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AULA 1 AGRONEGÓCIO: CONTEXTOS ECONÔMICO, SOCIAL E POLÍTICO Prof. Gustavo Felipe Olesko 2 CONVERSA INICIAL O agronegócio é reconhecido, internamente e internacionalmente, como um setor da economia brasileira que gera dividendos consideráveis para as contas da União. É o setor da produção que desde a década de 1990 aumentou sua importância econômica, política e social no país e passou por diversas crises econômicas (1991-1992, 1998-1999, 2007-2008, 2016-2019) quase ileso. Nesta aula, buscaremos sistematizar um breve histórico da agricultura capitalista brasileira – denominada agronegócio a partir do início nos anos 1990 – , sua reestruturação produtiva e sua nova face. TEMA 1 – A ORIGEM DO TERMO AGRONEGÓCIO O agronegócio hoje é comumente considerado como sinônimo de agricultura capitalista no Brasil. Contudo, a origem do conceito é um pouco mais ampla e menos homogênea do que se compreende no país. Sua origem conceitual remonta aos Estados Unidos, ao modelo de atividades agropecuárias desenvolvidas em grandes e médias propriedades, em sua maioria de domínio familiar (family farms). Agronegócio, portanto, designaria, a princípio, um conjunto de ações de cunhos produtivo, comercial e financeiro relacionados à agricultura e à pecuária (Sauer, 2008, p. 14). A noção de que existe uma cadeia produtiva que é permeada de negócios (trocas, manufatura de cultivos, transformação de renda da terra em capital etc.) é o que traça o entendimento geral de agronegócio: um sistema que envolve desde a plantação até o produto já finalizado (seja manufaturado ou in natura) que chega à mesa do consumidor. Entretanto, antes de entrar no histórico da inserção do conceito no Brasil, precisamos fazer algumas diferenciações entre os significados de agronegócio na origem (Estados Unidos) e no destino (Brasil). Apesar de Sauer (2008) apresentar o agribusiness estadunidense como um modelo baseado na grande propriedade que tem em vista a exportação, acabamos concordando com Oliveira (1981) e Vergopoulos (1977) no que tange a estrutura fundiária estadunidense: ela é na realidade formada por grandes e médias propriedades, as quais são de domínio familiar. São, portanto, um emaranhado de pequenas empresas que funcionam com base em controle e trabalho familiar, ainda que contem com trabalho assalariado. Podemos entender então que o agribusiness ianque é fundamentado em numerosas fazendas 3 familiares, que se assemelham em termos de administração e renda a empresas familiares de pequeno e médio porte, as quais se baseiam no domínio da terra e no título de propriedade. Ainda que haja um processo lento e gradual que ruma à concentração de terras, ele não pode ser comparado à concentração que existe no Brasil. Outros pontos de destaque são que a cadeia produtiva do agribusiness dos Estados Unidos, muito voltada ao processo industrial alimentar (apesar de existir também grande exportação de commodities), é também dependente de generosos subsídios dos governos federais e estaduais, e a própria estrutura fundiária do país é um produto antigo, oriundo do Homestead Act, que remonta ao governo de Lincoln, que realizou uma reforma agrária ainda no século XIX (Amin, 1977). Diferentemente da origem conceitual, o agronegócio brasileiro é, antes de tudo, a face moderna do antigo sistema latifundiário colonial, ou seja, a baseado na exploração do trabalho alheio (antes, do negro escravizado; hoje, do camponês subordinado ou do assalariado), do latifúndio (grande extensão de terra) e da produção para exportação. Logo, não é uma estrutura de base familiar, em que o domínio está nas mãos da família, mas, sim, um modelo mais próximo ao da grande empresa capitalista. Como ensina Martins (2015), no Brasil as figuras do proprietário de terra e do capitalista se fundem em somente uma pessoa: um sujeito que é, ao mesmo tempo, pertencente a duas classes sociais distintas, rivais em teoria, no modo de produção capitalista. Foi no início dos anos 1990 que o conceito passou a ser importado por parte da agricultura capitalista brasileira, que buscava uma nova modernização. Novamente, Sauer (2008, p. 16-17) nos serve de fonte para explicitar que o objetivo da introdução do termo agronegócio no Brasil era distanciar a porção da agricultura capitalista, que buscava ser produtiva, da velha estrutura do latifundista, que mantinha a terra improdutiva, servindo-lhe apenas como capital imobilizado e fonte hipotecaria. Todavia este agronegócio moderno tem ainda grande relação com o latifúndio improdutivo: sua base é a mesma, e sua territorialização se confunde em muitos pontos. TEMA 2 – TERRITORIALIZAÇÃO DO AGRONEGÓCIO NO BRASIL É de longa data a estruturação fundiária brasileira baseada no tripé grande propriedade, trabalho contratado e exportação. Sua origem se confunde com o próprio desenvolvimento do Brasil ainda como colônia e posteriormente como 4 Império, seguindo durante todo o período republicano. Ainda que conte com algumas diferenças substanciais, é fato que a concentração de terras é um elemento central na formação territorial nacional, na economia e na ocupação populacional do país. Indo além, o aspecto mais importante do setor primário na economia brasileira é o de domínio dos grandes proprietários de terra sobre o Estado brasileiro: existiu e ainda existe uma grande trava ao desenvolvimento industrial nacional graças ao predomínio do monopólio de acesso à terra (Olesko, 2017, p. 89). Isso ocorre porque a concentração de terras nas mãos de poucos acaba gerando dificuldades no abastecimento das cidades, encarecendo alimentos. Isso gerou, historicamente, dificuldades na formação de indústrias competitivas devido ao preço do trabalho (os salários tinham de ser maiores para pagar os alimentos, que eram caros). Esse processo, grosso modo, ainda é vigente. Isso é histórico. Moreira (2012) e Motta (2012) citam que a concentração de terras no Brasil é um processo que data ainda da formação territorial do país. Está muito atrelada ao sistema sesmarial, que criava o embrião da noção de terra como reserva de valor e a posterior transformação da terra como capital imobilizado com intuito especulativo (Motta, 2012). Explicando de modo didático, no Brasil é historicamente menos arriscado e mais rentável ter a terra como garantia do pagamento de hipotecas, as quais são investidas em títulos do tesouro nacional ou no mercado financeiro, do que investir em produção. Como cita Lima (2016): A manutenção das condições de dominação é algo que ainda se perpetua no tempo e no espaço. O velho discurso pregado como forma de manutenção das condições favoráveis a sobrevivência e perpetuação dos poderes de uma tradicional elite agrária, se reelabora a fim de se adequar a uma nova forma de dominação do espaço, pautada na territorialização do agronegócio. (Lima, 2016, p. 76) O autor cita que há uma perpetuação, uma continuidade do domínio do agronegócio no que toca ao velho latifúndio. Podemos traçar então que o agronegócio nacional é um herdeiro, uma porção do latifúndio improdutivo que se modernizou, passou a ser produtivo, mas que ainda tem as mesmas raízes políticas e históricas que seu antecessor. Sua territorialização não é, consequentemente, nova. É uma atualização do latifúndio improdutivo. Como Toussaint (2002) explana, devemos ter em mente que dentro das classes sociais existem também diferenças e fissuras; essa é uma delas. Podemos ver, inclusive, embates políticos entre os setores produtivos do 5 agronegócio e os proprietários fundiários de latifúndios improdutivos, na disputa pelo controle da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) e até mesmo do Estado brasileiro nas eleições presidenciais. Tanto o agronegócio quanto o velho latifúndio utilizam os espaços com interessesde geração de capital; contudo, as práticas, os modos como essa produção é realizada, são muito diferentes entre essas porções da agricultura capitalista. E, como vimos anteriormente, os processos de construção e aplicação do conceito de agronegócio no Brasil são recentes. Ele mostram diferenças estruturais existentes no cerne da classe dos proprietários fundiários, além de diferenças de foco produtivo, como veremos no próximo tema. TEMA 3 – DE AGROINDÚSTRIA PARA AGRONEGÓCIO Trabalhando com o foco na porção produtiva da classe dos grandes proprietários de terra, alcançamos o agronegócio. Todavia, não devemos entender o processo como uma simples mudança de nome. Há também uma modificação na própria essência do processo da agricultura capitalista nacional. Delgado (2012) oferece uma importante contribuição ao apresentar a modificação do foco da agricultura capitalista do início dos anos 1980: uma mudança gradual da ideia de agricultura capitalista como sinônimo de agroindústria para sinônimo de agronegócio. Se na aparência isso tem pouca importância, o autor ressalta que a prática é, sim, muito distinta. O foco do governo federal durante o período da ditadura militar (1964-1985) era o fomento à industrialização do país e, para tanto, entendia-se que a base deveria ser a agroindústria, ou seja, a produção de produtos industrializados de origem primária, como alimentos processados etc. O objetivo era uma produção que ficasse retida dentro das fronteiras nacionais e fosse comprada pelas indústrias brasileiras. O que circulava então entre os produtores era moeda nacional, e era preciso um grande investimento para gerar capitais, obtidos por meio da extração de renda da terra. O agronegócio nasceu com um objetivo essencialmente diferente: direcionar a produção do mercado interno para o mercado externo. Isso trouxe ao país montantes significativos de moeda estrangeira (majoritariamente dólares) e deu ao produtor segurança, uma vez que não era o mercado interno que regia sua produção, mas, sim, o mercado externo, que remunerava melhor devido à taxa de 6 câmbio e que oferecia também maior flexibilidade em termos de destinos. Isso tornou o setor menos refém de crises econômicas nacionais (como a do fim da ditadura e início do período democrático). Assim, podemos entender que o agronegócio se territorializa nas mesmas terras do latifúndio improdutivo e da agroindústria do século XX, contudo modificando seu foco de produção, deixando de equilibrar mercado interno e mercado externo e passando a privilegiar apenas o mercado externo, especializando-se ao extremo. Isso perpassa duas motivações econômicas: a passagem do capitalismo protecionista com protagonismo do Estado, vigente na ditadura militar, para a introdução e a hegemonia do neoliberalismo a partir dos anos 1990; e a conclusão da assim chamada modernização conservadora no campo brasileiro, que acabou por estruturar a economia do agronegócio. Etges (1989) traça sua análise sobre esse fato. Os capitais financeiro, industrial e agrocapitalista subordinam o campesinato nas esferas de sua renda e de seu trabalho. Isso se dá por meio da territorialização do capital no campo. As relações sociais são especializadas e, portanto, o capital também se espacializa por meio da subordinação da renda da terra camponesa. Nesse caso, ele não necessita tomar as terras desses camponeses, mas, sim, a renda da terra que produzem, e é pelo monopólio já citado que alcançam tal objetivo. Esse é também um dos gérmens do agronegócio: se antes o latifúndio era constituído muitas vezes de terra grilada ou conseguida por meio de expropriação camponesa, agora o agronegócio consegue auferir renda subordinando o campesinato, agindo, portando, na legalidade. O Estado brasileiro seguiu tendo um papel central na relação entre o desenvolvimento e a consolidação dessa nova face da agricultura capitalista no país. Uma de suas funções principais era suprimir/reprimir o campesinato perante a influência da classe dos proprietários de terra (Oliveira, 1981). O acesso à terra era raro, e até meados dos anos 1980 deixou o campesinato refém dos latifundiários ou agroindustriais; atualmente, ela está nas mãos do agronegócio e sua cadeia produtiva. O avanço da agroindústria durante o regime militar foi então nada mais que uma face mais atualizada e produtiva que a daquela existente anteriormente, do grande latifundiário que usava de suas terras como ferramentas de poder político e econômico, utilizando-as para ter acesso ao mercado de créditos, sem, contudo, colocar dinheiro no processo produtivo. Seguindo essa lógica, o agronegócio é a nova face desse processo. 7 Ainda sobre o Estado, Etges (1989) cita que o papel dele vai além disso tudo. Como as desigualdades são necessárias para a expansão do capital, o capital se apropria delas com o objetivo de torná-las funcionais para sua reprodução ampliada. Fica evidente como a territorialização do capital no campo é possível e ocorre devido ao Estado como articulador desse mesmo capital. A espacialização dessa exploração é vital para sua futura reprodução ampliada. TEMA 4 – A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA DO CAMPO NACIONAL Modernização conservadora é a expressão utilizada para denominar o processo pelo qual o campo brasileiro passou durante o período da ditadura militar. Grosso modo, denomina-se modernização conservadora o processo de aumento considerável do uso de tecnologias agrárias no campo brasileiro, em especial na agricultura capitalista, em que toda uma gama de técnicas, saberes e investimentos foram feitos com o intuito de aumentar a produtividade das propriedades, sem, contudo, modificar a estrutura fundiária nacional. E, para compreender esse processo histórico, é indispensável entender de onde vem o conceito de raiz: O termo modernização conservadora foi cunhado primeiramente por Moore Junior [...] para analisar as revoluções burguesas que aconteceram na Alemanha e no Japão na passagem das economias pré- industriais para as economias capitalistas e industriais. Neste sentido, o eixo central do processo desencadeado pela modernização conservadora é entender como o pacto político tecido entre as elites dominantes condicionou o desenvolvimento capitalista nestes países, conduzindo-os para regimes políticos autocráticos e totalitários. (Pires; Ramos, 2009, p. 2) Ao versar sobre os exemplos de Japão e Alemanha, os autores apresentam o caráter difuso do processo de ascensão do capitalismo industrial em ambos países. Diferentemente de França, Estados Unidos e Reino Unido, em que revoluções burguesas modificaram a estrutura de classe, na Alemanha e no Japão tais processos não ocorreram. Como afirma Vergopoulos (1977), o capitalismo industrial francês nasceu da Revolução Francesa (1789), quando a classe burguesa, aliada à classe camponesa, acabou com a nobreza e a aristocracia, criando as bases para o Estado burguês moderno, ou seja, para a reforma agrária a fim de gerar alimentos baratos e fixar pessoas no campo e, assim, controlar o exército de reserva para a indústria nascente nas cidades. Vergopoulos (1977) ainda cita o caso da Guerra Civil estadunidense (1861-1865), em que se postou o exército da União, nortista, do centro industrial do país e abolicionista, contra o 8 exército sulista (confederado), produtor agrário do país, centrado no latifúndio e na produção de algodão, escravocrata. Foi a vitória do exército da União que possibilitou a extensão da reforma agrária no país, a destruição do grande latifúndio e a explosão da indústria. O caso inglês segue a mesma linha, com a vitória liberal na revolução gloriosa, a instalação da monarquia parlamentar e a transformação dos landlords (grandes proprietários) em financiadores da indústria do Reino Unido. Processo diferente ocorreu na Alemanha e no Japão ainda no séculoXIX. Em ambos os países, o fomento para a indústria adveio de cima, das classes dominantes, para baixo. Foram os junkers, grandes latifundiários da porção oriental da Prússia, os aliados e financiadores do boom industrial, primeiramente do Reino Prussiano e, posteriormente, do Império Alemão recém unificado (1871). No Japão, o processo se desenvolveu sob o imperador Meiji. A era Meiji foi o período de 1867 a 1912, em que o país se industrializou de modo acelerado por meio do incentivo imperial às famílias e aos clãs que, historicamente, eram grandes proprietários de terras. Esses casos mostram que o capitalismo industrial nasceu do monopólio e não da concorrência, como foram os casos de Estados Unidos, França e Reino Unido. Ou seja, de uma modernização conservadora, sem revoluções, guerras ou rupturas na ordem vigente. No campo brasileiro, processo semelhante ocorreu, como afirma Canuto (2004). Não se modificou a estrutura fundiária do país, altamente concentrada nas mãos de poucos. Então, o que foi modernizado? Pires e Ramos (2009) citam que foi modernizado todo o arcabouço tecnológico e reforçado o apoio estatal à produção na agricultura. Olesko (2017) afirma que um marco do apoio estatal durante o período da ditadura militar brasileira foi a fundação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em 1972, com grandes financiamento e investimento em desenvolvimento técnico científico da agricultura. A Embrapa, mais do que apenas coletar dados e estatísticas sobre a produção agropecuária, faz pesquisas sobre toda a cadeia produtiva do setor primário. Cabe a ela desenvolver agrotóxicos, sementes, técnicas aperfeiçoadas de plantio, estudos de cultivos mais adequados para as especificidades climáticas e dos solos do país etc. A empresa foi – e ainda é – a ferramenta governamental que auxiliou – e ainda auxilia – de maneira importantíssima as produções agrícola 9 e pecuária nacionais. Podemos cravar que foi ela uma das gestoras do embrião do que viria a ser o pujante agronegócio brasileiro a partir dos anos 1990. Entretanto, o fomento se deu somente à técnica. Ficou restrito ao investimento na Embrapa e não a um projeto amplo de regularização fundiário e de execução de uma reforma agrária no país. O que se viu foi a manutenção da classe dos proprietários de terra como senhores absolutos da grande maioria das terras no país como a passagem a seguir demonstra: O Brasil possui uma área territorial de 850 milhões de hectares. Desta área total, as unidades de conservação ambiental ocupavam 102 milhões de hectares, as terras indígenas 128 milhões de hectares, e área total dos imóveis cadastrados no INCRA aproximadamente 420 milhões de hectares. Restavam ainda outros 30 milhões de hectares dessa área total, ocupada pelas águas territoriais internas, áreas urbanas e ocupadas por rodovias, e posses que deveriam ser regularizadas, e outros 170 milhões de hectares de terras devolutas, a grande maioria cercada ilegalmente, particularmente, pelos grandes proprietários. Há entre os 420 milhões de hectares cadastrados, um total de 4,2 milhões de imóveis. Esta concentração fundiária indica que a área média nas grandes propriedades é de 2.700 hectares, enquanto que nas pequenas é de 25 hectares, ou seja, mais de 100 vezes menor. Entre as grandes propriedades, o INCRA ao aplicar a Lei 8629 de 1993, encontrou 120 milhões de hectares de terras improdutivas, o que equivalia a 70% do total. (Oliveira, 2007, p. 150) Em outras palavras, podemos compreender que cabe ao agronegócio cerca de somente 30% das grandes propriedades do país, uma vez que 70% são improdutivas. Foi nessas terras, nesses 30%, que se aplicou a modernização conservadora. TEMA 5 – CONJUNTURA ECONÔMICA Em qual contexto econômico o agronegócio se ergueu como grande via de entrada de capitais estrangeiros no Brasil? Qual é o seu papel hoje na conjuntura nacional? Essas são duas perguntas essenciais a ser respondidas quando se versa sobre a conjuntura econômica do desenvolvimento desse setor da economia nacional. Destarte, devemos ter a plena noção de que, de uma maneira ou de outra, o país vive sob a égide do neoliberalismo – mais intensamente como nos anos FHC e Temer; ou menos, como nos governos do PT – desde o início dos anos 1990. Com isso posto, o agronegócio assume seu caráter agroexportador de commodities, caráter este que alcançou seu ápice nos governos petistas por meio da manutenção dos preços dessas commodities durante um período considerável. Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostram que, em 2018, a 10 participação da indústria no PIB do Brasil alcançou sua menor participação, somente 11,3% (CNI, 2019). Isso se deve a dois processos: primeiro, a dificuldade de competição da indústria brasileira frente a seus concorrentes estrangeiros, especialmente indústrias chinesas e outras multinacionais. Essa dificuldade teve sua expressão máxima com a abertura comercial do governo Collor, que ceifou muitas indústrias nacionais devido à defasagem tecnológica em comparação com as concorrentes estrangeiras. O segundo processo diz respeito ao crescimento da participação do setor primário – crescimento este que alcançou 7% em meados de 2018 – puxado principalmente pelo agronegócio, que contribui para a queda da participação industrial. Isso ocorre porque há uma grande possibilidade de geração de renda para os proprietários do agronegócio, e de maneira muito mais facilitada do que para o setor industrial, como analisa Oliveira (2007, p. 43): A renda da terra é uma categoria especial na Economia Política, porque ela é um lucro extraordinário, suplementar, permanente, que ocorre tanto no campo como na cidade. O lucro extraordinário é a fração apropriada pelo capitalista acima do lucro médio. Na indústria ele é eventual, devido ao avanço tecnológico, entretanto na agricultura ele é permanente, pois, por exemplo, existem diferenças entre a fertilidade natural dos vários tipos de solos. A renda da terra é também denominada renda territorial ou renda fundiária. Como ela é um lucro extraordinário permanente, ela é, portanto, produto do trabalho excedente. Esclarecendo melhor, o trabalho excedente é a parcela do processo de trabalho que o trabalhador dá ao capitalista, além do trabalho necessário para adquirir os meios necessários à sua subsistência. A possibilidade dessa extração é constante no agronegócio, e, devido à manutenção das taxas de exportação de commodities pelo Brasil, mesmo em tempos de crise esse setor da economia se torna o porto seguro do investimento privado e uma garantia para o Estado, que honra suas dívidas, muitas vezes, graças à entrada de capitais que o agronegócio proporciona. Apesar disso, há sempre um limite na exploração. O avanço da fronteira agrícola cria, como explica Delgado (2012, p.118), uma superexploração, tanto do trabalho (assalariado ou camponês) quanto da natureza e seus recursos. A fim de manter seus ganhos e ampliá-los, o agronegócio tem uma grande questão a superar. E isso traz à tona as motivações que o fazem ser tão interessante para os investimentos de capitais, como veremos em breve. 11 REFERÊNCIAS AMIN, S. O capitalismo e a renda fundiária (a dominação do capitalismo sobre a agricultura). In: AMIN, S.; VERGOPOULOS, K. A questão agrária e o capitalismo. Tradução de Beatriz Resende. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1977. CANUTO, A. Agronegócio: a modernização conservadora que gera exclusão pela produtividade. Revista NERA, ano 7, n. 5, ago./dez. 2004. Disponível em: <http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/1466/1442>. Acesso em: 19 jul. 2019. DELGADO, G. C. 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AULA 2 AGRONEGÓCIO – CONTEXTOS ECONÔMICO, SOCIAL E POLÍTICO Prof. Gustavo Felipe Olesko 2 CONVERSA INICIAL O espaço agrário brasileiro é marcado pela contradição: de um lado, a agricultura de ponta e, do outro, uma agricultura tocada pelo trabalho familiar. A contradição se expande quando se leva em conta que a agricultura de ponta produz normalmente cultivos para a exportação, enquanto é a agricultura menos tecnificada aquela que abastece a mesa do brasileiro comum. Antes de tudo, devemos ter em mente o que é aquele espaço. Milton Santos (1926-2001), o geógrafo mais reconhecido do Brasil e um dos mais importantes pensadores dessa ciência, em escala mundial, traça que o espaço geográfico é um acúmulo desigual de tempos (Santos, 2004) e que, além disso, é um conjunto indissociável de sistemas de ações e sistema de objetos, o que chamou de fixos e fluxos (Santos, 2006). Isso significa que o espaço geográfico não é um mero palco onde as atividades econômicas acontecem, onde a história passa, onde a cultura se realiza e onde as sociedades se desenvolvem. Ele, o espaço, é, portanto, produzido. Logo, o espaço agrário brasileiro é um sistema de ações que vão desde ações governamentais, passando pelas do agronegócio e alcançando as do campesinato. E um sistema de objetos, cunhados naturalmente, como as matas, florestas, rios etc.; ou pela humanidade, como as lavouras, estradas etc. E isso tudo se desenvolve de modo desigual. Ou seja, a porção do espaço sob poder do agronegócio, seu território, se realiza de uma maneira enquanto nos territórios camponeses isso ocorre de modo distinto. É esse o conceito básico para compreendermos o desenvolvimento desta aula. TEMA 1 – A PRODUÇÃO DO AGRONEGÓCIO Como já visto anteriormente, a transformação da agricultura capitalista brasileira, durante a década de 1980, culmina finalmente, nos anos 1990, com o agronegócio (como conceito e prática) superando e substituindo a agroindústria, no Brasil. Como afirma Sauer (2008), mais que uma mudança nos termos é uma mudança na estratégia de produção: da prioridade antes dada ao mercado nacional, com alguns setores, somente, exportando, o foco é passado totalmente para a exportação. Com isso, o agronegócio passa de produtor para a indústria nacional para produtor para o mercado global. A globalização, sob os governos neoliberais, 3 chega a seu ápice durante as décadas de 1990 e 2000, com a queda de diversas barreiras comerciais e a ascensão da China como grande mercado consumidor, em escala global, de matérias-primas e commodities. As commodities são as matérias-primas de origem agrícola, vegetal ou mineral. Grosso modo, em um linguajar econômico, são produtos que, por si mesmos, não possuem valor, mas somente preço, uma vez que valor só possuem produtos oriundos do trabalho humano, uma vez que este é que gera valor. À primeira vista pode parecer confuso, mas, do ponto de vista econômico, podemos elencar que, retirando custos de insumos, maquinário, mão de obra etc., o preço de uma commodity seria nulo, uma vez que ninguém produziu um jazigo de hidrocarbonetos, que ninguém fez o cultivo de soja (grosso modo, após plantada, ela iria brotar de um modo ou de outro, o trabalho humano apenas maximiza ao extremo a sua produção) etc. No que tange às commodities, é importante saber que sua cotação se dá no mercado mundial, ou seja, são produtos cotados – sempre – em dólar. Isso leva a uma caracterização muito particular do capitalismo no campo, que conta com a consideração de três pontos essenciais: [...] a produção de commodities, as Bolsas de Mercadorias e de Futuro e os monopólios mundiais. A produção de commodities (mercadorias) para o mercado mundial tornou-se o objetivo primeiro da produção mundial de alimentos. Isto quer dizer que se produz para quem tem poder de compra esteja ele onde estiver no mundo. Ou seja, a produção de alimentos não tem mais o objetivo primeiro de abastecer a população do estado nacional onde ele é produzido. O exemplo da produção do trigo no Brasil é exemplar. O Brasil tornou-se o primeiro país importador deste grão do mundo (11 milhões de toneladas). A produção nacional de trigo não tem ultrapassado a 3,5 milhões de toneladas. Porém, quando os preços internacionais estão altos, exporta-se para o mundo o trigo que o país produziu e que não suficiente para o seu próprio abastecimento (Oliveira, 2008). A passagem anterior exemplifica, muito bem, com o caso do trigo, como funciona o mercado de commodities: cotadas em dólar, é padrão que seja muito mais rentável sua exportação mesmo que o mercado interno necessite do produto. Isso leva então a o agronegócio produzir o que o mercado global busca e o que é mais rentável. Faz aproximadamente três décadas que a soja se tornou a principal commodity exportada pelo país, mas não a única. A Tabela 1 explicita a soja como grande produto exportado do agronegócio nacional, mas também mostra o conjunto do que é produzido, com certos destaques. 4 Tabela 1 – Produtos exportados pelo agronegócio, em montante e valores, em 2018 Agrupamento Agronegócio Transação Exportação Ano 2018 Setor(es) Valor (US$) Peso (kg) PLANTAS VIVAS E PRODUTOS DE FLORICULTURA 12.316.060 3.147.502 LÁCTEOS 58.245.167 23.099.469 PRODUTOS APÍCOLAS 101.612.43628.557.228 PRODUTOS HORTÍCOLAS, LEGUMINOSAS, RAÍZES E TUBÉRCULOS 206.601.880 305.623.881 PESCADOS 261.112.322 39.512.750 PRODUTOS OLEAGINOSOS (EXCLUINDO A SOJA) 270.029.325 489.706.693 RAÇÕES PARA ANIMAIS 278.143.965 282.390.506 BEBIDAS 312.317.997 210.186.637 CHÁ, MATE E ESPECIARIAS 328.854.765 130.651.112 CACAU E SEUS PRODUTOS 365.005.432 78.969.670 ANIMAIS VIVOS (EXCETO PESCADOS) 623.543.732 235.723.321 PRODUTOS ALIMENTÍCIOS DIVERSOS 694.204.747 425.944.697 DEMAIS PRODUTOS DE ORIGEM ANIMAL 770.722.532 380.239.930 FRUTAS (INCLUINDO NOZES E CASTANHAS) 975.424.745 877.506.439 DEMAIS PRODUTOS DE ORIGEM VEGETAL 1.285.125.836 567.224.061 COUROS, PRODUTOS DE COURO E PELETERIA 1.844.942.282 462.953.941 FUMO E SEUS PRODUTOS 1.988.179.127 460.999.890 FIBRAS E PRODUTOS TÊXTEIS 2.004.723.643 1.025.667.022 SUCOS 2.352.226.935 2.584.674.183 CEREAIS, FARINHAS E PREPARAÇÕES 4.800.587.134 25.511.246.188 CAFÉ 4.961.897.381 1.917.843.316 COMPLEXO SUCROALCOOLEIRO 7.432.745.166 22.679.473.821 PRODUTOS FLORESTAIS 14.150.976.014 24.653.129.916 CARNES 14.700.679.454 6.580.985.302 COMPLEXO DA SOJA 40.905.592.900 101.871.009.994 TOTAL 101.685.810.977 191.826.467.469 Fonte: Adaptado de Brasil, 2019. Podemos traçar que os seis últimos produtos – soja, carnes, produtos florestais (pínus, eucalipto e pasta para papel), etanol, café e sucos (especialmente o mercado da laranja) – são os principais produtos exportados pelo agronegócio nacional. TEMA 2 – LOGÍSTICA E ESCOAMENTO: COMO SE REALIZA A EXPORTAÇÃO DAS COMMODITIES Todas aquelas commodities em destaque têm um destino certo: a exportação. É o processo pelo qual o agronegócio sobrevive, uma vez que, 5 exportando, é possível aumentar a quantidade de renda recebida, já que esta é obtida em dólar. A mesma soja produzida no Paraná ou Mato Grosso do Sul compete com a soja de Córdoba, na Argentina, ou com a do Tennessee, nos EUA. Dois são os fatores principais para sua competitividade e a maior extração de renda da sua produção: a produtividade por hectare e o preço do frete. Pegando por exemplo a soja, a produtividade nacional (Embrapa, 2019) beira as 57 sacas por hectare, enquanto o segundo maior produtor mundial, os EUA, tem produtividade de 53 sacas por hectare (Conab, 2018). A diferença é pequena, e ainda mais quando se leva em conta a diferença dos custos dos modais de escoamento de ambos os países: nos EUA, predomina a ferrovia, enquanto no Brasil há um predomínio do transporte rodoviário, mais caro. O que diferencia o Brasil é o custo do trabalho, muito baixo, o que deixa ambos em competição aberta pelo mercado. O foco no modal rodoviário surgiu no Brasil nos anos 1950, como Castro (2003) elucida. Foi a opção para o fomento industrial nacional nascido do plano de Juscelino Kubitschek que trouxe ao país montadoras de automóveis estrangeiras. Então, para fomentar essas indústrias, era necessário criar demanda. Integrou-se o Brasil pelas rodovias, ao invés da manutenção e expansão da malha ferroviária que o país já possuía. No seio dessa expansão, estava o projeto de industrialização nacional. Este vai ao encontro do mesmo processo pelo qual a agricultura capitalista da época passava: sua modernização conservadora, com o intuito de construir uma agroindústria forte para o país. Nos anos 1990, isso se modifica. O projeto de industrialização é abandonado, porém diversas de suas ações seguem marcadas no espaço nacional e uma das suas marcas mais visíveis é a grade malha viária e a dependência do país para com o transporte rodoviário, como cita novamente Castro: A relação entre o desenvolvimento da atividade agrícola e os transportes é ainda pouco entendida. No entanto, os reclames de agricultores e produtores em geral localizados em áreas mal servidas de infraestrutura de transporte não deixariam dúvida da importância desses serviços para o bom funcionamento da atividade. [...] há que se considerar a circularidade dessa relação: o crescimento das atividades econômicas justifica novos investimentos em infraestrutura de transporte, que, por seu turno, possibilita novos investimentos para a expansão da produção. Apesar das dificuldades inerentes a esse tipo de estudo, espera-se que os resultados alcançados tenham permitido enfatizar a interdependência entre os transportes e a produção agropecuária, e mensurar os impactos das reduções de custo de transporte sobre o crescimento dessa produção. As extensões desejáveis deste estudo incluem a expansão da 6 malha de transporte considerada de modo a incluir os modais ferroviário e hidroviário, bem como a estrutura de armazenagem e outros serviços logísticos (Castro, 2003, p. 238-239). O que o Castro (2003) demonstra é que existe uma relação umbilical entre aumento da produção e melhoria/expansão da infraestrutura de transporte e que a expansão da produção deveria expandir então a malha (o que não ocorre). O escoamento ainda é centralizado na malha rodoviária e há uma urgência de investimentos na malha hidroviária e na malha ferroviária. A diminuição de custos é também um fator importante, porém a velocidade do frete e a diversificação também são de interesse do Estado e dos produtores. Se os portos brasileiros passam por diversas atualizações e melhorias, a malha rodoviária não segue o mesmo sentido. E esse é um dos principais gargalos do agronegócio brasileiro. TEMA 3 – DESTINOS E CONCORRENTES Os destinos da produção do agronegócio são os mais diversos; contudo, há uma centralidade na exportação para a China e o bloco da União Europeia, que se destacam do restante dos destinos. O Gráfico 1 mostra, de um modo geral, uma lista de países que compram os produtos brasileiros e sua participação percentual em nossas exportações. Nele constam somente os dados específicos dos países que têm mais de 1% da participação no destino dos produtos. A malha de destinos é muito diversa, uma vez que, no sistema-mundo, há também uma divisão internacional do trabalho que se dá nas diferentes porções do espaço. 7 Gráfico 1 – Participação percentual de alguns países em nossas exportações de commodities em 2018 Fonte: Adaptado de Brasil, 2019. Os destinos das exportações de commodities mencionados no Gráfico 1 nos mostram alguns elementos interessantes para a análise. Como Oliveira (2008) versa, o comando da produção agrícola mundial está nas mãos do capital financeiro e são seus ditames que norteiam a produção. O Brasil produz para China e União Europeia aquilo que estes não cultivam, especialmente soja. Em troca, o Brasil acaba por importar desses países grandes quantidades de produtos manufaturados, inclusive de origem agrícola, com valores agregados muito maiores, dificultando assim o equilíbrio da balança comercial nacional. É o que 0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 40% (PAIS) - CHINA (BLOCO) - UNIÃO EUROPEIA 28 - UE 28 (PAIS) - ESTADOS UNIDOS (PAIS) - HONG KONG (PAIS) - IRÃ (PAIS) - JAPAO (PAIS) - COREIA DO SUL (PAIS) - ARABIA SAUDITA (PAIS) - VIETNA (PAIS) - TAILANDIA (PAIS) - ARGENTINA (PAIS) - EGITO (PAIS) - TURQUIA (PAIS) - INDIA (PAIS) - EMIR.ARABES UN. (PAIS) - CHILE (PAIS) - INDONESIA (PAIS) - BANGLADESH (PAIS) - RUSSIA, OUTROS % 8 Marcos (2008) denomina de uma agricultura de mercado, que segue as necessidades dos países que dominam o capital financeiro. O papel do Brasil no sistema-mundo globalizado e interconectado é, portanto, o de fornecedor de commodities agrícolas a preço baixo, especialmente para aqueles que não as produzem: no caso, China e União Europeia. É notável a pequena presença dos EUA na balança de destinos das nossas exportações. Isso se dá uma vez que o país também é um grande produtor de commodities e importa do Brasil somente produtos os quais não produz, especialmente os típicos do clima tropical. É, antes de tudo, um concorrente de peso no desenvolvimento do agronegócionacional. Mendonça (2013) e Oliveira (2008, 2012) discorrem sobre o papel dos concorrentes do Brasil no bojo da exportação de commodities agrícolas. Isso ocorre, pois o crescimento das compras dos maiores destinos mundiais da soja, por exemplo, de União Europeia e China, não é infinito. Há um limite e o crescimento desordenado da produção pode gerar inclusive uma diminuição do preço da produção. Tendo isso em mente, podemos traçar que Argentina e EUA são os grandes concorrentes brasileiros no que tange aos cultivos de cereais e cana, além de a Austrália ser um grande player no tocante ao gado. Cada país conta com uma estrutura muito diferenciada de sua cadeia do agronegócio e o diferencial brasileiro é mais que os subsídios estatais (como é o caso do agronegócio dos EUA), mas sim a superação da contradição do dispêndio de capital para a aquisição de terras, uma vez que a maioria destas é de origem grilada, como nos alerta Oliveira (2007). Em vias de iniciar a terceira década do século XXI, o agronegócio brasileiro encontra-se na encruzilhada: melhorar suas técnicas agrícolas e aumentar a sua produtividade; ou diversificar a produção, por meio de uma reforma agrária inclusiva (como aquelas ocorridas nos EUA e Japão, ainda no século XIX) e que gere um novo ciclo de produtividade e industrialização ao país. TEMA 4 – AGRICULTURA CAMPONESA E SEU FUNCIONAMENTO Em primeiro lugar, devemos ter em mente quem é o camponês. O campesinato é uma classe do modo de produção capitalista, como elenca Oliveira (2007), e não um resquício de outro modo de produção. Igualmente, não está fadado ao fim, como diversos intelectuais, de neoclássicos a liberais, de marxistas a funcionalistas etc. chegaram a cravar. Shanin (1990) nos ensina que o 9 campesinato é criado e recriado no próprio modo de produção capitalista como uma classe social, classe esta que é sempre a mais explorada e subordinada pelas outras classes, seja a dos proprietários fundiários, seja a dos capitalistas ou seja até mesmo a dos assalariados (Moura, 1986). Para o agronegócio, a terra é somente a porção do espaço que lhe serve para a extração de renda; já para o campesinato ela é local de vida, cultura, trabalho etc. Para o agronegócio, a terra é trabalhada pela mão de obra assalariada, ou seja, por terceiros contratados para nela trabalharem. Já para a agricultura camponesa, o trabalho é, em sua grande maioria, realizado por e para as famílias dos agricultores. Os objetivos centrais da produção camponesa são, logo, a manutenção do bem-estar familiar (Shanin, 1983). Ou seja, a sua produção é voltada para satisfazer as necessidades familiares. Aparentemente, isso levaria a uma produção somente para o autossustento; porém, as necessidades familiares não podem ser limitadas somente a necessidades nutricionais, deve-se ir além. Como Chayanov (1985) já enumerava, as necessidades familiares mudam de região para região e de tempos em tempos. Hoje, podemos traçar que internet, meio de transporte, lazer, roupas, além de víveres ligados à produção, são também necessidades das famílias camponesas. Assim sendo, grande parte do campesinato vende não só o excedente de sua produção para o autossustento, mas também tem uma porção de suas terras destinadas à produção para o mercado. O campesinato e, consequentemente, a agricultura camponesa estão ancorados em alguns pontos-base: a autonomia relativa perante o mercado, a pequena propriedade, o trabalho familiar, a produção em pequena escala e diversificada, a alta produtividade (devido à pequena propriedade) e a importância na reprodução da família. Entre outros elementos, isso leva à produção de policulturas alimentares. É então por intermédio de uma agricultura pouco tecnificada, com uso de agrotóxicos básicos, tratores comunitários (quando existentes) que o campesinato produz cultivos alimentares básicos para o país. Em pequenas propriedades, com mão de obra familiar, é necessária a diversificação produtiva, uma vez que, caso algum cultivo obtenha um baixo preço no mercado, o rendimento da família não seja muito afetado, graças à diversidade de sua produção. Além disso, boa parte acaba por produzir somente cultivos destinados ao mercado interno, cotados 10 portando em real e que variam de região para região, conforme a lei básica da oferta e demanda. Além disso, há um fator importante na produção camponesa e em seu escoamento: o papel dos atravessadores, aqueles sujeitos que compram diretamente das famílias para posterior venda nas centrais de abastecimento. A importância da agricultura camponesa, logo, se dá justamente pelo fato antes elencado: a produção de alimentos para o mercado interno. Uma vez que o preço desses alimentos é cotado em moeda nacional, tem um mercado volátil, varia regionalmente; e que sua produção requer um cuidado maior de planta para planta (o que é prejudicado na agricultura mecanizada, em grandes propriedades), isso faz com que a produção de alimentos seja dispensada pelo agronegócio e fique nas mãos do campesinato a alimentação nacional. Para esses agricultores, não importa a renda obtida, mas sim a manutenção de suas famílias. TEMA 5 – MERCADO NACIONAL: O MERCADO CAMPONÊS? Como apresentado no item anterior, podemos notar que cabe ao campesinato a produção dos alimentos que vão até a mesa do brasileiro. O Gráfico 2 demonstra no que a agricultura camponesa (denominada como familiar pela base de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE) e a agricultura capitalista (designada não familiar pelo IBGE) diferem, muito, em seus produtos. 11 Gráfico 2 – Comparação entre a agricultura familiar e a não familiar Fonte: Adaptado de IBGE, [201-]. Contudo, devemos nos atentar ao fato de que os alimentos na mesa do brasileiro não são sempre in natura. Há um processo de longo prazo de uma padronização alimentar, ou seja, a criação de um padrão de consumo globalizado. Cadeias de fast food são a expressão máxima disso, porém esse processo não se limita a elas. Ploeg (2008) analisa o que chama de impérios alimentares. Para o pensador, o desenvolvimento capitalista passa a monopolizar também os hábitos alimentares da população e ele dá como exemplo a ampla gama de alimentos produzidos à base de milho (salgadinhos, junkie food) e de soja (bolachas recheadas, guloseimas doces), o que centraliza um padrão alimentar em poucos cultivos. Indo além, podemos levar em conta a gama de produtos congelados, cuja oferta cresce a cada dia, e que se tornam inclusive carro-chefe da maior multinacional brasileira do agronegócio, a BRF. Esse processo, em comparação a outros países, no Brasil ainda é muito inicial, datando do início do século XXI, enquanto a Europa Ocidental e os EUA já passam por ele, em um lento e longo desenvolvimento, desde, no mínimo, os anos 1950. É, portanto, urgente o estabelecimento de uma nova face para o agronegócio. Porém, ainda devemos levar em conta que o agronegócio subordina 12 o campesinato, uma vez que a fonte dos alimentos congelados são os produtos comprados diretamente dessas famílias camponesas (Olesko, 2017). Devemos, então, compreender que a dinâmica do mercado brasileiro ainda é dependente dos cultivos camponeses, cujos trabalhadores, todavia, não ficam com a maior parte do que é pago pelos seus produtos, cabendo ao atravessador essa captura da renda. Existe, logo, uma grande possibilidade, no Brasil, tanto para a diminuição do preço dos alimentos, por meio da compra direta dos cultivos camponeses, quanto para uma reestruturação de parte do agronegócio, que pode vir a se voltar mais para o mercado interno, mediante processamento de alimentos etc. 13 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Agrostat: Estatísticas de Comércio Exterior do Agronegócio Brasileiro.Brasília, 2019. Disponível em: <http://indicadores.agricultura.gov.br/index.htm>. Acesso em: 14 ago. 2019. CASTRO, N. Expansão rodoviária e desenvolvimento agrícola dos cerrados. In: HELFAND S.; REZENDE, G. (Org.). Região e espaço no desenvolvimento agrícola brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Ipea, 2003. CHAYANOV, A. La organización de la unidad econômica campesina. Buenos Aires: Nueva Visión, 1985. CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento. Análise mensal: soja. Brasília, out. 2018. Disponível em: <https://www.conab.gov.br/info-agro/analises-do- mercado-agropecuario-e-extrativista/analises-do-mercado/historico-mensal-de- soja/item/download/22629_13ae0b72d4355acc237ff79abdd3eb31>. Acesso em: 15 ago. 2019. EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Embrapa Soja. Soja em números (safra 2018/19). Brasília, jun. 2019. Disponível em: <https://www.embrapa.br/soja/cultivos/soja1/dados-economicos>. Acesso em: 15 ago. 2019. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Biblioteca. Rio de Janeiro, [201-]. 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Acesso em: 15 ago. 2019. _____. A mundialização da agricultura brasileira. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE GEOCRÍTICA, 12., 2012, Bogotá. Actas... Barcelona: Geocrítica, 2012. _____. Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária. São Paulo, FFLCH, 2007. SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2006. _____. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2004. SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Texto para Discussão, Brasília, n. 30, 2008. SHANIN, T. El Marx tardio y la via rusa: Marx y la periferia del capitalismo. Madrid: Editorial Revolucción, 1990. _____. La clase incómoda. Madrid: Alianza Editorial, 1983. PLOEG, J. D V. D. Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. AULA 3 AGRONEGÓCIO: CONTEXTOS ECONÔMICO, SOCIAL E POLÍTICO Prof. Gustavo Felipe Olesko 2 O agronegócio, como face moderna do antigo latifúndio, no que tange aos aspectos econômicos, é apenas uma das faces desse grupo: existe também, desde a formação do Brasil como entidade política, ainda como colônia e posteriormente já independente, primeiramente imperial e como república na sequência, uma centralidade da participação dos grandes proprietários de terra nos rumos políticos. O papel predominante na política nacional desses grandes proprietários não é, portanto, recente; não é também ultrapassado ou, ainda, não é conectado à ideia de propriedade da terra como símbolo de poder. A terra é, antes de tudo, uma garantia de poder financeiro, o qual possibilita a entrada e a ação de seu dono no jogo político. Tivemos, na história política brasileira, presidentes latifundiários que se enquadram nos mais distintos espectros políticos. Por exemplo, Fernando Collor de Mello, bisneto de um senhor de engenho, alinhado à vertente política do liberalismo econômico, de direita; ou ainda João Goulart, grande latifundiário do Rio Grande do Sul, criador de gado, o qual foi inclusive o maior fornecedor de animais para a então empresa estadunidense de carne bovina (hoje brasileira, pertencente à BrF) Swift, alinhado, porém, ao trabalhismo, à esquerda do espectro político. O que devemos compreender, portanto, é que a terra como propriedade é um equivalente de capital. A terra é a garantia que se dá ao banco para ter acesso ao crédito hipotecário, o que permite a inserção do dono da propriedade no mercado financeiro, no investimento em ações, e o investimento na própria fazenda, em indústrias etc. Junto disso advém um poder econômico muito grande, o qual se transmuta certas vezes na entrada desses sujeitos na política. Ao longo desta aula, buscaremos traçar uma análise pautada na história e na geografia da política da agricultura capitalista. TEMA 1 – DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NO BRASIL O desenvolvimento do capitalismo Brasil teve uma trajetória muito particular. Gorender (1994) cita que o Brasil já nasce, ainda como colônia, inserido no modo de produção capitalista. Nasce, portanto, já na exploração do trabalho alheio como motor do desenvolvimento (no caso, o trabalho do negro escravizado). Mas não é isso que define o modo de produção capitalista e seu funcionamento no país; o que o define, podemos dizer a grosso modo, é o 3 esquema do latifúndio de terras, ancorado na tríade grande propriedade de terra, trabalho alheio e monocultura (Martins, 2015). Assim sendo, ambos os autores acima elencados e mais incisivamente Coggiola (2007) rechaçam a construção teórica de que o Brasil, em seu nascimento, tinha um tipo de produção feudal. O país foi, desde seu início, capitalista, e sua economia foi moldada, desde o princípio, com um caráter monopolizador e pouco inclusivo: O sistema colonial de distribuição de terras foi responsável pela formação do latifúndio; e conspirou contra a pequena propriedade. Ao contrário das colônias inglesas, no Brasil os pequenos proprietários não tinham incentivo da metrópole, mesmo na legislação. Sem pequena propriedade, sem qualquer industrialização sistemática, o latifúndio constituía a unidade econômica básica da colônia. A sociedade estava sendo moldada de acordo com a economia; os grandes proprietários rurais monopolizaram as riquezas, o prestígio e o domínio sobre a massa popular, composta por poucos homens livres, índios, mestiços e negros escravizados. [...] A economia primária de exportação, agitada pela independência (ou seja, a falência do monopólio comercial exercido pelo país colonizador) consolidou o latifúndio. Em vez de favorecer o acesso a terras e pequenas propriedades (como a Homestead Act nos EUA), a Lei de Terras, aprovada no Brasil em 1850, favorecia a propriedade de grande porte. A lei norte-americana propiciava a ocupação de terras, a brasileira dificultava. (Coggiola, 2007, p. 4, tradução nossa) Com esse desenvolvimento sendo pautado pela grande propriedade, sendo a compra de terras exclusiva a uma certa “proto” elite, uma vez que a compra se efetuava somente e diretamente com a Coroa portuguesa, limitou-se o acesso à terra. A inexistência de uma classe média, uma pequena burguesia e um campesinato articulados (como existentes nos EUA) impossibilitou a pequena propriedade camponesa em número considerável, ficando estes às margens do sistema latifundiário (Martins, 2015). Se nos EUA a independência foi gerada pela união de uma burguesia nascente, latifundiários e pequenos camponeses, no Brasil o mesmo processo ocorreu sem rupturas: foi de uma elite agrária subserviente a Coroa portuguesa para uma elite agrária dona de si. Este processo se seguiu ao longo do século XX. Como Coggiola (2007) novamente apresenta, o início dos anos 1930 é marcado pela crise econômica resultante do capitalismo liberal com o crash da bolsa de valores de Nova Yorkem 1929. 4 TEMA 2 – PODER POLÍTICO DO AGRONEGÓCIO: RAÍZES A independência, nos ensinam Gorender (1994) e Coggiola (2007), no caso brasileiro, estava muito mais atrelada à questão do declínio da exportação para a metrópole (Portugal, em crise devido às guerras napoleônicas junto com o restante da Europa) do que uma luta por autonomia econômica e política, como foi o caso estadunidense, que buscava se livrar das tarifas impostas pela Coroa britânica e poder negociar livremente no mundo seus produtos (Purdy; Karnal, 2007). Tanto isso fica evidente que a relação Brasil – Reino Unido cresce de maneira constante após 1822 com o processo de independência. O Reino Unido passa a vender suas manufaturas no país, e a elite agrária vende sua produção (ainda pequena) para esse país e consegue suas hipotecas em bancos britânicos. Outra intelectual, Motta (2012), nos ensina que o poder dos grandes latifundiários se manteve ao longo do século XX. Surgido como elencado acima com base ainda do Brasil Colônia, sua força se manteve constante ao longo do século passado e se mantém ainda neste curto século XXI. Seu poder advém do grande montante de dinheiro que possuem e têm disponível, o qual existe garantido pelas grandes propriedades que possuem. Com isso, há uma grande força política, uma vez que sua presença no Estado é necessária para atender aos interesses de sua classe e isto nasce ainda no Brasil Colônia. Em nome da Coroa, instituía-se um documento de propriedade, sem comprovação alguma em relação à medição e demarcação das terras e o cultivo, apenas um parecer anexado ao requerimento, no qual o juiz ou tabelião atestava a medição e demarcação das terras anteriormente feitas. O encaminhamento burocrático havia pressuposto que o sesmeiro tivesse de fato cumprido as determinações dos alvarás e provisões régias. Em outras palavras, a Chancelaria reconhecia um direito e referendava um processo anterior que, em tese, correspondia ao cumprimento das determinações expressas na lei. Nesse sentido, a despeito do adensamento dos conflitos e denúncias que chegavam ao Conselho Ultramarino, a concessão mantinha-se atrelada à noção de que ela era – antes de tudo – uma concessão política, e não territorial. A Coroa consagrava um documento – a carta de sesmaria -, expressão do poder dos terratenentes que, ao se submeterem aos procedimentos legais para a concessão, tiveram por graça um documento de propriedade. (Motta, 2012, p. 145, grifo nosso) A origem da carta sesmarial – “embrião” da propriedade de terra, origem da concentração de renda, terra e poder – emitida pela Coroa, era política, ou seja, quem obtinha a carta tinha ligações com a Corte, uma vez que a carta era um equivalente ao direito de propriedade, sejam essas ligações políticas, troca de favores, sinal de gratidão por algum serviço prestado ao Rei ou semelhante. O 5 que se destaca aqui é que não era possível a um colono pobre, por exemplo, como demonstra Motta (2012), obter acesso à terra, à sesmaria. Cabia a este, somente a posse. O processo de sesmaria então era um meio de dotar de poder econômico uma elite que não possuía no Brasil riquezas. Isso se seguiu ao longo do desenvolvimento do país. Com a independência e o Império, já em sua constituição de 1824, a propriedade privada se torna absoluta, ou seja, indivisível e de poder exclusivo de seu dono (Olesko, 2019). É um grande trunfo da classe dos proprietários de terra. Com a lei de terras de 1850, nada muda, somente são legalizadas as posses de grandes porções de terra sem documentos comprobatórios. Isso ocorre até o Estatuto da Terra de 1964 (Coggiola, 2007), quando a propriedade deixa de ser absoluta, porém, o poder absoluto não é esmorecido, somente há um afrouxamento. Com todo o desenvolvimento ocorrido ao longo do século XX na economia nacional, o grande proprietário se atualiza, como já vimos, passando pela agroindústria e chegando até a sua forma atual: a do agronegócio. Essas passagens todas mostram somente que ocorreram transformações de caráter produtivo, contudo que não retiraram desses sujeitos seu poder político, forjado ainda no Brasil colonial. A produção da força política desses sujeitos do campo é antiga e sua ação no Estado Brasileiro perpassou diversos períodos da história da política nacional: dos governos neodesenvolvimentistas do PT aos governos de centro direita de FHC, com Dom Pedro II no Império, na política da República Velha e nos anos Vargas. TEMA 3 – PODER POLÍTICO DA AGRICULTURA CAPITALISTA NO MUNDO O Brasil aparentemente se faz como país único no mundo no que toca à força da agricultura capitalista na política. Todavia isso não é uma realidade. Na grande coletânea de Huber e Safford (1995), ambos mostram como o poder da agricultura capitalista (não somente no Brasil, mas na América Latina como um todo) é muito forte. Há uma presença forte em praticamente todos os países latino- americanos de uma força política que advém do poder dos latifundiários (os terratienentes como são nomeados no restante do continente) e que dita os rumos do Estado e da economia destes países. Shumway (2008), ao versar sobre a Argentina, mostra como o país perpassou ao largo de sua história por disputas constantes entre os grandes proprietários agrários e uma nascente burguesia urbana, resultando no século XX 6 em dois golpes militares e em diversos conflitos sociais e problemas econômicos de grande envergadura devido a essa disputa, a qual, durante o século XXI, foi dominada indiretamente por esses terratienentes: primeiramente com o Kirchnerismo e depois com Maurício Macri (Wahren, 2016). Ocorreu então naquele país um domínio indireto da classe da agricultura capitalista: ainda que os governos não sejam propriamente formados por ruralistas, são estes que dominam as decisões do Estado. Processo semelhante passa a Colômbia, situação que Mondragón (2012) esmiúça: trata-se não só um conflito, mas de uma guerra civil de fato, havendo, de um lado, o Estado (dominado por grandes latifundiários) e, do outro, o campesinato (em parte servindo de exército para o narcotráfico). O conflito ocorre, dentre outras motivações, pelo fato de existir uma concentração de renda e de terras nas mãos de poucos sujeitos, os quais superexploram o trabalho camponês e ainda acabam por sufocar qualquer possibilidade de desenvolvimento de uma indústria local. Por fim, outro caso emblemático é analisado pelo mexicano Bartra (2011), segundo o qual a revolução mexicana de 1910 realizou sim uma pequena distribuição de terra, contudo o país viveu por décadas sob o domínio do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e do Partido da Ação Nacional (PAN) durante o século XX. Os partidos eram dominados direta ou indiretamente por um classe de grandes proprietários rurais, os quais nem sempre eram ligados, entretanto, à produção agrária, uma vez que muitos deles têm ligações com mineração, petróleo, gás natural etc. Há também um conflito latente entre o campesinato nacional e o Estado, uma vez que ainda que muitos tenham terras, são sujeitos às mais diversas ausências do governo. São sujeitos aos mais variados tipos de exploração, o que resultou em dois processos distintos: uma hipertrofia da cidade do México (capital) e uma grande migração para os EUA, isso tudo causado pela grande concentração de renda existente no país. Esses três países, por exemplo, servem para notarmos como existe um padrão semelhante de concentração de poder, renda e terra nas mãos de uma classe. A Argentina começa a se modernizar tardiamente, somente a partir dos anos 2000, enquanto no México e Colômbia tal fato não acontece. Sendo assim, temos no Brasil e na Argentina uma classe da agricultura que se difere dentro de 7 si: de um lado, o arcaísmo da propriedade improdutiva voltada para a especulação; de outro,o agronegócio moderno, exportador de commodities. TEMA 4 – REFORMA AGRÁRIA A reforma agrária é um processo no qual a terra é dividida e distribuída para os que precisam dela para trabalhar, ou seja, o campesinato. Segundo Amin e Vergopoulos (1977), o processo da Reforma Agrária serviu para melhorar a distribuição de renda de diversos países e para, inclusive, fomentar a industrialização. Os Estados Unidos de Lincoln, a recém-unificada Alemanha de Bismark e o Japão do fim do século XIX são apenas alguns dos exemplos mais marcantes que os autores nos trazem para mostrar que, nesses países, o capitalismo industrial triunfou e se desenvolveu de maneira forte e constante graças à distribuição de renda, contudo no Brasil esse processo não ocorreu: A raiz do desenvolvimento capitalista moderno no Brasil está em seu caráter rentista. Isto quer dizer que a concentração da propriedade privada da terra atua como processo de concentração da riqueza e do capital. Seu desenvolvimento se faz, principalmente, através da fusão em uma mesma pessoa do capitalista e do proprietário de terra. Embora este processo tenha sua origem na escravidão, e em particular na passagem do trabalho escravo para o trabalho livre, foi a partir da segunda metade do século XX que esta fusão ampliou-se significativamente. Assim, a chamada modernização da agricultura não atuou no sentido da transformação dos latifundiários em empresários capitalistas, mas, ao contrário, transformou os capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do Centro-Sul do país, em latifundiários. (Oliveira, 2011, p. 1) O capitalismo nacional tem, portanto, segundo Oliveira (2011), um caráter rentista, que vive de juros, não um viés produtivo. Como também já colocamos, somente 30% dos grandes proprietários de terra podem ser compreendidos como pertencentes ao agronegócio; os outros 70% são proprietários que não produzem e normalmente vivem de hipotecar suas terras e investir o dinheiro obtido em especulação. As consequências disso são brutais para a economia nacional: concentração de renda, expansão limitada do mercado consumidor, decadência da indústria, hipertrofia do setor de serviços e aumento da dependência externa. A reforma agrária realizada nos países centrais, segundo nos ensinam Amin e Vergopoulos (1977), trouxe o benefício de um barateamento da cesta básica desses países, o que diminuiu o salário urbano (uma vez que trabalhadores e trabalhadoras conseguem comprar muito com pouco dinheiro), o que acarreta num aumento da taxa de lucro do empresário, possibilitando a este fazer novos 8 investimentos em produção, o que produz um ciclo virtuoso da economia. Esse processo segue até os dias atuais, com força especialmente na Alemanha e no Japão. Diferentemente do que o senso comum apregoa, reforma agrária não é sinônimo de política socialista, tanto que a primeira grande reforma de distribuição de renda foi a realizada pelos EUA a partir de 1862 com o Homestad Act, a qual acelerou de maneira impressionante o próprio capitalismo daquele país, pois gerou a possibilidade de abastecimento barato para as cidades, não criando chances de concentração de renda e bolsões de pobreza nas cidades e no campo e apaziguou também as lutas – agora sim – sindicais em defesa do socialismo. Novamente, como Coggiola (2007) nos ensina, o reflexo disso na atualidade é a ausência de um grande partido de esquerda nos EUA, e ainda assim nenhum grande capitalista daquele país defende a grade propriedade e sim a manutenção dos farmers médios e pequenos, com seu trabalho supertecnificado sim, mas familiar. Logo, a luta por uma reforma agrária não é, automaticamente, a luta contra o agronegócio. É uma luta contra a grande propriedade improdutiva, contra o capitalismo rentista, e a favor da distribuição de renda e do meio produtivo. TEMA 5 – POLÍTICA E AGRONEGÓCIO: A CHAMADA BANCADA RURALISTA A atualidade do poder político da classe dos grandes proprietários fundiários é ainda importante e destaca-se não somente no Brasil, mas também em outros países da América Latina. Hoje, na segunda década do século XXI chegando perto de seu fim, vemos um processo em que seu poder político retorna às raízes. Em outras palavras, se durante 15 anos houve um período de concílio de classes nos Estados da América Latina, hoje há uma ruptura com as classes populares e um conflito que ocorre entre as próprias elites. No caso brasileiro, destaca-se o processo iniciado ainda com o segundo mandado de Dilma Rousseff, a qual trouxe já para seu governo elementos do liberalismo, como seu ministro da Fazenda. Esse processo passou ainda pela ascensão de seu vice, Michel Temer, ao poder e já em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro para presidente. Foi então um pêndulo que estava na centro- esquerda até chegar na extrema direita, sempre com o apoio dos ruralistas, os quais, após a crise de 2015, anseiam por recuperar perdas financeiras com novos 9 empreendimentos no campo (Olesko, 2019). O mesmo se deu na Argentina, como mostram Gras e Hernandez (2016). Todavia Bruno (2002, 2016), em suas diversas análises, mostra como, de uma maneira ou de outra, o poder político desse grupo no Brasil nunca diminuiu. Alguns políticos se fazem presentes há anos no Congresso Nacional, desde a Constituinte de 1998; outros entram mais tardiamente e com novas visões. Nossa análise do poder dessa classe e de seus conflitos internos pode ser resumida nos confrontos entre a grande empresária rural Kátia Abreu, ministra de governos da centro-esquerda do PT, ex-presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) e Ronaldo Caiado, histórico político de Goiás, líder da já extinta União Democrática Ruralista (UDR), governador de seu estado e grande articulador dos grandes proprietários rurais. Esses dois políticos de grande envergadura nacional representam duas faces da classe dos ruralistas: a face moderna, produtiva, exportadora representada pelo agronegócio, por Abreu e a face tradicional, rentista, mais ancestralmente politizada, representada por Caiado. Ambos se fazem presentes, ora juntos, ora em conflito aberto e em posições contrárias de todos os governos presidenciais do Brasil desde 1988. A presença dessa classe nas tomadas de decisão da política nacional é, portanto, constante. A UDR foi um movimento sempre presente no Congresso Nacional. Como Bruno (1996) cita, teve sua origem nos proprietários agroindustriais surgidos durante a Ditadura Militar. Com a sua mutação em agronegócio, hoje chamamos de bancada ruralista essa força política na Câmara e no Senado do país. Essa bancada não age mais em um bloco totalmente coeso como o fazia nos tempos de UDR, pois agora existem divergências internas como aquela que tomamos por exemplo acima. Porém, devemos ter em mente que o poder dos grandes proprietários fundiários, modernos ou arcaicos, exportadores de commodities ou rentistas de suas terras, progressistas os reacionários no tocante dos costumes, tem, enfim, sua força e presença de maneira muito grande dentro do Estado brasileiro e de suas instituições políticas, sociais, jurídicas, culturais e econômicas. 10 REFERÊNCIAS AMIN, S.; VERGOPOULOS, K. A questão Agrária e o Capitalismo. Tradução de Beatriz Resende. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. BARTRA, A. V. Os novos camponeses: leituras a partir do México profundo. Tradução de Maria Angélica Pandolfi. São Paulo, Cultura Acadêmica; Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Sustentável. 2011. BRUNO, R. Com a boca torta pelo uso do cachimbo: Estado e empresários agroindustriais no Brasil – Mundo rural e cultura. Rio de Janeiro: Mauad: PRONEX, 2002. _____. Desigualdade, agronegócio, agricultura familiar no Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, 2016. _____. Revisitando a UDR: ação política, ideologia e representação.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 40, p. 69-89, 1996. COGGIOLA, O. La cuestión agraria en Brasil – Grupo de Pesquisa História e Economia Mundial Contemporâneas. Revista Digital de História Contemporânea, Buenos Aires, p. 1-48, mar. 2007. GORENDER, J. Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro: a questão agrária hoje, v. 2, 1994 GRAS, C.; HERNANDEZ, V. A. Radiografía del nuevo campo argentino: del terrateniente al empresario transnacional. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2016 HUBER, E.; SAFFORD, F. Agrarian Structure & Political Power – Landlord & Peasant in the Making of Latin America. Pittsburg/EUA: University of Pittsburgh Press, 1995. MARTINS, J. S. O cativeiro da terra. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2015. MONDRAGÓN, H. Empresa colonial, ontologia e violência. Agrária, São Paulo, n. 17, p. 6-41, 2012. MOTTA, M. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito (1795-1824). 2. ed. São Paulo: Alameda, 2012. OLESKO, G. F. Terra, luta de classes e acumulação original em comunidades camponesas: a geografia das terras de uso comum no Brasil e Argentina. Tese 11 (Doutorado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019. OLIVEIRA, A. U. Não reforma agrária e contrarreforma agrária no Brasil do governo Lula. Observatório Geográfico da América Latina, 2011. Disponível em: <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal13/Geografiasocioecono mica/Geografiaagraria/04.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2019. PURDY, S.; KARNAL, L. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. SHUMWAY, N. A invenção da Argentina: história de uma ideia. Tradução de Sérgio Bath e Mário Higa. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo; Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 2008 WAHREN, J. La situación agraria en la Argentina actual: Agronegocio y Resistencias Campesinas e Indígenas. Retratos de Assentamentos, v. 19, n. 2, p. 37-68, 2016. AULA 4 AGRONEGÓCIO: CONTEXTOS ECONÔMICO, SOCIAL E POLÍTICO Prof. Gustavo Felipe Olesko 2 CONVERSA INICIAL Existem diversos elementos centrais na produção do espaço agrário, e um deles é o trabalho. É preciso considerar vários tipos de trabalho no campo no Brasil e no mundo, e esse será o nosso foco de análise. As diversas faces do trabalho rural vão desde o trabalho nada fragmentado do camponês até a expressão máxima da agricultura capitalista, com o trabalhador assalariado que maneja um grande trator com tecnologia de ponta em uma grande fazenda de agronegócio, altamente produtiva. Não é somente um grupo que produz o espaço, como já vimos anteriormente, mas todos eles: os mais distintos grupos e classes sociais, que, com suas particularidades, produzem o espaço e os territórios com base em suas lógicas de vida, que se expressam passando, de uma maneira ou outra, pelo trabalho. TEMA 1 – TRABALHO COMO ELEMENTO FUNDADOR Um ponto central nas relações de produção agrárias existentes dentro do modo de produção capitalista é o trabalho. Sem ele não há geração de renda com a terra, nem produção de capital na circulação. Diferentemente da cidade, onde o que predomina é o trabalho alienado, ou seja, aquele em que não se tem o domínio total do processo, no campo existe uma relação intrínseca entre trabalho e produto, efetivada das mais diversas formas. Lukács (1979) esmiúça que o trabalho, como categoria central da humanidade, faz com que a roda da história se movimente. Em outras palavras, o ser humano é humano porque realiza, por meio do trabalho, uma mediação entre sociedade e natureza de maneira constante e indissociável. É no trabalho que a humanidade se autorrealiza como tal. A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica. (Lukács, 1979, p. 4) Em outras palavras, o trabalho, para o ser humano, não é mera reprodução biológica, como seria o trabalho de uma abelha, por exemplo, no processo de feitura do mel, ou ainda, na construção de barragens por castores. É um processo que se modifica ao longo do tempo e dos territórios. O trabalho na lavoura de um campo no Brasil, mesmo com toda a tecnologia disponível e a globalização que 3 busca homogeneizar o mundo, é diferente do trabalho em uma lavoura na Rússia, por exemplo. Indo além, o trabalho é o ponto central do modo de produção capitalista em diversos aspectos, do cultural ao econômico. É cultural, pois aquele que trabalha carrega junto de si o orgulho de uma relação que o leva a defender seu posto de trabalho (no caso urbano) ou seu modo de trabalho (como fazem os camponeses). É econômico, pois somente o trabalho gera valor; capital é trabalho morto, trabalho acumulado, que subsiste pelo processo de “sugar” o sangue do trabalho em si mesmo, sendo assim uma relação totalmente entrelaçada (Grespan, 2012). Tendo em mente que é o trabalho que dá sentido não somente à humanidade, mas ao próprio modo de produção capitalista, podemos entender que o espaço agrário é aquele no qual o trabalho se faz mais “vivo”. Há nesse espaço o trabalho camponês, o trabalho assalariado, o trabalho realizado pelos povos e comunidades tradicionais, e também a especulação financeira em torno desse mesmo trabalho. TEMA 2 – TRABALHO CAMPONÊS AUTÔNOMO O trabalho do campesinato na terra está totalmente atrelado à questão dicotômica de relação social; ou seja, ele é ao mesmo tempo uma classe social do modo de produção capitalista e um modo de vida (Shanin, 2008). Sendo assim, a família camponesa tem, em seu cerne e como objetivo central de sua existência a manutenção de si mesma. Isso é possível somente por meio do trabalho na terra. Porém, a terra para o campesinato é território de vida, e também de reprodução social, cultural, econômica e histórica; portanto, a terra para o camponês é simbolicamente o lugar de autonomia e de exercício de seu saber, e que é parte de um processo mais amplo, que está ligado a uma percepção própria da natureza e do ser humano. Esse saber se mostra de maneiras distintas em diferentes espaços. Exemplo disso é o sindicato rural, no qual há um trabalho político por parte dos camponeses, enquanto que no sítio ocorre um trabalho agrícola, em que o “saber-fazer” é vital. Vale destacar que o saber camponês, em seu âmago, envolve a ideia de que não há natureza sem o ser humano, ou seja, ela é dependente deste (Woortmann; Woortmann, 1997). 4 A produção é central para a reprodução social do grupo camponês, e se efetiva pelo trabalho, que é uma junção de relações sociais (simbólicas ou não) e de forças produtivas. O campesinato exerce poder, pois detém um saber. O saber técnico é fundamental para a reprodução da estrutura social; logo, saber é poder. O campesinato em especial se diferencia do operariado por, além de outras razões, não se separar de seus meios de produção e nem do “saber produzir” (Woortmann; Woortmann, 1997). Em outras palavras, podemos compreender que a vida do campesinato não é “fragmentada”, como a vida do trabalhador urbano ou do empresário, também urbano. Seu local de trabalho, lazer e vida se confundem, sendo, de maneira geral, praticamente um só. Ao trabalhar a terra, o camponês realiza outro trabalho: o ideológico, pois além de ações técnicas, o trabalho também é um processo de ações simbólicas. Logo, além de produzir o cultivo, produz cultura. Outro ponto importante é a questão da terra. Para os camponeses, os direitos sobre a terra não passavam pelo cartório. Ou seja, a terra era de quem trabalhava. Não havia o entendimento de que seria necessário ter
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