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Quadrinhos, memória e realidade textual

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Quadrinhos, memória e realidade textual∗ 
Prof. Moacy Cirne1 
 
Palavras-chaves: Problematizações teóricas – Prática textual – Poeticidade estética 
 
Resumo: A produção crítica e teórica sobre as histórias-em-quadrinhos: a memória de suas 
problematizações e de sua prática textual. Os primeiros estudos sociológicos; os primeiros 
estudos no campo da estética; os primeiros ensaios marcados pela semiótica. O modelo 
teórico apontado por Umberto Eco. Os quadrinhos e a teoria da linguagem cinematográfica: 
a importância de Christian Metz. Teoria e crítica dos quadrinhos, hoje, e a questão da 
poeticidade estético-libertária. 
 
 
 
 
 1. 
Durante muito tempo, na primeira metade do século passado, as histórias em 
quadrinhos não despertavam maiores interesses críticos por parte da comunidade 
acadêmica. No máximo, algum tipo de interesse sociológico, a partir de alguma perspectiva 
cultural nem sempre adequada para a sua compreensão como discurso gráfico-narrativo-
visual. O contexto social da comunicação de massa servia de base para as críticas que lhes 
eram dirigidas, como se a comunicação de massa, por si só, justificasse toda uma estética 
cuja origem remontava ao século XIX. 
Os equívocos – que terminavam por gerar preconceitos – muitas vezes partiam de 
teóricos famosos. Tomemos como exemplo maior Theodor W. Adorno, que em seu famoso 
ensaio dos anos 40 (A indústria cultural: O esclarecimento como mistificação das massas), 
escrito em parceria com Max Horkheimer e incluído em Dialética do esclarecimento2, 
embora voltado basicamente para questões que dizem respeito ao cinema, critica com 
 
∗ Trabalho enviado para o NP 16 – Histórias em Quadrinhos do XXVII Congresso da Intercom. 
1 Moacy Cirne é professor-aposentado do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, 
com vários livros publicados sobre histórias em quadrinhos, entre os quais A explosão criativa dos quadrinhos (1970), 
Para ler os quadrinhos (1972), História e crítica dos quadrinhos brasileiros (1990, Prêmio La Palma Real, de Cuba) e 
Quadrinhos, sedução e paixão (2000). Sua obra mais recente é A invenção de Caicó (2004). 
2 ADORNO, Theodor W. & Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento; fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio 
de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 
ênfase os mecanismos da comunicação de massa. Indiretamente, os quadrinhos são 
atingidos em sua fúria demolidora. Algumas passagens, ainda hoje, merecem uma reflexão 
mais apurada de nossa parte. 
Por exemplo: “A indústria cultural não sublima, mas reprime. ... As obras de arte 
são ascéticas e sem pudor, a indústria cultural é pornográfica e puritana”3. Quer nos 
parecer, antes de tudo, que Adorno e Horkheimer ignoravam o melhor da indústria cultural, 
até aquele momento (1946/47): o cinema de Renoir, Murnau, Lang, Pabst, Vigo, Ford e 
Orson Welles (com exceção para Chaplin); os quadrinhos de McCay, Herriman, Raymond, 
Capp e Will Eisner (com exceção para Disney); a ficção científica de Lewis e o romance 
policial de Chandler ou Hammett, entre outros. Só assim podemos entender a sua afirmação 
genérica, sem fundamento histórico, de que a indústria cultural reprime e que não passa de 
pornografia, sendo, paradoxalmente, puritana. É verdade que por trás de todo puritanismo, 
com sua dupla face de conservadorismo e moralismo, está um profundo sentido 
pornográfico: a pornografia que, em nome da própria moral e dos bons costumes 
(burgueses), não ousa transgredir o que de fato merece ser transgredido – os valores da 
velha sociedade capitalista, seja a americana, seja a européia. A indústria cultural só 
reprime aquilo que nasce para ser reprimido, em sua lógica interna de merdiocrização do 
pensamento; na verdade, ela se auto-reprime na medida de seus interesses moldados pelo 
capital. A indústria cultural só é pornográfica quando ela faz da pornografia não-dita a sua 
meta de consumo. 
Costumamos dizer: nada mais pornográfico do que a fome, a injustiça social, a 
exclusão cultural, as obras de artistas que, em nome desse ou daquele discurso modernoso, 
enfatizam direta ou indiretamente o primado do capital sobre a consciência crítica. Afinal, 
dez minutos de qualquer filme de Bresson, Bergman, Antonioni ou Straub valem mais do 
que toda a superprodução hollywoodiana dos últimos dez anos; qualquer música de 
Paulinho da Viola, Hermeto Paschoal, Tom Jobim ou Naná Vasconcelos vale mais do que 
toda a produção da bundaxé music & similares. Titanic pode ser um filme pornográfico; O 
império dos sentidos, jamais. O início da série quadrinhística do Super-Homem, em 1938, 
pode ser medíocre – e certamente o é; o Batman de Frank Miller, nos anos 80 do século 
passado, não, decididamente não. 
 
3 ADORNO, Theodor W. & Max Horkheimer, obra citada, p.131. 
Há outros pontos discutíveis no pensamento de Adorno e Horkheimer. Por que “A 
fusão atual da cultura e do entretenimento não se realiza apenas como depravação da 
cultura, mas igualmente como espiritualização forçada da diversão”4? Ora, diante de filmes 
como Luzes da cidade (Chaplin, 1931), Depois do vendaval (Ford, 1952), Cantando na 
chuva (Kelly & Donen, 1952), Mon oncle (Tati, 1958) e Quanto mais quente melhor 
(Wilder, 1959) ou de quadrinhos como Ferdinando (Capp, 1934), Spirit (Eisner, 1940), 
Pererê (Ziraldo, 1959), Mafalda (Quino, 1964) e Zeferino & Graúna (Henfil, 1972), não 
podemos falar em “depravação da cultura”, em sendo obras que, sabiamente, uniram o 
valor cultural (aqui entendido da forma a mais ampla e conceitual possível) ao valor do 
prazer de uma determinada leitura, seja a filmológica, seja a quadrinhográfica, e assim por 
diante. Poder-se-á dizer: Adorno e Horkheimer são autores datados, isto é, superados. Nem 
tanto – continuam sendo representativos do pensamento marxista retrabalhado pela Escola 
de Frankfurt. Contudo, neste particular, naquilo que diz respeito à compreensão da arte e da 
literatura, Walter Benjamin desponta como um autor mais atual e mesmo mais instigante. 
Além do mais, Benjamin não trazia as marcas de nenhuma espécie de elitismo intelectual. 
Como acontecia com Adorno e Horkheimer. 
 
2. 
Se os primeiros estudos sociológicos sobre as histórias-em-quadrinhos contêm 
elementos mais culturais, sejam preconceituosos ou não, sejam apologéticos ou não, os 
primeiros estudos no campo da estética e os primeiros ensaios marcados pela semiótica, 
com raras exceções, caem no campo do formalismo. Mas já estamos nos anos 60, ou 
mesmo nos 70: a época oscilava entre o comprometimento político mais radical 
(resultando, em alguns casos, em ação armada sob o filtro de guerrilhas urbanas e rurais) e 
o formalismo crítico e teórico a partir dos centros de saber acadêmico (resultando, em 
muitos casos, no ensaísmo fundado em atividades e leituras estruturalistas). 
Nos anos 60 do século XX, quando maior era o preconceito e, ao mesmo tempo, 
contraditoriamente, mais rica era a descoberta de suas potencialidades criadoras, surge um 
autor que, já sendo importante como teórico, conhecido no meio vanguardístico das artes 
plásticas e musicais desde A obra aberta, de 1962, vai cristalizar uma série de 
 
4 ADORNO, Theodor W. & Max Horkheimer, obra citada, p.134. 
preocupações, acadêmicas ou não, reveladoras de um novo olhar sobre o mundo dos 
quadrinhos: o italiano Umberto Eco. Neste sentido, há um livro-marco, um livro-signo, 
desse novo olhar: Apocalípticos e integrados5, originalmente publicado na Itália em 1964, 
traduzido no Brasil em 1970. Vivíamos uma etapa da história da humanidade 
particularmente rica, seja culturalmente, seja politicamente. 
Vejamos um rápido balanço, exatamente entre 1964 e1970, no Brasil e no exterior, 
através de acontecimentos das mais diversas ordens culturais, políticas eartísticas, 
considerando que a significação histórica de Apocalípticos e integrados é indiscutível, 
reconheçamos ou não a sua importância, hoje: 
1964 
Nos quadrinhos:Mafalda (Quino) e O gaúcho (Júlio Shimamoto); 
No humor gráfico: Fradinhos (Henfil); 
No cinema: Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha); 
No teatro: Opinião (com Zé Keti, Nara Leão e João do Vale); 
Na música: Choros imortais (por Altamiro Carrilho); 
No pensamento crítico: Apocalípticos e integrados (Umberto Eco); 
Na política: Golpe militar no Brasil. 
1965 
Nos quadrinhos: Valentina (Crepax) e Vizunga (Flávio Colin); 
No cinema: Simão do Deserto (Luís Buñuel); 
Na televisão: o I Festival de Música Popular, na TV Excelsior (São Paulo); 
No teatro: Liberdade, liberdade (Flávio Rangel & Millôr Fernandes); 
Na Política: AI-2 institui eleição indireta para Presidente do Brasil. 
1966 
Nos quadrinhos: Philémon (Fred); 
No cinema: Persona (Bergman) e Blow-up (Antonioni); 
Na poesia: A educação pela pedra (João Cabral de Melo Neto); 
No pensamento crítico: As palavras e as coisas (Foucault) e Pour Marx (Althusser); 
No jornalismo: coluna sobre quadrinhos, por Sérgio Augusto, no Jornal do Brasil; 
Na política: início da Revolução Cultural Chinesa. 
 
5 ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1970, 388p. 
1967 
Nos quadrinhos: Corto Maltese (Pratt) e comix underground (USA); 
No cinema: Terra em transe (Glauber) e A chinesa (Godard); 
No teatro: O rei da vela (pelo Grupo Oficina, de São Paulo); 
Na música: Vibrações (Jacob do Bandolim), Beatles e Tropicalismo (Caetano, Gil); 
Na poesia: fundação do Poema/Processo (Rio e Natal); 
Na literatura: Cem anos de solidão (García Márquez); 
Nas artes plásticas: Nova Objetividade Brasileira (Rio); 
Na política: Carlos Marighela funda a ALN. 
1968 
Nos quadrinhos: Capitão Cipó (Daniel Azulay) e O Pato (Ciça); 
No cinema: 2001: uma odisséia no espaço (Kubrick); 
Na política: Maio Francês, Vietnam, Passeata dos 100 Mil (Rio) e o AI-5. 
1969 
Nos quadrinhos: Lobo Solitário (Koike & Kojima); 
No humor gráfico e textual: O Pasquim, editado por Ziraldo, Jaguar e outros; 
No cinema: Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade); 
No pensamento crítico: Teoria da cultura de massa, editado por Luiz Costa Lima; 
Na política: seqüestro do embaixador americano no Brasil. 
1970 
Nos quadrinhos: Paulette (Wolinski & Pichard) e a revista Mônica (Maurício); 
Na crítica de HQs: A explosão criativa dos quadrinhos (Cirne) e Shazam (Moya); 
No pensamento crítico: edição brasileira de Apocalípticos e integrados; 
Na poesia: Convergência (Murilo Mendes); 
No futebol: Brasil campeão mundial pela terceira vez, no México; 
Na política: repressão política e militar cada vez maior em nosso país. 
 
3. 
Com Apocalípticos e integrados, Umberto Eco lança as bases de uma crítica 
estético-semiótica das histórias-em-quadrinhos ao fazer detalhada análise da página inicial 
de Steve Canyon, conhecida série quadrinhística americana de 1947 (criada por Milton 
Caniff)6. Sua análise abrange enquadramento por enquadramento; imagem por imagem, 
portanto. Mais rigorosa do que qualquer outra crítica feita até então, em se tratando da 
linguagem e semioticidade dos quadrinhos, a leitura do teórico italiano tem o fulgor das 
grandes idéias. E surge num momento de fascinantes debates políticos e os mais diversos 
questionamentos artísticos, literários e culturais: a própria contracultura ensaiava seus 
primeiros passos. E o cinema vivia seu melhor momento criador: na Europa, nos Estados 
Unidos, na Ásia, na América Latina. 
Não por acaso, Umberto Eco recorre ao jargão crítico do cinema para analisar o 
primeiro enquadramento: “Em termos cinematográficos poderemos defini-lo como um 
enquadramento ‘subjetivo’, como se a câmara estivesse colocada sobre os ombros do 
protagonista”7. Não por acaso, a relação cinema/quadrinhos sempre atravessou a prática e a 
teoria das duas linguagens. E o modelo teórico fundado por Umberto Eco, ao ser reativado 
pela crítica de quadrinhos em sua fase heróica de afirmação intelectual e acadêmica, vai 
encontrar resposta, para o crítico de HQs, num livro capital sobre a chamada “sétima arte”, 
publicado em 1971: Langage et cinéma, de Christian Metz8, à procura de uma 
“especificidade cinematográfica”, como depois, ao lado de Fresnault-Deruelle e outros, 
vamos procurar uma “especificidade quadrinhográfica”, fazendo da relação estética-
ideologia-semiótica, sob o prisma do marxismo, a base estrutural de nossas pesquisas 
quadrinhísticas. E se o cinema é uma linguagem “aberta a todos os simbolismos, a todas as 
representações coletivas, a todas as ideologias”9, os quadrinhos também o são. Ou se o 
cinema, como quer outro teórico – Barthélemy Amengual – em livro coincidentemente 
também publicado em 1971 em sua versão original (Clefs pour le cinéma10), “multiplica a 
narrativa pelo espetáculo”11, os quadrinhos também o fazem, embora, aqui, a noção de 
“espetáculo” passe por outras instâncias narrativas e visuais. 
Mas voltemos a Umberto Eco. 
Depois de analisados os 11 enquadramentos da página inaugural de Steve Canyon, 
há uma série de propostas críticas para aquilo que o autor chama de “semântica dos 
 
6 Apocalípticos e integrados, edição citada, p.129-179. 
7 Obra citada, p.131. 
8 METZ, Christian. Langage et cinema. Paris: Larousse, 1971, 224p. 
9 METZ, Christian, obra citada, p.26. 
10 AMENGUAL, Barthélemy. Chaves do cinema. Trad. Joel Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973, 172p. 
11 AMENGUAL, Barthélemy, obra citada, p.89. 
quadrinhos”, em se tratando da sua linguagem, quando poderia ter dito com mais precisão 
“semiótica dos quadrinhos”, ou mesmo “estética dos quadrinhos”. Que propostas são essas, 
tomando como referência a série americana? Vejamos, em suas quatro formulações iniciais, 
de um total de oito, quando, algumas críticas, hoje, se fazem necessárias: 
 
1. ”Individualmente, nessa página, os elementos de uma iconografia que, 
mesmo quando nos reporta a estereótipos já realizados em outros 
ambientes (o cinema, por exemplo), usa de instrumentos gráficos próprios 
do ‘gênero’. ... esses elementos iconográficos compõem-se numa trama de 
convenções mais ampla, que passa a constituir um verdadeiro repertório 
simbólico, e de tal forma que se pode falar numa semântica da estória em 
quadrinhos”12. Nossos comentários: Apesar do equívoco teórico de se 
referir às HQs como “gênero”, no geral a formulação é adequada e será 
importante para que, a seguir, haja uma orientação na teoria e crítica dos 
quadrinhos no sentido de compreender o que representa essa 
iconograficidade. Por outro lado, em se tratando do seu repertório 
simbólico, preferimos falar em “ideologia dos quadrinhos”. 
2. “Elemento fundamental dessa semântica é, antes de mais nada, o signo 
convencional da ‘nuvenzinha’ (que é precisamente a ‘fumacinha’, o 
‘ectoplasma’, o ´balloon’), o qual, se traçado segundo algumas 
convenções, terminando numa lâmina que indica o rosto do falante, 
significa ´discurso expresso’; se unido ao falante por uma série de 
bolinhas, significa ‘discurso pensado’. ... Outro elemento é o signo gráfico 
usado em função sonora, com livre ampliação dos recursos 
onomatopaicos de uma língua”13. Comentemos: O balão é um elemento 
fundamental, em termos. Grandes clássicos das HQs dispensaram o uso 
do balão. Exemplo maior: Príncipe Valente (1937), de Hal Foster. 
Também o dispensaram quadrinhos marcados pela modernidade, como 
Lanterna mágica (Crepax) e Arzach (Moebius). Diríamos melhor: o balão 
 
12 ECO, Umberto, obra citada, p.144-5. 
13 ECO, Umberto, obra citada, p.145. 
pode ser fundamental, mas nem sempre o é. Haja vista as realizações de 
Feiffer, Wolinski e Henfil, para citar apenasalguns poucos nomes. 
3. “Os elementos semânticos compõem-se numa gramática do 
enquadramento, de que tivemos alguns exemplos comprobatórios em 
Steve Canyon”14. Há que comentar: Se, neste caso, cabe falar em 
”elementos semânticos”, acrescente-se que toda “gramática do 
enquadramento” gerada no interior da banda desenhada pressupõe, é 
necessário dizê-lo, uma estética do enquadramento, estética essa que se 
dá com maior ou menor voltagem criativa. Em Steve Canyon, com 
voltagem criativa de inegável intensidade. 
4. “A relação entre os sucessivos enquadramentos mostra a existência de 
uma sintaxe específica, melhor ainda, de uma série de leis de montagem. 
Dissemos ‘leis de montagem’, mas o apelo ao cinema não nos pode fazer 
esquecer de que a estória em quadrinhos ‘monta’ de modo original, 
quando mais não seja porque a montagem da estória em quadrinhos não 
tende a resolver uma série de enquadramentos imóveis num fluxo 
contínuo, como no filme, mas realiza uma espécie de descontinuidade 
ideal através de uma fatual descontinuidade”15. Comentando: São 
colocações que permanecem atuais, 40 anos depois. Sem dúvida, são 
muitas as diferenças entre a “montagem” no cinema e a 
“montagem/decupagem” nos quadrinhos. A própria leitura da revistinha 
ou do álbum pressupõe uma descontinuidade espacial que se faz temporal, 
ao contrário da leitura de um filme: a sua temporalidade se faz espacial. 
 
 Decerto, ler Umberto Eco, hoje, é ler contextualizando-o, resgatando a memória que marca 
a passagem crítica, nos quadrinhos, da leitura impressionista para a leitura semiótica. Não 
queremos dizer com isso que estejamos renegando a leitura impressionista (que nos deu 
grandes nomes, como o espanhol Luis Gasca e o brasileiro Alvaro de Moya), mas que, 
simplesmente, estamos mapeando o lugar de uma nova leitura. 
 
14 ECO, Umberto, obra citada, p.146. 
15 ECO, Umberto, obra citada, p.147. 
 4. 
 Nos últimos tempos, a questão da poeticidade estético-libertária surge como uma 
possibilidade concreta para o universo crítico que procura compreender os mecanismos 
criativos das histórias-em-quadrinhos: seus desdobramentos, suas vertentes, seus caminhos. 
Tentamos vislumbrá-lo em Quadrinhos, sedução e paixão16. Na verdade, trata-se de uma 
leitura teórica e produtiva aberta às mais diferentes vertentes do pensamento ocidental do 
século XX, além de seus desdobramentos criativos: a epistemologia bachelardiana, o 
marxismo neo-humanista, o existencialismo sartreano, o impressionismo crítico, os estudos 
culturais, a antropofagia oswaldiana, a literatura e a arte populares, as fontes matrizes do 
poema/processo17. E a poeticidade libertária propriamente dita, como resultado e soma de 
valores inerentes à curiosidade e à inquietação do ser humano. Seria o caso de repetir, 
parafraseando Fernando Pessoa, mais uma vez: Tudo vale a pena, se a crítica não é 
pequena. 
 Se a leitura de uma revista de quadrinhos começa e termina na sua capacidade de 
gerar prazer& prazeres (mesmo quando levam à reflexão), a leitura de um texto crítico e/ou 
teórico também deve ser uma atividade mental prazerosa. A própria escrita ensaística, ou 
qualquer outra escrita – o ato de sua particular elaboração –, não pode fugir ao prazer. É 
necessário que exista uma “sensualidade da escrita” – para o leitor e para o autor. Que se 
veja, na Europa, o caso modelar de Gaston Bachelard: livros como A poética do espaço, A 
psicanálise do fogo, A poética do devaneio, A chama de uma vela e O direito de sonhar, 
entre outros, são a essência madrugadora de uma prosa que se faz luminosa poesia, mesmo 
sendo ensaio, puro ensaio, com palavras e pensamentos que sabem sonhar. 
 Nestes últimos 40 anos, muita coisa mudou: na política mundial, no comportamento 
e na moral das pessoas, nas artes, na crítica, no modo menos preconceituoso de se ver e 
analisar as HQs. E, claro, os próprios quadrinhos mudaram. A sua renovação gráfica, 
narracional e conteudística culminou, ainda nos anos 60, com a instauração da “novela 
 
16 CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Petrópolis: Vozes, 2000. 
17 O poema/processo, apesar das leituras equivocadas que se fazem dele em função da poesia concreta, continua sendo 
uma fonte criadora inesgotável para os poetas que pretendem dizer algo de novo no cenário poético nacional ou 
internacional. 
gráfica”18. Depois vieram as bédés de corte fantástico e, mais recentemente, para os 
ocidentais, os mangás de extração japonesa. Hoje, mesmo entre alguns de nossos 
pesquisadores mais atuantes e entre os nossos quadrinhistas mais inquietos, já se pensa 
numa HQ atravessada criadoramente pelos mecanismos cibernéticos do mundo virtual. Um 
ciberquadrim – ou outro nome que seja consagrado pelo uso da comunidade quadrinheira. 
Neste caso, repitamos o poeta português já citado, sem maiores interferências 
parafraseadoras e/ou metaplagiadoras: Tudo vale a pena, se a alma não é pequena. 
 
 
 
 
 
18 Para nós, ao contrário de muitos estudiosos, a verdadeira “novela gráfica” começa na França nos anos 60: Jodelle 
(Bartier & Pellaert, 1966) e, sobretudo, Saga de Xam (Rollin & Devil, 1967) seriam seus desencadeadores.

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