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Alexandre - Texto helio peregrino Édipo Rei

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Trecho extraído do texto “ÉDIPO E A PAIXÃO”, de Hélio Pellegrino I Vejamos de que maneira Freud concebe o complexo de Édipo e as vicissitudes cruciais que o constituem. Para o criador da psicanálise, a criança — no caso da nossa exposição, o menino —, entre os três e cinco anos, se apaixona sexualmente por sua mãe e, em decorrência, quer matar o pai, rival que lhe barra o caminho da paixão incestuosa. Ele quer a mãe, e a quer falicamente, transformando o pênis num objeto fálico. Veremos depois que pênis e falo não são conceitos superponíveis. O pênis é um objeto — ou símbolo fálico — tanto quanto o seio ou as fezes podem sê-lo. Nessa fase da evolução da libido, o pênis-falo ganha um formidável valor narcísico. Ele é o eixo, o centro da atividade sexual da criança, o fulcro de seu orgulho narcísico e de sua afirmação de onipotência e completude. II O menino, portanto, na fase fálica deseja a mãe e quer matar o pai. Essa situação mobiliza todo o elenco das mais terríveis paixões humanas. Ciúme, inveja, ódio parricida, culpa, tremor e temor, tais são os ingredientes das paixões edípicas. Para que possamos entender de que maneira Freud conceitualiza a resolução do drama edípico, precisamos distinguir as duas etapas da fase fálica e introduzir, em nossa bagagem conceitual, o complexo de castração. Esta é uma referência central no pensamento freudiano e, juntamente com o complexo de Édipo, constitui o centro, o arcabouço fundamental do edifício da ciência psicanalítica. III A fase fálica do desenvolvimento sexual infantil implica duas etapas, que são marcadas pelas teorias sexuais infantis construídas em cada uma delas. Na primeira, a criança elabora uma teoria sexual pela qual só existe um sexo, o masculino. Todos os seres humanos são dotados de pênis, que aqui surge como falo, como objeto imaginário, e não como uma realidade. No caso do menino, o falo corresponde ao pênis, anatomicamente presente. No caso da menina, a falta de pênis simplesmente não é assinalada. Há uma negação dessa falta, através de um objeto imaginário, que é o falo. IV Acredito que essa maciça negação da falta, através do falo, possa corresponder a uma defesa primitiva contra o fantasma da castração, que é, segundo Freud, arquetípico, e, portanto, suprapessoal. O fantasma da castração é um dos fantasmas originais. Tem dimensão filo-genética, herdada, e independe de experiências pessoais. Ele está presente no psiquismo e, inclusive, interfere — ou mesmo determina — o jogo da fantasmática individual. Na primeira etapa da fase fálica, portanto, o falo está presente em todos os seres humanos, de tal maneira que a falta do pênis nas meninas e mulheres simplesmente é negada. O falo é, em última análise, o significado da falta, conforme o define Lacan. Na primeira etapa da fase fálica, ele é imaginarizado e aparece, exatamente, como alguma coisa que preenche a falta. A falta só pode ser representada através de alguma coisa que a preencha. Não posso representar uma falta por outra falta. Um orifício, só posso representá-lo pelas paredes que o circunscrevem ou por um objeto que, entrando nelas, o denuncia — e o representa. Um dedo que penetre um cano vai denunciar o vazio do cano, torna-se significante desse vazio. O dedo, entretanto, pode vir a significar imaginariamente não o vazio do cano, mas o contrário deste, isto é, sua plenitude. Nessa medida, esse dedo passa a desempenhar uma função fálica imaginária. V Na segunda etapa da fase fálica, a criança descobre a falta do pênis nas meninas e nas mulheres. Essa falta será lida não como significando a diferença sexual e, como tal, constituindo a oposição significativa masculino-feminino, mas a partir da primeira etapa da fase fálica. A criança permanece fiel à sua teoria de que todos os seres humanos têm o falo, mas constata, perplexa, que ele pode ser perdido. Há criaturas que foram despojadas do seu falo, e a prova disto é que lhes falta o pênis, vivido como falo. VI Essa descoberta é crucial e passa a constituir o fundamento do complexo de castração. O menino passa a ter medo de perder o pênis, uma vez que a ausência dele, na menina, é prova de que isso pode acontecer. A oposição nessa etapa da evolução libidinosa, é fálico ou castrado. O pênis — falo imaginário — pode ser perdido, e esta perspectiva ou possibilidade o menino a articula ao complexo de Édipo. Não nos esqueçamos de que, no drama edípico, o menino quer possuir a mãe sexualmente, eliminando o pai, através do parricídio. Na fantasia inconsciente, odeia o pai, quer assassiná-lo, castrá-lo, destruí-lo, reduzi-lo a nada. Não é surpreendente que, a partir daí, passe a temer a vingança retaliatória do pai, que o vai punir com a mesma moeda. No inconsciente vige, soberana, a lei de Talião: olho por olho, dente por dente. 
VII Na medida em que o menino percebe, na segunda etapa da fase fálica, a ausência do pênis-falo na menina e na mulher, cria a teoria de que elas o perderam. E, nessa medida, passa a temer com todas as forças do seu medo, que a mesma coisa lhe aconteça por obra do Pai terrível, implacável e castrador. O menino, cuja vida psíquica na Fase fálica é enfunada pelos ventos da paixão incestuosa, defronta com o perigo eminente — e iminente — da castração. Ele pode vir a perder seu artefato fálico — o pênis — tão caro e necessário à plenitude do seu narcisismo. E esta ameaça brutal que, segundo Freud. o leva a desistir da paixão que o faz desejar a mãe e querer matar o pai. O temor da castração, filogeneticamente condicionado, presente na fantasia inconsciente, é, para Freud, a mola mestra que leva à superação do complexo de Édipo. O menino, para evitar a suprema injúria narcísica que seria a perda do pênis-falo, desiste de sua paixão incestuosa, capitula diante da Lei do Pai, ou Lei da Cultura, que interdita o incesto e, identificando-se com tal interdição, aceita a gramática social do desejo e se prepara para ser, quando adulto, sócio pleno da sociedade humana. A resolução do complexo de Édipo implica, para Freud a internalização identificatória com as prescrições e interdições da cultura. Por isso é que o criador da psicanálise afirma que o superego é o herdeiro do complexo de Édipo. VIII Em trabalho intitulado Pacto social e pacto edípico (1983), procuro mostrar que a resolução do complexo de Édipo se faz não apenas em nome do temor e de tremor, mas também em nome de amor. A Lei do Pai é internalizada, sem dúvida, no temor. Sem a ameaça de castração, que dá à Lei da Cultura plena potência interditória, a resolução de Édipo seria impossível e, com isto, a criança jamais se desligaria da mãe para criar sua própria aventura. Mas a ameaça não é o único elemento que confere à Lei o seu poder de convicção — e conversão. A Lei não existe para aniquilar o desejo, aviltando-o ou degradando-o. Ao contrário, existe como gramática capaz de articulá-lo com o circuito de intercâmbio social. O menino, ao aceitar a interdição do incesto, tornando-se com isto candidato ao pleno estatuto de sócio da sociedade humana, tem o direito – ao qual corresponde um dever social – de viver um processo fecundo e favorável de socialização, no qual estejam inscritas as inalienáveis prerrogativas de alimentação, saúde, moradia, educação – e carinho. IX A lei é produto de Eros – não de Tânatos. Ela é guarida de desejo, na medida em que o encaminha no sentido de uma subordinação ao princípio de realidade, luz apolínea capaz de articular-se com a dimensão dionisíaca e desmesurada da pulsão, na sua busca de prazer a qualquer preço. A Lei disciplina o desejo para guardar a vida, introduzindo, na espessura do corpo e da carne, o clarão do Logos. X Voltemos a fase fálica e às teorias sexuais infantis que nela se manifestam. É na segunda etapa da fase fálica que surge, com agudez dramática, o problema da castração. Até aí não existia, do ponto de vista da teoria infantil, a diferença sexual. Depois, a diferença aparece, ainda lida a partir da teoria construída na primeira etapa. O falo deixa de ser alguma coisa que se tem, sem problemas maiores, e passaa ser alguma coisa que se perde. O falo é destacável, circula, pode assumir várias formas. Freud, inclusive, criou uma equação simbólica assim formulada: pênis-fezes-presente-filho. Esses podem ser objetos fálicos, e podem equivaler-se. XI Para o menino, o medo da castração o obriga a desistir de sua paixão incestuosa. É pelo horror à perda dos órgãos genitais que ele desinveste a figura materna de seus desejos sexuais e acaba por identificar-se com as interdições do superego. Mas, enquanto a castração leva o menino a sair do campo do Édipo, ela conduz a menina à entrada nesse campo. A menina descobre que não tem o pênis-falo e, com isto sente-se prejudicada. Ao perceber que a mãe também não o tem, passa a desvalorizá-la e, nessa medida, se dirige para a figura do pai, dotado de falo e, portanto, cheio de poder e fascinação. A menina se dirige ao pai para solicitar dele ou o falo, ou um equivalente do falo, que é um filho. Ela pleiteia do pai um filho, como indenização pelo fato de ter sido despojada do pênis-falo, por defeito de fabricação. XII Tais conceitos são importantes para o esclarecimento da idéia — ou da acusação — de que Freud foi um machista impenitente, defensor da superioridade do homem sobre a mulher. Freud fala da inveja do pênis, sem dúvida. A mulher teria inveja do pênis, e sua ausência seria fonte de graves sentimentos de inferioridade. Entretanto, aquilo que provoca inveja não é o pênis anatômico, mas o pênis-falo, o objeto imaginário fálico, apto como tal a investir quem o tenha de um valor de completude e de plenitude narcísicas. Nessa medida, também o homem tem inveja fálica. Se o seu pênis é o falo, isto é, se fica preso à etapa de desenvolvimento da libido, será sempre rondado — e roído — pelo medo da castração. Poderá perder o falo para ver-se possuidor de um pênis apenas, com as chuvas e trovoadas eventuais que isso possa acarretar. O pênis-falo não pode ser apenas potente: ele tem que ser onipotente. O homem, nessa medida, pode sentir-se inferiorizado — ou impotente — na medida em que não alcance um rendimento sexual que testemunhe essa onipotência. 
XIII A inveja fálica, de homens e mulheres, pode deslocar-se para qualquer coisa que teria significado fálico, isto é: qualquer coisa que implique plena expansão narcísica e pleno sentimento de completude. Esta coisa pode ser a inteligência, a beleza física, a força do corpo, a voz, a produção artística, o canto, a fama, a glória, o dinheiro — o que quer que seja. Dado que o falo é um objeto mítico, imaginário, impossível, uma vez que não existe nada que possa conferir a quem quer que seja a completude — a não ser a morte —, a inveja fálica, que é o desejo de possuí-lo, será sempre presente, numa tentativa de retorno a uma atitude narcísica também impossível. XIV Falemos, agora, do conceito lacaniano de castração simbólica. Lacan, na sua elaborada e sofisticada teoria, metaforiza o complexo de castração freudiano. Neste, há o risco de um corte mutilante, que a criança teme. Para não perder o pênis, eixo central de sua expansão narcísica, o menino desiste de sua paixão incestuosa e aceita a interdição do pai, que proíbe o incesto. Na verdade — e Lacan o mostra — o menino aí aceita um corte, não do seu pênis, que ele refuga, mas da sua relação narcísica com a mãe. Para Lacan, no início, a criança é o falo da mãe, aquilo que lhe falta e a completa. Através da criança, que é o falo, a mãe o tem, o possui e, com isto, cria para si um estado ilusório de completude narcísica. XV A castração simbólica implica a perda da abastança fálico-narcísica, seja para a criança, que deixa de ser o falo da mãe, seja para a mãe, que deixa de ter o falo, encarnado na criança. Ela é operada pelo pai simbólico, em nome da Lei do Pai, ou Lei da Cultura. O pai simbólico não é a Lei, mas o representante da Lei. Ele faz a maiêutica da subjetalidade de filho, partejando-o das águas maternas, reduzindo o poder absoluto do desejo da mãe e mediatizando a relação mãe-filho, na medida em que introduz nela um terceiro termo: a Lei, a linguagem, o circuito de intercâmbio social. XVI A castração simbólica é o coroamento de um processo gradativo de separação entre a criança e a mãe. Em primeiro lugar, é o corte do cordão umbilical. Esse corte é prototípico de todo corte separador e, portanto, de toda castração. É dele que se trata, em última análise, quando a criança teme perder o pênis, através de um corte. O Pênis-falo liga a criança à mãe, tanto quanto o cordão umbilical a ligou um dia a ela. O corte temido é, no fundo, uma metáfora corporal pela qual a criança exprime – e revive – a angústia do nascimento. XVII Depois do corte do cordão umbilical, modelo prototípico de castração, perturbação catastrófica da placidez narcísico-fetal, há cortes que vão construindo a separação entre criança e mãe. O desmame é outro corte decisivo. A criança perde o seio-falo, fonte de toda a segurança e de todo o prazer, objeto cuja posse, uso e gozo constitui garantia de completude — a beatitude. Depois, vem a exigência de controle esfincteriano, pelo qual a intimidade corporal entre criança e mãe é mediada por regras, prescrições, interdições. O bastão fecal, dentro da equação freudiana de equivalência simbólica, pode significar um objeto fálico que circula e costura a união entre criança e mãe. Em seguida, vem o drama edipiano e a interdição do incesto. Aí, a mãe tem que ser perdida, como objeto de relação dual, fálico-narcísica, exclusiva e excludente. Essa perda crisma, confirma e consagra o corte do cordão umbilical, que, no nascimento, separa a criança da mãe. Ela instaura, por mediação da Lei e da ordem do simbólico, a presença, no coração do ser do homem, da falta, da cárie, da carência — que o nascimento inaugura.. 
XVIII O falo simbólico é significante do centro do desejo, que é vazio. O falo simbólico é o significante da in-determinação, da liberdade — e da possibilidade da linguagem. Ele é o significante da possibilidade de significação, em termos de um circuito de intercâmbio social. O ser humano é o ser para o qual o mundo, tal como está, não basta. Isto decorre do fato de que ele nasce prematurado e, portanto, incompleto e, em conseqüência, incompatível com o meio-em-torno que o rodeia. O ser humano, ao nascer, em virtude da prematuração, sofre um corte para cujo preenchimento ele não tem equipamentos. O animal, ao nascer, traz consigo uma trama de instintos capazes de costurá-lo ao meio que o rodeia. Ele não vive a experiência de aguda insuficiência biológico-ontológica na qual o nascimento precipita o ser humano. O animal tem ganchos de abordagem aptos a costurá-lo à realidade. Tendo vindo de casa — do útero — ele continua em casa, já que o Cosmo é sua casa. Ele marcha para o real e se conecta a ele, sem precisar simbolizá-lo. Ao animal, não lhe falta nada. A leitura que faz do mundo corresponde, simetricamente, à estrutura de suas ne-cessidades. O mundo é a concha que o envolve e na qual ele se perde, extático. O animal faz, desde o nascimento, uma experiência de pertinência cósmica que o torna parte do real, íntimo do coração da ma-téria, filho dileto — e inocente de Deus. 
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XIX Já o ser humano é, por definição, e em sua essência, impertinente. Nascido, faz uma experiência aguda de derrelição. Ele é jogado no mundo, atirado a um meio que não lhe serve de chão, por faltar-lhe as cordoalhas instintivas pelas quais poderia tecer-se no tapete cósmico, fazendo parte de tudo. Nascimento é exílio amargo, crispação de angústia no corpo, auge de um despedaçamento que vulnera a carnalidade mais íntima do infante. Ele se vê marcado, no centro de sua experiência biológico-existencial, por um impasse originário que se constitui pelo esbarro formidável do corpo nascido com uma muralha impenetrável, incognoscível, nadificante, da qual não salta, de início, nenhuma resposta que corresponda de maneira plena a uma demanda instintiva pré-formada, capaz, portanto, de significar o mundo, tornando-o decifrável. XX O instinto não procura, acha. O ser instintivo faz do mundouma leitura seletiva que o torna imemorialmente familiar. O instinto é, por definição, isso: memória imemorial, lampejo platônico de um conhecimento que se enraíza no começo dos tempos e do mundo. O instinto é a encarnação da lei cósmica, e sua sabedoria transcende, infinitamente, o campo do indivíduo, para inseri-lo numa sabedoria arcaica, que ele não pode modificar. O instinto está despregado da cruz da liberdade, e sua estrutura corresponde aos grandes movimentos do Cosmo, à sucessão das noites e dos dias, às estações com seus coloridos vários e aos cios cujas fogueiras queimam para extinguir-se — sem palavras —, renovando-se em seguida. XXI Por não ter sido nascido — ou partejado — pelo Cosmo, por não ter dado o salto da natureza para a cultura, por não carregar em seu centro a liberdade — essa fraqueza no coração do ser, como a define Merleau-Ponty —, o animal não precisa dar testemunho da sua passagem no mundo, não precisa falar porque é falado pelo acontecer cósmico, é parte do real, do oceano incomensurável, em movimento, que abarca as constelações mais remotas, e a erva mais modesta — e mais próxima. O animal digere o Cosmo, que o atravessa todo, sem precisar imaginarizá-lo — ou simbolizá-lo. XXII Já o ser humano, prematurado, biologicamente incompleto, num estado de inermidade que é ímpar em todo o leque riquíssimo da criação, experimenta, ao nascer, a realidade como angústia. A condição de ser humano, como ser-no-mundo, revela ao homem, primigenamente, como uma fulguração apocalíptica de angústia. O rumo do ser nos chega à pele e ao corpo, em primeiríssima instância, pelo aguilhão da angústia. Este dado constitui um dos fundamentos da filosofia heideggeriana. Para Heidegger, a angústia é um estado privilegiado do Dasein, através do qual se anuncia a chegada do ser. XXIII O primeiro movimento do infante, após o nascimento, é refugar a realidade, fonte, para ele, de uma ansiedade catastrófica. Ao saltar do ventre materno para a luz do mundo, o recém-nascido, por mercê da prematuração, por falta de equipamento instintivo, cai no abismo, recebe na carne um montante de estímulos para cuja acalmia a realidade pouco ou nada pode fazer. A criança, ao nascer, esbarra numa muralha de angústia, feita de poderosas, vertiginosas e explosivas excitações que lhe atravessam o corpo. A criança, diante disso, reflui. Ela recua, frente a uma realidade que não a acolhe, buscando abrigo no passado. Para Freud, um dos fantasmas originários é, exatamente, o fantasma da vida intra-uterina. A criança, ao nascer, em função da angústia, desnasce. Volta para a casa primordial, cujo modelo está gravado em sua mente. É importante assinalarmos que a criança, nascida biologicamente, se refugia num útero fantasmado, arquetípico, negando, desta forma, o nascimento — e a realidade. XXIV Este é o primeiríssimo passo: a negação da realidade. Pelo narcisismo primário — fusão absoluta e imaginária ao organismo materno — a criança atualiza e dá consistência ao fantasma da vida intra-uterina. Ela cria para si mesma um sleeping-bag envolvente e protetor, onde se acolhe — e recolhe — transida. É claro que o intercâmbio da criança com a realidade, do ponto de vista objetivo, se faz incessantemente. Para a escuridão do útero fingido onde ela se abriga, fluem, incessantemente, os rios de leite e mel dos cuidados maternos, que inscrevem no psiquismo infantil as primeiras — e imorredouras — experiências de satisfação. São estas as luzes primordiais, na escuridão da mente. Elas são fulgurações de prazer que prefiguram a realidade — e a antecipam. A vida, em seu fundamento, é sonho. Nascemos, aos poucos, do sonho imaginário para o sonho simbólico que, em sua ordem, inclui o imaginário e o real e os transmite através da linguagem. 
XXV As experiências de satisfação, na criança, vão ser representadas alucinatoriamente, em primeira instância. O infante guarda dentro de si tudo o que lhe e aproveitável, do ponto de vista do prazer. Fica fora o que é mau ou indiferente, desse ponto de vista. A crianças por sua prematuração, não suporta estar separada dos objetos que atendam à sua necessidade e ao seu desejo. Ela os instala, alucinatoriamente, em seu mundo interno, e os investe segundo o ritmo dessas necessidades e desejos. É curioso notar-se aqui que a carência, seja em função da necessidade, seja em função do desejo, vai ser geradora do objeto capaz de preenchê-la e de aplacá-la. No psiquismo primitivo, portanto, regido pelo princípio do prazer, a necessidade ou o desejo aparecem sob a forma dos objetos capazes de satisfazê-los. Se estou com fome, começo por alucinar um seio capaz de atendê-la — e aplacá-la. Ao mesmo tempo, o leite que me chega da realidade externa, e da mãe real, vai ser atribuído não à realidade, mas à alucinação por mim criada. As experiências reais são para a criança, matéria de sonho, tanto quanto a argila que é, para o escultor, matéria de trabalho. Não há escultura sem argila, da mesma forma como não há objetos alucinatoriamente gratificantes se não houver experiências de satisfação cuja substância é a realidade. XXVI No começo, a criança alucina a realidade e as experiências de satisfação, e as coloca sob a égide do princípio do prazer. Para este, conta o prazer, acima de tudo. Um seio alucinado é mais próximo e coroável ao princípio do prazer do que um seio real, transcendente ao desejo da criança. O princípio do prazer vige no inconsciente, seja infantil, seja adulto, é a mola que põe em marcha os sonhos. O psiquismo primitivo, alucinatório, a serviço do princípio do prazer, tem nos sonhos o seu herdeiro privilegiado. Os sonhos estão basicamente a serviço da realização de desejos, embora recalcados. Neles, tanto quanto no psiquismo primitivo do infante, a necessidade aparece sob forma de sua satisfação. Se sonho com um banquete é porque estou com fome. Se dormi com o desejo de comer uma maçã, posso sonhar que a como. O desejo, cujo centro é uma cárie — uma carência —, aparece no sonho como um preenchimento dela e, portanto, como satisfação do desejo. XXVII A atividade alucinatória do psiquismo infantil, assim como os sonhos, visa à completude e serve ao princípio do prazer. Neste sentido, possui, imaginariamente, função fálica, visa à negação da falta e à expansão do narcisismo. Aqui chegamos a um ponto crucial — nodal — da evolução humana. O princípio do prazer nega a realidade. Este é o primeiro movimento do infante ao nascer. Ele reflui para si próprio e constrói um mundo de objetos imaginários, constituídos por via alucinatória, que têm por função negar a falta, a cárie, a carência que nos constitui, em nosso centro. Essa função, negadora da realidade, é uma função fálico-imaginária. Ela obtura o espaço vazio, de indeterminação e liberdade, no qual a realidade pode fazer sua aparição. Ela utiliza as experiências da satisfação, que a realidade oferece, para negá-la, através da atividade alucinatório-imaginária. Numa primeira etapa, a criança transforma, radicalmente, a realidade em sonho, dispensando-a, nesta medida. Ela seria uma realidade onírica e alucinatória feita à imagem e semelhança de suas necessidades e desejos satisfeitos. XXVIII Essa negação primária da realidade vai, entretanto, até um certo ponto. Ela é. inicialmente indispensável para que a criança possa defender-se das insuportáveis angústias mobilizadas pelo nascimento. Quanto mais prematurada e inerme estiver a criança mais terá que abrigar-se ao sleeping-bag de sonho e prazer que fabrica para si mesma. Há, entretanto, um momento em que a realidade externa começa a cobrar seus direitos. A criança comeca a perceber que os objetos capazes de satisfazê-la transcendem sua possibilidade de criá-Los a seu bel-prazer. Eles têm existência própria, densidade própria, movimentos próprios, vão e voltam, se ausentam, se separam da criança sem que esta possa ter sobre eles controle absoluto. XXIX Começa a vigência do princípio da realidade. Esta passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade tem significado momentoso. Ela marca o iníciodo processo de um novo nascimento — ou re-nascimento — pelo qual a criança, perdendo a onipotência que lhe conferia o princípio do prazer, tem que sair de si — e de sua abastança narcísica — para buscar o mundo externo e os objetos externos. XXX No princípio é a negação da realidade. Minhas produções alucinatórias, embora a utilizem, a dispensam. Vivo num mundo onipotente de completude fálico-imaginária. Com o passar do tempo, e em virtude do processo de minha própria maturação, percebo, literalmente, que não posso viver de ilusão. Os objetos externos se impõem, cada vez mais e, com sua autonomia, me fazem perceber as falhas de meus jogos – e dispositivos – imaginários. Preciso da realidade e dos outros, cada vez com mais urgência. A negação da realidade, pela qual construí meu sentimento de completude narcísica, tem que agora ser, por sua vez, negada. XXXI A negação dessa negação é o simbólico. Perco a capacidade de fechar os olhos ao mundo, através de minhas construções imaginárias mas, abrindo mão delas, vou simbolizá-las, no mundo exterior segundo as leis que o regem e, acima de tudo, segundo as leis da linguagem e da cultura. A linguagem, portanto, é a terceira margem do rio, confluência do sonho e da realidade, núpcias da pulsão e do Logos, que, no transporte da paixão, engendra o verbo. Há quem pense que, com a dominância do princípio da realidade, o sonho se acabe. Em verdade, não acaba nunca. O sonho é centelha que salta do desejo e é através dela que vou acender as fogueiras através das quais o rosto do mundo se ilumina. O sonho, levado aos ombros da realidade, que o simboliza, é o projeto profundo do homem e a teleologia da história. O sonho, vivido, enraizado no real, que o suporta, vai ser a matriz da utopia, o eixo das grandes transformações que fazem a grandeza do processo civilizatório. (...) 
XXXII No mundo inconsciente primitivo, o desejo surge sob a forma de sua satisfação. Não existe, como vimos, falta, cárie – carência. A passagem pelos desfiladeiros da castração simbólica implica a perda dessa dimensão fálica. Se quero comer uma maçã, não basta sonhá-la ou aluciná-la. Essa possibilidade, dirigida para o mundo externo, implica a aceitação do princípio da realidade: tenho que comprá-la, ou pedi-la, ou roubá-la da árvore da ciência do bem e do mal. De qualquer forma, tenho que assumir minha incompletude, a partir do meu desejo de comer a maçã. Minha fome é estímulo para que eu, jungido ao princípio da realidade, vá buscá-la, inventando, com trabalho e pena, o caminho até ela. XXXIII (...) A palavra é a ausência da coisa, embora a represente e invoque, evoque- ou convoque. [A palavra copo, enquanto tal, é um signo lingüístico que não é, obviamente, a coisa significada. Se assim o fosse, conseguiríamos beber água na palavra copo]. XXXIV (...) Ao proferir o mundo, transformando-o em discurso, torno-o metabolizável para a minha mente, mas o perco na sua opacidade densa – e impenetrável. O real é impossível – diz Lacan –, e tem razão. O real – ser-em-si – é transcendente a nós, e não se rende ao humano discurso. Ele nos atravessa, nos constitui em nossa materialidade concreta, mas guarda silêncio, aquém – ou além – do simbólico. Ele é simbolizável e, como tal, pensável. Mas, cerrado em sua noite, é guardião do seu próprio segredo. (...) O código lingüístico, as regras e prescrições da cultura, a Lei que os preside e organiza, tudo isso gera a possibilidade de infinitos discursos sobre o real. Ele próprio, mudo e quedo, traz em seu coração o mistério do cosmo. (...) PELLEGRINO, Hélio,

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