral [TNF], entre outras), todavia contrastando com as células T por não induzirem IL-2. 3 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ Os mediadores podem ser divididos em mediadores pré-formados, que incluem as aminas vasoativas e macromoléculas contidas nos grânulos; e mediadores neoformados, que incluem mediadores lipídicos e citocinas (ABBAS, 2019). • Aminas vasoativas: atuam nos vasos e na musculatura lisa. As aminas vasoativas são compostos de baixo peso molecular que contêm um grupo amina e atuam diretamente sobre os vasos sanguíneos. Em mastócitos humanos, o principal mediador dessa classe é a histamina. A histamina atua se ligando aos receptores da célula-alvo, sendo que diferentes tipos celulares expressam classes distintas de receptores de histamina (p. ex.: H1, H2, H3) que podem ser distinguidos por sua sensibilidade a diferentes inibidores farmacológicos. A ligação da histamina ao endotélio causa contração das células endoteliais, levando a espaços interendoteliais aumentados, aumento da permeabilidade vascular e extravasamento plasmático para dentro dos tecidos. A histamina também estimula as células endoteliais a sintetizarem relaxantes de células musculares lisas vasculares, como a prostaciclina (PGI2) e o óxido nítrico, causadores de vasodilatação. Essas ações da histamina produzem a resposta de pápula e eritema da hipersensibilidade imediata (ABBAS, 2019). • Enzimas e proteoglicanos dos grânulos: As serina proteases neutras, incluindo a triptase e quimase, são os constituintes proteicos mais abundantes dos grânulos secretores dos mastócitos e contribuem para o dano tecidual produzido durante as reações de hipersensibilidade imediata. A triptase está presente em todos os mastócitos humanos e sua presença em outro tipo celular qualquer é desconhecida . Portanto, a presença de triptase em fluidos biológicos humanos é interpretada como marcador de ativação de mastócitos, sendo por vezes usada clinicamente para diagnosticar a anafilaxia. Por exemplo, a triptase cliva o fibrinogênio e ativa a colagenase, acarretando assim dano tecidual, enquanto a quimase pode converter angiotensina I em angiotensina II, que causa vasoconstrição transiente, degrada membranas basais epidérmicas e estimula a secreção de muco (ABBAS, 2019). • Mediadores lipídicos: Dentre os mediadores, os mais importantes são os derivados do ácido araquidônico, gerado pela hidrólise PLA2-mediada dos fosfolipídeos de membrana. O ácido araquidônico então é metabolizado pelas vias da cicloxigenase ou da lipoxigenase, para produzir mediadores de reações alérgicas. O principal mediador derivado do ácido araquidônico produzido pela via da cicloxigenase nos mastócitos é a prostaglandina D2 (PGD2). A PGD2 liberada se liga aos receptores presentes nas células musculares lisas e atua como vasodilatador e broncoconstritor. A PGD2 também promove quimiotaxia e acúmulo de neutrófilos em sítios inflamatórios. A síntese de PGD2 pode ser prevenida pelos inibidores de cicloxigenase, como a aspirina e outros agentes anti-inflamatórios não esteroides. Esses fármacos podem paradoxalmente exacerbar a broncoconstrição asmática, por desviarem o ácido araquidônico para produção de leucotrienos (ABBAS, 2019). Os principais mediadores derivados do ácido araquidônico produzidos pela via da lipoxigenase são os leucotrienos, especialmente o LTC4 e seus produtos de degradação, LTD4 e LTE4, todos chamados cisteinil-leucotrienos. O LTC4 é produzido por mastócitos e basófilos de mucosa, mas não é produzido por mastócitos do tecido conectivo. Os leucotrienos derivados de mastócitos se ligam a receptores específicos presentes em células musculares lisas, diferentemente dos receptores para PGD2, e causam broncoconstrição prolongada (ABBAS, 2019). • Citocinas: Os mastócitos produzem muitas citocinas diferentes que contribuem para a inflamação alérgica (a reação de fase tardia). Essas citocinas incluem TNF, IL-1, IL- 4, IL-5, IL-6, IL-9, IL-13, CCL3, CCL4 e fatores estimuladores de colônia, como IL-3 e fator estimulador de colônia de granulócito-macrófago (ABBAS, 2019). 4 Júlia Morbeck – @med.morbeck Reação imediata e de fase tardia ↠ As células e mediadores são responsáveis pelas alterações vasculares imediatas e pelas reações inflamatórias tardias que ocorrem nas alergias (ABBAS, 2019). • Reação imediata: As alterações vasculares iniciais que ocorrem durante as reações de hipersensibilidade imediata são demonstradas pela reação de pápula e eritema à injeção intradérmica de um alérgeno. A reação de pápula e eritema resulta da sensibilização de mastócitos dérmicos pela ligação da IgE ao FcɛRI, ligação cruzada de IgE pelo antígeno, e ativação de mastócitos com liberação de mediadores, notavelmente a histamina. A histamina se liga aos receptores de histamina presentes nas células endoteliais venulares; as células endoteliais sintetizam e liberam PGI2 e óxido nítrico, e esses mediadores causam vasodilatação e extravazamento vascular, como já descrito. Os mastócitos cutâneos parecem produzir apenas pequenas quantidades de mediadores de ação prolongada, como os leucotrienos, de modo que a resposta de pápula e eritema desaparece rapidamente. Os especialistas em alergia costumam submeter os pacientes a testes de alergia a diferentes antígenos, avaliando a habilidade destes antígenos de deflagrar reações de pápula e eritema quando aplicados na pele como adesivos ou através de picadas com agulhas pequenas (ABBAS, 2019). • Reação de fase tardia: Decorridas 2-4 horas da reação imediata de pápula e eritema, observa-se uma reação de fase tardia que consiste no acúmulo de leucócitos inflamatórios, incluindo neutrófilos, eosinófilos, basófilos e células T auxiliares. A inflamação é máxima por volta de 24 horas e, então, desaparece gradativamente. Assim como a reação imediata de pápula e eritema, a capacidadede montar uma reação de fase tardia também pode ser adotivamente transferida pela IgE, e a reação pode ser mimetizada com anticorpos anti-IgE que fazem ligação cruzada com receptores FcɛRI em mastócitos com IgE ligada, ou com agentes ativadores de mastócito. As citocinas produzidas pelos mastócitos, incluindo TNF, regulam positivamente a expressão endotelial de moléculas de adesão leucocitárias, como E-selectina e molécula de adesão intercelular 1 (ICAM-1), bem como de quimiocinas, resultando no recrutamento de leucócitos sanguíneos. Assim, a ativação dos mastócitos promove o influxo de leucócitos para os tecidos. Os tipos de leucócitos típicos das reações de fase tardia são eosinófilos e células T auxiliares. Embora as células Th2 sejam a população de célula T dominante nas reações de fase tardia sem complicação. Intolerância alimentar As reações adversas a alimentos integram as intolerâncias alimentares e as alergias alimentares. Apesar de as intolerâncias alimentares e alergias alimentares se manifestarem por sintomas semelhantes, os mecanismos fisiopatológicos responsáveis por cada uma destas reações são distintos (RODRIGUES, 2011). O termo reação adversa a alimentos é aplicado a qualquer reação indesejável que ocorre após ingestão de um alimento numa dose que é geralmente tolerada pela maioria dos indivíduos, com produção de sinais e sintomas objetivamente reprodutíveis (RODRIGUES, 2011). As alergias alimentares decorrem de um mecanismo imunológico, ao passo que as intolerâncias alimentares podem resultar de diferentes tipos de mecanismos não imunológicos (RODRIGUES, 2011). Os conceitos de alergia alimentar e intolerância alimentar têm sido utilizados, muitas vezes, de forma indiscriminada e inapropriada, mesmo 5 Júlia Morbeck – @med.morbeck por profissionais de saúde, a qualquer tipo de reação adversa, independente do mecanismo patológico de base (RODRIGUES, 2011). ↠ Intolerância alimentar, ou reação de hipersensibilidade a alimentos não-alérgica, constitui um tipo de reação adversa em que não está implicado um mecanismo imunológico. Este tipo de reações é dose dependente e tende a provocar um efeito retardado (horas a dias), o que torna difícil identificar a causa subjacente (RODRIGUES, 2011). EPIDEMIOLOGIA ↠ As intolerâncias alimentares apresentam uma maior prevalência na população e podem atingir uma faixa etária diferente daquela em que geralmente ocorrem as alergias alimentares (RODRIGUES, 2011). ↠ As intolerâncias alimentares constituem um problema médico frequente, atingindo 15% a 20% da população e parecem estar relacionadas com diversas patologias sistémicas e do foro gastro-intestinal (RODRIGUES, 2011). As intolerâncias alimentares e alergias alimentares constituem um problema médico comum. Cerca de 20% da população relata uma reação adversa a alimentos. Contudo, os estudos epidemiológicos baseados em ensaios duplamente cegos disponíveis relativamente a esta temática são escassos. Além disso, os estudos epidemiológicos de prevalência incluem, muitas vezes, alergias alimentares e intolerâncias alimentares de forma indiscriminada (RODRIGUES, 2011). MECANISMOS FISIOPATOLÓGICOS ↠ Os mecanismos fisiopatológicos responsáveis pelas intolerâncias alimentares consistem em: (RODRIGUES, 2011). • Defeitos enzimáticos - Intolerância enzimática: os erros inatos do metabolismo devidos a defeitos enzimáticos podem afetar a digestão e absorção de hidratos de carbono, lipídios ou proteínas. O defeito enzimático pode ser primariamente gastrointestinal, causando alterações da digestão ou absorção (ex: deficiência de lactase), ou sistêmico, como ocorre na intolerância hereditária à frutose. • Reações farmacológicas - Intolerância farmacológica: é causada por aminas vasoativas (dopamina, histamina, tiramina, norepinefrina, feniletilamina e serotonina) e outras substâncias presentes nos alimentos, que manifestam atividade farmacológica. Em muitos casos existe uma relação dose-efeito. • Intolerância alimentar indefinida: consiste na intolerância alimentar resultante de mecanismos não definidos, tais como as reações a aditivos alimentares. PRINCIPAIS TIPOS DE INTOLERÂNCIA INTOLERÂNCIA AOS HIDRATOS DE CARBONO ↠ Os hidratos de carbono provenientes da dieta podem ser de diferentes tipos: polissacarídeos (amilopectina e amilose), dissacarídeos (lactose, sacarose, maltose e trealose) e monossacarídeos (frutose, glucose e galactose) (RODRIGUES, 2011). Os hidratos de carbono ingeridos têm que ser digeridos e absorvidos no trato gastrointestinal antes de serem utilizados pelo organismo como fonte energética. Os processos de digestão e absorção são mediados pela ação de enzimas digestivas e de proteínas transportadoras com funções especializadas (RODRIGUES, 2011). A digestão é completada pela ação de hidrolases específicas ligadas à membrana do pólo apical dos enterócitos, que revestem as vilosidades do intestino delgado. Os monossacarídeos resultantes da ação destas hidrolases são, de seguida, absorvidos pelos enterócitos através de sistemas de transporte específicos da membrana. Em caso de deficiência a nível do processo digestivo ou absortivo, os hidratos de carbono passam através do trato gastrointestinal sem serem digeridos ou sendo apenas parcialmente digeridos por enzimas produzidas pela flora bacteriana intestinal (RODRIGUES, 2011). Esta fermentação bacteriana produz ácidos gordos, hidrogênio, dióxido de carbono e metano que, juntamente com os hidratos de carbono não digeridos e não absorvidos, pode provocar sintomas de intolerância alimentar (RODRIGUES, 2011). INTOLERÂNCIA AOS DISSACARÍDEOS A sacarose, o principal hidrato de carbono presente na maioria dos frutos, tem que ser digerida até aos seus constituintes monossacáridos, a frutose e glucose, antes de ser absorvida. Esta hidrólise enzimática ocorre através da enzima sacarase, cuja atividade está associada à enzima digestiva isomaltase (RODRIGUES, 2011). A deficiência congênita de sacarase-isomaltase resulta da ausência de sacarase na membrana dos enterócitos, associada a níveis variáveis de atividade de isomaltase, com consequente incapacidade de digerir a sacarose proveniente da dieta e aparecimento de sinais e sintomas de mal absorção, tais como vómitos, flatulência e dor abdominal (RODRIGUES, 2011). 6 Júlia Morbeck – @med.morbeck A deficiência congênita de sacarase-isomaltase é uma condição rara, de transmissão autossômica recessiva, que afeta 0,02% dos indivíduos provenientes da Europa, sendo bastante mais prevalente em populações nativas da Gronelândia, Alasca e Canadá. Diferentes mutações na região codificadora do gene da sacarase-isomaltase (gene SI), localizado no cromossoma 3, têm sido propostas como associadas ao fenótipo de deficiência congênita de sacarase-isomaltase (RODRIGUES, 2011). A trealose é o dissacarídeo encontrado em cogumelos, algas e na hemolinfa de insetos. A trealase consiste numa enzima intestinal que hidrolisa a trealose em duas moléculas de glucose. A deficiência de trealase, uma condição autossômica recessiva, ocorre essencialmente na Gronelândia, onde afeta cerca de 8% da população (RODRIGUES, 2011). INTOLERÂNCIA À LACTOSE A intolerância à lactose é condição comum, decorrente da incapacidade de digestão de seus constituintes, glicose e galactose, pela baixa produção da enzima lactase presente nas bordas em escova das células duodenais (QUILICI et. al., 2019). A lactose constitui um hidrato de carbono dissacarídeo presente apenas no leite de mamíferos (RODRIGUES, 2011). Deficiência de lactase é a forma mais comum das insuficiências de produção de dissacaridase, e seus níveis são decrescentes no transcorrer dos anos, independentemente da utilização de produtos que contenham lactose (QUILICI et. al., 2019). EPIDEMIOLOGIA: Estima-se, atualmente, que70 a 75% da população mundial apresenta deficiência de lactase no transcorrer da vida, particularmente entre os 20 e 40 anos. Embora haja intolerância à lactose em praticamente todos os grupos raciais, predominância ocorre entre populações da América do Sul, da Ásia e da África. Sua distribuição é semelhante entre sexos (QUILICI et. al., 2019). FISIOPATOLOGIA: A absorção de lactose requer hidrólise pela enzima lactase-florizina hidrolase, habitualmente denominada lactase, uma beta- galactosidade responsável pela clivagem da lactose em glucose e galactose. Estes dois monossacarídeos são, posteriormente, absorvidos pelos enterócitos, através do transportador de sódio dependente da glucose SGLUT1, para a corrente sanguínea, indo desempenhar as suas funções no organismo: a glucose constitui um substrato energético e a galactose incorpora glicolípidos e glicoproteínas. A lactase encontra-se na superfície apical dos enterócitos do intestino delgado, nas extremidades das microvilosidades intestinais, principalmente a nível do jejuno (RODRIGUES, 2011). Por altura do nascimento, a lactase apresenta um pico de atividade, sendo que, em praticamente todo o mundo, a população adulta experimenta, após a fase de amamentação, uma redução da síntese de lactase de cerca de 75% a 90%, geneticamente programada, o que acarreta uma mal absorção de lactose (não- persistência de lactase). Contudo, nas populações originárias do Norte da Europa, a atividade da lactase geralmente mantém-se na idade adulta (persistência de lactase), possivelmente devido a uma pressão de seleção positiva que ocorreu nesta região causada pela introdução de produtos lácteos, o que constituiu um fator importante para a sobrevivência das populações (RODRIGUES, 2011). Para que não ocorram sintomas de intolerância com a ingestão de lactose, é necessária apenas 50% de atividade de lactase. Assim, todos os indivíduos podem digerir alguma lactose e, apenas aqueles que apresentem um baixo nível de lactase e que ingiram uma quantidade de lactose que ultrapasse a capacidade de absorção, apresentam sintomas gastrointestinais e sistêmicos (RODRIGUES, 2011). A intolerância à lactose consiste numa síndrome clínica que se caracteriza por diarreia, dor abdominal, náuseas, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de lactose ou de substâncias que contenham este dissacarídeo, devido à mal absorção de lactose, distinguindo-se da alergia às proteínas do leite da vaca, entidade clínica mediada por um mecanismo imunológico (RODRIGUES, 2011). A quantidade de lactose necessária para que se produzam os sintomas varia consoante a quantidade de lactose ingerida, o grau de deficiência de lactase e o tipo de alimento sob o qual a lactose é ingerida (RODRIGUES, 2011). IMPORTANTE: A mal absorção de lactose diz respeito ao mecanismo fisiológico que provoca intolerância à lactose e deve-se a um desequilíbrio entre a quantidade de lactose ingerida e a capacidade de hidrólise da lactase, com consequente passagem de lactose para o cólon (RODRIGUES, 2011). A hipolactasia ou deficiência de lactase define-se como uma atividade da lactase marcadamente reduzida relativamente à atividade existente em lactentes e existe sob diferentes formas: (RODRIGUES, 2011). • Deficiência primária de lactase, também designada por hipolactasia do adulto, não persistência de lactase ou deficiência hereditária de lactase, a causa mais frequente de mal absorção de lactose e de intolerância à lactose. Nesta condição ocorre uma diminuição da síntese de lactase após a fase de amamentação, com concentrações de lactase a nível da bordadura em escova dos enterócitos na idade 7 Júlia Morbeck – @med.morbeck adulta que atingem 10% do nível existente durante a infância. A deficiência primária de lactase ocorre independentemente da continuação ou não do consumo de lactose e atinge 70% da população adulta em todo o mundo. • Deficiência secundária de lactase, que se refere à perda de atividade da lactase em indivíduos com persistência de lactase. Resulta de lesão da bordadura em escova do intestino delgado por patologia do trato gastrointestinal. Constitui o único tipo de hipolactasia potencialmente reversível, pelo que é fundamental diagnosticar clinicamente esta entidade. • Deficiência congênita de lactase, um distúrbio extremamente raro, que apenas foi relatado num número reduzido de casos. Resulta de uma atividade mínima da lactase com consequente produção de sintomas (diarreia e atraso de desenvolvimento) após a primeira exposição ao leite materno. • Deficiência neonatal de lactase, definida como a deficiência de lactase que ocorre em prematuros com menos de 34 semanas de gestação. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS: Os sintomas típicos de intolerância à lactose incluem dor e distensão abdominais, flatulência, diarreia, borborismo e, por vezes, náuseas e vômitos. Na sua forma mais grave, a intolerância à lactose pode provocar desidratação, alterações eletrolíticas e atraso de desenvolvimento (RODRIGUES, 2011). As bactérias presentes no cólon metabolizam a lactose que não é absorvida no intestino delgado, produzindo ácidos gordos voláteis e gases (metano, dióxido de carbono e hidrogénio), mecanismo responsável pela ocorrência de flatulência. Quando é produzida uma razoável quantidade de gás, a distensão abdominal estimula o sistema nervoso intestinal, resultando em cólica abdominal. Além disso, a lactose mal absorvida é osmoticamente ativa, o que, associado à acidificação do conteúdo cólico pela fermentação bacteriana, provoca grande secreção de fluidos e eletrólitos para o lúmen intestinal, uma diminuição do tempo de trânsito intestinal e, consequentemente, diarreia (RODRIGUES, 2011). A intolerância à lactose pode provocar ainda sintomas sistêmicos, tais como cefaleias, tonturas, diminuição da concentração, diminuição da memória de curta duração, fadiga, dores musculares e articulares, vários tipos de reações alérgicas, arritmias, úlceras orais, inflamação da garganta e aumento da frequência da micção. Os metabolitos resultantes da fermentação da lactose mal absorvida pelas bactérias cólicas (alcoóis, dióis, aldeídos, cetonas e ácidos) provocam alterações na expressão de genes e no crescimento de bactérias, interferindo com o equilíbrio da microflora do cólon (RODRIGUES, 2011). DIAGNÓSTICO: Pode recorrer-se a uma prova terapêutica com alimentação sem lactose quando se suspeita de uma intolerância à lactose, eliminando todas as fontes de lactose da alimentação. O diagnóstico é feito após duas semanas de restrição total de lactose da alimentação com resolução dos sintomas e recorrência dos mesmos após reintrodução de alimentos contendo lactose (RODRIGUES, 2011). Por vezes, é necessário recorrer ao teste respiratório do hidrogênio, que é considerado o método mais fidedigno, menos invasivo e com melhor relação custo-benefício no diagnóstico de intolerância à lactose (RODRIGUES, 2011). O teste de tolerância à lactose consiste na ingestão de uma dose padronizada de lactose (2g/kg ou 50g/m2 de superfície corporal, até um máximo de 50g em 20% de solução aquosa) e posterior determinação da concentração plasmática de glucose. É possível diagnosticar mal absorção de lactose pelo aparecimento de sintomas e/ou por uma determinação da concentração plasmática de glucose inferior a 26mg/dl após ingestão de uma dose de lactose (RODRIGUES, 2011). INTOLERÂNCIA AOS MONOSSACARÍDEOS A glucose e galactose, produtos da hidrólise da lactose, são normalmente transportadas através da membrana apical do epitélio intestinal por transporte ativo, mediado pelo cotransportador Na+/glucose (SGLT1). Estes dois monossacarídeos são, de seguida, transportados dos enterócitos para a circulação portal através do transportador presente na membrana basolateral, GLUT2. A mal absorção de glucose-galactose é uma doença rara, autossômicarecessiva, que resulta de um defeito no transporte ativo destes dois monossacarídeos para o interior do enterócito (RODRIGUES, 2011). Foram identificadas várias mutações do gene que codifica o SGLT1 (gene hSGLT1, localizado no cromossoma 22) responsáveis por este defeito de transporte. A mal absorção de glucose-galactose cursa com diarreia grave e desidratação em recém-nascidos, aquando da ingestão de leite materno ou de fórmulas infantis (RODRIGUES, 2011). A frutose é um monossacarídeo encontrado sob três principais formas na dieta: como frutose livre (presente em frutos e no mel); como um constituinte do dissacarídeo sacarose; ou como frutanos, polímeros da frutose frequentemente presentes na forma de oligossacarídeos (frutooligossacarídeos – FOS), presentes em alguns vegetais e em produtos à base de trigo, tendo também sido desenvolvidos como adoçante em alternativa à frutose (RODRIGUES, 2011). A intolerância à frutose pode manifestar-se segundo duas apresentações clínicas diferentes: mal absorção de frutose e intolerância hereditária à frutose (RODRIGUES, 2011). O monossacarídeo frutose é transportado através da membrana apical dos enterócitos por difusão facilitada através do transportador GLUT5, específico para a frutose, sendo, de seguida, transportado através da membrana basolateral dos enterócitos pelo transportador GLUT2. Este último transportador permite o transporte não só da frutose, mas também da glucose e galactose. Embora o GLUT5 constitua o principal transportador da frutose através da membrana apical dos enterócitos, o GLUT2 pode auxiliar a absorção do excesso de frutose luminal ao ser também inserido na membrana apical de forma reversível aquando do transporte de glucose pelo SGLT1. A absorção de frutose depende da capacidade funcional do GLUT5, que aumenta com o aporte de frutose e sacarose da dieta, e da capacidade e rapidez de inserção de GLUT2 na membrana apical dos enterócitos em resposta aos hidratos de carbono da dieta (RODRIGUES, 2011). Assim, a mal absorção de frutose parece ser devida a um defeito a nível do transporte intestinal, embora não resulte de mutações do gene que codifica o GLUT5 (gene SLC2A5). A prevalência de mal absorção de frutose, em doentes com sintomas gastrointestinais inexplicados, varia entre 38% e 80% consoante a dose de frutose ingerida. Verifica-se que a frutose é absorvida a nível intestinal de forma mais eficiente e provoca menos sintomas quando são ingeridos alimentos que contêm frutose em quantidades praticamente equimolares às de glucose. Por outro lado, a absorção de frutose 8 Júlia Morbeck – @med.morbeck proveniente de alimentos que contêm uma mistura de frutose e sorbitol (um tipo de poliól) é incompleta e responsável por mais sintomas relativamente à absorção de cada um dos dois açúcares isoladamente (RODRIGUES, 2011). A intolerância hereditária à frutose é um defeito congênito do metabolismo autossômico recessivo, potencialmente letal, que resulta da deficiência de aldolase B no fígado, intestino e rim, com consequente incapacidade de metabolizar por completo a frutose, sorbitol (fonte endógena de frutose) e sacarose da dieta. Pode resultar de várias mutações do gene da aldolase B, localizado no cromossoma 9, que causam perda da atividade enzimática. Um défice de atividade de aldolase B provoca acumulação de frutose 1-fosfato, com consequente captura e impossibilidade de utilizar o fosfato e prejuízo de todos os processos celulares dependentes de fosforilação ou de adenosina trifosfato (ATP), nomeadamente a glicogenólise hepática. Este mecanismo explica a ocorrência de hipoglicemia aguda nestes doentes após a ingestão de frutose e a incapacidade de reverter esta hipoglicemia com a administração de glucagina (RODRIGUES, 2011). INTOLERÂNCIA ÀS AMINAS BIOGÊNICAS ↠ As aminas biogénicas provenientes da dieta incluem a histamina, tiramina, feniletilamina, dopamina, norepinefrina, e a serotonina (RODRIGUES, 2011). Intolerância à histamina resulta de um desequilíbrio entre a acumulação de histamina e a capacidade de degradação de histamina. Aproximadamente 1% da população apresenta intolerância à histamina, da qual 80% são adultos em idade média. A histamina, um mediador de reações anafiláticas, pode ser metabolizada por duas vias: por diaminação oxidativa pela enzima diamina oxidase (DAO), que atua extracelularmente, ou por metilação pela enzima hitamina-N- metiltransferase (HNMT), uma enzima citosólica que atua apenas no espaço intracelular (RODRIGUES, 2011). ↠ A intolerância à histamina parece resultar principalmente da ingestão de alimentos que contêm elevadas quantidades de histamina por indivíduos com baixa inativação da histamina a nível intestinal devido a patologias gastrointestinais ou por inibição desta inativação por outros componentes alimentares ou fármacos, o que permite a absorção de histamina em quantidades suficientes para provocar sintomas (RODRIGUES, 2011). ↠ Elevadas concentrações de histamina são encontradas principalmente em produtos da fermentação bacteriana, tais como vinho, queijo curado e carne processada ou em alimentos contaminados por microrganismos (RODRIGUES, 2011). ↠ Os sintomas mais comuns de intolerância à histamina incluem rinorreia, congestão nasal, cefaleia, dismenorreia, hipotonia, arritmias, urticária, prurido, rubor, asma e distúrbios gastrointestinais (epigastralgia difusa, cólica abdominal, flatulência e diarreia) (RODRIGUES, 2011). O diagnóstico definitivo baseia-se num teste de provocação com histamina, duplamente cego e controlado por placebo, com determinação das concentrações plasmáticas de histamina (RODRIGUES, 2011). INTOLERÂNCIA AOS ADITIVOS ALIMENTARES ↠ Os aditivos alimentares, quando presentes nas doses permitidas, são reconhecidos como produtos seguros. Contudo, alguns indivíduos predispostos podem apresentar reações de intolerância aquando do consumo de aditivos alimentares, principalmente sulfitos, nitritos, nitratos, glutamato monossódico e alguns corantes, que se manifestam por asma, rinite, urticária e enxaqueca. O mecanismo fisiopatológico subjacente a este tipo de intolerâncias não é ainda conhecido (RODRIGUES, 2011). ARTIGO: Fatores associados à intolerância alimentar em pacientes no pós-operatório de cirurgia bariátrica (PAIVA; PINTO, 2015). Apesar da cirurgia apresentar resultados bastante satisfatórios no que se refere à qualidade de vida do obeso mórbido, como perda de peso, melhora de algumas comorbidades, da qualidade de vida, do humor e outros aspectos das funções psicossociais, ela também pode trazer algumas morbidades no período pós-operatório inicial, no qual se observa intolerância a alimentos, com regurgitação associada. Como um dos efeitos colaterais da cirurgia bariátrica, a intolerância alimentar é uma das causas dos sintomas comuns do pós-operatório, como vômito, diarreia, obstipação e síndrome de dumping. A intolerância à carne é esperada devido à parcial gastrectomia, com consequente alteração na produção de pepsina, principal responsável pela digestão das proteínas. Além disso, a mastigação inadequada aumenta essa intolerância, por isso, a educação nutricional é tão importante. Se por um lado a intolerância alimentar dificulta a adequação da dieta, em termos de nutrientes, por outro os pacientes que não apresentam nenhum tipo de intolerância ficam mais predispostos ao retorno de práticas alimentares errôneas no pós-operatório tardio. Surter et al. afirmaram que o preço de uma melhor tolerância alimentar é frequentemente o reganho de peso. 9 Júlia Morbeck – @med.morbeck MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS ↠ Manifestam-se geralmente por intestino irritável, cefaleias, enxaquecas, fadiga, alterações do comportamento ou urticária. Podem também ocorrer sintomas de asma em alguns doentes, bem como uma reação anafilatóide, quesucede ocasionalmente (RODRIGUES, 2011). DIAGNÓSTICO ↠ A avaliação inicial de um doente com reação adversa a alimentos consiste numa história clínica detalhada e num exame físico cuidadoso (RODRIGUES, 2011). As intolerâncias alimentares associam-se frequentemente a história de intestino irritável, enxaqueca, úlceras orais ou erupções cutâneas (RODRIGUES, 2011). EXAMES LABORATORIAIS ↠ Diferentes testes laboratoriais podem ser utilizados no diagnóstico de intolerâncias alimentares, nomeadamente: (RODRIGUES, 2011). • medição da atividade enzimática em biópsias intestinais; • identificação de determinadas mutações genéticas específicas; • testes respiratórios do hidrogênio para diagnóstico de intolerâncias a alguns hidratos de carbono (frutose, lactose e sacarose). O teste respiratório do hidrogênio consiste na medição da quantidade de hidrogénio presente no ar expirado após ingestão do hidrato de carbono a testar. Em caso de mal absorção, o hidrato de carbono ingerido sofre metabolização pelas bactérias presentes no cólon com produção de hidrogênio, metano, dióxido de carbono e ácidos gordos, sendo que uma pequena quantidade do hidrogênio produzido é absorvido e eliminado durante a primeira passagem pelos pulmões. De forma a evitar resultados falso-negativos, devido a escassez de bactérias produtoras de hidrogênio, e resultados falso-positivos, por diminuição do tempo de trânsito orocecal e proliferação bacteriana, deve ser realizado um teste respiratório do hidrogênio com lactulose, um dissacarídeo que não é absorvido e que, portanto, causa produção de hidrogénio (RODRIGUES, 2011). • a medição dos níveis plasmáticos de glucose após ingestão de uma dose de lactose e frutose pode ser utilizada no diagnóstico de intolerância à lactose e intolerância à frutose, respectivamente (RODRIGUES, 2011). Alergia alimentar ↠ Alergia alimentar é uma forma de reação adversa a alimentos que é causada por uma resposta imunológica ao alimento, sendo que a maioria das alergias alimentares é mediada por uma resposta de hipersensibilidade tipo 1, com produção de Imunoglobulina E (IgE). Muitas reações alérgicas a alimentos ocorrem alguns minutos após a ingestão, mas a reação pode, por vezes, ser mais tardia (hipersensibilidade não-mediada por IgE) (RODRIGUES, 2011). CLASSIFICAÇÃO ↠ As reações de hipersensibilidade aos alimentos podem ser classificadas de acordo com o mecanismo imunológico envolvido em: (SOLÉ et. al., 2018). • Mediadas por IgE: Decorrem de sensibilização a alérgenos alimentares com formação de anticorpos específicos da classe IgE, que se fixam a receptores de mastócitos e basófilos. Contatos subsequentes com este mesmo alimento e sua ligação a duas moléculas de IgE próximas determinam a liberação de mediadores vasoativos e citocinas Th2, que induzem às manifestações clínicas de hipersensibilidade imediata. São exemplos de manifestações mais comuns que surgem logo após a exposição ao alimento: reações cutâneas (urticária, angioedema), gastrintestinais (edema e prurido de lábios, língua ou palato, vômitos e diarreia), respiratórias (broncoespasmo, coriza) e reações sistêmicas (anafilaxia e choque anafilático). • Reações mistas (mediadas por IgE e hipersensibilidade celular): Neste grupo estão incluídas as manifestações decorrentes de mecanismos mediados por IgE associados à participação de linfócitos T e de citocinas pró- inflamatórias. São exemplos clínicos deste grupo a esofagite eosinofílica, a gastrite eosinofílica, a gastrenterite eosinofílica, a dermatite atópica e a asma. • Reações não mediadas por IgE: As manifestações não mediadas por IgE não são de apresentação imediata e caracterizam-se basicamente pela hipersensibilidade mediada por células. Embora pareçam ser mediadas por linfócitos T, há muitos pontos que necessitam ser mais estudados nesse tipo de reações. Aqui estão representados os quadros de proctite, enteropatia induzida por proteína alimentar e enterocolite induzida por proteína alimentar. EPIDEMIOLOGIA Os dados sobre a prevalência de alergia alimentar, ao redor do mundo, são conflitantes e variáveis a depender de: idade e características da população avaliada (cultura, hábitos alimentares, 10 Júlia Morbeck – @med.morbeck clima), mecanismo imunológico envolvido, método de diagnóstico (autorreferido, questionário escrito, testes cutâneos, determinação de IgE sérica específica ou testes de provocação oral), tipo de alimento, regiões geográficas, entre outros (SOLÉ et. al., 2018). ↠ É mais comum em crianças e a sua prevalência parece ter aumentado nas últimas décadas em todo o mundo. Estima-se que a prevalência seja aproximadamente de 6% em menores de três anos, e de 3,5% em adultos (SOLÉ et. al., 2018). ↠ A prevalência é, no entanto, superior em indivíduos atópicos (cerca de 10%). A apresentação clínica ocorre geralmente durante o primeiro ano de vida, estando bastante associada à existência de eczema atópico (RODRIGUES, 2011). ↠ Os principais alérgenos identificados foram frutos do mar (0,9%), fruta ou vegetal (0,5%), leite e derivados (0,5%), e amendoim (0,5%) (SOLÉ et. al., 2018). ↠ No Brasil, os dados sobre prevalência de alergia alimentar são escassos e limitados a grupos populacionais, o que dificulta uma avaliação mais próxima da realidade. Estudo realizado por gastroenterologistas pediátricos apontou ser a incidência de alergia às proteínas do leite de vaca 2,2%, e a prevalência 5,4% em crianças entre os serviços avaliados (SOLÉ et. al., 2018). ETIOLOGIA ↠ Os alimentos mais frequentemente envolvidos nas alergias alimentares são o leite, ovo, amendoim, sésamo, peixe, marisco, frutos secos, trigo e soja (RODRIGUES, 2011). Mais de 90% das reações alérgicas em crianças são causadas por seis alimentos, quais sejam, proteína do leite de vaca, ovo, amendoim, trigo, soja e amêndoa, enquanto no adulto são o amendoim, a amêndoa, os peixes e frutos do mar os maiores responsáveis (DANI; PASSOS, 2011). Em alguns grupos de alimentos, especialmente as amêndoas e os frutos do mar, a alergia a um alimento membro desta família em geral acarreta alergia a todos os outros alimentos da família, o que é chamado de reação cruzada. Mas, no grupo de alimentos oriundos de animais, excetuando-se os frutos do mar, a reação cruzada não é comum, ou seja, uma pessoa alérgica ao leite de vaca pode normalmente alimentar-se de carne e ovos. Além desses alimentos, muitos outros, como frutas, vegetais e condimentos, podem ser alergênicos aos seres humanos (RODRIGUES, 2011). FATORES DE RISCO Pesquisas reconheceram que apenas a exposição aos alérgenos não determina o aumento global na incidência da doença (SOLÉ et. al., 2018). Uma série de fatores de risco têm sido associados à alergia alimentar, tais como ser lactente do sexo masculino, etnia asiática e africana, comorbidades alérgicas (dermatite atópica), desmame precoce, insuficiência de vitamina D, redução do consumo dietético de ácidos graxos poliinsaturados do tipo ômega 3, redução de consumo de antioxidantes, uso de antiácidos que dificulta a digestão dos alérgenos, obesidade como doença inflamatória, época e via de exposição aos potenciais alérgenos alimentares e outros fatores relacionados à Hipótese da higiene (SOLÉ et. al., 2018). A predisposição genética, associada a fatores de risco ambientais, culturais e comportamentais, formam a base para o desencadeamento das alergias alimentares em termos de frequência, gravidade e expressão clínica (SOLÉ et. al., 2018). HERANÇA GENÉTICA ↠ A história familiar de atopia ainda é o melhor indicativo de risco para o seu aparecimento. Em estudo com lactentes comprovadamente diagnosticados com alergia alimentar, o risco de alergia alimentar foi aumentado para 40% se um membro da família nuclear apresentasse qualquer doença alérgica, e em 80% quandoisto aconteceu em dois familiares próximos. Assim, a expressão da herança genética é mais intensa quando há antecedentes bilateralmente (pai e mãe), determinando sintomas mais precoces e frequentes (SOLÉ et. al., 2018). As mutações que acarretam perda de função no gene da filagrina foram associadas à alergia ao amendoim, independente da presença da dermatite atópica, e levantou a possibilidade da pele funcionar como uma via potencial de sensibilização (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Os polimorfismos no gene STAT6 foram associados à sensibilização e retardo na tolerância em alergia ao leite de vaca (SOLÉ et. al., 2018). FATORES DIETÉTICOS PRIVAÇÃO DO ALEITAMENTO MATERNO: O leite materno contém IgA secretora, que funciona como bloqueador de antígenos alimentares e ambientais, bem como vários fatores de amadurecimento da barreira intestinal e fatores imunorreguladores importantes no estabelecimento da microbiota. O aleitamento materno exclusivo, sem a introdução de leite de vaca, de fórmulas infantis à base de leite de vaca e de alimentos complementares até os seis meses tem sido ressaltado como eficaz na prevenção do aparecimento de sintomas alérgicos (SOLÉ et. al., 2018). USO DE FÓRMULAS LÁCTEAS: Receber fórmulas de leite de vaca, ainda no berçário, pode ser indutor de disbiose intestinal, e fator de risco importante de alergia alimentar (SOLÉ et. al., 2018). DISBIOSE INTESTINAL Logo após o nascimento, inicia-se a colonização do recém-nascido. Alguns fatores que interferem nesse processo são: parto cesariano, uso materno de antibiótico, condições excessivas de higiene e o uso de fórmula complementar oferecida à criança que pode resultar em disbiose (SOLÉ et. al., 2018). ↠ O leite materno é rico em oligossacarídeos, responsáveis pelo efeito bifidogênico, o que faz com que lactentes em aleitamento materno tenham aumento de 11 Júlia Morbeck – @med.morbeck bifidobactérias em seu trato gastrintestinal. Já as crianças que recebem fórmulas infantis ou leite de vaca integral desenvolvem uma microbiota intestinal com predomínio de enterobactérias e bacteroides, tornando o sistema imunológico mais vulnerável à quebra de tolerância (SOLÉ et. al., 2018). INSUFICIÊNCIA DE VITAMINA D ↠ A insuficiência de vitamina D (abaixo de 15 ng/mL) foi associada a risco aumentado para a sensibilização ao amendoim. A insuficiência de vitamina D como fator de risco para alergia alimentar é mais frequente em países distantes do Equador e com menor radiação ultravioleta, apesar desta associação ser controversa (SOLÉ et. al., 2018). FATORES COMPORTAMENTAIS E CULTURAIS ↠ Estes fatores também estão associados ao risco de alergia alimentar, e podem ser modificáveis. Os filhos de gestantes que fumaram na gravidez apresentam níveis elevados de IgE e eosinofilia no sangue do cordão umbilical, sugerindo que este irritante respiratório pode ser indutor de desvio Th2 e consequentemente, de doença alérgica. Do mesmo modo, o consumo de álcool durante a gestação encontra-se documentado como um fator de risco importante, com elevação da IgE específica para antígenos alimentares e aeroalérgenos (SOLÉ et. al., 2018). COMORBIDADES ALÉRGICAS ↠ Comorbidades alérgicas são fatores de risco para o desenvolvimento de alergia alimentar. Estudos indicam que a alergia alimentar pode predispor à asma, e, da mesma forma, a asma pode predispor à alergia alimentar (SOLÉ et. al., 2018). MECANISMOS DE DEFESA DO TRATOGASTROINTESTINAL O trato gastrintestinal (TGI) é o único órgão onde existe uma convivência harmônica entre grande número de micro- organismos e o sistema imunológico além de ter a capacidade de receber diariamente grande quantidade de antígenos alimentares sem que haja um processo inflamatório que cause danos (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Estes mecanismos de defesa existentes podem ser classificados como inespecíficos e específicos (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Os mecanismos de defesa inespecíficos englobam: (SOLÉ et. al., 2018). • a barreira mecânica representada pelo próprio epitélio intestinal e pela junção firme entre suas células epiteliais (promovida por tight junctions, desmossomos, entre outros); • a flora intestinal; • o ácido gástrico; • as secreções biliares e pancreáticas; • a própria motilidade intestinal. ↠ O epitélio intestinal é renovado a cada semana, em decorrência da proliferação, diferenciação e migração das stem-cell progenitoras, das criptas em direção ao lúmen, mantendo sua função de barreira (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Um elemento importante da defesa inespecífica é representado pelo muco, que recobre as células epiteliais e contém diferentes mucinas. O muco auxilia na formação de uma primeira linha de defesa e facilita a aderência de bactérias através de componentes de sua parede celular, promovendo sua eliminação pela peristalse (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Entre os mecanismos de defesa específicos encontramos aqueles relacionados à defesa imunológica do TGI, que podem ser encontrados em três níveis, a saber: (SOLÉ et. al., 2018). • Barreira epitelial intestinal; • Lâmina própria; • Sistema imunológico do trato gastrintestinal (GALT - Gut-associated lymphoid tissue). Este último faz parte de um grande sistema de imunidade de mucosas (MALT- Mucosa- associated lymphoid tissue), que entra em contato com o meio externo, sendo considerado o maior órgão linfoide do organismo. O GALT, por sua vez, é composto por diferentes tecidos linfoides organizados, que incluem: as placas de Peyer (PP), folículos linfoides isolados (FLI) e linfonodos mesentéricos (LNM) (SOLÉ et. al., 2018). Na lâmina própria estão localizadas a maioria das células imunológicas: as que já entraram em contato com antígenos anteriormente (linfócitos T e B de memória), sendo na maioria linfócito do tipo CD4+, mas também estão presentes CD8+, CD4+CD25hi (conhecidos como linfócitos T reguladores - Treg) e outras células imunológicas, como células dendríticas (DC), macrófagos, mastócitos, eosinófilos e células linfoides inatas (ILC) (SOLÉ et. al., 2018). As PP consistem de um centro germinativo que contém grande quantidade de linfócitos B, circundados de poucos linfócitos T. Os linfócitos B são direcionados principalmente para a produção de IgA. Uma particularidade das PP é a presença de células epiteliais especializadas, as chamadas células M. Essas células M não apresentam microvilosidades e camada superficial de muco, o que facilita a 12 Júlia Morbeck – @med.morbeck captação de antígenos (Ag) particulados, vírus, bactérias ou parasitas intactos (SOLÉ et. al., 2018). Após a apresentação antigênica na mucosa do TGI pela captação do antígeno pelas células M, ocorre a captação destes antígenos pelas DC, que representam as células apresentadoras de antígeno (APC) mais competentes para esta função, embora outras células também possam exercer este papel. Estas APC apresentam estes antígenos às células T helper naive (Th0) presentes nos tecidos linfoides associados ao intestino. Na dependência da alergenicidade do Ag e das células presentes no local da apresentação, as células Th0 diferenciam- se em diferentes tipos de linfócitos T, classificados pelo perfil de interleucinas (IL) que produzem (SOLÉ et. al., 2018). Linfócitos (INFg), Th1 produzem interferon gama IL-2 e fator de necrose tumoral alfa (TNF- a), e os linfócitos Th2, preferentemente IL-4, IL-5, IL- 9 e IL-13 (SOLÉ et. al., 2018). A produção da IgA secretora pelos linfócitos B, induzidos pela presença de TGF-ß, representa um dos principais mecanismos de defesa do TGI, referido como exclusão imunológica e com ação sinérgica com outros mecanismos imunológicos (SOLÉ et. al., 2018). A lâmina própria do intestino é o maior local de produção de anticorpos do organismo, onde se encontram cerca de 80% de células B ativadas (SOLÉ et. al., 2018). Sugere-seque o sistema imunológico imaturo dos neonatos e lactentes jovens favoreça a sensibilização alérgica. Nesta fase da vida, a barreira intestinal é imatura e mais permeável, tornando o epitélio mais suscetível à penetração dos diferentes antígenos, portanto, mais vulnerável à sensibilização alérgica. Além disso, nesta fase da vida há produção diminuída de anticorpos IgA secretores, o que favorece a penetração de alérgenos e consequentemente a ocorrência de alergias (SOLÉ et. al., 2018). Neste sentido, a colonização intestinal pré, peri e pós-natal, que se estabiliza nos primeiros anos de vida, é um processo dinâmico e fundamental para o desenvolvimento morfofuncional de diversos sistemas, sobretudo o sistema imunológico, em suas respostas inatas ou adaptativas. Dois fatores fundamentais para a instalação de eubiose são o leite materno e o parto vaginal. (SOLÉ et. al., 2018). RESPOSTA IMUNOLÓGICA NORMAL A ANTÍGENOS INGERIDOS ↠ Em indivíduos saudáveis, a ingestão de alimentos determina um estado de tolerância, que é entendido como um estado ativo de não resposta à ingestão de antígenos alimentares solúveis, mediado por uma resposta do GALT. Na maioria dos indivíduos, os mecanismos de defesa intestinal atuam desde as fases precoces de proteção pela barreira intestinal e na ativação de respostas reguladoras, o que promove a liberação de IL-10 e TGF-ß que, por sua vez, induzem a produção de IgA com seus efeitos de exclusão imunológica (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Em indivíduos suscetíveis, ou na presença de fatores que interferem nos mecanismos de barreira, inespecíficos ou mesmo específicos ocorre o direcionamento para uma resposta Th2 bem definida, com produção de IgE, ligação aos mastócitos e basófilos e liberação de mediadores inflamatórios. Após nova exposição ao mesmo antígeno, ocorre a ativação de linfócitos T de memória, que secretam mais IL de perfil Th2, e induzem maior produção de IgE, com todos seus efeitos locais e sistêmicos (SOLÉ et. al., 2018). A via intestinal, embora seja a via predominante de sensibilização alergênica, não é a única capaz de induzir alergia alimentar. A pele e o trato respiratório podem também atuar como vias de penetração e sensibilização a antígenos alimentares. Acredita- se que a sensibilização transcutânea ocorra especialmente nos pacientes com dermatite atópica, onde a quebra da barreira cutânea é um mecanismo favorecedor da penetração de alérgenos. A sensibilização primária pela via respiratória é rara, e o principal exemplo é a “asma do padeiro”, por sensibilização ao trigo devido à inalação frequente e em grandes quantidades deste alérgeno (SOLÉ et. al., 2018). REATIVIDADE CRUZADA ENTRE ALÉRGENOS ALIMENTARES Define-se como alérgeno, qualquer substância capaz de estimular uma resposta de hipersensibilidade. Os alérgenos alimentares são na sua maior parte representados por glicoproteínas hidrossolúveis com peso molecular entre 10 e 70 kDa (SOLÉ et. al., 2018). O conceito clássico de alérgeno envolve proteínas que suscitam uma resposta de hipersensibilidade; entretanto há, em alergia alimentar, importante exceção que precisa ser destacada: alérgenos compostos por carboidratos (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Estudos de biologia molecular documentam que vários alérgenos podem produzir reações cruzadas entre os alimentos. As reações cruzadas ocorrem quando duas proteínas alimentares compartilham parte de uma sequência de aminoácidos que contêm um determinado epítopo alergênico (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Há, entretanto, algumas situações clínicas de reatividade cruzada que devem ser consideradas: (SOLÉ et. al., 2018). • leite de vaca é um dos principais alérgenos alimentares em todo o mundo e pacientes alérgicos a suas proteínas apresentam elevadas taxas de reatividade a leites de outros mamíferos, com destaque para cabra, ovelha e búfala. • pacientes alérgicos a proteínas de ovo de galinha reagem à clara de ovo de outras aves. E quando alérgicos à gema, podem apresentar reação à carne de frango. • com relação ao látex, há uma conhecida reatividade cruzada entre alérgenos do látex e algumas frutas. Estima- se que entre 30% e 50% dos alérgicos ao látex apresentem reatividade clínica a algumas frutas, mas somente 11% dos pacientes que apresentam reações a frutas desenvolverão alergia ao látex. • a síndrome pólen-fruta, bastante frequente na Europa, é raramente descrita no Brasil. Mas, é importante saber que a sensibilização ocorre durante a inalação de polens, e que 13 Júlia Morbeck – @med.morbeck as proteínas presentes nestas plantas podem apresentar reatividade cruzada com algumas frutas, especialmente se esta fruta for ingerida em sua forma crua. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS As manifestações clínicas das reações de hipersensibilidade aos alimentos são dependentes dos mecanismos imunológicos envolvidos. Enquanto as reações mediadas por IgE tipicamente ocorrem minutos após a exposição ao alimento envolvido, as não-mediadas por IgE e as formas mistas podem demorar de horas até dias para se tornarem clinicamente evidentes (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Os sintomas de alergia alimentar geralmente desenvolvem-se imediatamente após a ingestão do alimento implicado e estes podem ser cutâneos, gastrointestinais, respiratórios ou sistêmicos (RODRIGUES, 2011). MANIFESTAÇÕES CUTÂNEAS ↠ As manifestações cutâneas de alergia alimentar estão entre as mais descritas, sendo mais prevalentes nas alergias IgE mediadas. Entre as manifestações cutâneas de hipersensibilidade alimentar, destacam-se: urticária, angioedema e dermatite atópica (SOLÉ et. al., 2018). ↠ A urticária aguda e o angioedema constituem as manifestações cutâneas mais frequentes de alergia alimentar, que raramente causa urticária crônica (RODRIGUES, 2011). A urticária é caracterizada pela presença de pápulas eritematosas bem delimitadas na pele, de contornos geográficos com halo central e, em geral, intensamente pruriginosas. As lesões resultam do extravasamento de líquido oriundo de pequenos vasos ou de capilares à derme superficial (SOLÉ et. al., 2018). No angioedema, o processo é semelhante, mas há acometimento de porções mais profundas da pele (SOLÉ et. al., 2018). Por outro lado, a urticária pode ser o sintoma inicial de anafilaxia, uma vez que cerca de 90% dos pacientes que desenvolvem esta reação grave apresentam manifestações dermatológicas (SOLÉ et. al., 2018). MANIFESTAÇÕES GASTROINTESTINAIS ↠ Os distúrbios gastrointestinais apresentam geralmente um mecanismo misto, mediado e não-mediado por IgE, como ocorre na esofagite e/ou gastroenterite eosinofílica alérgica. A esofagite eosinofílica alérgica constitui a síndrome mais comumente associada à alergia alimentar e é definida por sintomas esofágicos (disfagia, impactação alimentar e perda ponderal em adolescentes; irritabilidade, diminuição do rendimento e distúrbios do sono em crianças) (RODRIGUES, 2011). MANIFESTAÇÕES RESPIRATÓRIAS A inalação direta do alérgeno alimentar pelo trato respiratório pode gerar quadros raros de asma ou rinite, induzidos por alimento (SOLÉ et. al., 2018). Apesar dos sintomas nasais e da dispneia serem frequentes como sintomas gerais na anafilaxia por alimentos, a asma e a rinite isoladas raramente ocorrem como expressão localizada de alergia alimentar. De maneira geral, os sintomas respiratórios quando presentes em quadros de alergia alimentar indicam manifestação mais grave, e geralmente fazem parte do quadro clínico de anafilaxia (SOLÉ et. al., 2018). ↠ As manifestações respiratórias de alergia alimentar podem incluir asma, edema laríngeo ou rinoconjuntivite (RODRIGUES, 2011). MANIFESTAÇÕES SISTÊMICAS As alergias alimentares são responsáveis por, pelo menos, um terço a metade dos casos de anafilaxia que recorrem ao Serviço de Urgência dos hospitais, caracterizando-se pelos sintomas jámencionados, bem como por sintomas cardiovasculares (hipotensão, colapso vascular e disritmias) (RODRIGUES, 2011). ↠ A anafilaxia induzida por alimentos é uma forma de hipersensibilidade mediada por IgE, com manifestações súbitas de sintomas e representa um quadro emergencial com risco de morte (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Embora qualquer alimento potencialmente possa induzir uma reação anafilática, os mais apontados são leite de vaca, ovo, camarão, peixe, amendoim e nozes (SOLÉ et. al., 2018). Os principais sinais e sintomas de anafilaxia são: (SOLÉ et. al., 2018). • pele: eritema, prurido, urticaria, angioedema, pode ocorrer ainda exantema morbiliforme e ereção de pelos; 14 Júlia Morbeck – @med.morbeck • sistema gastrintestinal: prurido e/ou edema dos lábios, língua e palato, sabor metálico na boca, náuseas, vômitos, diarreia e dor abdominal; • sistema respiratório: e o principal órgão do choque anafilático. Pode ocorrer: prurido e sensação de garganta “fechando”, disfonia, tosse seca irritativa, edema de glote e de laringe, dispneia, sensação de aperto torácico, sibilos generalizados, crises de espirros, lacrimejamento e congestão nasal intensa; • sistema cardiovascular: sincope, dor torácica, arritmia, hipotensão e choque; • sistema nervoso: cefaleia, diminuição do vigor, confusão metal, sonolência, convulsões, incontinência, perda de consciência e coma. DIAGNÓSTICO Na avaliação diagnóstica das reações adversas a alimentos, a história clínica tem papel fundamental. O seu valor depende muito da capacidade recordatória dos sintomas pelos pacientes, e da habilidade e sensibilidade do médico em diferenciar as manifestações causadas por hipersensibilidade alimentar daquelas relacionadas a outras condições (SOLÉ et. al., 2018). ↠ A avaliação inicial de um doente com reação adversa a alimentos consiste numa história clínica detalhada e num exame físico cuidadoso (RODRIGUES, 2011). ↠ A história clínica deve esclarecer: (RODRIGUES, 2011). • Qual o alimento responsável e a quantidade ingerida; • O tempo decorrido entre a ingestão do alimento e o desenvolvimento dos sintomas; • Se a ingestão do alimento possivelmente implicado provocou sintomas semelhantes noutras ocasiões; • Se são necessários determinados fatores para que se produzam os sintomas, tais como exercício, álcool e consumo de fármacos; • O intervalo de tempo entre a última reação adversa; • Quais os sintomas causados e se foi administrada algum tipo de medicação ao doente (anti- histamínicos, corticosteróides, epinefrina); • Se o doente apresenta outras alergias. A história familiar pode também ser útil no diagnóstico, sendo que as alergias alimentares estão habitualmente relacionadas com história familiar de atopia (asma, eczema, febre dos fenos) (RODRIGUES, 2011). ↠ O exame objetivo deve permitir avaliar a pele, o sistema gastrointestinal e respiratório (RODRIGUES, 2011). DIAGNÓSTICO LABORATORIAL Hemograma: auxilia na detecção de complicações a ela associadas, como a anemia. As reservas corporais de ferro (ferritina sérica) devem ser avaliadas. Teoricamente, na alergia alimentar pode ocorrer deficiência de ferro em função de perdas fecais ou de má absorção secundária à lesão do intestino delgado, ou da inflamação sistêmica (SOLÉ et. al., 2018). DIETA DE EXCLUSÃO: o método mais utilizado para a confirmação do diagnóstico. Consiste em excluir do regime alimentar, por 2 semanas, os nutrientes suspeitos e reintroduzi-los um a um. Assim, chega-se ao desaparecimento dos sintomas, quando o alimento responsável pela alergia é afastado da dieta. A possibilidade de acerto é evidentemente maior quando são poucos os alimentos relacionados com o processo, e deve-se lembrar que a mudança alimentar pode melhorar também quadros de intolerância não imunológica (DANI; PASSOS, 2011). Antes do teste, o paciente deve ser mantido em sua dieta usual por 10 a 14 dias. Durante esse tempo, são registrados, em um diário nutricional, tipo e quantidade dos nutrientes ingeridos e ocorrência e caráter das reações adversas. O diário auxilia na identificação dos alimentos a serem eliminados inicialmente. Na evidência de intolerância alimentar especifica, a orientação inicial consiste em eliminar os alimentos envolvidos. Se a eliminação não ocasiona desaparecimento dos sintomas, ou se existem suspeitas múltiplas de hipersensibilidade, pode-se lançar mão das dietas oligoalergênicas, desprovidas de alergênios alimentares mais comuns (DANI; PASSOS, 2011). A continuidade de sintomas, em vigência de dietas oligoalerge ̂nicas, torna pouco provável que as manifestações sejam causadas por alimentos. Quando o teste é positivo, isto é, os sintomas desaparecem com a orientação nutricional, o paciente entra na fase seguinte de avaliação, que irá variar dependendo de o alergênio ter sido ou não reconhecido na primeira fase (DANI; PASSOS, 2011). INVESTIGAÇÃO DE SENSIBILIZAÇÃO IGE ESPECÍFICA: A determinação da IgE específica auxilia apenas na 15 Júlia Morbeck – @med.morbeck identificação das alergias alimentares mediadas por IgE e nas reações mistas, e este é um dado fundamental. A pesquisa de IgE específica ao alimento suspeito pode ser realizada tanto in vivo, por meio dos testes cutâneos de hipersensibilidade imediata (TC), como in vitro, pela dosagem da IgE específica no sangue (SOLÉ et. al., 2018). Testes cutâneos de hipersensibilidade imediata: Os testes cutâneos (TC) avaliam a sensibilização aos alérgenos. São testes simples, rápidos, podem ser realizados no próprio consultório de médico capacitado e requerem cuidados em sua execução e interpretação. São considerados testes positivos quando houver formação de pápula com pelo menos 3 mm de diâmetro médio, reação com o controle positivo (solução de histamina) e ausência de pápula com o controle negativo (excipiente da solução). O teste cutâneo é atributo do especialista, pois embora seja muito seguro, pode desencadear reações sistêmicas (SOLÉ et. al., 2018). TESTE DE PROVOCAÇÃO ORAL: O teste de provocação oral (TPO), procedimento introduzido na prática clínica em meados dos anos 1970, a despeito de todo avanço científico, continua sendo ainda o método mais confiável no diagnóstico da alergia alimentar. Consiste na oferta progressiva do alimento suspeito e/ou placebo, em intervalos regulares, sob supervisão médica para monitoramento de possíveis reações clínicas, após um período de exclusão dietética necessário para resolução dos sintomas clínicos (SOLÉ et. al., 2018). De acordo com o conhecimento do paciente (ou de sua família) e do médico quanto à natureza da substância ingerida (alimento ou placebo), os testes de provocação oral são classificados como aberto (paciente e médico cientes), simples cego (apenas o médico sabe) ou duplo cego e controlado por placebo (TPODCPC), quando nenhuma das partes sabe o que está sendo ofertado. O TPODCPC é considerado padrão ouro no diagnóstico da alergia alimentar (SOLÉ et. al., 2018). ↠ Este teste deve ser realizado sempre em ambiente hospitalar, onde haja toda infraestreutura para atendimento à situação de emergência. Depois de esclarecidos, os familiares devem assinar termo de consentimento informado (SOLÉ et. al., 2018). RESUMO 16 Júlia Morbeck – @med.morbeck Referências ABBAS, Abul K. Imunologia Celular e Molecular. Grupo GEN, 2019. DELVES, Peter J. ROITT - Fundamentos de Imunologia, 13ª edição. Grupo GEN, 2018. QUILICI, Flávio A.; SANTANA, Nelma Pereira de; GALVÃO-ALVES, José. A gastroenterologia no século XXI: manual do residente da Federação Brasileira de Gastroenterologia. Editora Manole, 2019 DANI, Renato; PASSOS, Maria do Carmo F. Gastroenterologia Essencial, 4ª edição. Grupo GEN, 2011. RODRIGUES, M. L. R. Intolerâncias alimentares. Artigo derevisão. Faculdade de medicina da universidade de Coimbra, 2011. PAIVA, L. L.; PINTO, S. L. Fatores associados à intolerância alimentar em pacientes no pós-operatório de cirurgia bariátrica. Revista Brasileira de Nutrição Clínica, v. 30, n. 1, 2015. SOLÉ et. al. Consenso Brasileiro sobre Alergia Alimentar: 2018 - Parte 1 - Etiopatogenia, clínica e diagnóstico. Documento conjunto elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria e Associação Brasileira de Alergia e Imunologia. SOLÉ et. al. Consenso Brasileiro sobre Alergia Alimentar: 2018 - Parte 2 - Diagnóstico, tratamento e prevenção. Documento conjunto elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria e Associação Brasileira de Alergia e Imunologia.