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Milena Silva Araujo MEDUFES 105 Gastroenterologia Dispepsia funcional ● Caso clínico: ○ ID: 59 anos, sexo feminino, vendedora ○ HDA: há mais de 1 ano com dor abdominal recorrente em epigástrio, 2 a 3x por semana, de moderada intensidade, que relaciona à alimentação, mas não sabe identificar alimentos precipitantes. Possui intolerância à lactose e realiza dieta corretamente. Nega perda de peso, vômitos ou outros sintomas. ○ HPP: ■ DM2 ■ Hipotireoidismo ■ DRGE erosiva ■ H. pylori tratada em 2013, com controle de cura ■ Intolerância à lactose ■ Esteatose hepática ■ Medicamentos: ● Domperidona 10 mg 2x/dia ● Pantoprazol 40 mg/jejum ● Levotiroxina 50 mcg/dia ● Metformina 500 mg 3 cp/dia ● Atorvastatina 10 mg ○ HPS: ■ Ex-tabagista (parou em 1994) ■ Nega etilismo ○ Exame físico: sobrepeso, sem alterações ○ Exames complementares: ■ EDA: esofagite erosiva grau A de Los Angeles. Gastrite enantematosa do antro de leve intensidade. ■ Colono: normal ■ USG de abdome: esteatose hepática grau III. Cisto renal à esquerda de 1,3 cm. ■ Teste de tolerância à lactose: positivo ■ Laboratoriais: ● Hemoglobina: 13,4 ● Leucócitos: 5.830 ● Plaquetas: 243.000 ● Creatinina: 0,76 ● Ureia: 29 ● TGO: 17 ● TGP: 22 ● TSH: 2,4 ● T4L: 1,5 ● Hemoglobina glicada: 7,2% ● Colesterol total: 177 ● LDL: 93 ● HDL: 59 Milena Silva Araujo MEDUFES 105 ● Triglicerídeos: 124 ● Vitamina B12: 369 ● Vitamina D: 28 ○ Hipótese diagnóstica: dispepsia funcional – subgrupo dor epigástrica ○ Conduta: ■ Iniciada nortriptilina 50 mg/noite ■ Reforço importância de dieta para intolerância à lactose ■ Redução de pantoprazol para 20 mg/dia devido ausência de melhora da dor abdominal ■ Suspenso domperidona ■ Orientada sobre a ausência de malignidade, curso da doença e expectativas de tratamento ● Conceito: distúrbio funcional crônico do trato gastroduodenal caracterizado por dor epigástrica, plenitude pós-prandial ou saciedade precoce recorrente. Costuma evoluir com períodos de piora e remissão. ● Doença funcional: ausência de anormalidades estruturais e bioquímicas em exames complementares, laboratoriais e de imagem ● Importância: ○ Grande impacto na qualidade de vida e produtividade ○ 50% aceitariam risco de 12,7% de morte súbita em troca da cura ○ EUA: gasto de mais de 18 bilhões por ano ● Epidemiologia: ○ A prevalência da dispepsia não investigada no mundo chega a 20%; 75 a 80% dos casos são por dispepsia funcional ○ É subdiagnosticada: sintomas inespecíficos e que confundem com outras doenças ○ Mais prevalente em mulheres ○ Comumente associada a distúrbios psiquiátricos: transtorno de ansiedade aumenta em 8x o risco ○ Com tratamento adequado: ■ 10 a 20% apresentam resolução ■ 50% permanecem com sintomas ● Fisiopatologia: ○ Várias teorias e meios que a doença pode se desenvolver ○ Importância do eixo cérebro-intestino: ■ Geralmente há estresse emocional ou doença psiquiátrica antes dos sintomas gastrointestinais, mas o inverso também pode acontecer ■ Em pacientes predispostos (expostos a antígenos, alimentos e medicações específicas), pode gerar resposta imune alterada no duodeno (eosinofilia é muito prevalente nesses pacientes) ■ A alteração da resposta imune provoca disfunção na barreira mucosa, fazendo com que células inflamatórias passem da mucosa para a submucosa ■ As células inflamatórias desencadeiam disfunção local, com redução da acomodação gástrica, hipersensibilidade visceral e retardo no esvaziamento gástrico ○ Papel da microbiota intestinal: ■ Algumas bactérias são mais prevalentes nesses pacientes ■ Supercrescimento bacteriano pode precipitar o surgimento de sintomas ● Fatores de risco: Milena Silva Araujo MEDUFES 105 ○ Uso de AINEs e antibióticos ○ Tabagismo ○ Ansiedade e/ou depressão ○ Eventos traumáticos ○ Sexo feminino ○ Sobrepeso ou obesidade ○ Infecção do trato gastrointestinal (pode ser gatilho para o início dos sintomas) ● Manifestações clínicas: ○ Sintomas comuns: ■ Dor/queimação epigástrica ■ Saciedade precoce (come pouco e já se sente “empachado”) ■ Plenitude pós-prandial (se sente cheio depois que come) ■ Inchaço/distensão ■ Náusea pós-alimentar ■ Regurgitação ■ Eructações excessivas ○ Comumente associada: ■ DRGE ■ Síndrome do intestino irritável (> 60%) ■ Síndrome da fadiga crônica ■ Migrânea ■ Bexiga hiperativa ■ Fibromialgia ■ Ansiedade/depressão ● Sinais de alarme: fazem pensar em outros diagnósticos → investigar mais ○ Disfagia/odinofagia ○ > 55 anos ○ Perda de peso não intencional ○ Hematêmese ou melena ○ Refratários ao tratamento medicamentoso ○ Anemia ferropriva ○ Vômitos persistentes ○ Massa palpável ou linfadenomegalia ○ História familiar de câncer do TGI alto ● Diagnósticos diferenciais: ○ DRGE ○ Medicamentos (AINEs, corticoides, antibióticos…) ○ Colelitíase (dor pós-alimentar em hipocôndrio direito) ○ Úlcera péptica (principalmente associada à infecção por H. pylori) ○ Doença de Crohn alta ○ Neoplasia ○ Gastroparesia (lentidão no esvaziamento gástrico) ○ CHC ● Diagnóstico: ○ Critérios de Roma IV: ■ Sintomas ativos nos últimos 3 meses, com início há pelo menos 6 meses Milena Silva Araujo MEDUFES 105 ■ Um ou mais dos seguintes critérios: ● Plenitude pós-prandial ● Saciedade precoce ● Dor epigástrica (associada ou não à alimentação) ■ Ausência de doença estrutural que justifique os sintomas ● Classificação em subgrupos: ○ 1) Síndrome do desconforto pós-prandial (69%): ■ Um ou dois dos seguintes pelo menos 3x/semana: ● Plenitude pós-prandial ● Saciedade precoce ■ Podem estar presentes: distensão, eructação excessiva, náuseas e vômitos pós-alimentares ○ 2) Síndrome da dor epigástrica (7%): ■ Um ou dois dos seguintes pelo menos 1x/semana: ● Dor epigástrica ● Queimação epigástrica ○ 3) Sobreposição das duas (25%) ● Exames complementares: ○ Endoscopia digestiva alta: mais para excluir outras causas ■ Indicada em > 55 anos ou sinais de alarme ■ Importante para pesquisa de H. pylori ■ 80% não apresentam alteração, 10% com úlcera péptica e < 0,5% detectam malignidade ○ Métodos não invasivos de pesquisa de H. pylori: ■ Teste respiratório com ureia ou teste de antígeno fecal ■ Realizar quando não houver indicação de endoscopia ○ Exames laboratoriais e de imagem: ■ Hemograma (para avaliar se não tem anemia) ■ Perfil de ferro (ver se não é anemia ferropriva, para avaliar se não está tendo algum sangramento) ■ Bioquímica hepática (se suspeita de cálculo biliar) ■ USG de abdome (se perda de peso, massa abdominal ou suspeita de cálculo biliar) ■ EPF ■ Teste sorológico para doença celíaca ● Manejo: Milena Silva Araujo MEDUFES 105 ○ ● Tratamento: ○ Infecção por H. pylori: ■ 5% das dispepsias são atribuídas ao H. pylori ■ Algumas referências, como o consenso de Kyoto, consideram como uma causa orgânica ■ Dispepsia associada ao H. pylori: há uma divergência na literatura de se o H. pylori é uma etapa de tratamento da dispepsia funcional ou se é doença específica/causa orgânica ■ A erradicação deve ser realizada em todos os pacientes, com bom custo-benefício, mas no geral há baixa resposta ao tratamento (porque corresponde a apenas 5% dos casos) ■ Parece ter melhores resultados quando há predomínio de dor epigástrica ■ Realizar controle de cura após 4 semanas do tratamento, com testes invasivos ou não invasivos ■ A melhora dos sintomas é avaliada em 6 a 12 meses após a erradicação ○ Inibidores de bomba de prótons: ■ Atua no mecanismo de baixa depuração da acidez gástrica e hipersensibilidade ao ácido no duodeno, além de reduzir eosinofilia, infiltração de células inflamatórias e permeabilidade da mucosa duodenal ■ Segundo estudos, demonstra ser mais eficaz que os antagonistas do receptor de histamina ■ Teste terapêutico por 4 a 8 semanas ■ Indicado caso H. pylori negativo ou refratariedade dos sintomas após erradicação do mesmo ■ Opções: ● Omeprazol 20 mg/dia ● Lansoprazol 30 mg/dia ● Esomeprazol 40 mg/dia: único que estudos mostraram que aumento de dose pode ajudar no tratamento Milena Silva Araujo MEDUFES 105 ■ No geral, os IBPs não precisam ser dados em altadose: se não responde em baixa dose, é porque não responde à medicação ■ Se resposta parcial: manter medicação e associar outras classes ■ Se resposta total: manter dose mínima e tentar descontinuar a cada 6 a 12 meses ■ Parecem atuar melhor no subtipo dor epigástrica ○ Antidepressivos: ■ Atua no eixo cérebro-intestino e na modulação central da dor ■ São recomendados como terapia de 2ª ou 3ª linha em pacientes refratários ■ Utilizar por 8 a 12 semanas antes de suspender por ineficácia ■ Opções: ● Amitriptilina 10 a 25 mg/dia ● Imipramina 10 a 25 mg/dia ● Mirtazapina 30 mg/dia: ajuda no ganho de peso ■ Nos responsivos: manter por 6 meses a 1 ano e depois tentar desmame ■ Parecem ter melhor resposta sobre o subtipo dor epigástrica ■ Importante efeito sobre ansiedade, depressão, insônia e fibromialgia (em pacientes que têm essas doenças associadas, com subtipo dor epigástrica, vale mais a pena entrar com essa medicação como segunda linha) ○ Procinéticos: ■ Atuam no mecanismo de redução da motilidade e da acomodação gástrica ■ Terapia de 2ª ou 3ª linha ■ Melhor atuação no subgrupo desconforto pós-prandial ■ Recomendado ciclos de 4 semanas e suspensão após ■ Mais usados: ● Domperidona 10 mg, 3x/dia, cerca de 20 min antes das refeições ● Metoclopramida 10 mg, 3x/dia, antes das refeições ● Acotiamida (inibidor da acetilcolinesterase) ■ Quando náusea pós-prandial predominante: prometazina, meclozina ○ Dieta: ■ Sintomas associados à alimentação levantam questionamentos sobre o impacto da alimentação ■ Poucos estudos até o momento que determinem dieta específica para esses pacientes ■ Dieta rica em gordura pode precipitar mais sintomas como inchaço e saciedade precoce; alimentos apimentados também foram associados aos sintomas ■ Orientações sugeridas: ● Ingerir menores porções, mais vezes ao dia (evita a sensação de empachamento) ● Evitar alimentos gordurosos ● Evitar alimentos que desencadeiam sintomas ○ Outras terapias: ■ Psicoterapia: ● Justifica-se pela associação com doenças psiquiátricas e papel do eixo cérebro-intestino, mas há pouca evidência de resposta importante ■ Drogas relaxantes do fundo gástrico: ● Buspirona 110 mg 3x/dia por 4 semanas ● Estudos com pouca relevância Milena Silva Araujo MEDUFES 105 ■ Antinociceptivos: ● Pregabalina, gabapentina, carbamazepina ● Podem agir na modulação central da dor e redução da hipersensibilidade visceral ■ Antibióticos: ● Rifaximina 400 mg 3x/dia: pode agir na microbiota intestinal reduzindo sintomas ○ ● Avaliação adicional: ○ Caso náuseas e vômitos persistentes e refratários ao tratamento, além de fatores de risco para retardo de esvaziamento gástrico (diabetes mellitus, cirurgia gástrica ou manipulação do TGI, por exemplo) → pensar em gastroparesia ■ > 25% dos pacientes com DF têm retardo do esvaziamento gástrico → sobreposição das doenças ■ 86% dos pacientes com gastroparesia fecham critérios para DF ■ Solicitar cintilografia de esvaziamento gástrico ● Considerações finais: ○ A dispepsia funcional é altamente prevalente, subdiagnosticada e muitas vezes confundida com outras doenças ○ É uma doença crônica, de difícil controle e que cursa com períodos de piora e de remissão ○ O diagnóstico é feito pela clínica associada a exames complementares, para descarte de doença estrutural ○ O H. pylori sempre deve ser investigado e tratado quando detectado ○ Medidas comportamentais (dieta, exercício físico…) ajudam, mas são pouco eficazes e, por isso, o tratamento é principalmente medicamentoso, direcionado aos sintomas ○ A relação médico-paciente é fundamental: o paciente deve ser informado da ausência de malignidade, do curso da doença, além de alinhar expectativas quanto ao tratamento
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