Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
LETRAMENTO E GÊNEROS TEXTUAIS E-book 1 Cimara Apostólico Neste E-book: INTRODUÇÃO ����������������������������������������������4 LETRAMENTO ���������������������������������������������� 6 Para começo de conversa �����������������������������������6 Leitura de mundo ������������������������������������������������9 Alfabetização e Letramento: Implicações e paradoxos ���������������������������������������������������������15 Sobre o Letramento: um tema em três gêneros �17 Alfabetização – ideias introdutórias �����������������22 Ler e escrever ���������������������������������������������������27 Letramento literário ������������������������������������������33 CONSIDERAÇÕES FINAIS ��������������������� 40 Síntese ���������������������������������������������������������42 Letramento: Concepções e Práticas 2 E-book 1 Objetivo(s) de aprendizagem: • Compreender os principais conceitos sobre tex- to, leitura de mundo, alfabetização e letramento. • Estabelecer distinções entre alfabetização e letramento. • Reconhecer as diferentes etapas para forma- ção da competência leitora e escritora. • Identificar as práticas de letramento que po- dem propiciar a alfabetização. 3 INTRODUÇÃO Caro estudante, sabemos que estamos distantes fisicamente e próximos neste diálogo, por isso, nos propomos a ter empatia com você e explicar o mais detalhadamente possível. Para que consiga formar os conceitos, é fundamental que você participe – len- do com atenção – mesmo os trechos que julga saber, porque conhecimento é construção. Combinado? Como toda boa construção, às vezes, será preciso rever, refletir e ir além: anotar, sistematizar, buscar um método que facilite o seu aprendizado para que este material interativo seja produto de apoio que o ajude a melhorar em sua prática como estudante e futuro professor. Esta disciplina foi concebida com base em um po- sicionamento em relação ao assunto (uma tese): Letramento e Gêneros Textuais estão diretamente relacionados, pois são elementos fundamentais para inserção social, isto é, são condições essenciais para que sejamos sujeitos ativos em nosso mundo, pois, desde bebês, somos cercados pelos vários textos que circulam em nossa cultura. Para pertencer a este mundo, será necessário um letramento para se inserir socialmente, mas você deve estar se perguntando: o que é esse letramento? Ler, letrar, saber a letra? Essas e outras questões serão esclarecidas ao longo do nosso diálogo. 4 A concepção de texto contém breves elementos que o ajudarão a romper o paradigma de ‘texto’ como conjunto de símbolos linguísticos. A abordagem de leitura de mundo estabelecerá uma ponte para am- pliação do conceito de letramento. Alfabetização e letramento são conceitos indissociáveis, que propi- ciam ao indivíduo o desenvolvimento da aprendiza- gem em um contexto social. O estabelecimento da distinção entre as duas moda- lidades do texto: língua fala e língua escrita é funda- mental para pressupor a existência do outro no dis- curso, além de mostrar que o contexto é importante para que as ideias sejam expressas adequadamente. As ideias expressas de maneira adequada geram compreensão, que é o elemento-chave para os pro- cessos de comunicação. Além disso, traçaremos um caminho em direção à alfabetização e letramento, no qual você terá opor- tunidade de observar as implicações conceituais, tendo, nos estudos e pesquisas de Magda Soares, nosso embasamento teórico. A leitura e a escrita são habilidades que devem ser potencializadas quando estudamos sobre alfabeti- zação e letramento, principalmente pelas demandas dessas habilidades no mundo contemporâneo. O letramento literário versará sobre a importância da literatura para constituição de um indivíduo letrado e inserido socialmente. 5 LETRAMENTO Para começo de conversa No geral, “texto” é empregado como um trecho em que há palavras escritas, o que é um entendimento inicial. Texto, no dicionário de Linguagem e Linguística, “é uma porção contínua de língua falada ou escrita, especialmente quan- do tem um começo e um fim reconhecíveis” (TRASK, 2006, p.291). Seguindo nessa descrição, é possível entender como texto uma simples frase como “Hoje está fazendo sol!”, ou seja, qualquer porção com começo e fim. Mas texto não é apenas uma combinação de palavras, de nomeações do mundo real; “o texto não é mais considera- do como um conjunto de símbolos linguísticos e sim algo muito maior e que deve ser lido em toda a sua complexida- de. Uma narrativa feita somente de imagens, por exemplo, é também considerada um texto” (HALMENSCHLAGER, 2015, p.64). Enfim, nosso objetivo é apenas esclarecer que não é ne- cessário ter um trecho extenso para ser considerado texto e nem sequer precisa ser escrito, falado, conforme citação. É importante registrar que o conceito “texto” tem muitas implicações, como situação enunciativa, interlocutores, condições de produção, contextos históricos, sociais e assim por diante que exigiriam uma disciplina só para tratar desses aspectos, portanto, vamos simplificar e 6 privilegiar apenas as informações mais relevantes para entendimento. Há duas modalidades no texto: a língua falada e a língua escrita que são utilizadas em situações comunicativas, de práticas sociais, com caráter interacional, em que duas ou mais pessoas se relacionam. Essas pessoas, que se relacionam, se comunicam, são os interlocutores. Nesse diálogo (relação dialógica), devem ser consideradas as perspectivas do ouvinte e/ou do leitor, assim, pensem comigo: enquanto estamos produzindo este material, não temos você, leitor, aqui, pedindo para esclarecer “o que quis dizer com...”; nesse sentido, ao escrever, é preciso pressupor dois lados: o de escritor e o de leitor; essa é ape- nas uma das questões que mostram que a comunicação escrita e oral ativam conhecimentos diferentes que devem ser ponderados na relação autor/leitor, falante/ouvinte. Koch e Elias explicam a distinção entre fala e escrita. As duas modalidades transitam e se misturam, entretanto, são perceptíveis as características que distinguem uma e outra: FALA ESCRITA contextualizada descontextualizada implícita explícita redundante condensada não planejada planejada predominância do modus pragmático predominância do modo sintático pouca densidade informacional densidade informacional Tabela 1: Parte do Quadro elaborado por Koch, Elias. 2010, p. 16 7 Por esse quadro, é possível inferir as implicações discursivas que devem ser analisadas ao estabelecer um diálogo com o outro, observando as condições de produção, no momento em que isso acontece. Figura 1: Pierre Bourdieu Pois bem, é fundamental considerar a existência do outro nessa relação intertextual, além disso, é con- dição sine qua non, imprescindível, saber que o texto tem existência própria e está inserido em um âmbito social. Quanto a isso, você verá um exemplo adiante que o ajudará a compreender o posicionamento de Pierre Bourdieu em relação ao texto, que nas palavras de Batista “muda a partir do momento em que muda o mundo social em que ele se introduz” (BOURDIEU (1994) apud BATISTA, 2008, p. 20). 8 Antes, porém, leia a caixa de diálogo ‘Fique Atento’ para ampliar seu entendimento sobre atividade interativa. Fique atento • “Na concepção interacional (dialógica) da lín- gua, na qual os sujeitos são vistos como atores/ construtores sociais, o texto passa a ser conside- rado o próprio lugar da interação e os interlocuto- res, sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e por ele são construídos. A produção de linguagem constitui atividade interativa, alta- mente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer não apenas a mobilização de um vasto conjunto de saberes, mas também a sua reconstrução – bem como a dos próprios sujeitos – no momento da interaçãoverbal”. (KOCH, 2014, p. 21). Vamos dar um passo atrás e compreender o que é leitura de mundo? Leitura de mundo A leitura de mundo integra e se relaciona ao letramen- to: uma simples situação – como entender o signi- ficado das cores do semáforo, sabendo o momento de parar, de prestar atenção, de seguir adiante – faz 9 parte dessa leitura. Se o indivíduo não compreende essa indicação, ele sentirá dificuldades ao atravessar a rua, dirigir, e assim por diante. Conhecer os variados e diferentes símbolos que in- tegram a cultura faz com que participemos plena- mente do mundo. Vamos pensar em outro exemplo para melhor elucidar e avançar no entendimento do conceito? Se vejo várias pessoas juntas, uma multidão, na Avenida Paulista, em São Paulo, em um domingo, logo penso que há uma prática de esportes. Se vejo uma multidão na mesma avenida, durante a semana, meu pensamento será de que há uma manifestação. Agora, se vejo uma multidão correndo na avenida, não penso duas vezes, corro também, pois já penso ser um arrastão. A minha leitura de mundo me faz ver uma multidão por diferentes perspectivas. O contexto em que se encontra a “multidão” mudará a maneira como vemos a situação. Além disso, o fator tempo: “quando” deve ser considerado. Voltemos ao parágrafo anterior “domingo” x “durante a semana”. Isso significa que nosso olhar é direciona- do, também, de acordo com a questão temporal. Sim, sei que o exemplo é simples e o assunto, complexo, mas serve para mostrar a importância do tempo para compor o nosso olhar. Essa nossa capacidade de analisar as circunstâncias se dá em função da nossa experiência, da nossa 10 vivência, ou seja, do desenvolvimento de uma leitura de mundo. Nesse sentido, a leitura de mundo é um texto e, recordando as palavras de Bourdieu apud Batista, “muda a partir do momento em que muda o mundo social em que ele se introduz”. Portanto, o contexto é fundamental para que possamos nos ajustar às diferentes situações sociais com as quais nos deparamos cotidianamente. A leitura de mundo começa desde muito cedo: por exemplo, assim que o bebê consegue estabelecer contato visual com os que o cercam, ele começa a observar diferentes expressões faciais que o aju- darão a compreender sobre sentimentos. Ao obser- var sorrisos, poderá associar a situações positivas. Essas expressões são sinais que farão com que a criança consiga compreender melhor o mundo em que está inserida e criar consciência de suas próprias atitudes, dessa maneira, conseguirá associar ações com consequências. Entretanto, não se pode deixar de esclarecer que cada criança terá reações diferentes e, mais que isso, entenderá de acordo com os seus referentes. Em outras palavras, mesmo habitando o mesmo mundo, cada qual terá seu entendimento próprio em função das circunstâncias, vínculos e experiências. Assim, ao pensarmos nos vários textos que se apre- sentam em nosso ambiente cultural, é possível per- ceber a autonomia relativa desses textos, já que são afetados pelas pessoas, pelo tempo, pelos fatores 11 externos, assim, podemos entender que o texto só tem existência a partir das interações. As interações são potencializadas pela leitura da palavra e pela leitura de mundo, que são concei- tos definidos por Paulo Freire, educador brasileiro, o qual concebia que a leitura de mundo precedia a leitura da palavra. Vamos tentar compreender esse pensamento? Com certeza, todos já observaram determinada pes- soa que, mesmo sem saber ler e escrever, conseguia realizar muito bem suas atividades. Por exemplo, um pedreiro pode fazer cálculos de área sem nem ao menos saber o conceito, mas dizer exatamente quanto gastará de revestimento para colocar na sua nova cozinha. Como pode alguém que não conhece a letra saber diferentes assuntos? Contar histórias be- líssimas para os netos, desenvolver ideias? Preparar receitas deliciosas, sem qualquer noção de fração, proporção? Conhecer geografia, comentando sobre cerrado, bioma, diversidade e assim por diante. Não tendo a intenção, mas já sendo reducionista, é a isso e muito mais que Freire chama Leitura de mundo. Essa leitura precede a leitura da palavra e, nas pala- vras do autor: Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. Na proposta a que me referi acima, este movimen- to do mundo à palavra e da palavra ao mundo 12 está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer di- zer, de transformá-lo através de nossa prática consciente. (FREIRE, 1989, p.17). A leitura de mundo e a leitura da palavra se prendem dinamicamente e, a partir do momento em que o indivíduo tem o domínio das duas leituras, o mundo passa a fazer mais sentido e, quando faz sentido, estamos aptos a transformá-lo. Saiba mais • E você, está preparado para ampliar sua leitura de mundo, sua leitura de palavra e fazer as malas rumo a uma mudança? Então, faça a leitura do livro e assista ao vídeo indicados abaixo: • Freire, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Auto- res Associados: Cortez, 1989. • Paulo Freire discute questões relacionadas a ler, escrever e alfabetizar. Para isso explica so- bre leitura de mundo e leitura de palavra, usando exemplos de sua infância e de seu cotidiano. Em uma linguagem acessível e clara, você estudante 13 de Letras, terá a oportunidade de embarcar nes- se mundo Freiriano, no qual, além aprender ideias das mais simples às mais complexas, poderá aprender a importância de “ser humano”. E essa humanidade é o mais importante para estabele- cer relação aluno-professor. Deixo um pequeno trecho do livro para você degustar: “a leitura do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, pre- cisamente, em certo momento dessa rica expe- riência de compreensão do meu mundo imedia- to, sem que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de encantadora- mente misterioso, que eu comecei a ser introdu- zido na leitura da palavra”. • Emocione-se assistindo ao vídeo “A Canoa”. Trata-se de um vídeo curtinho que vai ajudá-lo a compreender melhor os conceitos: leitura de mundo e leitura da palavra. • Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=GmqAVAbYnsw. Acesso em: 5 jan. 2019. 14 https://www.youtube.com/watch?v=GmqAVAbYnsw https://www.youtube.com/watch?v=GmqAVAbYnsw Alfabetização e Letramento: Implicações e paradoxos O termo Letramento, conforme Magda Soares (2014), surge em meados dos anos 80 no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”, de Mary Kato, que considera a língua falada culta como con- sequência do letramento. Figura 2: Magda Soares A língua culta é aquela utilizada em situações mais formais da língua que demandam maior conheci- mento das estruturas, maior domínio vocabular etc. A problemática situa-se em como alcançar um co- nhecimento linguístico para ter fluência de uso da língua culta, sendo que pessoas, muitas vezes, per- 15 tencem a grupos que não fazem uso dessa variante? Partindo da fala de Mary: Letramento x Língua culta, entendemos que letramento se relaciona ao mundo social do indivíduo, à herança cultural recebida, ao repertório acumulado, à leitura de mudo, simplifican- do, enfim, às experiências e vivências que envolvem o sujeito em sua vida e são essas experiências que propiciam a condição de se apropriar e fruir no uso da língua culta. Na sequência, vamos entender um pouco maissobre o letramento sob a ótica de Magda Soares, compreendendo antes um pouco sobre a pesquisadora: Fique atento • MAGDA BECKER SOARES • Possui graduação em Letras Neolatinas pela Universidade Federal de Minas Gerais (1953) e doutorado em Didática pela Universidade Fede- ral de Minas Gerais (1962). Atualmente é mem- bro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, membro de comitê assessor do Conselho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnológico, consultora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais e conselheira da Com- munitee Economique Europeen. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino- -Aprendizagem, atuando principalmente nos se- 16 guintes temas: alfabetização, letramento, escrita, ensino, leitura e formação de professores. • Currículo Lattes CNPQ. Disponível em: http:// lattes.cnpq.br/8530550473275266. Acesso em: 10 jan.2019. • Agora que já sabemos um pouco mais sobre a autora, vamos discutir suas ideias. Sobre o Letramento: um tema em três gêneros No livro Letramento: um tema em três gêneros, Magda Soares explica Letramento como verbete, como texto didático e como ensaio. Ao tratar sobre o verbete, Magda indaga: “Que novo fato, ou nova ideia, ou nova maneira de compreen- der a presença da escrita, no mundo social trouxe a necessidade desta nova palavra, o letramento?”. Pois muito bem, todos sabemos que as palavras sur- gem devido a necessidades de uso – até aqui nenhu- ma novidade, mas vamos pensar em uns exemplos: Antes, não havia a palavra “ficar” como é utilizada hoje. “Fiquei com aquele garoto”. Na minha época, sem querer entregar minha idade, usávamos namorar, noivar, casar, mas, com o tempo, as relações amo- rosas foram mudando e surgiu esse termo, “ficar”. Palavras como deletar, escanear, digitalizar e outras também são mais recentes. 17 Da mesma forma, os termos alfabetização, alfabe- tismo – campos semânticos próximos que você poderá conhecer mais ao ouvir o podcast – eram utilizados para designar pessoas que sabiam ler e escrever. Na segunda metade dos anos 80, foi reali- zada uma pesquisa, nos Estados Unidos da América, com o objetivo de verificar o nível de entendimento de cada uma das pessoas “[...] em primeiro lugar, os instrumentos utilizados avaliaram as habilidades de ler, compreender e usar textos em prosa, como editoriais, reportagens, poemas etc.” (SOARES, 2014, p.23). Essa pesquisa foi realizada com o intento de mostrar que a leitura como prática social exigia mais que saber ler e escrever, requeria do indivíduo saber aplicar essas habilidades. Podcast 1 E saber aplicar as habilidades é um dos aspectos que fazem com que letramento e gêneros textuais cami- nhem juntos e transponham o texto como estrutura escrita, trazendo, por meio de outros instrumentos, aspectos cotidianos para análise; conforme Soares, também foram solicitadas habilidades em “[...] lo- calizar informações extraídas de mapas, tabelas, quadros e horários etc.” (SOARES, 2014, p. 23). Você está conseguindo acompanhar? O foco, portanto, não se situava em ler e escrever, em ser alfabetizado ou não, mas na capacidade de utilização prática dos diferentes gêneros “[...] se sa- biam fazer uso de diferentes tipos de material escrito, 18 compreendê-los, interpretá-los e extrair deles infor- mações – que nível de letramento tinham.” (SOARES, 2014, p.23). A palavra “letramento” surge para marcar a diferença em relação à “alfabetização”, por essa razão, retor- namos à indagação de Soares: “Que novo fato, ou nova ideia”? Há diferenças entre ser alfabetizado e ser letrado “[...] uma última inferência que se pode tirar do conceito de letramento é que um indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto, mas ser, de certa forma, letrado (atribuindo a este adjetivo sentido vin- culado a letramento)” (SOARES, 2014, p.24). A essas alturas, você já deve ter concluído que não é por acaso que começamos nossa conversa sobre leitura de mundo! Em o Letramento como texto didático, Soares tra- ça distinções entre ler e escrever, esclarecendo que nosso problema não é ensinar a ler e escrever, mas sobretudo “[...] levar os indivíduos a fazer uso da lei- tura e da escrita, envolver-se em práticas sociais de leitura e de escrita”. (SOARES, 2014, p. 58). Essas práticas sociais de leitura e escrita podem ocorrer em todo e qualquer ambiente em que a crian- ça frequente. Não é somente na escola que a criança desenvolve essas práticas. Além disso, o letramen- to vai além dessas duas habilidades – ele é e está imbricado na vida; quando a criança, sem saber ler e escrever, consegue identificar o símbolo do seu 19 lanche predileto, saber que se trata da receita do bolo de chocolate, entender que determinado livro retrata sua história favorita – essas ações são re- sultado da prática de letramento, a qual, reiteramos, antecipa-se ao ler e escrever, não necessariamente precisa se situar no campo da leitura e da escrita e, só para complicar mais um pouco, vai além dessas duas habilidades. Voltando um passo atrás, através dessas pequenas construções, constatamos que a criança já adquiriu os símbolos necessários para começar a trazer sentido para o seu próprio mundo e para interpretar os sinais que as cercam. Assim, em um contexto no qual vida e esco- la precisam fazer sentido para que ocorra o letramento, é necessário que haja condições reais; o aprendizado não pode se dar em si- tuações distantes da realidade do aluno, mas precisa estar conectado à realidade para que faça sentido. As condições materiais são as relacionadas à infraestrutura para o aprendi- zado. Essas são condições primárias para que os educandos se apropriem dessa cultura, ao que Magda questiona: “O que ocorre nos pa- íses do Terceiro Mundo é que se alfabetizam crianças e adultos, mas não lhes são dadas as condições para ler e escrever, não há material impresso posto à disposição, não há livrarias [...]” (SOARES, 2014, p.58). 20 No Letramento em ensaio, a autora discute ‘como de- finir, como avaliar, como medir’, situando-se em três problemas conceituais, sendo o primeiro na própria definição de letramento, o que conduz à pergunta: “que letramento é esse que busca avaliar e medir”? (SOARES, 2014, p.64). No segundo, a dúvida é sobre os critérios utilizados para avaliar o letramento em contextos escolares, em censos demográficos e em pesquisas por amostragem; e, no último, aponta a importância dessas avaliações e medições de letra- mento, mostrando o contraponto – que é a necessi- dade de cumprir pré-requisitos para fazê-lo. Avaliar e medir são construtos, elementos subjetivos que dependem de diferentes variáveis para serem uti- lizados com pequena margem de erro. Ao pensarmos na variedade e diversidade que há em nosso país em termos culturais, econômicos, étnicos, etários, esco- lares, e assim por diante, enfrentamos a dificuldade de obter um parâmetro que defina exatamente o nível de letramento ideal versus o real. A desigualdade de oportunidades, em termos escolares, também é um indicador da dificuldade em se mensurar usando o mesmo parâmetro. Sei que, quanto mais nos aprofundamos na questão, mais dúvidas vão surgindo e isso é normal: quando nada sabemos, não temos como questionar! Bom, vamos adentrar um pouco mais o assunto e conversar sobre alfabetização e alfabetismo, assim ficará mais clara a distinção entre os dois. 21 Alfabetização – ideias introdutórias O conceito de alfabetização vem passando por constantes revisões, Peres e Araújo (2001, p.118) expressam que o conceito de alfabetização foi revi- sado em função da problemática brasileira acerca de competências e habilidades para uso da escrita na aprendizagem inicial. “No Brasil, os conceitos de alfabetização e letramento se confundem, pois as habilidades de leitura e escrita necessárias às práti- cas sociais letradasestão associadas à aprendiza- gem básica da leitura e da escrita.” (PERES; ARAUJO, 2011, p.118). Devido a essa problemática, a escola, ao longo dos anos, tem se deparado com o desafio de alfabetizar as crianças. Para alcançar tal objetivo buscou mé- todos e estratégias, as mais diversificadas possíveis; ainda assim, as estatísticas mostram que estamos aquém do ideal: são necessárias mais pesquisas, tecnologias, para que possamos romper essa barreira inicial que é a aquisição da leitura e da escrita, pois o desenvolvimento da língua materna é um processo contínuo e você, aluno de Letras, entende melhor que ninguém o que isso significa. Em relação aos métodos, materiais didáticos, Soares explica que há condicionantes implicadas nessa questão: 22 A natureza complexa e multifacetada do pro- cesso de alfabetização e seus condicionantes sociais, culturais e políticos têm importan- tes repercussões no problema dos métodos de alfabetização, do material didático para a alfabetização, particularmente a cartilha, da definição de pré-requisitos e da preparação para a alfabetização, da formação do alfabe- tizador (SOARES, 2004, p.23). Para além da compreensão dos métodos, é essencial observar que esses, por mais eficientes que sejam, ainda esbarram em outras questões relacionadas ao indivíduo e as condicionantes que Soares expôs. E isso quer dizer, futuro professor, que, em algum momento, você pode encontrar no ensino médio um aluno analfabeto. Surpreso(a)? Pausa para história: Há uns dez anos, em uma escola da periferia, em São Mateus, SP, observei um aluno do 1º ano do ensino médio que dormia bastante, não interagia, não respondia às questões, mas copiava toda a lição. Um dia, fui ao trabalho rouca e escrevi na lousa que não poderia explicar o conteúdo por estar sem voz. Foi quando observei aquele adolescente copiando. Não tive dúvida; na sequência, fiz um diag- nóstico e constatei a triste realidade. Precisei fazer um trabalho diferenciado com ele para que pudesse evoluir nas hipóteses de escrita. Bom, voltemos ao nosso assunto; Soares explica a etimologia (origem da palavra) alfabetização: “alfa- 23 betização tem o significado de levar à aquisição do alfabeto, ou seja, ensinar o código da língua escrita [...]” (SOARES, 2017, p.15). É comum, ouvir que al- fabetizar é decodificar os códigos; como se a mera junção de letras ou sílabas pudessem dar conta de tal complexidade, como se a língua fosse formada por simples códigos. Ao que ela acrescenta “ensinar as habilidades de ler e escrever [...]” (SOARES, 2017, p.15). Em relação a essas habilidades, “[...] o debate básico desenvolve-se em torno de dois pontos de vista que, de certa forma, estão presentes no duplo significado que os verbos – ler e escrever – possuem em nossa língua” (SOARES, 2017, p15). E exemplifica: “Ex.1. Pedro já sabe ler. Pedro já saber escrever. Ex.2. Pedro já leu Monteiro Lobato. Pedro escreveu uma redação sobre Monteiro Lobato”. (SOARES, 2017, p.15). A polissemia das palavras ler e escrever precisa ser compreendida dentro de um contexto maior, nesse caso: a frase. A análise dessas palavras feita pela autora é de que, no primeiro exemplo, trata-se da habilidade de codificar e decodificar, assim, a “alfa- betização seria um processo de representação de fonemas em grafemas (escrever) e de fonemas (ler)” (SOARES, 2017, p.16). Leia o quadro para se inteirar melhor sobre fonema, grafema e polissemia. Fique atento • “Fonema é qualquer um dos traços distintivos de um som da fala, capaz de diferenciar uma pa- 24 lavra de outra: pala, bala, mala, fala, vala, cala, sala, tendo p, b, m, f, v, c, s como fonemas”. “Gra- fema é a menor unidade gráfica que faz parte de um sistema de escrita: uma letra é um grafema; um sinal gráfico é um grafema”. • “Polissemia - Que apresenta um grande núme- ro significados numa só palavra cujo significado dependerá do contexto em que a palavra está inserida. Exemplo em que uma mesma palavra pode ser usada com mais de um significado: Cabo: cabo de vassoura, cabo militar, cabo da faca”. (HOUAISS, Dicionário Online. Disponível em: https://www.dicio.com.br. Acesso em: 7 jan. 2019) Agora que você já avançou um pouco mais no seu sa- ber, sigamos nossa conversa. No segundo exemplo, ler e escrever “significam apreensão e compreensão de significados expressos em língua escrita (ler) ou expressão de significados por meio da língua escrita (escrever)” (SOARES, 2017, p.16). A língua vai além do aspecto de reproduzir ou repre- sentar ideias, Tomasi & Medeiros explicam que “a língua é uma atividade cognitiva: sua função mais importante não é informacional, mas a de inserir os indivíduos em contextos sócio-históricos e permitir que se entendam. É mais do que um veículo de in- formações.” (MARCUSCHI 2011,67 apud TOMASI; MEDEIROS, 2017, p. 46). É inegável a característica informacional da língua, todavia, é fundamental re- 25 fletir também sobre a função de inserção social e histórica. Quanto a isso, Tomasi e Medeiros explicam que há três concepções de língua: como expressão do pen- samento, como instrumento de comunicação; como forma ou processo de interação. Para primeira con- cepção, “o modo como o texto, que se usa em cada situação de interação comunicativa está constituí- do não depende em nada de para quem se fala, em que situação se fala (onde, como, quando), para que se fala.” (TRAVAGLIA, 2009, p. 22 apud MEDEIROS; TOMASI, 2017, p.46). Nessa concepção, a organiza- ção lógica do pensamento é enfocada. Na segunda, o enfoque recai sobre emissor, receptor, código “o código, portanto, deve ser dominado pelos falan- tes para que a comunicação possa ser efetivada” (TRAVAGLIA, 2009, p. 22 apud MEDEIROS; TOMASI, 2017, p.46). Na última, a língua não se situa em ex- plicitar pensamentos, mas situa-se na interação que essa estabelece com os falantes “o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou transmitir informa- ções a outrem, mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor.” (TRAVAGLIA, 2009, p.23 apud MEDEIROS: TOMASI, 2017, p.46). Agora que já tivemos introdução à alfabetização, entendemos um pouco sobre a língua, vamos seguir debruçando nossas ideias sobre ler e escrever. 26 Ler e escrever Ler e escrever são habilidades básicas cobradas em todos os sistemas de avaliação, por isso, também compõem o currículo. O que é discutível, nessa ques- tão, é que existem diferentes níveis de leitura e de escrita. O que é saber ler e escrever? Traduzir os códigos sem gaguejar é leitura? Escrever códigos sem erros de ortografia é escrita? Os Parâmetros Curriculares (PCN) de Língua Portuguesa pressupõem que a língua se realiza em uso, nas práticas sociais, assim, os eixos pelos quais são organizados os conteúdos da Língua Portuguesa se situam nas quatro habilidades linguísticas: falar, escutar, ler e escrever, as quais devem ser expandi- das para melhor uso da linguagem e apropriação do mundo. Daí vermos a seleção dos conteúdos desde o Ensino Fundamental, com vistas a atender esses re- quisitos. Os dois eixos básicos a que se referem são o uso da língua oral e da língua escrita que devem ser alicerçados na análise e reflexão sobre a língua, “cujo objetivo principal é melhorar a capacidade de compreensão e expressão dos alunos, em situações de comunicação tanto escrita como oral” (BRASIL, 1997 p. 48). As situações de comunicação e de reflexão sobre a língua, em seus usos, são processos linguísticos que, no PCN, são classificadas em epilinguísticas e metalinguísticas. Na epilinguística, a “reflexão está voltada para o uso, no próprio interior da atividade 27 linguística em que se realiza” (BRASIL, 1997, p. 30). Assim, quando conversamos com as pessoas e te- mos dúvida do que elas estão dizendo, questionamos o significado; essa é uma atividade epilinguística. Outro exemplo: quando conversamos sobre a escolha vocabular maisapropriada para definir cada situação. Ex.: o marido chega muito tarde, grita com a esposa e pede para ela servir a comida: Qual palavra você acha que seria mais apropriada? Colocou a comida com carinho, com raiva ou com dedicação? Nesse contexto de gritos, possivelmente, ‘com raiva’, exceto se ela aproveitou a saída do marido e foi ao shopping, comprou várias roupas com o cartão de crédito dele etc. (brincadeirinha, só para descontrair.) Agora vamos ver o que é metalinguística? “As ati- vidades metalinguísticas estão relacionadas a um tipo de análise voltada para a descrição, por meio da categorização e sistematização dos elementos lin- guísticos”. (PCN, 1997, p.30). Nós, professores, ado- ramos explicar. Vamos simular uma situação. Hoje vamos tratar sobre Advérbio. Advérbio é uma palavra modificadora – que modifica o verbo, o substantivo e o próprio advérbio. Uma de suas características é que ela é invariável e expressa as circunstâncias: lugar – aqui, ali, lá etc. Tempo – hoje, ontem, ama- nhã e assim por diante. Esse é um exemplo de uso da metalinguagem, ou seja, usamos a língua para explicar sobre ela própria. Os parâmetros nos dão uma pista interessante so- bre como devemos trabalhar os conteúdos sobre as habilidades em sala de aula: 28 Se o objetivo principal do trabalho de análi- se e reflexão sobre a língua é imprimir maior qualidade ao uso da linguagem, as situações didáticas devem, principalmente nos primeiros ciclos, centrar-se na atividade epilinguística, na reflexão sobre a língua em situações de produção e interpretação, como caminho para tomar consciência e aprimorar o controle so- bre a própria produção linguística. E, a partir daí, introduzir progressivamente os elementos para uma análise de natureza metalinguística. O lugar natural, na sala de aula, para esse tipo de prática parece ser a reflexão compartilhada sobre textos reais. (BRASIL 1997, p. 31) Você deve estar se perguntando por que tratamos sobre metalinguística e epilinguística em uma seção cujo propósito é falar sobre ler e escrever. A resposta é simples; essas atividades linguísticas são meios que podem ser utilizados para que o aluno consiga se apropriar dos conteúdos de leitura e escrita, prin- cipalmente por estarem as atividades epilinguísticas atreladas à análise e reflexão da língua, ao uso real e social das nossas práticas. Com a experiência, vocês vão perceber a diferença de conceito, aplicação e prática em sala de aula, mas podem começar com a leitura do livro indicado abaixo: 29 Saiba mais • Os PCNs utilizam esses três termos: “análise linguística”, “atividade epilinguística” e “atividade metalinguística”, com base no livro “Portos de passagem”, de João Wanderley Geraldi. Aprovei- ta e já abre uma fichinha com os livros indicados que você lerá futuramente. Vamos continuar explorando esse tema? No primeiro parágrafo, questionamos: ler é decifrar o código? Ao que Tiepolo, responde: [...] a leitura é determinada por uma série de fatores extralinguísticos como: a história social e psicológica de cada leitor, suas ex- pectativas e interesses; a situação em que o leitor se encontra enquanto lê; as relações com outras formas de linguagem, como as canções, a pintura, a dança e as alegorias do folclore. (TIEPOLO, 2014, p. 97) A atividade de leitura não é mecânica, linear e isolada – já conversamos um pouco sobre isso. Ela supõe um leitor ativo. Esse leitor deve participar, interagir com o texto, usando não apenas os recursos linguís- ticos, mas todos aqueles que já explicamos e que fazem parte do contexto cultural, social e intertextual do indivíduo. Além desses elementos, é importante destacar o universo simbólico, que deve ser consi- derado, já que as representações, as significações 30 fazem parte da bagagem do indivíduo, que no ato discursivo inclui a sua relação com as diferentes linguagens. Podcast 2 O nosso segundo questionamento foi: escrever é re- produzir códigos sem erro de ortografia? Percebemos que muitos professores, das diferentes áreas, usam um discurso pronto de que ‘o aluno não é bom, por- que não sabe nem escrever’; algumas vezes, esse aluno considerado fraco é aquele que organiza o texto de maneira coerente, utiliza argumentos consis- tentes, mas ainda comete erros ortográficos, portan- to, esse questionamento se dá com base na análise discursiva cotidiana. Não tencionamos ser reducionistas e descaracterizar a importância da ortografia no nosso sistema linguís- tico, entretanto, também devemos considerar que, nos anos 80, houve uma compreensão equivocada sobre o uso do construtivismo – essa interpretação confundia aprender sistematicamente com aprender naturalmente. Fique atento • Construtivismo é uma concepção abrangente, que requer aprofundamento, por isso, a indicação desse livro de Maria da Graça Azenha que traçará um percurso de Piaget a Emília Ferrero, mostran- do as transformações teóricas na Educação, a 31 partir de estudos das fases e da aprendizagem das crianças. • Vale a pena conferir! • AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget a Emília Ferrero, 8. ed. São Paulo: Ática, 2006. Link nas referências Vamos retomar o assunto? Outros discursos prontos são de que a escrita é um talento que poucos pos- suem, que é necessário estar inspirado para escrever etc. Imagine você, que está fazendo esse curso, en- viar uma explicação da não realização da atividade, alegando falta de inspiração!? A escrita, de acordo com Koch e Elias (2009, p.32- 39) requer foco na língua, no escritor, na interação e ativação de conhecimentos. É fundamental reiterar a concepção interacional da língua “tanto aquele que escreve como aquele para quem se escreve são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto [...]” (KOCH; ELIAS, 2009, p.34). Considerando, portanto, esses e outros elementos implicados no ato da escrita, ela é uma: [...] atividade de produção textual que se re- aliza, evidententemente, com base nos ele- mentos linguísticos e na sua forma de orga- nização, mas requer, no interior do evento comunicativo, a mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos do escritor, o que 32 inclui também o que esse pressupõe ser do conhecimento do leitor ou do que é comparti- lhado por ambos. (KOCH; ELIAS, 2010, p. 34). Ler, escrever, falar, ouvir – habilidades que propiciam condições para inserção do indivíduo no mundo – são processos contínuos de construção que têm na escola seu maior contributo, todavia, não se restringe a ela, faz parte da nossa formação, já que somos seres inacabados, fazendo alusão a Paulo Freire. Agora, você já está preparado(a) para adentrar o mundo da alfabetização e letramento, que veremos a seguir. Letramento literário Como pudemos observar, as práticas de ler e es- crever são resultantes da prática escolar, já o “con- ceito de letramento surge da necessidade político- -epistemológica de reconhecer, nomear e analisar teoricamente as práticas sociais de leitura e escrita, mais complexas do que as práticas de ler e escre- ver resultantes da aprendizagem escolar da leitura e da escrita” (PERES; ARAUJO in ZACCUR, 2001, p. 117-118). As práticas sociais são importantes porque elas tra- duzem o real; as situações não são criadas, mas elas permeiam a nossa vida. Por isso, essas práticas dão sentidos e significados e, por entender a finalidade, 33 para que serve, o indivíduo ‘consegue se apropriar do conceito’. Soares, em uma das definições, explica que letramen- to é “o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e a escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou indivíduo como consequência de ter se apropriado da escrita” (SOARES, 1999, p.17). Assim, letramento se relaciona a ler e escrever. Deve- se, contudo, notar que ela usa o termo ‘relacionar’, estar em relação com algo não significa ser igual, assim, chamamos a atenção parao fato de que ler e escrever ocorre em um contexto de letramento, sem isso, estagnamos e adentramos na situação de alfabetismo funcional, que é, simplificando, quando a pessoa lê um trecho, entende as palavras, mas não consegue formar o sentido, isto é, não compreende o que leu. Como dito anteriormente, letramento é uma palavra relativamente nova e surge em função de um contex- to social que demanda habilidades que vão além do que ler e escrever já que implica em práticas sociais. Mas como essas práticas são concretizadas em sala de aula? Oportunamente, serão explorados aspectos que possam contribuir com a sua prática, mas aprovei- tamos para antecipar e tratar sobre os letramentos literários, outro tema que não tem uma definição pronta e que demanda uma construção dialogal para compreensão. 34 Quando falamos em letramento literário, temos que ter cautela, pois há uma tendência a achar que, pela simples razão de se ler um livro de literatura, esse letramento já ocorre. Posto isso, é importante refletir que nessa questão há implicações que precisam ser consideradas. “Todos nós exercitamos a linguagem de muitos e variados modos em toda a nossa vida, de tal maneira que o nosso mundo é aquilo que ela nos permite dizer, isto é, a matéria constitutiva do mundo é, antes de mais nada, a linguagem que o expressa” (COSSON, 2009, p. 14) e ele continua: “[...] o dizer mundo (re)construído pela força da palavra, que é literatura, revela-se como uma prática funda- mental para a constituição de um sujeito da escrita” (COSSON, 2009, p.15). Feitas essas citações, já po- demos pegar o fio da meada para discutirmos. A linguagem é exercida de muitas maneiras. Se pen- sarmos na linguagem oral, ela é praticada nas várias conversas cotidianas com nossos familiares, amigos, colegas de trabalho, professores etc., mas não só com esses – o nosso diálogo se dá com pessoas que não conhecemos e que podem ou não fazer parte da nossa vida. Quando lemos uma fábula, exemplo, o Leão e o Ratinho; esses personagens passam a habitar nosso mundo, as atitudes que um tem em relação ao outro ajudam-nos a refletir sobre nos- sas crenças e comportamentos, as narrativas, os vocábulos, as intenções comunicativas, os vários discursos presentes nesse texto, passam a ser a “matéria constitutiva do mundo” e o “dizer-mundo” é materializado pela literatura, pois é “[...] no exercício 35 da leitura e da escrita dos textos literários que se desvela a arbitrariedade das regras impostas pe- los discursos padronizados da sociedade letrada e se constrói um modo próprio de se fazer dono da linguagem, que, sendo minha, é também de todos” (COSSON, 2009, p.16). Essas palavras nos remetem ao filme Jogada de Gênio: O professor Robert Kearns, em um temporal, observa o para-brisas do carro e inventa um tempo- rizador do limpador. Na sequência, ele apresenta a ideia à empresa automobilística, que se apropria da invenção. O professor abre um processo contra a em- presa e, no julgamento, um especialista diz que todos os componentes utilizados na invenção já existiam. E, no recesso do tribunal, o professor pede ao filho que corra à livraria em busca de um livro clássico. Robert começa a ler um trecho, para e pergunta ao advogado se ele conhecia aquela palavra, e outra, e assim por diante, ao que o advogado assente com a cabeça. Pois bem – conclui brilhantemente –, todas essas palavras já existem e são de acesso a todos os falantes, mas isso faz desse livro algo que não foi criado e inventado pelo autor? E não vamos contar mais nada, porque, se você for assistir, perde a graça. É importante esclarecer que o trecho sobre o filme não é uma transcrição da fala, mas antes a memória e uso de paráfrase para elu- cidar a ideia. Então, trazendo o trecho já explicitado de Cosson, pela literatura construímos “um modo próprio de se 36 fazer dono da linguagem, que sendo minha, é tam- bém de todos”. Ao que o autor acrescenta “[...] a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais do que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade” (COSSON, 2009, p.17). A literatura como experiência nos permite elaborar e reelaborar, porque, a partir do momento em que somos tocados pelo outro, incorporamos esse outro em nós. Ficou muito subjetivo para entender? Somos formados por várias vozes. Essas vozes – observem – não são do ‘além-túmulo’, são as vozes das pessoas que conhecemos e conversam conosco, sejam mãe, pai, irmãos, coleguinhas, professores, jornalistas, autores literários, sejam experiências, vivências, enfim, é o resultado de quem somos. Todas essas vozes compõem o nosso discurso. Bakhtin chama essas vozes de polifonia. Fique tranquilo quanto a esse conceito, pois conversaremos mais a respeito. Sem mais delongas, essas várias vozes são “a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade”, conforme citado acima. Para que essas vozes, e agora voltamos às literárias, façam sentido, não podemos restringir a ideia de leitura como ato solitário; essa leitura pode e deve ser compartilhada em sala de aula, mas não é ler por ler, “na verdade, apenas ler é a face mais visível da resistência ao processo de letramento literário na escola” (COSSON, 2009, p.26). 37 Essa face visível de resistência impede que ocorra o letramento e, nesse momento, é importante relem- brarmos o conceito de alfabetizar, de ler e escrever, de letrar e do letramento literário que, ao mesmo tempo em que são etapas, são também processos interdependentes e simultâneos, em palavras mais simples: uma coisa não exclui a outra e elas se su- plementam e se completam. O letramento literário, portanto, é a própria experi- mentação dos vários textos em suas cores, sabores, texturas, expressão da linguagem, da palavra, dos vários e diversos saberes que ajudam o indivíduo a romper um padrão limitante e constituir uma nova história em que o letramento literário constitui e é por ele constituído. Para compreender mais sobre os aspectos que envol- vem o letramento, siga a caixa de diálogo e embarque em mais um vídeo. Saiba mais • Nessa entrevista, Magda Soares conversa so- bre alfabetização e letramento e esclarece que as crianças em processo de alfabetização se apro- priam da leitura e da escrita em um contexto de letramento com base em situações sociais reais, medidas pelos professores. • Ela ressalta a importância da literatura – o pra- zer de ler, o comportamento leitor – como face- tas do Letramento. 38 Também estabelece uma metáfora das partes do ser humano com as partes do livro. Agora, para saber mais, acesse o vídeo Alfabetização e Letramento. Disponível em: https://www.youtu- be.com/watch?v=-YP-7l6oAZM. Acesso em: 10 jan.2019. 39 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desse tópico, pudemos perceber a confusão conceitual que se estabelece entre ‘leitura e escrita’, ‘alfabetização’ e letramento, dada a complexidade e a interpretação dos diferentes teóricos. De qualquer forma, podemos sintetizar leitura e es- crita como práticas que vão além do conceito de alfabetização. O conceito de alfabetização não se limita à decodificação, todavia não abarca o conceito de letramento que é maior que esse, já que impregna e constitui nossas práticas sociais. Nessas linhas finais, pensamos em uma maneira de você completar sua formação nesse assunto, compreendendo a importância do letramento para alfabetização, assim deixaremos duas sugestões: o filme ‘Kaspar Hause’, que trata sobre um persona- gem real que foi encontrado quando tinha 15 anos, no século XIX, em Nuremberg. Ele mal sabia falar e andar. Como ele foi privado do convívio humano, ele apresenta carência cultural, o que impacta na dificul- dade de desenvolver a linguagem e se reintegrar à sociedade. Nesse filme, gostaríamos que refletisse sobre letramento x alfabetização. 40 Figura 3: Livro Kaspar Hause ou a fabricação da realidadeNa sequência, dê um pulo na biblioteca virtual e leia o livro de Izidoro Blikstein, ‘Kaspar Hause ou a fabrica- ção da realidade’, que apresentará suas concepções sobre o real, os estereótipos culturais e a linguagem. Enfim, após assistir ao filme e ler o livro, você tirará conclusões próprias sobre a linguagem x o contexto social. Finalizamos com essa convicção: aprender a falar é ir além de balbuciar sons, ser alfabetizado é ir além de conhecer os códigos linguísticos, ler e escrever é ir além de decodificar e desenhar letras. Aonde você quer chegar? O que podemos fazer para ir além do que os teóricos denominam Letramento? Esperamos você em breve para conversarmos sobre gêneros. Até lá, bom descanso!!! 41 Síntese Referências AZENHA, Maria da Graça. Construtivismo: de Piaget à Emília Ferrero, 8. ed. São Paulo: Ática, 2006. BATISTA, Antônio Augusto Gomes. O texto escolar: uma história. Belo Horizonte: Ceale, Autêntica, 2008. BLIKSTEIN Izidoro. Kaspar Hause ou a fabricação da realidade. 18. ed. São Paulo: Contexto, 2018. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portugue- sa. Brasília, 1997. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. HALMENSCHLAGER, Sue Ellen de Lima Calvario. Material impresso e gêneros textuais: princípios e meios de comunicação para aprendizagem, São Paulo: Érica, 2015. KOCH, Ingedore Villaça. As tramas do texto – 2. ed. São Paulo: Contexto, 2014. KOCH, Ingedore Villaça, ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gê- neros. São Paulo: Autêntica 1999. TIEPOLO, Elisiani Vitória. Falar, ler e escrever: práticas metodológicas para o ensino de língua portuguesa. Curitiba: Intersaberes, 2014. TRASK. R.L. Dicionário de linguagem e linguística. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. _GoBack INTRODUÇÃO LETRAMENTO Para começo de conversa Leitura de mundo Alfabetização e Letramento: Implicações e paradoxos Sobre o Letramento: um tema em três gêneros Alfabetização – ideias introdutórias Ler e escrever Letramento literário CONSIDERAÇÕES FINAIS Síntese bt_foward 15: Page 1: bt_foward 18: bt_foward 17: Page 43: Page 44:
Compartilhar