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TriceVersa, Assis, v.3, n.1, maio-out.2009 
 
 
 
O SUMIÇO DE ETTORE E ANDRÔMACA 
 
Ignazzio Apolloni1 
 
 
Eu o conheci quando ainda era quase imberbe, um daqueles rapazinhos 
de boa família enviados para frequentar a nossa escola em Genebra. Na mais 
respeitada, onde eu ensinava metempsicose e metafísica, e o digo sem 
modéstia, depois de ter conquistado uma tal reputação internacional a ponto 
de ser requisitado  menciono por acaso  até mesmo pela Ecole des hautes 
etudes de Paris. Apresentou-se com uma sacola nas mãos e uma mochilinha, 
bombachas, bigodinhos ralos e algumas espinhas no rosto. Logo reparei nele, 
lhe fiz a primeira das perguntas mas, para dizer a verdade, me pareceu um 
tanto relutante. Gaguejou algumas palavras, para mim incompreensíveis, 
sendo de uma língua (o italiano) por mim totalmente desconhecida pois, além 
de tudo, era misturada com um grego clássico, se não arcaico. 
“Sou Giorgio De Chirico. Um dia vocês irão ouvir falar de mim como 
inventor de um gênero de pintura jamais realizado. Estou aqui para 
frequentar os seus cursos de metafísica e não tente insuflar em mim o germe 
da metempsicose por que, comigo, não funciona.” 
Fiquei no mínimo estarrecido, se bem havia entendido. Fiz com que ele 
repetisse o que tinha dito em francês e o resultado não mudou de jeito 
nenhum, ou melhor foi enriquecido de elementos que o faziam pretensioso, e 
diria até um tipo “fanfarrão”. Como que para puni-lo, coloquei-o na primeira 
carteira, os meus olhos apontados sempre para ele sem que fizesse nada que 
fugisse ao meu controle. 
Os suspiros de alívio dos outros estudantes naturalmente abundavam, 
 
1 Tradução de Maria Amélia Dionisio e Patricia Peterle. 
TRICEVERSA 
Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro 
de Estudos Linguísticos e Culturais 
ISSN 1981 8432 
www.assis.unesp.br/cilbelc 
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sabiam que não eram observados, podiam fazer as traquinices de sempre 
como trocar ideias irreverentes sobre o professor  isto é, eu  ou 
libertinas, carregadas de desprezo por quem quer se sobressair a qualquer 
custo. Obviamente o objetivo destes últimos era justamente o Giorgio, 
afetuosamente chamado de De Chirico, por aqueles que recebiam sua 
influência  isto é, poucos. O curso durou nove meses durante os quais tive a 
possibilidade de apreciar o talento daquele que se tornaria o pintor metafísico 
e ponto final. Obviamente, não quis nem ouvir pronunciar o nome 
metempsicose, imaginem seus conceitos. Era como se tudo aquilo que 
envolvesse esta ciência cheirasse mal. 
Passaram-se anos, muitos anos. De vez em quando chegavam a mim 
notícias daquele que começava a gozar de reconhecimentos significativos no 
mundo da arte. Algumas reportagens o qualificavam nada menos que como 
uma esperança para a redenção dos povos (não só daquele italiano) de uma 
desordem chamada superficialmente de neorealismo. Ele tinha necessidade 
de ar fresco, plurioxigenado e algo melhor do que se dar à metafísica. Eis, 
então, o genius loci, o já citado Giorgio De Chirico escalando os patamares e 
tornando-se pluripremiado. A tal ponto que movido pela curiosidade eu 
desejei ir ao seu encontro. 
Marcou comigo no Caffè Greco (faltou dizer). Depois do clássico café 
feito com uma mistura que compravam especialmente para ele, fomos nos 
sentar na escadaria de Trinità dei Monti, entre azaleias de todas as cores e 
exatamente em frente à Fonte de Bernini. Não se acredita, mas aquele seu 
chapeuzinho engraçado daí a pouco daria a volta ao mundo. Era já a época da 
comunicação digital, de foto tirada com telefone celular. Sem dúvida alguma, 
os turistas mais cultos o haviam reconhecido e por isso não param de 
fotografá-lo embora ele não se dê por entendido. Para mim, no entanto, a 
coisa não desagradava e cada vez mais me aproximava dele quando via 
alguém pronto a fotografar. 
Enfim, terminei me apaixonando definitivamente pela metafísica e desse 
modo abandonei definitivamente a metempsicosi. Daquele dia em diante 
comecei a me tornar o colecionador dos colecionadores das obras do De 
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Chirico. Mas qual não foi a minha surpresa no momento em que descobri que 
eu não era o único e nem o maior. Frente a frente, de fato, ficamos eu e um 
certo Bilotti até que ele não se apropriasse de uma escultura especial do 
mestre, até então conhecido principalmente pelas praças: a já super 
conhecida Ettore e Andrômaca, isto, simplesmente porque não fui convidado 
para o leilão mesmo o bom Sotheby sabendo (com certeza com a cumplicidade 
do Belotti) que eu não deixaria escapar a excitante ocasião. 
Mas onde ele guardava aquela obra? A quem a mostrava, com o orgulho 
de quem pode fazer valer-se de uma espécie de primogenitura, no sentido de 
alguém que possui títulos suficientes para aspirar à sucessão ao cargo de 
monarca? 
Fiz investigações. Contratei detetive. Tentei fazer blitz com auxílio de 
operários locais contratados: todos vendidos para quem oferecia mais para 
levar o projeto à falência. Por fim tive de desistir, a obra parecia ter-se 
volatilizada assim como seu proprietário. Circulei ainda por algum tempo em 
Miami a procura de uma pista efêmera que fosse. Tudo inútil. Aproveitei para 
fazer alguns banhos no Pacífico e para, então, voltar bronzeado. Tive também 
um flirt, mas evito entrar nos particulares até por que tive a sensação de que 
a jovem crioula me seguia por ordem do proprio Belotti: isso deduzo pelo seu 
comportamento evasivo quando eu procurava obter dela, ou de outros, 
elementos úteis para a minha pesquisa. A esse ponto, cansado e desiludido, 
desisti e estava conformado em ser um derrotado, quando fui convidado por 
um certo Gianfranco Labrosciano para ir a Cosenza. 
Haverá uma aula de história da arte sob forma de espetáculo no Teatro 
Rendano cujo tema é o barroco na interpretação dada por Velásquez. 
A coisa me intriga. Coloco as roupas mais humildes para parecer um 
transeunte qualquer; um curioso; um que busca fortes sensações. Para a 
ocasião usarei uma capa com capuz (e provavelmente os outros espectadores 
me tomam por um frade capuchinho). Ele, porém, o Lambrosciano, não se 
engana. Reconhece-me, vem ao meu encontro, abraça-me de maneira 
exagerada, enquanto o público se diverte e talvez espere o beija-mão, como 
se faz frequentemente com os frades. Uma vez, no entanto, descoberto o 
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equívoco, eis a risada estrondosa a ponto de fazer tintinar os lampadários. E 
finalmente é possível passar ao espetáculo. 
Foi um triunfo. Foram tantíssimos os aplausos, a cada execução das 
bailarinas, violonistas, vocalistas, acompanhados do piano. Há aqueles que 
torcem como se estivessem no estádio. Quem silencia e concorda. Eu, que de 
Velásquez sei o suficiente fico encantado quer com o discurso, quer com a 
quantidade de notícias sobre o pintor espanhol (algo que falta pouco para 
chegar à altura da Mole Antonelliana). Espero-o de qualquer forma à espreita 
porque escutei falar de um certo MAB, sem outra especificação, mas que pelo 
que dizem alguns deveria ter alguma relação com Bilotti 
“Sacripanta”! Tive de gritar assim que soube da coisa. “Será que desta 
vez a escultura de De Chirico não me escapa: no sentido que, se ela se 
encontra mesmo em Cosenza, quero pelo menos vê-la ao vivo”? 
Foi exatamente assim. Ao final do espetáculo Gianfranco, ainda que 
cansado como se tivesse construido sozinho a pirâmide de Cheops, me levou 
para dar uma volta pela cidade de Cosenza, me deixando porém durante um 
tempo à espera do feliz evento. Chegados numa rua de chão em espiral e 
losângulos de mármore e desvendando os olhos que ele tinha pretendido que 
fossem mantidos fechados me colocou diante da escultura por mim cobiçada: 
aquela pela qualtinha perdido a cabeça como nunca me tinha acontecido em 
relação a uma mulher. 
“Sacripanta, ainda Sacripanta” gritei desta vez em voz alta, acordando 
consequentemente a vizinhança, no momento em que me vi diante dela. Era 
ela mesma, o golpe do meu antagonista que tanto amargor me tinha causado. 
No Museu ao ar livre havia outras esculturas essas também presenteadas pelo 
grande colecionador à sua cidade natal. Porém, não prestei atenção pois o 
meu interesse era ainda totalmente outro. 
A minha espera foi, portanto, satisfeita. Podia retornar, finalmente, à 
Genebra, decepcionado. Decepção porque queria que tivesse sido eu, no lugar 
dele, a presentear a cidade de Cosenza com a escultura.

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