Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Movimento Antiproibicionista: RENFA - Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas Caio Brumel Soares de Santana INTRODUÇÃO A política de drogas no Brasil é uma questão complexa, as políticas proibicionistas adotadas até o momento têm resultado em altos índices de encarceramento e violência, afetando de forma desproporcional as mulheres, especialmente as mulheres negras e pobres. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) mostram que 62% da população carcerária feminina é composta por mulheres negras, e o tráfico de drogas é o principal motivo. Portanto, não há como falar de Movimento Antiproibicionista sem ponderar sobre questões raciais e de gênero. Nesse cenário, surge a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), “uma organização suprapartidária, feminista, antirracista e anticapitalista que traz a discussão sobre as políticas de drogas no Brasil e seus impactos na vida das mulheres”, sobretudo para aquelas que se encontram em situação de cárcere, bem como para suas famílias, visto que as mulheres, em geral, são as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos, e a prisão pode ter um efeito cascata na vida de toda a família. Ademais, a RENFA reconhece que as mulheres que trabalham como profissionais do sexo, aquelas que se encontram em situação de rua, as pertencentes à comunidade LGBTQIA+, em sua maioria negras, são frequentemente criminalizadas e estigmatizadas pela sociedade, o que aumenta sua vulnerabilidade, as expondo a várias formas de violência, incluindo a violência institucional por parte do Estado. Dada a importância que esses temas têm para que se possa compreender toda a complexidade das políticas de drogas no país é cabível expor como a RENFA luta contra essas políticas e tem se posicionado de forma ativa no debate público. A organização deste trabalho seguirá uma estrutura que busca analisar a conjuntura de guerra às drogas no Brasil, as ações da RENFA frente a essa questão e suas particularidades com as reflexões do texto de Breno Bringel e a entrevista com Helena Silvestre, espera-se assim, contribuir para um debate sobre a luta feminista dentro do movimento antiproibicionista. MULHERES PERANTE O CENÁRIO DE GUERRA ÀS DROGAS A política de guerra às drogas no Brasil tem sido uma pauta que gera controvérsia há décadas, a abordagem adotada pelo governo brasileiro tem sido predominantemente punitiva, focando na repressão do uso e tráfico de drogas. Sob análise feminista antiproibicionista, a guerra às drogas é uma questão de gênero por diversas razões. Primeiramente, como já foi mencionado, a política antiproibicionista - nacional e internacional - tem um impacto desproporcional sobre as mulheres, sobretudo as mulheres negras, pobres e periféricas, pois são as que mais sofrem com a violência policial e o encarceramento em massa. O encarceramento de mulheres por delitos relacionados ao tráfico é alarmante. Essa dura realidade pode ser explicada, em parte, devido a existência de uma lei de drogas extremamente punitivista e com penas desproporcionais, que acaba por servir como uma forma de gerir as desigualdades sociais. Essa lei não considera todo o contexto dos delitos cometidos pelas mulheres, que em muitas situações são coagidas ou usadas pelos companheiros para transportar drogas. Muitas vezes, sendo presas devido a tarefas ligadas ao tráfico de drogas em pequena escala, geralmente devido à situação econômica ou coerção. A respeito desse fato, Souza (2009) afirma: [...] Esse aumento de mulheres presas por causa do tráfico teria por causa a maioria das mulheres desempenhar funções subalternas na escala hierárquica, sendo, assim, mais facilmente presas, em ordem decrescente de frequência e importância da função feminina associada ao tráfico: “bucha” (pessoa que é presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões), consumidoras, “mula” ou “avião” (transportadoras da droga), vapor (que negocia pequenas quantidades no varejo), “cúmplice” ou “assistente/fogueteira”. [...] (SOUZA, 2009, p. 655) Por conseguinte, as mulheres que estão envolvidas com o tráfico de drogas, por exemplo, muitas vezes são vítimas de violência sexual e outras formas de violência de gênero. Também, as condições de encarceramento das mulheres no Brasil são geralmente precárias, são privadas de acesso a serviços de saúde, como programas de prevenção e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, sem contar na falta de acesso a assistência jurídica, ocasionando um efeito devastador na saúde mental e física das detentas, bem como nas perspectivas de reintegração à sociedade após a liberação. Outro aspecto importante que cabe mencionar são as cotidianas operações policiais sanguinárias nas favelas e periferias. A atual legislação brasileira de drogas, regida pela Lei 11.343/2006, tem causado um forte impacto na vida das mulheres, principalmente mães, são elas as principais afetadas, seja por perderem seus filhos devido a violência do Estado, ou serem estigmatizadas, não podendo manter contato com seus filhos e, em alguns casos, terem seus filhos retirados de sua guarda, entregues a membros da família ou a centros de adoção, como resultado, os filhos também se envolvem com o tráfico, o que gera um ciclo vicioso de envolvimento no tráfico de drogas e encarceramento. É fato que essa política de criminalização das drogas, tem como alvo principal a população pobre e racializada, perpetuando uma guerra brutal que tem destruído a vida de muitas pessoas e comunidades. Durante sua visita ao Brasil no ano de 2017, a filósofa estadunidense Angela Davis discorreu sobre a questão do sistema carcerário e como ele é responsável por alimentar a população prisional, que é majoritariamente composta por indivíduos negros. Davis também discutiu a conexão entre o punitivismo do encarceramento e o legado da escravidão, destacando a ideia de que a instituição escravocrata busca se perpetuar de forma "mais humanizada" através do aprisionamento da população negra. ATUAÇÃO DA RENFA ANTE A NECESSIDADE DE UNIR AGENDAS DE LUTAS ESPECÍFICAS E A TENDÊNCIA DE MULTIESCALARIDADE DAS LUTAS A Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas foi fundada em 2016 e hoje possui coletivos em vários estados do Brasil (Alagoas, Pernambuco, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará, Amapá, Sergipe e Roraima). Esses coletivos que compõem a RENFA promovem diversas ações com o intuito de transformar os modelos de controle pelos sistemas de opressão no campo das políticas de drogas das mais variadas formas. A ideia de criar uma rede feminista surgiu a partir de insatisfações durante a Marcha da Maconha em 2011, onde essas mulheres não se sentiam representadas. Em um vídeo que pode ser encontrado no site institucional do movimento, uma das ativistas profere: “A gente viu que, quem estava à frente daquele projeto, à frente da manifestação, eram pessoas brancas, ricas e universitárias que não nos representavam”. Urgiu então a necessidade de articular a luta feminista e todas suas especificidades com a luta antiproibicionista. Ao unir as agendas de lutas, a RENFA amplifica a base de apoio para suas reivindicações, ao mesmo tempo em que mantém a especificidade da perspectiva feminista. Inclusive, isso se relaciona com a importância da criação de agendas de lutas unitárias e com direcionamento político classista mencionado na entrevista com Helena Silvestre, militante do Movimento Popular, concedida a Revista Temporalis. Ao ser perguntada sobre as formas de superar ações fragmentadas e espontaneísmo de lutas e demandas ela afirma: [...] Mas pensando a superação desta situação, creio que os movimentos devem ter em sua agenda o trabalho e a construção de base como um ponto fundamental para isso. Falo dessa forma porque as pessoas não são fragmentadas, o companheiro gay sofre com a falta de ônibus, não tem moradia, é superexplorado no trabalho e nuncavai conseguir entrar em uma universidade pública. Muitas das respostas virão com nosso retorno às bases, problemas novos surgirão, porém, como ainda acredito que a cabeça pensa conforme o chão que os pés pisam, são eles que permitirão não só aos trabalhadores, mas também às organizações perceber que o que nos unifica é maior que o que nos divide. Acho que as agendas de luta devem ser fruto da integração real das organizações em sua construção diária, em seu trabalho mais simples. [...] (SILVESTRE, 2011, p. 276) Logo, a unificação de agendas é essencial para a construção de uma luta política classista e ampla, que abarque as diversas lutas sociais e econômicas em um movimento. Além de que, essa abordagem permite uma maior visibilidade para as demandas específicas de cada grupo, mas ao mesmo tempo liga essas demandas a uma luta maior. Para isso, a RENFA participa de espaços de diálogo e mobilização com grupos, redes e coletivos que atuam na defesa dos direitos das mulheres, das populações negras, indígenas, LGBTQIA+, dos trabalhadores, a luta antimanicomial, entre outros. Buscando também construir uma agenda comum que reconheça as interseccionalidades das opressões e as especificidades das demandas de cada grupo. A RENFA também investe em formação, como cursos, oficinas e debates a fim de capacitar suas integrantes a respeito da luta antiproibicionista e defesa dos direitos das mulheres. A rede produz conteúdos educativos e campanhas de conscientização nas redes sociais e em seu site institucional. Oferecem auxílio jurídico e de saúde, assim ajudando mulheres a se reintegrar na sociedade em meio a um ambiente de redução de danos, podendo assim fazer uso consciente e seguro de substâncias psicoativas. Como mencionado, a RENFA se encontra em 12 estados brasileiros, desenvolvendo ações a nível nacional e internacional (De acordo com Carta de Princípios da RENFA, a Rede também se encontra na América Latina, por meio da Articulação Feminista Antiproibicionista Latino Americana, uma rede de mulheres feministas antiproibicionistas, contando com a presença de 12 países, são eles Uruguai, Argentina, Chile, México, Colômbia, Espanha, Bolivia, Equador, Peru, Portugual, Costa Rica e Brasil), o que permite a troca de experiências e informações, bem como a participação em eventos e encontros internacionais sobre o tema. No contexto em que vivemos, direitos têm sido ameaçados, sendo assim preciso fortalecer as alianças e solidariedades entre diferentes territórios e movimentos sociais, buscando ampliar as vozes que se levantam contra essas injustiças e construindo resistências mais amplas e potentes. Pode-se assim dizer, que a atuação da RENFA exemplifica a multiescalaridade das lutas, um conceito mencionado pelo professor e sociólogo Breno Bringel em sua pesquisa sobre os movimentos sociais contemporâneos. Essa ideia se baseia na compreensão de que as lutas sociais não se limitam a uma única escala (local, nacional ou global). Bringel (2018) enfatiza que, se as lutas sociais se limitarem apenas a um território ou comunidade, sem criar alianças políticas mais amplas, elas ficarão isoladas e terão menos chances de criar mudanças significativas e duradouras. Portanto, é importante articular a luta em diversas escalas, com o objetivo de construir alianças políticas mais amplas e garantir que a luta tenha impacto em diferentes níveis. Essas articulações permitem também que diferentes redes e movimentos sociais compartilhem suas experiências, conhecimentos e recursos, fortalecendo as lutas em conjunto. Ainda segundo ele, as escalas não são apenas geográficas ou territoriais, mas também incluem dimensões epistêmicas e relacionais (BRINGEL, 2018). Ou seja, o corpo pode ser visto como uma escala de luta para os movimentos feministas, pois a luta por direitos muitas vezes está relacionada ao corpo, liberdade de expressão e autonomia sobre ele. Por exemplo, direitos reprodutivos, uma pauta recorrente dentro da RENFA, inclusive. Ademais, Silva (2010) destaca a importância do feminismo como um projeto de vida, onde as mulheres que se reconhecem enquanto feministas devem se ater à conjuntura em que todas as mulheres estão inseridas e lutar coletivamente pela autonomia e liberdade de todas. Isso implica em coerência entre o pensar, sentir e agir, ou seja, em colocar em prática as ideias feministas no cotidiano e estar sempre aberta ao desafios de ser uma feminista comprometida e coerente. Na Carta de Princípios da RENFA, que pode ser encontrada em seu site institucional, há o seguinte: “Autocuidado e cuidado coletivo enquanto metodologia política, para além da moral prescritiva de padrões estéticos e morais sobre os nossos corpos, compreendendo que todas as pessoas que compõem a rede vivenciam de formas diferentes as violências decorrentes do sistema cisheteropatriarcal, classista e racista. Promover autocuidado com objetivo de proporcionar auto reflexão, para construir o modo como se desenvolve a luta feminista antiproibicionista.” Essa perspectiva é fundamental para entender a relação entre a RENFA e seu feminismo antiproibicionista, ao compreender a importância do corpo como um espaço de luta política, valorizando a diversidade de corpos e experiências das mulheres, e isso inclui aquelas que são frequentemente marginalizadas e invisibilizadas pelo feminismo mainstream. Isso significa reconhecer a importância da luta feminista para as mulheres trans e travestis, que frequentemente são excluídas e invisibilizadas pela cisnormatividade. Também significa reconhecer o trabalho sexual como uma forma de trabalho legítima que necessita de leis trabalhistas que a regulamentem e a importância da luta histórica das mulheres racializadas desde o período colonial, enfrentando até os dias de hoje múltiplas formas de discriminação e opressão, quase sempre ligadas a estereótipos racistas e sexistas. Quando há um entendimento e valorização sobre a diversidade de corpos e experiências das mulheres, a RENFA busca construir um feminismo que seja inclusivo e interseccional, visto que mulheres não são um grupo homogêneo e que as opressões que enfrentam são são influenciadas por outros fatores, como raça, classe social, orientação sexual, entre outros fatores. Dessa forma, a luta feminista deve ser pensada de forma mais ampla, incorporando as lutas contra todas as formas de opressão que afetam as mulheres. CONCLUSÃO As desigualdades de gênero, raça e classe são estruturais na sociedade brasileira e possuem um certo impacto na forma como as políticas de drogas são implementadas na sociedade. A chamada “política de guerra às drogas” no Brasil é marcada pela criminalização da pobreza e pelo racismo estrutural, que como foi abordado no presente artigo, atingem especialmente as mulheres negras e periféricas. No núcleo familiar, as mulheres também são as mães das pessoas que usam drogas e dessa forma sofrem os impactos da violência decorrente do tráfico. Dessa forma, a perspectiva antiproibicionista é fundamental para entender que a proibição das drogas não é a solução para o problema do tráfico. Em vez disso, é necessário considerar políticas de redução de danos e o tratamento das pessoas que usam drogas como uma questão de saúde pública, em vez de criminalização. Isso pode ajudar a diminuir a violência e os danos causados por essa problemática. Já a perspectiva antirracista é necessária para entender que a política de drogas está profundamente enraizada em práticas racistas. As políticas de controle de drogas foram implementadas para criminalizar as populações negras e marginalizadas e são responsáveis por grande parte da desigualdade e encarceramento em massa que essas comunidades enfrentam. A Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas tem se prontificado na luta contra as políticas proibicionistas e na defesa dos direitos das mulheres que são prejudicadas pela guerra às drogas. Ao promover ações que levem em consideração as vivênciasde todas as mulheres, ela trabalha para transformar os modelos de controle pelos sistemas de opressão no campo das políticas de drogas. Portanto, é necessário que as políticas públicas levem em conta as desigualdades de gênero e raça presentes na questão das drogas. Isso implica em repensar as leis que criminalizam as drogas, garantir o acesso a serviços de saúde, assistência jurídica de qualidade, bem como instaurar acesso a alternativas econômicas e de trabalho, serviços de assistência social e psicológica, além da possibilidade de redução de pena em casos de maternidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Abramides, M. B. C; Duriguetto, M. L. Entrevista com Helena Silvestre: militante do Movimento Luta Popular. Temporalis, Brasília, v.11, n.21, p.271-280, jan/jun, 2011. BRINGEL, B. Mudanças no ativismo contemporâneo: controvérsias, diálogos e tendências. In: FASE (ed.). A luta popular urbana por seus protagonistas: Direito à cidade, direitos nas cidades Rio de Janeiro: FASE, 2018. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: mulheres e grupos específicos. Disponível em: <https://conectas.org/wp-content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1 .pdf> . Acesso em: 12 abr. 2023. FLÓRES, Júlia. O que é o feminismo antiproibicionista e o que ele defende? Universa, 03 mai. 2022. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/05/03/o-que-e-o-feminismo- antiproibicionista-e-o-que-ele-defende.htm.> Acesso em: 09 abr. 2023. Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. Site da RENFA. Disponível em: https://renfa.org. Acesso em: 08 abr. 2023. NOELLE, Midiã. Angela Davis compara encarceramento à escravidão moderna. Jornalista Livres. 27 jul. de 2017. Disponível em: <https://jornalistaslivres.org/angela-davis-compara-encarceramento-escravidaomode rna/>. Acesso em: 12 abr. 2023. SILVA, Carmen S. M. Os Sentidos da Educação. In Carmen Silva. Experiências em Pedagogia Feminista. SOS Corpo: Instituto Feminista para a Democracia: Recife, 2010. SOUZA, Kátia Ovídia. A pouca visibilidade da mulher brasileira no tráfico de drogas. In: Psicologia em Estudo, Maringá, v. 14, n. 4, p. 655, out/dez 2009. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/pe/v14n4/v14n4a05.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2023
Compartilhar