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AULA 2 FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS, PEDAGÓGICOS E CIENTÍFICOS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL Profª Lígia Maria Bueno Pereira Baccarin 2 CONVERSA INICIAL Prezados(as) cursistas, Em nossa segunda aula, estabeleceremos, de forma inicial, os preceitos filosóficos da educação especial. Portanto, temos como objetivo identificar, introdutoriamente, o conjunto de reflexões filosóficas com base nas quais se fundamentou a educação especial, para que com base nessa fundamentação possamos compreender a que entendimentos as teorias formadas pela narrativa da inclusão escolar se relacionam na atualidade. Como vimos anteriormente, a educação especial tem sido aventada, na maioria das vezes, como um complemento da educação regular. A acepção a ela conferida é a de auxílio aos deficientes, e não a de educação de estudantes portadores de necessidades especiais. A despeito de ser percebida como modalidade de ensino, na maior parte dos casos é mira de abordagens reducionistas, ao ser demarcada como mera opção para instrumentos metodológicos diversificados. Isso posto, partimos do princípio filosófico de que as compreensões e práticas sobre a educação especial são consequências do processo histórico pelo qual passou a sociedade em um determinado momento. Assim, conforme os períodos históricos se adaptam a uma determinada concepção, ocorrem, no decorrer do tempo, transformações e superações teóricas, possibilitando o surgimento de novas concepções, que subsidiam a forma de compreender os sujeitos com deficiência. Com base nesses pressupostos, identificaremos algumas teorias filosóficas que sustentam os fundamentos da educação especial. Para tanto, escolhemos como metodologia um estudo bibliográfico, que estabelece algumas das produções de fundamentos filosóficos educacionais que versam sobre os indivíduos deficientes. Nesse início de nossos estudos, algumas questões nortearão nossa reflexão: Quais são os fundamentos filosóficos da educação especial? Como foram construídas essas teorias? Quais os principais expoentes no debate acerca do tema? CONTEXTUALIZANDO 3 A educação especial é conceituada, filosoficamente, no âmbito dos marcos regulatórios brasileiros, como o modelo de ensino que se caracteriza por um conjunto de recursos e serviços educacionais especiais constituídos para amparar, assessorar e, circunstancialmente, suprir os serviços educacionais corriqueiros, de maneira a abonar a educação formal de pessoas com deficiência. Esses sujeitos são precisamente aqueles que atualmente têm sido denominados de pessoas portadoras de necessidades especiais. Por conseguinte, a questão central que move esta aula é a trajetória teórica dessa concepção. A história da educação especial delineia uma exterioridade particular do processo de desenvolvimento da humanidade, e, de tal modo, a diferenciação de cada período da educação especial proporciona os elementos históricos e sociais que envolvem as teorias filosófico-educacionais. Isso posto, primeiramente, caracterizaremos a trajetória histórica da educação especial, ressaltando suas fundamentais concepções, para elencarmos subsídios que colaborem para a apreensão da realidade atual, na qual prevalece a narrativa da inclusão. Dentre os marcos históricos apreendidos na aula anterior, resgataremos como ponto do debate filosófico das teorias sobre educação especial o período das contribuições da revolução científica dos séculos XVI e XIX, que transformaram a maneira de se compreender o ser humano e o mundo, aludindo à mudança na concepção sobre as causas da deficiência. Como visto anteriormente, nesse momento histórico, as análises sobre o comportamento dos sujeitos deficientes ganhou a faceta patológica, ligada a bases biológicas. Porém, Barroco (2007) observa que mesmo com a assimilação da nova concepção sobre as causas orgânicas da deficiência, conservou-se os princípios do inatismo,1 caracterizado no entendimento de que o deficiente era, naturalmente, desfavorecido das qualidades necessárias à vida social e que tal condição era irreversível. Dessa forma, será a partir desse período que faremos o recorte contextual para iniciarmos nossos estudos acerca dos fundamentos filosóficos da educação especial. TEMA 1 – PREDOMÍNIO DAS IDEIAS INATAS 1 O inatismo é uma concepção filosófica que define que o conhecimento de um indivíduo é uma característica inata, ou seja, nasce com ele. Nessa teoria, a ideia do conhecimento desenvolvido com base em aprendizagens e experiências individuais de cada pessoa é desconsiderada. 4 A dominância das concepções inatas e sua generalização foram objetadas por John Locke (1632-1704), tendo como consequência uma nova maneira de conceber a atividade intelectual. Para Locke, a experiência sensorial teria preponderância na assimilação do conhecimento e seria um instrumento no provimento de material para as intervenções particulares da atividade intelectual, ou seja, a razão só poderia se fundar por vinculação direta daquilo que o empírico lhe poderia fornecer. Para o autor, “[...] as crianças e os idiotas possuem almas, possuem mentes, dotadas dessas impressões [inatas] devem inevitavelmente percebê-las, e necessariamente conhecer e assentir com essas verdades; se, ao contrário, não o fazem, tem-se como evidente que essas impressões não existem” (Locke, 1978, p. 146). Mas no que se refere à deficiência, o entendimento cunhado por Locke falha em compreender a deficiência como falta de experiências sensíveis. Tal compreensão foi empregada por outros estudiosos, como Condillac2 (1715-1780), na educação de pessoas com deficiência por meio de metodologias baseadas no exercício sensorial. É importante perceber que o ensino para deficientes, que se estabeleceu sobre uma base epistemológica empirista, mesmo se reduzido a uma educação excepcional sob a perspectiva do treinamento de funções incipientes sensório- motoras, foi um progresso para a caminhada das concepções da educação especial, ao longo do tempo. Com base no empirismo, o ensino voltado a pessoas com deficiência foi ganhando corpo. Com o liberalismo do século XVIII, difundiu-se ideais dentre os quais destacamos a defesa da extensão das oportunidades educacionais para todos, o que permitiu a compreensão de que os sujeitos com deficiência teriam condições de convívio social. Essa disposição deu origem, conforme os estudos de Mazzotta (1996), a vários movimentos pedagógicos que culminaram no século XIX com a denominação de pedagogia dos anormais, pedagogia teratológica, pedagogia curativa ou terapêutica, pedagogia da assistência social. 1.1 Base epistemológica positivista 2 Étienne Bonnot de Condillac concebeu, na época do Iluminismo, uma teoria do conhecimento cunhada no empirismo. Nela as sensações são o principal instrumento do conhecimento. Para ele, o conhecimento é um sistema complexo que exige o estudo dos sentidos de maneira separada para que se consiga entender quais sentidos originam quais ideias. 5 Mazzotta (1996) também observa que essa mudança conceitual só ocorreu quando houve modificação do sistema econômico, por que o fato permitiu que algumas pessoas acendessem nos vários círculos da vida social para a organização de percepções e alternativas de ação com o objetivo de melhorar as condições de vida das pessoas portadoras de necessidades especiais. No século XIX houve uma considerável expansão da educação especial no interior do movimento de organização das ciências humanas e de aplicação do método das ciências naturais a elas. Para esclarecimento, ressaltamos que nesse momento histórico ocorreu a separação entre sociologia, filosofia e psicologia. Elas passaram a ser compreendidas como teorias que possuem objeto próprio emétodo distinto. O objetivo era aplicar as metodologias das ciências naturais nas ciências humanas, utilizando o sujeito das ciências humanas como um objeto análogo ao das ciências da natureza. Essa experiência procedeu da fundamentação epistemológica positivista, que se alicerça na concepção de que o único conhecimento é o que pode ser observável e mensurável. Conforme Padilha (2004), essa concepção auxiliou na gestação da psicologia, que se muniu das experimentações positivistas para compreender fatos psicológicos humanos, originando a psicologia behaviorista. É importante salientar que o behaviorismo não se caracteriza por ser uma ciência do comportamento humano; entretanto, configura-se na filosofia dessa ciência. Por isso, mesmo com todas as críticas contemporâneas a essa filosofia, inegavelmente aceitamos que os questionamentos por ela levantados impulsionaram a compreensão sobre como a Educação Especial se tornou fonte de conhecimento teórico. As principais questões elencadas com base no behaviorismo e que serviram de base para as sucessoras análises sobre educação especial são: É possível a existência de uma ciência do comportamento humano? Essa ciência explicaria todas as expressões do comportamento humano? Que métodos pode aplicar? 1.1.1 O behaviorismo Zanoto, Moroz e Gioia (2009) nos ensinam que o behaviorismo foi um movimento filosófico que nasceu em antítese à chamada psicologia da mente. Os 6 psicólogos, no início do século XIX, já avaliavam a mente como um formidável objeto de investigação e empregavam a concentração reflexiva como procedimento metodológico. Respondendo a essa tendência, na segunda metade do século XX, tomou corpo uma corrente filosófica que apresentava como objeto de análise da psicologia o comportamento. O estudo de John B. Watson, A psicologia do ponto de vista de um behaviorista, de 1913, é reconhecido como um marco do behaviorismo metodológico. Para Watson, a psicologia, equivocadamente, era entendida como a ciência da mente, mas deveria ser estudada como a ciência do comportamento. Por conseguinte, precisaria seguir métodos objetivos e recusar elementos concernentes à mente como objetos de estudo. O comportamento humano deveria ser explicado com base em fatos observáveis e verificáveis objetivamente. Com isso, percebemos que na segunda metade do século XX, com base em diversas teorias da filosofia e da psicologia, passou-se a questionar as teorias vigentes sobre deficiência. Esses enfoques embasados em pesquisas acerca dos transtornos colaboraram para a transformação dos padrões educacionais vigentes até então, porque confirmaram a influência social e cultural no funcionamento intelectual e comportamental dos deficientes. Nesse contexto, a concepção behaviorista teve o mérito de afiançar à psicologia o status de cientificidade, distinguindo-se da psicologia anterior, chamada de psicologia filosófica ou racional. Essa perspectiva adapta os pressupostos da sujeição humana ao processo educacional, desenvolvendo o exercício fundamentado na repetição e no modelo estímulo-resposta. Por esse ponto de vista: O sujeito da aprendizagem apenas reage, e o profissional da educação transmite os conteúdos, organiza o ambiente da melhor maneira possível para que o condicionamento seja eficaz, isto é, para que se atinjam os objetivos esperados, anteriormente planejados. Nos casos de insucesso procura-se as causas nas contingências aplicadas ao sujeito e nas respostas dele (Padilha, 2004, p. 18). Assim sendo, no que concerne à educação especial, o trabalho educativo seguido se constitui em práticas escolares adaptativas, que formam uma recepção clínico-pedagógica na qual o processo pedagógico se aplica às ações terapêuticas e aos recursos pedagógicos manuais, de tal maneira que esquadrinhem a reparação dos déficits, por meio de processos de compensação, com o objetivo de aproximar os sujeitos com deficiência do padrão de “normalidade”. 7 O behaviorismo, embasado nos fundamentos filosóficos positivistas, se apresentou na história do ensino especial brasileiro por meio de instituições especializadas em educação especial, bem como pelo movimento de integração3 organizado no Brasil na década de 1970, com o título de normalização e racionalização.4 Kassar (2011) observa que no Brasil a fundação dos atos em proveito da integração dos sujeitos com deficiência teve sua entrada e expansão na concepção desenvolvimentista aceita pelo regime civil-militar. No final de 1970, atendia aproximadamente 97,8% dos alunos em situação de “integração”. 1.1.2 O método montessoriano Outra fonte sobre educação especial está no trabalho produzido por Maria Montessori. Educadora que partilhava dos princípios escolanovistas5 para a elaboração de sua perspectiva educacional, ensinava, essencialmente, às crianças deficientes em um internato de Roma no início do século XX. Em seguida, expandiu-se para o método de escolarização. Por isso, “destacou-se pela proposição da autoeducação, por meio de materiais didáticos, tais como: blocos, encaixes, recortes, objetos coloridos, letras em relevo, etc. Fazia parte do seu programa de ‘treinamento’ a ênfase em regras essenciais para crianças em idade pré-escolar (Barroco, 2007, p. 149-151). Para Barroco (2007), ao ser proposto à educação especial, o método montessoriano tende ao aumento do desempenho básico sensório-motor, sendo que, conforme esse método, o elemento mais afetado nas crianças deficientes seria a percepção, causa pela qual os materiais didáticos propendiam, precisamente, fomentar a experiência sensorial por meio da ampliação do pensamento. A educadora, ao inferir a constituição da aprendizagem com base no psiquismo, demonstrou sua inquietação em expor as crianças ao desenvolvimento 3 O movimento de integração difundido no Brasil, na década de 1970, surgiu em oposição à institucionalização dos sujeitos com deficiência. Todavia, está embasado na teoria produtivista de educação, que segue os princípios de racionalidade e produtividade e, com isso, a educação se transforma em mercadoria, um bem qualificado como capital humano. 4 A normalização é o princípio que consiste na necessidade de assemelhar a pessoa deficiente aos demais cidadãos ditos “normais”, para ser integrada à sociedade. E a racionalização se caracteriza pela adequação dos fatores objetivos-recursos-limitações à plena utilização dos recursos disponíveis. 5 O movimento escolanovista se baseia na teoria pragmática do conhecimento, em que este tem função quando usado na resolução de problemas da prática cotidiana. Assim, a validade das ideias é resultado de suas consequências práticas. 8 de aptidões inerentes e práticas, encorajadas pelo campo sensorial, com intensão de ativar (como uma espécie de gatilho) o pensamento inato pelos elementos externos. Essa concepção tinha o escopo de adequar aos sujeitos seus papéis sociais à edificação do conhecimento prático e experimental, de maneira a se tornarem benéficos à sociedade. O método montessoriano ainda tem ampla influência na educação especial. TEMA 2 – A PROPOSTA FILOSÓFICA DE INCLUSÃO SOCIAL DA DÉCADA DE 1990 A década de 1990 representou um marco na transição da concepção filosófica de educação especial, que passou a ser debatida em termos de inclusão social. Nesse momento histórico, houve um aumento no mapa dos registros legais e dos principais documentos internacionais provenientes de conferências e congressos organizados por agências internacionais.6 Esses documentos constituem o conjunto de diretrizes desenvolvidas por organizações internacionais em países em desenvolvimento, agrupando suas conclusões à elaboração das políticas educacionais desses países, que instauram medidas que cooperam para o caminhar de uma sociedade inclusiva.Nesse período, nos debates sobre educação especial, substituiu-se a narrativa da integração pela da inclusão, que objetivou a inclusão dos sujeitos com deficiência à rede regular de ensino como método de superação da exclusão social e do senso comum segregativo concernentes a elas. Nada obstante, é necessário analisar as concepções filosófico-educacionais que sustentam a proposta de uma educação especial inclusiva atualmente. 2.1 A concepção interacionista de desenvolvimento humano Ao analisar os documentos que norteiam a proposta inclusiva, preparados pela Secretaria de Educação Especial (Seesp) do Ministério da Educação (MEC) (Brasil, 2006), notamos que a concepção interacionista é indicada como fundamento filosófico da política de inclusão educacional das pessoas com deficiência, uma vez que: [...] objetiva-se a substituição do paradigma reducionista organicista- centrado na deficiência do sujeito – para o paradigma interacionista – 6 Trataremos desse tópico em uma aula exclusiva sobre o tema. 9 que exige uma leitura dialética e incessante das relações sujeito/mundo [...]. Recentemente houve mais uma revisão calcada no conceito ecológico da deficiência, isto é, relacionando a pessoa ao seu ambiente. Com esse enfoque, faz-se necessário avaliar os apoios que são oferecidos para as pessoas evoluírem nas suas habilidades adaptativas (Brasil, 2006, p. 34-35). A teoria interacionista de desenvolvimento humano se baseia na epistemologia genética de Jean Piaget e busca a superação do dualismo psicofísico na metodologia de conquista do conhecimento. Destarte, para Piaget, o conhecimento é erguido progressivamente por práticas sucessivas de desequilibração e equilibração decorrentes da relação do sujeito com o meio social. Duarte (2001) analisa que na constituição do conhecimento, na teoria de Piaget, o desenvolvimento cognitivo se compõe como elemento do processo de ajustamento do sujeito ao meio social, em que o processo de ajustamento tem papel adaptativo. De forma resumida, a epistemologia genética abarca fundamentalmente dois processos na adaptação do desenvolvimento cognitivo: 1. assimilação: por meio dela, a realidade externa é explicada, e é possível agrupar novas experiências por meio de algum significado já constituído na estrutura cognitiva do indivíduo; 2. acomodação: o indivíduo transforma os sentidos já existentes, modificando suas ações. Dolle (1974) demonstra que a adaptação incide em equilibrar sucessivamente assimilações e acomodações por meio de um processo que parte de uma etapa de menor equilíbrio até chegar a outra de maior equilíbrio, de maneira que a evolução do sujeito ocorre por uma construção ininterrupta. Assim, ao desenvolver a epistemologia genética, Piaget combateu a divisão entre empirismo e inatismo e sugeriu um conceito construtivista, em que a origem do conhecimento se instala paulatinamente em etapas contínuas sem pré- formação. Consequentemente, houve qualificação da teoria construtivista, já que se passou a aceitar que a evolução cognitiva se erige como integrante do processo de adaptação do sujeito ao meio ambiente, em sua ação sobre o meio e pela troca adaptativa entre organismo e meio ambiente. Entretanto, Duarte (2001) infere que se para Piaget o desenvolvimento cognitivo não pode ser empírico nem estabelecido em um conhecimento inato, mas edificado pela preparação sucessiva de equilibração e adaptação derivando 10 em novas composições, sua teoria focaria a questão do conhecimento no indivíduo. Assim, a compreensão construtivista foi a síntese pedagógica hegemônica da década de 1990, cujo escopo foi garantir aos sujeitos a competência de adaptação às várias situações conferidas pelo sistema existente para obter o grau de empregabilidade. Dessa forma, “[...] a escola teria a função de ‘assegurar que ele aprenda a aprender’ para se tornar competitivo no mercado, nos moldes do que vem sendo chamado de globalização e, assim, sentir-se ‘incluído’ no sistema”. (Oliveira, 2010, p. 20) Ressaltamos que Piaget não propôs um método de ensino, mas elaborou uma teoria do conhecimento e desenvolveu diversas investigações cujos resultados são até hoje utilizados por psicólogos e pedagogos. Por isso suas pesquisas recebem distintas interpretações que se materializam em propostas didáticas também diferentes. Desse modo, no campo da educação especial, se de um lado procede-se à introdução do construtivismo, em contraponto aos métodos behavioristas, de outro há uma teoria diferente que dialoga no sentido contrário ao construtivismo, denominada de teoria histórico-cultural, desenvolvida por Vygotsky. TEMA 3 – TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL É conhecido o construto de Vygotsky para a educação, como também é conhecida a acessão e a adaptação de sua obra à realidade brasileira. Todavia, é desconhecido que o autor consagrou um quinhão de suas pesquisas à educação de crianças com necessidades especiais.7 O pertinente é compreendermos que Vygotsky focou o nascimento de novos contornos de apreensão da psyché humana. Ao citarmos essa particularidade do trabalho do autor, dimensionamos que, em uma sociedade cristalizada em uma visão imutável e estática do sujeito e da sociedade, é muito impulsionadora a sua contribuição, que contradiz o legado que nos foi deixado por grande parte das ciências sociais e psicológicas. Com o objetivo de superar as filosofias fatalistas do desenvolvimento humano, de submissão e dependência do homem ao meio biológico, Vygotsky, com base nos fundamentos do materialismo histórico-dialético, cunhou uma teoria 7 Nesta aula, apresentaremos uma discussão inicial para ter arcabouço categorial para que em um segundo momento possamos aprofundar essa temática. 11 que se distinguiu das demais correntes filosóficas por voltar-se à busca pela compreensão do homem em seu desenvolvimento. Com essa fundamentação, Vygotsky (1997, p. 372) afirma que: [...] cada pessoa é em maior ou menor grau o modelo de sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, e que nele se refletem a totalidade das relações sociais. Podemos ver que nesta abordagem o conhecimento singular é a chave para toda a psicologia social; de modo que temos que conquistar para a psicologia o direito de considerar o singular, ou seja, o indivíduo como um microcosmo, como um tipo, como um exemplo ou modelo de sociedade. O teórico atenta para a forma de conceber o ser humano como elemento social que não está subordinado às leis biológicas, mas às leis sociais e históricas. Assim, para Vygotsky, a raiz das funções psicológicas superiores seria encontrada nas relações sociais dos sujeitos, sendo o desenvolvimento humano resultado do movimento dialético que se estabelece da função interpessoal para a intrapessoal. [...] as formas coletivas de colaboração precedem as formas individuais de conduta que se desenvolvem sobre a sua base e são seus progenitores diretos as fontes de seu surgimento. [...]. Desse modo, da conduta coletiva, de colaboração da criança com as pessoas que o rodeiam e de sua experiência social, surgem as funções superiores da atividade intelectual (Vygotsky, 1997, p. 179). Inferimos que, para o pensador russo, o ser humano se humaniza ao transformar a natureza de acordo com suas necessidades, e não se adaptando a ela, de tal modo que sua condição humana não antecede sua vivência, mas, sim, é produzida por ela, por meio da assimilação e transformação dos conhecimentos já existentes. Ao arraigar o tema do trabalho humano como ontologia do ser social, isto é, como produtor da condição humana, Vygotsky aceita os alicerces filogenéticos, mas considera como componente básico o desenvolvimento ontogenético. Com isso, somente as bases biológicas não dão contade ampliar a capacidade intelectual humana, pois a humanidade necessita se apropriar do patrimônio cultural, histórico e socialmente produzido, objetivando-o e o transformando por meio do trabalho. Isso posto, destacamos sua contribuição para a educação especial. Nesse campo do conhecimento, Vygotsky se sobressaiu pela quebra do modo determinista, filantrópico e religioso que a deficiência carregava como um legado europeu. 3.1 Vygotsky e a educação especial 12 Ao entender que o desenvolvimento humano não é inerente a uma possível essência humana, mas representa um produto social, Vygotsky proporcionou uma nova compreensão da prática pedagógica no domínio da educação especial. Ao teorizar que o desenvolvimento das composições psíquicas do ser humano está apto às ingerências históricas e sociais, a probabilidade de modificação do pensamento, da linguagem e da própria aprendizagem se tornaram mais realizáveis do que as mudanças pelas abordagens terapêuticas, amiúde utilizadas. Ao teorizar que “todo defeito cria estímulos para a compensação” (Vygotsky, 1997, p. 176), o autor aponta que a educação especial precisa analisar as limitações estruturais e funcionais das pessoas. No entanto, como essas são categorias elementares, é preciso escolher as categorias subsidiárias, conectadas às funções mentais superiores, para permitir o desenvolvimento de sujeitos com deficiência, permitir que se deparem com funções psicológicas superiores, e não inferiores. Dessarte, a educação especial não pode se ater a definir o nível e a circunspeção da deficiência e suas incapacidades, contudo, deve abarcar o processo de compensação com técnicas construtivas e estabilizadoras do desenvolvimento do indivíduo com deficiência. Vygotsky aposta na capacidade que o sujeito e seu organismo têm de se transformar, ou seja, na capacidade do indivíduo de criar processos adaptativos com a finalidade de sobrepujar os impedimentos que encontra. Entretanto, o autor analisa que apesar de o organismo ter, possivelmente, essa capacidade de superação, ela só se efetiva com a mediação de fatores socioambientais, pois o desenvolvimento ocorre na simbiose dos fatores externos e internos. A deficiência se transforma, de tal modo, no postulado e na energia propulsora do desenvolvimento psíquico e da personalidade. Qualquer defeito, de acordo com Vygotsky, causa estímulos para o desenvolvimento de sua própria superação ou compensação. O preceito geral da compensação, para esse autor, aplica-se do mesmo modo a qualquer outra categoria de desenvolvimento. Ao expor tal argumento, Vygotsky explica que sob essa perspectiva, “tudo o que não me destrói, me faz mais forte, pois na compensação da debilidade surge a força, e das deficiências, as capacidades” (Vygotsky, 1989 in Costa, 2006, p. 233). Sob essa perspectiva, um conceito que acompanha a teoria vygotskyana é o de que a inteligência não é imóvel, mas ativa, podendo, por conseguinte, se 13 transformar. Outro pressuposto é que um dos objetivos da educação é gerar o desenvolvimento da inteligência. Vygotsky nos provê os embasamentos dessa compreensão ao explicar que a inteligência não é inata, mas se estabelece nas interações ininterruptas com o meio ambiente. A educação se coloca nesse cenário, e a escola tem um papel elevado nesse processo. Por isso, torna-se imperativo lembrar o que Vigotsky nos fornece sobre as relações entre aprendizagem e desenvolvimento, o que é bem sintetizado em seu conceito de zona de desenvolvimento proximal, tema de nossa próxima aula. FINALIZANDO Prezados(as) cursistas, Nesta aula, vimos que os fatores formados historicamente na organização das teorias filosófico-educacionais no campo da educação especial elucubram o conjunto do movimento histórico-social de produção do próprio desenvolvimento humano. Dessa forma, o tratamento direcionado aos indivíduos com deficiência permanece conexo ao desenvolvimento social e científico, que a delimitada sociedade buscou superar durante um certo período. Com isso, percebemos que a compreensão do ser humano como imutável, por nós herdada, suscitou na sociedade, e também nos educadores, uma perspectiva contraproducente com relação às possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento do sujeito com necessidades educativas especiais. Dentre as teorias que colocaram em xeque a imutabilidade cognitiva dos deficientes, destacamos os estudos da psicologia behaviorista, o método montessoriano, os estudos de Piaget e, principalmente, a perspectiva de Vygotsky, sobretudo pelo fato de que a filosofia apreendida pelo autor parte do princípio de que os indivíduos e o mundo real, que os insere, estão em constante movimento e transformação. Sob esse referencial, o que fizemos nesta aula foi oferecer ao cursista algum conhecimento a respeito da obra de Vygotsky dedicada às crianças com necessidades educativas especiais. Seus estudos ensinam-nos, do mesmo modo, que a formação do aluno com necessidades especiais mira os mesmos objetivos daquela do aluno dito não especial. As formas de se alcançar esses objetivos é que seriam diferentes. Produzir essas condições nos leva a pensar em uma educação enriquecida, criativa, que possa aproveitar de instrumentos diversos para que o educando desfrute de um ensino adequado e qualificado. 14 LEITURA OBRIGATÓRIA Texto de abordagem teórica COSTA, D. A. F. Superando limites: a contribuição de Vygotsky para a educação especial. Revista Psicopedagogia, v. 23, n. 72, p. 232-240, 2006. Essa obra nos oferece um panorama geral dos principais conceitos e categorias desenvolvidos por Vygotsky no âmbito da educação especial. Texto de abordagem prática BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Saberes e práticas da inclusão: recomendações para a construção de escolas inclusivas. 2. ed. Brasília: MEC/Seesp, 2006. Esse documento norteador estabelece recomendações para a construção de metodologias direcionadas à educação especial. Saiba mais BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Educação inclusiva: a fundamentação filosófica. Brasília: MEC/Seesp, 2004. v. 1. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/fundamentacaofilosofica.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2018. Esse documento sobre educação inclusiva apresenta novos conceitos, informações e metodologias no âmbito da gestão e também da relação pedagógica em todos os estados brasileiros. 15 REFERÊNCIAS BARROCO, S. M. S. A educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vygotsky: implicações e contribuições para a psicologia e a educação. 414 f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2007. BRASIL. Ministério da Educação. Saberes e práticas da inclusão: recomendações para a construção de escolas inclusivas. 2. ed. Brasília: MEC/Seesp, 2006. COSTA, D. A. F. Superando limites: a contribuição de Vygotsky para a educação especial. Revista Psicopedagogia, v. 23, n. 72, p. 232-240, 2006. DOLLE, J. M. Para compreender Jean Piaget: uma iniciação à psicologia genética piagetiana. 4. ed. Tradução de Maria José J. G. de Almeida. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1974. DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2001. KASSAR, M. C. M. Percursos da constituição de uma política brasileira de educação especial inclusiva. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 17, n. esp. 1, p. 41-58, ago. 2011. LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). MAZZOTTA, M. J. S. Educação especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1996. OLIVEIRA,B. A. Fundamentos filosóficos marxistas da obra vigotskiana: a questão da categoria de atividade e algumas implicações para o trabalho educativo. In: MENDOÇA, S. G. L.; MILLER, S. Vigotski e a escola atual: fundamentos teóricos e implicações pedagógicas. 2. ed. Araraquara: Junqueira e Marin; Marília: Cultura Acadêmica, 2010. p. 11-29. PADILHA, A. M. L. Possibilidades de histórias ao contrário ou como desencaminhar o aluno da classe especial. São Paulo: Plexus, 2004. 16 VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. ZANOTTO, M. L. B.; MOROZ, M.; GIOIA, P. S. Behaviorismo radical e educação. Revista da APG, São Paulo, v. 9, n. 23, p. 217-237, 2000. Disponível em: <http://www.redepsi.com.br/2008/08/22/behaviorismo-radical-e-educa-o/>. Acesso em: 29 jun. 2018.